Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FALCÃO DE MAGALHÃES | ||
Descritores: | ACOMPANHAMENTO DE MAIORES AUDIÇÃO PESSOAL DO BENEFICIÁRIO | ||
Data do Acordão: | 06/14/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SÃO PEDRO DO SUL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA POR UNANIMIDADE | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 897.º, N.º 2, DO CPC | ||
Sumário: | No processo de acompanhamento de maiores está vedado ao juiz dispensar, ao abrigo do artigo 6.º, n.º 1 do CPC, a audição pessoal e directa do beneficiário. | ||
Decisão Texto Integral: | Apelações em processo comum e especial (2013) Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:1 I - a) - Nos autos para aplicação do regime de acompanhamento de maior à requerida AA, o Mmo. Juiz do Juízo de Competência Genérica de ..., por despacho de 17/2/2022, decidiu, invocando o poder-dever de gestão prevenido no artº 6º, nº 1 do CPC, que não se procederia à audição pessoal da requerida, prevista artº 897.º, n.º 2, do (novo) Código de Processo Civil (doravante, “NCPC”). Para alicerçar tal decisão, argumentou nesse despacho, essencialmente, o que se passa a transcrever: «[…] Em qualquer caso, dispõe o nº 2 daquele artº 897º, deve(ria) o juiz proceder à audição, pessoal e directa, do beneficiário. Todavia, visando esta última diligência averiguar da situação do requerido/beneficiário, e por isso melhor ajuizar quanto à medida ou medidas de acompanhamento mais adequadas, a impôr, em função de tal situação (artº 898º, nº 1 do CPC), é pressuposto de tal averiguação que alguma comunicação ou diálogo possa ser estabelecido, ainda que para o efeito fosse necessária a nomeação de um intérprete ou técnico habilitado a intermediar tal comunicação (v. g. se o requerido fosse surdo-mudo) – cfr. o ‘regime’ de tal audição tal como definido no nº 2 do referido artº 898º. De outro modo, isto é, se tal comunicação ou diálogo não for possível, designadamente por evidente incapacidade mental/cognitiva, o cumprimento de tal preceito (audição do requerido) nenhum sentido ou utilidade convocaria, para além da hipótese, que os dados já constantes dos autos podem fazer amplamente inverosímil, de existirem ou emergirem dúvidas quanto à incapacidade de algum diálogo poder ser estabelecido. Todavia, como resulta já evidenciado dos autos, é impraticável o estabelecimento de qualquer tipo de comunicação/diálogo. Veja-se a certidão de fl. 35, cujo conteúdo apresenta correspondência ou relação com o atestado médico de fl. 7, e com a informação clínica de fl. 25, ambos mencionando uma situação demencial associada a acentuada perda de acuidade auditiva, que o uso de aparelho auditivo já não supre (cfr. a ficha clínica de fl. 9). Deste modo, apesar da apontada obrigatoriedade, não há que olvidar competir ao juiz dirigir activamente o processo, mormente com recusa daquilo que se mostrar impertinente, seja requerido pelas partes, seja em função da sua operatividade ou adequação perante o caso concreto (em suma, é impertinente chamar a requerida para ser ouvida, ou dirigir-se o tribunal ao local onde a requerida se encontre, para tal efeito, quando ab initio tal auscultação resulta inviável ou impraticável). Assim, e ao abrigo do poder-dever de gestão prevenido no artº 6º, nº 1 do CPC, não se procederá à audição pessoal da requerida. Por outra via, considerando precisamente os elementos clínicos que dos autos constam, não se vislumbra que a realização de exame pericial pudesse acrescentar algum dado útil ao ‘substrato médico’ pressuposto no pedido de fixação de medidas de acompanhamento, ou que a inquirição das testemunhas indicadas possa ter uma aptidão acrescida relativamente ao conteúdo de tais elementos e descrição dos efeitos que deles também consta. […]». b) - Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso dessa decisão, tendo, nas respectivas alegações, formulado as seguintes conclusões: «1. A decisão recorrida dispensou a audição directa da requerida AA. 2. A audição pessoal e directa é, de acordo com a nova redacção do artigo 897.