Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
634/23.5T9CNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: UNIDADE OU PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
CONTRAORDENAÇÃO
MUNICÍPIO
GESTÃO FLORESTAL
ILÍCITOS CUJA EXECUÇÃO PERDURA NO TEMPO
CASO JULGADO
Data do Acordão: 10/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CANTANHEDE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 18.º, N.º 1, E 29.º, N.º 5, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 5.º, 6.º, 41.º, N.º 1, E 79.º DO RGCO/D.L. N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO
Sumário: I - No domínio contraordenacional, como no ordenamento penal, verifica-se caso julgado material quando a decisão proferida por um tribunal, seja ela condenatória ou absolutória, se torna firme e exequível, insusceptível de impugnação por via de recurso ordinário, concretizando definitivamente a decisão relativamente à infracção que foi objecto do processo tendo em vista o sancionamento do respectivo responsável.

II - A disciplina própria do processo penal em matéria de repetição de julgados é

conformada pelo nº 5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa, em cujos termos ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime, preceito respeitante a direitos, liberdades e garantias e que nessa medida é directamente aplicável, vinculando as entidades públicas e privadas, como dispõe o art. 18º, nº 1, do diploma fundamental. Este princípio, estabelecendo a proibição do duplo julgamento penal, visa precisamente impedir a dupla punição pelo mesmo crime, assumindo em simultâneo o sentido de proibição de repetição do julgamento pelos mesmos factos (vertente processual) e de proibição de renovação da punição criminal (vertente penal), sendo aplicável no âmbito do direito de mera ordenação social.

III - O problema que se coloca no âmbito da teoria da unidade ou pluralidade de infracções não se basta com o critério da unidade da conduta naturalística, sobretudo quando estejam em causa ilícitos cuja execução perdura no tempo, havendo que lançar mão, também, de um critério normativo, particularmente, quando estão em causa delitos omissivos.

IV - O facto de o Município ter sido sancionado pela omissão dos deveres que sobre si impendiam de gestão de uma determinada faixa de combustível não significa que o sancionamento por essa omissão obste à prossecução de procedimento contraordenacional pela omissão de intervenção em outras faixas de combustível igualmente a seu cargo. O que verdadeiramente permite identificar a unidade do facto ou a sua pluralidade é o relevo (da conduta verificada) ao nível da violação normativa, analisada a par da valoração dos deveres que sobre o agente impendem e vista ainda a “postura” por ele assumida.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *
Relator – Jorge Miranda Jacob
1ª Adjunta – Cândida Martinho
2ª Adjunta – Teresa Coimbra

_____________________________

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Na sequência da decisão administrativa proferida pela Guarda Nacional Republicana – Secção de Proteção da Natureza e Ambiente, Núcleo de Investigação de Crimes e Contraordenações Ambientais, que lhe aplicou uma coima no montante de 11.200,00€, pela prática, em concurso, de sete infrações, constantes do artigo 15.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 124/2006, conjugado com o artigo 38.º, n.º 1, do mesmo diploma e com os artigos 203.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 2/2020, de 31 de março e com o artigo 35.º-A, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, o Município …, através do seu órgão executivo, Câmara Municipal …, interpôs recurso para o Juízo Local Criminal de Cantanhede que, na sequência da realização de audiência de discussão e julgamento, proferiu sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:

(…)

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso de impugnação judicial interposto pela Câmara … e, em consequência, decide-se manter a decisão administrativa recorrida, pela prática de sete contraordenações previstas e punidas pelos artigos 15.º, n.º 1, alínea a) e 38.º, n.ºs 1, 2, alínea a) e n.º 4, da Lei n.º 124/2006, de 28 de junho, conjugado com o artigo 203.º, n.º 2, da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, que lhe foram aplicadas pela Guarda Nacional Republicana – Secção do Serviço de Proteção de Natureza e Ambiente, no montante da coima aplicada, no valor de 1600,00€ (mil e seiscentos euros), por cada uma das contraordenações e, operando o cúmulo jurídico das coimas acabadas de referir, em conformidade com o disposto no artigo 19.º do RGCO, condena-se a arguida no pagamento da coima única no valor de 6400,00€ (seis mil e quatrocentos euros).

(…)

Inconformado, recorre o arguido formulando as seguintes conclusões:

III – Ao punir o Recorrente nos moldes em que o fez o douto Tribunal a quo observou estritos critérios de legalidade, considerando a sua vertente objetiva e olvidando a correta apreciação da vertente objetiva da lei, sendo esta uma mácula que o Recorrente aponta à douta sentença, ou seja, a aplicação da justiça vai para lá da mera legalidade, pelo que o douto Tribunal a quo olvidou outros pilares fundamentais como a equidade.

IV – A aplicação “cega” da lei em causa revela uma iniquidade flagrante, pois impõe um prazo de dois meses, independentemente da extensão dos Municípios, - considerado que a Lei do Orçamento de Estado para 2020 foi publicada em 31 de março desse mesmo ano – …

V – A correta realização da justiça teria que ter necessariamente em conta estas premissas e não teve, o que não se concebe e torna esta decisão injusta, procurando-se nos tribunais a justiça e não a injustiça.

