Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ARTUR DIAS | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA PRESSUPOSTOS ÓNUS DA ALEGAÇÃO ÓNUS DA PROVA | ||
Data do Acordão: | 05/08/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 3º JUÍZO CÍVEL | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 3º E 20ºDO CIRE | ||
Sumário: | I – De há muito que tem sido geral e pacificamente entendido pela doutrina e pela jurisprudência que, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de incumprimento não tem de abranger todas as obrigações vencidas do insolvente. II - O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. III - Ao credor que requeira a declaração de insolvência do devedor incumbe alegar e provar algum ou alguns dos factos-índice enumerados no nº 1 do artº 20º, cuja verificação faz presumir a situação de insolvência, tal como a caracteriza o artº 3º. IV - Ou seja, provado(s) o(s) factos(s)-índice alegado(s) pelo requerente, a insolvência só não será declarada se o requerido ilidir a presunção dele(s) decorrente, demonstrando que, apesar da sua verificação, não se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, isto é, provando a sua solvência. V - Não se provando o(s) factos(s)-índice alegado(s) pelo requerente, a insolvência não poderá ser declarada, nada precisando o requerido de provar. VI - No facto-índice previsto na al. a) do nº 1 do artº 20º – suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas – o vocábulo «suspensão» é utilizado como sinónimo de paragem ou paralisação, não estando, por isso, em causa uma situação necessariamente transitória a que a ideia de suspender poderia apelar. VII - E a suspensão prevista tem de ser «generalizada», isto é, respeitar à generalidade das obrigações da requerida, dessa generalização decorrendo a incapacidade de pagar. É que a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações integra um facto-índice próprio e autónomo, constante da al. b). | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
1. RELATÓRIO J…, casado, advogado, com escritório na Rua …, requereu, em 07/03/2011, a declaração da insolvência de A… – Sociedade …, Lda, com sede na Rua …, invocando para tal a sua qualidade de credor e alegando factualidade que, a seu ver, demonstra a verificação, relativamente à requerida, dos factos previstos nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artº 20º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE). A requerida opôs-se alegando que pretende compensar o crédito do A. com outro que tem sobre ele; que não se verificam os factos invocados no requerimento inicial; que não está em situação de insolvência; e que o A. litiga de má fé, devendo como tal ser sancionado. O requerente respondeu, contrariando as afirmações da requerida, pedindo a sua condenação como litigante de má fé, bem como, nos termos do artº 31º do CIRE, a nomeação de uma administradora provisória que indicou, terminando como no requerimento inicial. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, no âmbito da qual foi seleccionada a matéria factual assente e controvertida relevante para boa decisão da causa e, após as pertinentes produção de prova e discussão, foi dada resposta aos quesitos da base instrutória, assim se decidindo a matéria de facto controvertida. Foi depois proferida a sentença de fls. 832 a 853, cujo segmento decisório se transcreve: “Pelo exposto, julgo totalmente improcedente a presente acção e em consequência decido não decretar a insolvência da Requerida. Julgo extinto, por inutilidade superveniente da lide incidental, o incidente de nomeação de administradora provisória, nos termos do art. 31º do CIRE. Julgo improcedente o incidente de litigância de má fé suscitado por cada uma das partes e decido absolver requerente e requerida do pedido de condenação em multa e indemnização, como litigante de má fé, formulado pela parte contrária.” Irresignado, o requerente interpôs recurso, encerrando a alegação apresentada com as seguintes conclusões: … A requerida respondeu, pugnando pela manutenção do julgado. O recurso foi admitido. Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.
Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se há ou não fundamento para declarar a insolvência da requerida. 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1. De facto Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto nem se encontrando razões para oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada pela 1ª instância e que é a seguinte: ... 2.2. De direito O processo de insolvência é, como consta do artº 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, alterado pelos Decretos-Lei nº 200/2004, de 18 de Agosto, 76-A/2006, de 29 de Março, 282/2007, de 7 de Agosto, 116/2008, de 4 de Julho e 185/2009, de 12 de Agosto (doravante designado por CIRE)[1], “um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”. “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas” – artº 3º, nº 1. “As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis” – artº 3º, nº 2. De há muito que tem sido geral e pacificamente entendido pela doutrina e pela jurisprudência que, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de incumprimento não tem de abranger todas as obrigações vencidas do insolvente[2]. O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos[3]. O artigo 20.º, nº 1 do CIRE prevê que a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos factos descritos nas suas oito alíneas, nomeadamente, pelo interesse que revestem para o caso dos autos, nas alíneas a), b) e c)[4]. “Trata-se daquilo a que, correntemente, se designa por factos-índices ou presuntivos da insolvência, tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto”.[5] Ao credor que requeira a declaração de insolvência do devedor incumbe alegar e provar algum ou alguns dos factos-índice enumerados no nº 1 do artº 20º, cuja verificação faz presumir a situação de insolvência, tal como a caracteriza o artº 3º[6]. Ao devedor que discorde e pretenda opor-se, competirá, se for o caso, impugnar a existência do(s) facto(s)-índice invocados pelo requerente e/ou ilidir a presunção de insolvência deles decorrente, provando a situação de solvência – artº 30º, nºs 3 e 4[7]. Ou seja, provado(s) o(s) factos(s)-índice alegado(s) pelo requerente, a insolvência só não será declarada se o requerido ilidir a presunção dele(s) decorrente, demonstrando que, apesar da sua verificação, não se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, isto é, provando a sua solvência. Não se provando o(s) factos(s)-índice alegado(s) pelo requerente, a insolvência não poderá ser declarada, nada precisando o requerido de provar. Traçado, vagamente, o quadro geral das regras sobre ónus de prova no processo de insolvência, apliquemo-las ao caso que nos ocupa. Dir-se-á em primeiro lugar que, embora a requerida seja uma pessoa colectiva por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responde pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, não pode considerar-se, em face dos factos constantes dos nºs 33) e 34) do elenco dos factos provados, que o seu passivo seja superior ao activo e, consequentemente, que deva ser tida como insolvente nos termos do nº 2 do artº 3º. O requerente alegou factualidade que, de acordo com o artigo 34º da petição inicial, integraria os factos-índice previstos nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artº 20º. Por sua vez, a requerida opôs-se, negando a existência desses factos-índice e a situação de insolvência. A factualidade com maior relevância para o eventual preenchimento da previsão da alínea referenciada é a constante dos nºs 23), 24), 25) e 26) do elenco transcrito no item 2.1., supra. Encontra-se, pois, provado que contra a requerida foram propostas acções no Tribunal de Trabalho de Viseu por falta de pagamento tempestivo de retribuições a trabalhadores e que contra a mesma se encontram pendentes os seguintes processos executivos: 1) No Tribunal de Santa Comba Dão, o processo nº …, em que é exequente C…, S.A., ascendendo a quantia exequenda a € 342.312,11; 2) No Tribunal de Viseu, o processo nº …, em que é exequente A…, Lda, ascendendo a quantia exequenda a € 4.956,51; 3) No Tribunal de Viseu, o processo nº …, em que é exequente F…, S.A., ascendendo a quantia exequenda a € 322.050,20; 4) No Tribunal de Oeiras, o processo nº …, em que é exequente T…, S.A., ascendendo a quantia exequenda a € 61.364,77; 5) No Tribunal de Oliveira de Frades, o processo nº …, em que é exequente P…, S.A., ascendendo a quantia exequenda a € 3.649,18; 6) No Tribunal de Marco de Canaveses, o processo nº …, em que é exequente G…, Lda, ascendendo a quantia exequenda a € 7.302,00; 7) No Tribunal de Tábua, o processo nº …, em que é exequente B…, L.da, ascendendo a quantia exequenda a € 146.099,49; 8) No Tribunal de Viseu, o processo nº …, em que é exequente N…, Lda, ascendendo a quantia exequenda a € 679,38; 9) No Tribunal de Castro Daire, o processo nº …, em que é exequente G…, Lda, ascendendo a quantia exequenda a € 3.265,15; 10) No Tribunal de Viseu, o processo nº …, em que é exequente B…, S.A., ascendendo a quantia exequenda a € 286.915,68; 11) No Tribunal de Penacova, o processo nº …, em que é exequente S…, Lda ascendendo a quantia exequenda a € 3.061,78; 12) No Tribunal de Viseu, o processo nº …, em que é exequente N…, Lda, ascendendo a quantia exequenda a € 31.000,00; 13) No Tribunal de Viseu, o processo nº …, em que é exequente F…, S.A., ascendendo a quantia exequenda a € 54.951,67; 14) No Tribunal de Viseu, o processo nº …, em que é exequente F…, S.A., ascendendo a quantia exequenda a € 3.194,36. No entanto, relativamente às acções propostas no Tribunal de Trabalho de Viseu por falta de pagamento tempestivo de retribuições a trabalhadores, não pode olvidar-se que em muitas dessas acções foram celebrados acordos de pagamento, ainda que se verifiquem alguns atrasos no respectivo cumprimento [nº 27)]. E, no tocante às execuções atrás mencionadas, verifica-se que: a) No processo instaurado pela C…, esta credora e a requerida negociaram a dívida [nº 43)]; b) Relativamente ao processo instaurado pela credora A…, esta declarou-se paga [nº 45)]; c) Relativamente ao processo instaurado pela F…, Lda, as partes fixaram por acordo em € 298.000,00 o valor da dívida peticionada, tendo acordado quanto ao tempo e modo de pagamento de tal quantia [nº 46)]; d) A credora B…e a requerida celebraram um acordo de pagamento em prestações [nº 49)]; e) A credora N… e a requerida celebraram um acordo de pagamento em prestações, tendo fixado a dívida em € 31.000,00 [nº 51)]; f) No processo instaurado pelo F…, este credor considerou-se pago [nº 53)]; g) O processo instaurado pelo B…, S.A. foi contestado [nº 17)]. O que fica dito, conjugado com a factualidade resultante dos nºs 14), 20), 22) e 33) a 40) do elenco dos factos provados, para a qual se remete, dispensando-nos de aqui a transcrever, permitindo embora afirmar que a requerida faltou ao cumprimento de algumas obrigações, não justifica a conclusão de que a requerida está numa situação de penúria tal que não seja capaz de, ainda que com dificuldades e negociando com os credores, cumprir os seus compromissos. E, relembra-se, é sobre o requerente que recai o ónus de prova dos factos-índice, nomeadamente, no que ao da al. b) do nº 1 do artº 20º concerne, não apenas a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações por parte da requerida, mas também que pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, este revela a impossibilidade de o devedor, no caso, a requerida, satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações[9]. Não tendo o requerente logrado provar qualquer dos factos-índice previstos no nº 1 do artº 20º, não é possível presumir a situação de insolvência da requerida, não tendo esta qualquer presunção para ilidir, nem lhe sendo exigível a prova da sua solvência (artº 30º, nº 4). Soçobram, pois, todas as conclusões da alegação do recorrente, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da sentença recorrida.
Nos termos do artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil, elabora-se o seguinte sumário: I – É sobre o credor que requeira a declaração de insolvência que recai o ónus de alegação e prova de algum ou alguns dos factos-índice previstos nas alíneas do nº 1 do artº 20º do CIRE; II – Provando o credor a verificação de algum dos factos-índice, a presunção de insolvência dele decorrente pode ser ilidida pelo devedor, sobre quem, nesse caso, recai o ónus de prova da sua solvência. III – Se o credor não provar qualquer dos factos-índice, é irrelevante que o devedor também não tenha provado que é solvente. 3. DECISÃO Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida. As custas são a cargo do recorrente.
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