º, do Código de Processo Civil, diligência obrigatória, não cabendo nos poderes de gestão do Tribunal a sua possibilidade de dispensa. 3.A audição ao Mm.º Juiz aferir da situação real do eventual beneficiário, seja o local, o estado físico ou psíquico em que se encontra, seja a expressão da sua vontade. 4.Admitindo-se a dispensa da audição pessoal e directa (o que uma interpretação literal da norma sequer permite), tal não deverá ser a regra, antes uma situação absolutamente excepcional, a ocorrer em casos limite, casos em que deverá ser lavrada em acta a impossibilidade de audição, após pessoalmente constatada. 5.A requerida padece de demência, depressão, surdez, hipertensão arterial, fibrilhação auricular, catarata, síndrome vertiginoso, insuficiência cardíaca e osteoartrose, encontrando-se acamada. 6.Todavia, não decorre da informação clínica, nem é possível percepcionar do processado, na falta de outras diligências instrutórias, se a requerida consegue ou não falar, escrever, utilizar a língua gestual ou comunicar a sua vontade através de qualquer outro meio. 7.Assim, na falta de outros elementos probatórios (e, até, tendo-se dispensada a realização de exame pericial) não deveria ter sido dispensada a audição da requerida, porquanto em violação do disposto nos artigos 139.º, n.º 1, do Código Civil e 897.º, n.º 2, 898.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ainda que possa vir a concluir-se pela impossibilidade de comunicação desta com o Tribunal. 8.Nestes termos, deverá ser concedido provimento ao recurso, determinando-se a revogação da decisão recorrida (e subsequentes, caso a sentença haja sido proferida) e a sua substituição por outra que determine a audição pessoal e directa da requerida. […]». * II - Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, no domínio da legislação pretérita correspondente, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B35862). A questão objecto do presente recurso consiste em saber se foi legal a dispensa da audição da beneficiária, decidida no despacho recorrido. * III - a) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I - supra.b) - A questão a solucionar, acima enunciada, colocou-se já em diversos recursos, alguns interpostos para esta Relação de Coimbra, e o entendimento largamente maioritário vai no sentido de que a audiência em causa não pode ser dispensada pelo Juiz, ainda que a mesma sirva a este, tão-só para se assegurar, directamente, da situação do beneficiário e para aferição das medidas de acompanhamento a adoptar. Aplica-se, assim, “mutatis mutandis” o seguinte entendimento que se transcreve em itálico3 e que esta 3ª Secção expressou no Acórdão de 03/03/2020 (Apelação nº 858/18.7T8CNT-A.C1)4, relatado pelo ora Exmo. Cons. do STJ, Isaías Pádua: «[…] De entre os vários princípios que passaram a orientar/nortear o processo especial de acompanhamento de maiores destaca-se o da imediação (pelo tribunal) na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário. Princípio esse que se extrai da conjugação dos seguintes normativos legais: Artigo 138º Código Civil (na redação dada pela citada Lei nº 49/2018, de 14/08, o mesmo sucederá com a redação dos demais normativos a seguir citados) onde, sobre a epígrafe “Acompanhamento”, se dispõe que “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.” Artigo 139º do mesmo diploma, onde, sob a epígrafe “Decisão Judicial”, se dispõe que “O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.” (sublinhado nosso) Artigo 897º do Código de Processo Civil (onde de disciplina a tramitação processual do referido processo especial), que, sob a epígrafe “Poderes Instrutórios”, dispõe: 1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos. 2 - Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre. (sublinhado e negrito nossos) Artigo 898º do mesmo diploma, onde, sob a epígrafe “Audição pessoal”, se dispõe que 1- A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas. 2- As questões são colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas. 