VI – E não se justifique esta questão com a existência de uma lei desde 2006 – já sobejamente alterada – quando esta lei não dispõe de nenhum prazo perentório de execução de trabalhos para os Municípios mas sim para os proprietários privados, pelo que na questão concreta dos prazos, o Recorrente foi forçado a cumprir os prazos previstos na Lei do Orçamento de Estado que se revelou completamente impossível por ser inexequível.

VII - Entende também o Recorrente que o douto Tribunal a quo, com a presente decisão, violou, de forma flagrante o princípio ne bis in idem - excepção de caso julgado.

VIII – Os presentes autos condenaram o Recorrente tendo por base os artigos 15º, n.º 1 e 38º, n.ºs 1, 2 e 4 da Lei n.º 124/2006, de 28 de junho, sendo que o Recorrente já havia sido condenado no âmbito do processo … através dos referidos artigos.

IX - Sucede que o douto Tribunal a quo assim não considerou, nomeadamente, ““Assim, não obstante a entidade autuante, autoridade administrativa, recorrente e conduta sejam os mesmos, não se verifica violação do princípio “ne bis in idem”, pois as infrações pelas quais a arguida foi condenada pela autoridade administrativa nos presentes autos, e nos processos …, reportam-se todas elas a locais e dias distintos, configurando, por conseguinte, factos distintos.”

X - Não podendo concordar o Recorrente com a tese defendida pelo Tribunal a quo, pelo facto de a mesma contrariar de forma flagrante o artigo 29º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, no que toca ao mencionado princípio ne bis in idem.

XV - Entendeu o Tribunal a quo que naquela circunstância não se verificava a exceção de caso julgado pelo facto de se reportarem a infrações distintas, isto é, numa estava em questão gerir o combustível numa faixa lateral de terreno confinante com rede rodoviária numa largura não inferior a 10 metros, sendo que noutra estava em causa gerir o combustível e sua manutenção, de uma faixa envolvente com uma largura mínima não inferior a 100 metros subsumível em normas distintas.

XVIII - Na verdade, na situação sub judice, estamos perante exactamente a mesma omissão da gestão de faixa de combustível considerada no âmbito dos processos … daí a subsunção das normas ser idêntica. Aliás, duas das características das normas são a generalidade e a abstração, o que determina a punição da conduta em abstrato.

XIX - Omissão essa que tem de ser necessariamente considerada única, considerando o período temporal em causa, os factos em análise e a conduta omissiva do Recorrente, não podendo, salvo melhor opinião em contrário, o Tribunal a quo considerar que não estamos perante a exceção de caso julgado, pelo simples facto de estar em causa locais distintos – ora, o exemplo real do crime de recetação é um exemplo concreto que se adapta na perfeição à presente circunstância e que contraria a questão do local.

XXII - Aliás, veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo n.º 1873/16.0T8TVD.L1-3, de 27/09/2017 cujo sumário determina:

XXIII – Veja ainda o douto Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 355/16.5T8PMS.C1, em 11 de junho de 2019 e com o seguinte sumário:

XXIV – O supra citado Acórdão é claro e concreto em como a conduta em apreço já foi objeto de decisão, não podendo o Município ser novamente condenado por factos – omissão da gestão da área de combustível – pelos quais já foi condenado.

XXV - Pelo que, em resumo, é inegável que a presente situação já foi decidida no âmbito dos processos acima mencionados e conforme o douto Acórdão que agora se mencionou, pelo que a continuidade dos presentes autos implicará uma clara violação do princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, o que não se pode conceber num Estado de Direito.

XXVI – Além do mais, em duas situações em tudo similares à dos autos, os Municípios de … e de … – ambos com área e faixa de gestão de combustível bem mais reduzidas … – foram absolvidos, respetivamente, … não se podendo aceitar dois pesos e duas medidas para duas situações similares, …

XXXV - Ora, considerando que a “negligência é o ato praticado sem a falta de um cuidado que deveria ser tomado antes da conduta, ou seja, é a falta de atenção, quando o agente deixa de praticar algo que deveria fazer”, vejamos, então, nesta linha de orientação, em que medida, e em sede conclusiva, é que a conduta da arguida não foi negligente (negrito nosso).

Assim,

a)Devem ser valorados de forma diferente e mais assertiva as declarações prestadas pelas testemunhas …

g) Não faz, portanto, sentido que um Núcleo da mesma GNR – no caso, o Núcleo de Proteção Ambiental do Destacamento Territorial de ... – … – tenha agido autonomamente e não tenha articulado o assunto internamente a fim de se inteirar de todas as envolventes deste processo, ao contrário do que fez acreditar o Arguido, quando aprovou sem reservas o PMDFCI, numa flagrante situação de abuso de direito;

j) Quando foi levantado o auto de contraordenação em causa, os concursos – para esta e outras situações – estavam a ser iniciados, pelo que se estranha, atendendo à Entidade que estava em causa, que não se tenha previamente auscultado, conforme era sua obrigação se estivesse a agir de boa-fé, o que o Arguido estava a realizar relativamente a esta situação, apesar da GNR fazer parte da Comissão da Defesa da Floresta;

k) Não houve, portanto, qualquer inércia, nem tão pouco negligência, por parte do Município de …, no caso arguido, em todo este processo, afirmando-se inequivocamente que os trabalhos em causa há muito se mostram concluídos – concretamente foram concluídos dentro dos prazos de calendarização previstos – tendo sido previamente adjudicados à Empresa que os executou em Setembro de 2019, no seguimento do concurso antes aberto para o efeito, conforme se prova pelos documentos juntos aos autos sob os n.ºs 5, 6 e 7, também e ainda aqui dados por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais;

l) Quando o presente auto de contraordenação foi levantado TODOS OS PROCEDIMENTOS – ADMINISTRATIVOS, CONCURSAIS E DE ACTUAÇÃO - SE ENCONTRAVAM EM CURSO …

p) Ora, relevando que “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado …” (Artigo 15.º do CP), verifica-se, face ao que vem alegado e comprovado nas precedentes alíneas a) a k), que a arguida não descurou as suas obrigações e responsabilidades…

Aliás, a infração cometida nem foi considerada como grave ou muito grave por parte do douto Tribunal a quo mas sim como gravidade moderada: …

Termos em que (…) se requer ao Venerando Tribunal Superior que:

A) Determine a revogação total da douta sentença recorrida proferida pelo Tribunal a quo e, consequentemente, absolva a arguida …

B) Determine, também, a total revogação da sentença recorrida, e apenas determine, face à conduta e comportamento não negligentes que a arguida comprovadamente evidenciou no caso, a aplicação de uma simples ADMOESTAÇÃO.

            O M.P., na sua resposta, pronunciou-se pela manutenção da decisão recorrida …

            O Exmº. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso, …

            Foram colhidos os vistos legais.

Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões formuladas, as questões a conhecer são as seguintes:

- Excepção de caso julgado / violação do princípio ne bis in idem;

- Reapreciação da matéria de facto fixada;

- Abuso de direito por parte da GNR.

- Absolvição do arguido ou condenação numa simples admoestação.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O tribunal a quo descreveu o provado nos seguintes termos:

           

            19) Cabia à recorrente, em todas as situações, ter diligenciado pela gestão de combustíveis do referido terreno, situação que não acautelou devidamente;

            20) Com as condutas descritas, a recorrente revelou desatenção e irrefletida inobservância das normas no âmbito do Sistema de Defesa da Floresta Contra Incêndios, atuando com manifesta falta de cuidado e prudência que a defesa da floresta contra incêndios no momento se lhe impunha, agindo de forma livre e consciente, não se avistando factos que retirem censurabilidade à sua conduta, sabendo que a sua conduta era punida por lei;

            21) … é um Município com uma área muito vasta, com uma rede viária municipal a rondar os 600 quilómetros;

            22) … é um Município que possui um Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios, plano esse aprovado em Assembleia Municipal realizada em 20 de fevereiro de 2019, para o período de 10 anos (2019-2028);

            23) Existe também a Comissão da Defesa da Floresta que, em reunião de 27 de Setembro de 2018 – Comissão da qual a Guarda Nacional Republicana faz parte e em cuja reunião esteve representada – determinou o agendamento dos trabalhos após aprovação do Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios, pelo que a Guarda Nacional Republicana era conhecedora e estava ao corrente de todos os procedimentos adotados e datas de execução dos mesmos, tendo votado favoravelmente;

            24) O Plano em causa foi dividido por áreas e por anos, sendo que no ano em que decorreram as fiscalizações, as freguesias … não tinham qualquer intervenção prevista, atendendo à calendarização da gestão das faixas que definiu zonas do Município ...;

            25) A intervenção nas freguesias de … estava prevista para o ano de 2021, a intervenção nas freguesias de … estava prevista para o ano de 2022 e a intervenção nas freguesias de … estava prevista para o ano 2023;

            26) O Município … não dispõe de meios próprios suficientes para dar cumprimento às determinações legais relativas à gestão da faixa de combustível pelo que canalizou os seus meios, numa fase inicial, para as zonas consideradas prioritárias, à semelhança do que havia feito ao longo dos anos, considerando a vasta área do concelho;

            27) O processo de gestão de faixas de combustível é um processo moroso, não só pelos custos que acarreta, os meios que são necessários disponibilizar, a identificação dos proprietários, a acrescer ao curto prazo de execução imposto – 30 de junho de 2020 – para a realização dos trabalhos de gestão de combustível;

            28) A recorrente procedeu à contratação pública de empresas com vista à adjudicação dos trabalhos;

            29) Quando foi levantado o auto de contraordenação, os concursos - para esta e outras situações - estavam em curso;

            30) Os trabalhos em causa foram concluídos no ano de 2021 – tendo sido previamente adjudicados à Empresa que os executou em setembro de 2019, no seguimento do concurso antes aberto para o efeito.

            Quanto ao não provado foi consignado na sentença recorrida o seguinte:

           

     A matéria de facto provada foi fundamentada nos seguintes termos:

           

           


***

            Vejamos então as questões suscitadas no recurso começando pela alegada verificação de caso julgado, não sem que antes se constate que o enquadramento jurídico das condutas descritas nos autos não é posto em causa senão no que toca à questão da unidade da conduta.   

O recorrente insurge-se contra a condenação em coima nos presentes autos argumentando que está em causa uma iniquidade flagrante por lhe ter sido imposto um prazo de dois meses, independentemente da extensão do Município, considerando que a Lei do Orçamento de Estado para 2020 foi publicada em 31 de março desse mesmo ano e que o Município ... tem uma área de gestão de cerca de 600Km, não sendo admissível que seja tratado da mesma forma que municípios que têm áreas de gestão muito menores a seu cargo.

Esta, contudo, é questão que não encontra suporte na lei. Sendo a lei, por natureza, geral e abstracta e não tendo o legislador distinguido as obrigações dos Municípios em matéria de gestão florestal em função das áreas de gestão de combustível a seu cargo, não pode o intérprete operar essa distinção, sabido ainda que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e que o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo, conforme dispõem, respectivamente, o art. 9º, nº 3 e o art. 8º, nº 2, ambos do Código Civil.

            Prosseguindo, o recorrente aponta a verificação do caso julgado com base na circunstância de ter sido anteriormente condenado por decisão transitada em julgado nos processos nºs. …, todos respeitantes à mesma conduta omissiva, decorrente da ausência de gestão das faixas de combustível. Considera ser imputável ao Município … uma só conduta omissiva, donde resultaria a impossibilidade de uma nova condenação pelos mesmos factos, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, com a consequente violação do art. 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.

            O caso julgado encontra expressa previsão no art. 79º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (DL nº 433/82, de 27 de Outubro, com as sucessivas alterações, adiante referido por RGCC) que, sobre a epígrafe «Alcance da decisão definitiva e do caso julgado» dispõe nos termos seguintes:

            1 - O carácter definitivo da decisão da autoridade administrativa ou o trânsito em julgado da decisão judicial que aprecie o facto como contra-ordenação ou como crime precludem a possibilidade de reapreciação de tal facto como contra-ordenação.

            2 - O trânsito em julgado da sentença ou despacho judicial que aprecie o facto como contra-ordenação preclude igualmente o seu novo conhecimento como crime. 

            São ainda atendíveis, por força do art. 41º, nº 1, do RGCC, os preceitos reguladores do processo criminal. Dispensável, no entanto, é o recurso reflexo, por via do art. 4º do CPP, às disposições dos arts. 580º, nº 1, e 581º do Código de Processo Civil, por o caso julgado nos domínios penal e contraordenacional obedecer a condicionalismo diverso.

            O recorrente tem em vista a dimensão material do caso julgado [1], vertida nas anteriores decisões da (mesma?) questão de fundo.

            No domínio contraordenacional, como no ordenamento penal, verifica-se caso julgado material quando a decisão proferida por um tribunal, seja ela condenatória ou absolutória, se torna firme e exequível, insusceptível de impugnação por via de recurso ordinário, concretizando definitivamente a decisão relativamente à infracção que foi objecto do processo tendo em vista o sancionamento do respectivo responsável. Fixam-se definitivamente os efeitos da decisão, que valerá tanto no processo como fora dele, em prol da certeza e segurança das decisões judiciais. Consequentemente, a instância não mais poderá ser renovada em processo que tenha por objecto a apreciação dos mesmos factos reportados à mesma incriminação e ao mesmo agente.

            A disciplina própria do processo penal em matéria de repetição de julgados é conformada pelo nº 5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa, em cujos termos ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime, preceito respeitante a direitos, liberdades e garantias e que nessa medida é directamente aplicável, vinculando as entidades públicas e privadas, como dispõe o art. 18º, nº 1, do diploma fundamental. Assim, o que está em causa é a violação do princípio ne bis in idem [2], que na óptica do recorrente foi afrontado por uma nova condenação por factos pelos quais já tinha sido anteriormente condenado.

            Este princípio, estabelecendo a proibição do duplo julgamento penal, visa precisamente impedir a dupla punição pelo mesmo crime, assumindo em simultâneo o sentido de proibição de repetição do  julgamento pelos mesmos factos (vertente processual) e de proibição de renovação da punição criminal (vertente penal),  sendo aplicável no âmbito do direito de mera ordenação social [3].

            Sustenta-se o recorrente na circunstância de terem sido instaurados contra si vários processos de contraordenação pela mesma entidade, visando a mesma conduta, quando já tinha sido condenada pela mesma infracção.

            Vejamos se assim é:

            Pela autoridade administrativa foram aplicadas coimas ao arguido pela prática dos seguintes factos:

            - No dia 01/07/2020, pelas 18h30m, na Rua …, nas coordenadas … (faixa lateral direita) e no local com as coordenadas … verificou-se que no estrato arbóreo as copas das árvores da espécie de eucalipto não estavam afastadas umas das outras pelo menos dez metros, distando as mesmas cerca de 2 e 3 metros umas das outras, encontrando-se mesmo algumas encostadas. Ademais, a vegetação herbácea tinha uma altura média de 60cm;

            - No dia 02/07/2020, pelas 11h50m, na Rua …, na freguesia ..., verificou-se no local com as coordenadas … na faixa lateral direita e faixa lateral esquerda, de terreno da referida estrada até à distância de 10m, as copas das árvores da espécie de eucalipto e de pinheiro bravo não estavam afastadas umas das outras pelo menos 10 metros, porquanto foi verificado que as copas das referidas árvores se encontravam encostadas umas às outras e as herbáceas tinham uma altura média de 0,5m;

            - No dia 07/07/2020, pelas 14h35m, na Rua …, verificou-se no local com as coordenadas … na faixa lateral esquerda, de terreno da referida estrada até à distância de 10m, as copas das árvores da espécie de eucalipto não estavam afastadas umas das outras pelo menos 10 metros, porquanto foi verificado que as copas das referidas árvores se encontravam encostadas umas às outras, e o estrato arbustivo tinha uma altura média de 1m e o subarbustivo uma média de 0,5m;

            - No dia 08/07/2020, pelas 15h30m, na Rua …, verificou-se no local com as coordenadas … na faixa lateral esquerda e na direita, de terreno da referida estrada até à distância de 10m, as copas das árvores da espécie de pinheiro bravo não estavam afastadas umas das outras pelo menos 10 metros e a dos cedros a 4m entre si, porquanto foi verificado que as copas das referidas árvores se encontravam encostadas umas às outras, e o estrato arbustivo tinha uma altura média de 1m e o subarbustivo uma média de 0,5m;

            - No dia 17/08/2020, pelas 15h00m, na estrada que liga a … à localidade …, verificou-se que no local com as coordenadas … na faixa lateral de terreno da referida estrada até à distância de 10m, as copas das árvores da espécie de pinheiro bravo e eucalipto não estavam afastadas umas das outras pelo menos 10 metros e a dos cedros a 4m entre si, porquanto foi verificado que as copas das referidas árvores se encontravam encostadas umas às outras, e o estrato arbustivo tinha uma altura média de 1,5m e o subarbustivo uma média de 1m;

            - No dia 18/08/2020, pelas 10h00m, na estrada que liga a localidade de …, verificou-se que no local com as coordenadas … na faixa lateral de terreno da referida estrada até à distância de 10m, as copas das árvores da espécie de pinheiro bravo não estavam afastadas umas das outras pelo menos 10 metros, porquanto foi verificado que as copas das referidas árvores se encontravam encostadas umas às outras, e os matos tinham uma altura média de 0,4m;

            - No dia 20/08/2020, pelas 11h30m, na estrada que liga a localidade de …, verificou-se no local com as coordenadas … na faixa lateral de terreno da referida estrada até à distância de 10m, as copas das árvores da espécie de pinheiro bravo e eucalipto não estavam afastadas umas das outras pelo menos 10 metros, porquanto foi verificado que as copas das referidas árvores se encontravam encostadas umas às outras, e os matos tinham uma altura média de 0,5m;

            - No processo n.º … foi aplicada uma coima à recorrente, pela autoridade administrativa, pois no dia 13 de junho de 2019, pelas 11h20m, na Rua … verificou-se que a arguida não realizou a gestão de combustíveis na rede viária, pois encontravam-se povoamentos de eucalipto e pinheiro bravo com uma área superior a 0,5 ha, bem como matos e outra vegetação espontânea. Foi, ainda, verificado nas faixas laterais de 10 metros dos terrenos confinantes com a referida rua, a maior parte dos pinheiros bravos e eucaliptos que ali se encontravam, estavam com as copas encostadas umas às outras, sendo que a distância entre copas dos restantes é inferior a 10 metros e os matos encontram-se com mais de 50 centímetros; ademais, foi ainda aplicada uma coima, pois, no dia 3 de julho de 2019, pelas 11h45m, na EM …, no sentido …, verificou-se que não foram criadas as faixas de gestão de combustível, uma vez que nas faixas laterais do terreno confinante com a referida via até à distância dos 10 metros, as copas das árvores da espécie de eucalipto e pinheiro bravo não estavam afastadas umas das outras pelo menos 10 metros. Foi também verificado que os matos que nalguns locais cobriam o solo tinham altura média de 150 cm e as herbáceas nalguns locais tinham altura média de 50cm.

            - No Processo nº … foi aplicada à arguida uma coima pela prática dos seguintes factos: no dia 25/06/2019, pelas 10h00, a Equipa de Proteção da Natureza e do Ambiente do Destacamento Territorial … procedeu a uma ação de fiscalização na EN …, no sentido … e no dia 25/06/2019, pelas 10h50, a Equipa aludida em 1. procedeu a uma ação de fiscalização na EN …, no sentido … e a rotunda da …

            - No processo n.º …, foi aplicada à arguida uma coima pela prática dos seguintes factos: no dia 6 de maio de 2019, pelas 11h51m, a Equipa de Proteção da Natureza e Ambiente verificou que nos terrenos envolventes da Zona Industrial …, sito nas coordenadas …, nomeadamente na faixa de 100 metros do seu limite exterior se encontra uma zona florestal composta por pinheiro bravo e eucalipto, sendo que a distância entre copas era inferior a 10 metros, cerca de 2 metros (valor em média), encontrando-se alguns mesmo encostados; e no dia 6 de maio de 2019, pelas 10h05m, a Equipa de Proteção da Natureza e Ambiente verificou que nos terrenos envolventes da Zona Industrial …, sito nas coordenadas …, nomeadamente na faixa de 100 metros do seu limite exterior se encontra uma zona florestal composta por pinheiro bravo e eucaliptos sendo que a distância entre copas era inferior a 10 metros, cerca de 2 metros (valor em média), encontrando-se alguns mesmo encostados.

            Ora, como facilmente se alcança, as condutas expressas nas apontadas contraordenações imputadas ao Município …, ainda que no essencial violem os mesmos dispositivos legais e decorram todas elas de conduta omissiva, não coincidem no tempo nem no espaço. Os factos que originaram os processos contraordenacionais e deram origem às coimas em que o arguido foi condenado verificaram-se em locais e em momentos distintos.

            Está em causa a verificação de uma pluralidade de infracções de natureza contraordenacional.

            Se bem conseguimos apreender a posição sustentada pelo recorrente, este entende que a partir do momento em que foi condenado pela omissão de gestão das faixas de combustível nos processos a que alude não mais o poderia voltar a ser por estar em causa a prática da mesma infracção que havia determinado as condenações anteriores, desconsiderando em absoluto a circunstância de as infracções terem sido verificadas após aquelas anteriores condenações, em locais e em momentos diversos.

            É certo que a situação dos autos se reporta a uma acção omissiva, estando em causa o desrespeito pela obrigação legal de promover até à data limite legalmente prevista determinadas acções de limpeza da floresta.

            A relevância temporal da prática do facto omissivo (momento da prática do facto) surpreende-se no art. 5º do RGCC, quando dispõe que o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido, resultando a relevância espacial (local da prática do facto) do art. 6º do mesmo diploma: o facto considera-se praticado no lugar em que, total ou parcialmente e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou ou, no caso de omissão, devia ter actuado, bem como naquele em que o resultado típico se tenha produzido.

            Como decorrência deste último normativo não se poderá entender que o facto de o Município ter sido sancionado pela omissão dos deveres que sobre si impendiam de gestão de uma determinada faixa de combustível signifique que o sancionamento por essa omissão obste à prossecução de procedimento contraordenacional pela omissão de intervenção em outras faixas de combustível igualmente a seu cargo.

            Como é evidente, estivesse em causa a mesma omissão concreta – por exemplo, a falta de intervenção nas faixas contíguas a uma mesma via rodoviária – não poderia o infractor ser condenado por omissão de intervenção na faixa do lado esquerdo da via e simultaneamente, dando origem a outra condenação, por omissão de intervenção na faixa do lado direito, posto que no essencial estaria em causa a mesma conduta omissiva. De igual modo, estivesse em causa a ausência de corte das copas das árvores ao Km 10 duma determinada via e também ao Km 10,100 da mesma via, estaria objetivamente em causa a mesma infracção. Não assim quando a omissão ocorre relativamente a diversas faixas de combustível em pontos da área administrativa do Município consideravelmente distantes e não ligadas entre si por uma solução de continuidade.

            O problema há-de situar-se, evidentemente, no âmbito da teoria da unidade ou pluralidade de infracções, cuja solução não se basta, no entanto, com o critério da unidade da conduta naturalística, sobretudo quando estejam em causa ilícitos cuja execução perdura no tempo, havendo que lançar mão, também, de um critério normativo [4]; verdade que se afirma como particularmente incontornável quando estão em causa delitos omissivos. Escreve, a propósito Eduardo Correia, que «Esta (omissão), na verdade, traduz-se em deixar de fazer alguma coisa, em deixar de se levar a cabo uma certa actividade que num dado caso se esperava. Ora o fundamento desta expectativa não é evidentemente uma lei causal, antes só pode ser a existência de um qualquer dever de actividade dirigido a um sujeito, de modo que a compreensão da omissão só se alcança graças à intervenção de um elemento externo, de um dever ser, isto é, o seu conceito estrutura-se sempre, no fim de contas, como um conceito normativo, de valor» [5]. Mais adiante, refere o mesmo insigne Professor: «Ora, pode suceder, e sucede com frequência, que o momento psicológico, correspondente à realização de uma série de actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal se estruture de tal sorte que esse concreto juízo de reprovação tenha de ser formulado várias vezes.

            Mas vistas as coisas por este lado, resulta daí que o todo formado por tais actividades enquanto encarnam a violação do mesmo bem jurídico, se fragmenta agora, na medida em que algumas das suas partes são objecto de um juízo autónomo de censura, adquirindo, portanto, dessa maneira independência e individualidade. E adquirindo autonomia e individualidade, cada uma dessas partes exige naturalmente um tratamento legal autónomo, isto é, reclama uma aplicação individual do respectivo Tatbestand e dá lugar, assim, a um crime independente.» [6].

            Aliás, essa é a linha de orientação que vem sendo seguida pelo Tribunal Constitucional. Como se refere no Acórdão do TC nº 298/2021, Tomando o facto - «o mesmo facto» -, não de um ponto de vista naturalístico, que coloca a tónica sobre a ação proibida, mas de um ponto de vista normativo, que atende à valoração jurídica da conduta, o Tribunal entendeu verificar-se um idem factum illicitum quando os tipos em confronto tutelam o mesmo «bem jurídico» ou pressupõem o mesmo tipo de «desvalor» (Acórdão n.º 244/1999); inversamente, entendeu que esse “idem factum illicitum” não verifica quando uma «mesma conduta (…) no sentido naturalístico» «corresponde a uma realização de factos com diversa relevância jurídica» e, na «perspetiva do grau de desvalor», o legislador sustentadamente entenda que existe «um acréscimo de desvalor» pela realização do tipo contraordenacional relativamente àquele que subjaz à realização do tipo criminal, optando, com base nesse «acréscimo de desvalor», por uma solução de «concurso efetivo» entre crime e contraordenação em detrimento de «outras opções segundo uma lógica de concurso ideal», tendo em conta que a «Constituição não impõe uma única solução jurídica nesta matéria» (Acórdão n.º 356/2006) [7] .

            Por outro lado, e debruçando-nos agora sobre as anteriores condenações impostas ao Município, não é menos exacto que a sua actuação omissiva, perdurando no tempo e apresentando-se como delito de execução permanente, sofreu um corte psicológico com a instauração de cada um dos sucessivos procedimentos contraordenacionais e, sobretudo, com o seu sancionamento. A partir deste momento o infractor assume plena consciência do carácter contraordenacional da sua omissão, não lhe restando senão desencadear as condutas em falta. A instauração de cada novo procedimento opera uma rotura no processo psicológico de execução permanente, interrompendo-se a solução de continuidade do facto, de tal forma que se os factos anteriores a cada condenação ainda não sancionados se deverão considerar exauridos, o mesmo não sucede relativamente aos factos ulteriores, que compreendem um novo juízo de desvalor e sustentam um novo e diverso procedimento, sem que por essa via se possa apontar a violação do princípio ne bis in idem em qualquer das duas vertentes (processual e penal) que antes referimos.

            Levada ao extremo a posição defendida pelo recorrente, este, uma vez condenado por uma conduta omissiva, jamais poderia voltar a sê-lo pela mesma conduta, o que em termos práticos se traduziria em abrir as portas à infracção consentida com a garantia de total impunidade; solução irracional e ilógica que fere os princípios basilares do direito.

            O que verdadeiramente permite identificar a unidade do facto ou a sua pluralidade é o relevo (da conduta verificada) ao nível da violação normativa, analisada a par da valoração dos deveres que sobre o agente impendem e vista ainda a “postura” por ele assumida.

            O recorrente reclama um tratamento especial decorrente da circunstância de se tratar de um ente de direito público com vastas obrigações de gestão florestal. Contudo, em termos práticos, a obrigação que impende sobre o Município não diverge no essencial da obrigação que impende sobre o particular em idênticas circunstâncias e quanto às mesmas obrigações. Tal como este último, nos casos em que tenha a obrigação de proceder à limpeza do combustível em diversos terrenos geograficamente dispersos, incorre numa acção omissiva quando deixa de proceder à limpeza de cada um desses terrenos, não se podendo falar numa unidade de resolução, o mesmo sucede com o Município quando omite a obrigação proceder à limpeza do combustível em diversas locais geograficamente dispersos e não unidos entre si por uma solução de continuidade, correspondentes a outras tantas obrigações de intervenção a seu cargo.

            Em conclusão quanto a este particular aspecto, não decorre dos autos a violação do princípio ne bis in idem no que concerne às coimas agora impostas ao arguido.

           

            Prossegue o recorrente as suas alegações reclamando que sejam valorados de forma diferente e mais assertiva as declarações prestadas pelas testemunhas arroladas pelo Recorrente e, ainda e também, a prova documental junta aos autos.

            Com isto pretende o recorrente discutir a matéria de facto fixada, impugnando a conclusão retirada pelo julgador da prova produzida. Contudo, no caso vertente, a 2ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, como expressamente resulta do art. 75º, nº 1, do RGCO. O conhecimento da matéria de facto está limitado à eventual verificação de qualquer dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, diploma subsidiariamente aplicável. A respectiva verificação exige, no entanto, que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Ora, não sendo esse o caso – não resultando do texto da decisão recorrida a verificação de qualquer dos vícios previstos nas alíneas do nº 2 do art. 410º do CPP – a matéria de facto deverá considerar-se definitivamente fixada e é à luz dessa matéria de facto que haverá que decidir e ponderar todas as questões suscitadas.

           

            Numa outra perspectiva, sustenta o recorrente que a GNR actuou com abuso de direito, renovando questão que já tinha colocado à apreciação da primeira instância e que aí foi decidida nos seguintes termos:

            (…) cumpre apreciar se a atuação da GNR, conforme alegado, está eivada de abuso de direito, na modalidade venire contra factum proprium, por conhecer o calendário das zonas de intervenção, por ter participado e votado favoravelmente ao mesmo e, ainda assim, ter autuado a arguida pela prática das infrações em causa, nestes autos.

            Nesta medida, consagra o artigo 334.º do Código Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

            Desta feita, “para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça” (vide, ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em geral”, 5ª edição, vol. I, pág. 536). Nesta medida, o titular de um direito deve agir com boa fé (artigo 762.º do Código Civil).

            Em traços gerais, o venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro, que é o factum proprium, é contrariado pelo segundo (cfr. MENEZES CORDEIRO, “Da Boa Fé no Direito Civil”, Coleção Teses, pág. 745).

            Realizado tal enquadramento, constata-se que o facto de a GNR conhecer o calendário das fiscalizações a realizar, não permite afirmar que a possibilidade de autuar a prática de infrações, a este nível, lhe estava vedada, ou que tal revista uma contradição.

            Com efeito, a GNR detém obrigações de vigilância, deteção e fiscalização, conforme decorre dos artigos 2.º, n.º 3, alínea a) e 37.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de junho, pelo que apenas se encontrava a cumprir a lei.

            Ademais, sempre se teria de considerar que, no ano em questão, vigorava um regime excecional, que se sobrepunha ao PMDFCI, razão pela qual nunca se estaria perante abuso de direito – vide, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, suprarreferido, não publicado (Ac. de 12/05/2023, proferido no âmbito do processo n.º 538/22.9T9CNT.C1, não publicado)

            Neste sentido, improcede a alegação da recorrente de abuso de direito, na atuação da GNR.

            Não haverá senão que subscrever esta tomada de posição, porquanto a GNR está adstrita ao dever de efectuar a fiscalização do cumprimento das normas de limpeza das florestas nos termos legalmente previstos. Como bem refere o M.P. na resposta ao recurso, a circunstância de a GNR conhecer o calendário das zonas de intervenção, tendo-o votado favoravelmente, não colide com o dever de cumprimento das leis da República. Desde logo, nos termos da sua própria Lei Orgânica (Lei n.º 63/2007, de 06 de Novembro), deve (…) no âmbito dos sistemas nacionais de segurança e protecção, assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, bem como colaborar na execução da política de defesa nacional, nos termos da Constituição e da lei (art. 1º, nº 2), tendo entre outras atribuições, as previstas nas alíneas e) do nº 1 e a) do n.º 2 do art. 3º, a saber, desenvolver as acções de investigação criminal e contraordenacional e assegurar o cumprimento das disposições legais e regulamentares referentes à protecção e conservação da natureza e do ambiente, bem como prevenir e investigar os respectivos ilícitos, prevendo o artigo 2.º, n.º 3, al. b), do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho, a competência da GNR para a coordenação das ações de prevenção relativas à vertente da vigilância, deteção e fiscalização.

            Independentemente de a Câmara Municipal … possuir um Plano Municipal de Defesa da Floresta contra Incêndios, dividido por anos e por áreas, para o período de 2019 a 2028 e da existência de uma “Comissão de Defesa da Floresta”, que determinou o agendamento dos trabalhos após a aprovação do plano municipal, as leis da República devem ser cumpridas por todas as entidades e particulares a que se dirigem e as entidades fiscalizadoras não podem eximir-se aos seus deveres de fiscalização, afirmação particularmente relevante numa matéria tão sensível como a do ordenamento florestal e prevenção de fogos florestais, tendo presente que nos últimos anos o país tem sido flagelado por incêndios de grande dimensão, a implicarem perdas irreparáveis para bens de elevado valor, para a diversidade florestal e para a biosfera em geral e, sobretudo, a perda de considerável número de vidas humanas. A tudo isto acresce a perda de meios de sobrevivência para muitas populações rurais, já de si bastante empobrecidas, impondo ainda gastos consideráveis para acorrer a todas as intervenções necessárias. Nessa medida, tendo a Lei n.º 2/2020, de 31 de Março (que aprovou o Orçamento de Estado para 2020), estabelecido um regime excepcional e transitório para os trabalhos definidos no n.º 2 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho, determinado no artigo 203.º, n.º 1, que em 2020, independentemente da existência de Plano Municipal de Defesa da Floresta contra Incêndios aprovado, os trabalhos definidos no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de junho, decorram até 15 de Março e 31 de Maio, impondo ainda que a Guarda Nacional Republicana actuasse assegurando o cumprimento da lei e desenvolvendo as acções de investigação contraordenacional a si atribuídas, a GNR estava vinculada ao cumprimento dessas atribuições.

            Não ocorre, pois, qualquer abuso de direito por parte da GNR ao elaborar os autos de contraordenação a que se reportam os presentes autos.

            No que concerne à medida das coimas parcelares e da coima única impostas ao arguido, o tribunal a quo pautou-se por um critério benevolente, considerando ajustadamente que as circunstâncias do caso não admitem a imposição de uma simples admoestação, ponderando devidamente todos os elementos disponíveis, tal como resultaram da prova produzida, tendo valorado particularmente os esforços que o Município, apesar de tudo, desenvolveu para dar cumprimento às suas obrigações legais. Anotou também o erro da autoridade administrativa na determinação da medida das coimas, salvaguardando o benefício que daí decorreu para o arguido, em respeito, aliás, pelo princípio da proibição da reformatio in pejus. Nada há a apontar ao decidido, que assim deverá ser integralmente confirmado.

           

III – DISPOSITIVO:

            Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Fixa-se a taxa de justiça em 3 UC (art. 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e correspondente Tabela III).


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        Coimbra, 25 de Outubro de 2024

      (Processado e revisto pelo relator a assinado electronicamente)


[1] - Sabido que o caso julgado pode assumir uma outra dimensão, formal, intraprocessual, que respeita a decisões proferidas no processo visando a sua estabilidade instrumental relativamente às finalidades a que está adstrito e que tem como consequência a impossibilidade de alteração dessas decisões por força do trânsito em julgado, conduzindo tanto ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz do processo como à impossibilidade de sindicância por via de recurso.
[2] - Tendo presentes as normas processuais civis aludidas no texto, o caso julgado, enquanto defesa por excepção, pressupõe uma identidade da causa quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. No domínio do processo penal a repetição do julgado afirma-se na acepção de prossecução processual contra o mesmo agente, pelos mesmos factos e com a mesma incriminação, já decidida por sentença transitada em julgado.
[3] - Cf. Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, anot. ao art. 29º.
[4] - Cf. Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, Coimbra, 1983, em especial págs. 15, 17, 21 e 59.
[5] - Idem, pág. 62.
[6] - Idem, pág. 92.
[7] - Disponível para consulta no site do Tribunal Constitucional.  O aresto a que nos reportamos teve em vista uma situação de concurso entre crime e contraordenação, mas o raciocínio transpõe-se sem dilemas para o concurso de contraordenações.