3- O juiz pode determinar que parte da audição decorra apenas na presença do beneficiário. (sublinhado e negrito nossos) Decorre, assim, claramente da leitura tais preceitos legais, não só a consagração do sobredito princípio da imediação na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário, como também que ele se concretiza com obrigatoriedade imposta ao juiz de, em qualquer circunstância, dever proceder de forma pessoal e direta à audição do beneficiário. Imediação essa que terá uma dupla finalidade: por um lado permitir ao juiz inteirar-se da real situação em que se encontra o beneficiário e, por outro, ajuizar, perante tal situação, e daquilo que observar, das medidas mais adequadas de acompanhamento que deverão ser tomadas em prol daquele. A expressões “em qualquer caso” e “sempre” empregues pelo legislador (vg. no nº 2 do citado artº. 897º o CPC), não deixam, a nosso ver, qualquer margem dúvidas sobre a intenção determinada do legislador em tornar obrigatório que a decisão final a proferir neste tipo de processos especiais de acompanhamento de maior seja sempre precedida da obrigatória audição do beneficiário pelo juiz, respondendo, assim a algumas críticas feitas ao pretérito regime da interdição ou da inabilitação em que essa audição só se tornava obrigatória se fosse deduzida contestação (cfr. nº. 2 do artº. 896º do CPC, na sua versão anterior). Ao contrário, neste novo regime criado, e ao contrário do que sucedia no anterior, a nomeação de peritos e a realização de relatório pericial deixou de ser obrigatória (cfr. artºs 897º, nº. 1- fine -, e 899º, nº. 1, do CPC, na sua atual redação). Diga-se ainda que, sendo assim, e visando, como vimos, a audição direta e pessoal não só permitir ao juiz inteirar-se da real situação em que se encontra o beneficiário mas também ajuizar, daquilo que observar, das medidas mais adequadas de acompanhamento que deverão ser tomadas em prol do último, e sem perder de vista que o novo regime instituído de acompanhamento dos maiores visa tão só salvaguardar e reforçar a defesa dos seus interesses, não colhe o argumento aduzido pela sra. juíza a quo de que, face ao teor do relatório pericial junto aos autos, a audição da aqui beneficiária se mostra não só inexequível, inútil e desnecessária (note-se ainda que do teor desse relatório apenas se refere haver limitações de comunicação com a beneficiaria decorrentes da doença de demência de que padece), como também atentatória da sua integridade pessoal e do direito à reserva da intimidade da sua vida privada (o não vislumbramos sequer, como tal possa ocorrer, e tanto mais que o juiz pode determinar que parte dessa audição possa ter lugar apenas na presença da beneficiaria- nº. 2 do artº. 898º do CPC). Por outro, constituindo, como vimos, a audição direta e pessoal do beneficiário por parte do juiz, a concretização de um princípio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, e decorrendo ela ainda de uma norma de cariz imperativo, fica vedada ao juiz a possibilidade de (através de invocação das regras do processo de jurisdição voluntaria, para a qual remete, com as devidas adaptações, o artº. 891º, nº. 1, do CPC, na sua atual redação data pela citado Lei nº. 49/2018) de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como vimos, como um autêntico dever. […]» (Em sentido idêntico, cfr. Acórdãos desta Relação de Coimbra, de 08/09/2020 e de 19/05/2020, proferidos, respectivamente, nos recursos de apelação nºs 635/19.8T8CNT-A.C1 e 312/19.0T8CNT-A.C1.). E como escreveu Maria Inês Costa (“A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas”, “in” Julgar “Online, Julho de 2020”): «[…] Face à importância que a diligência instrutória da audição do beneficiário assume na lide (e a que supra se fez alusão) fica vedada ao juiz a possibilidade de (através de invocação das regras do processo de jurisdição voluntária, para a qual remete, com as devidas adaptações, o artigo 891.º, n.º 1, do Código de Processo Civil ou da gestão e adequação formal – cf. artigo 6.º e 547.º do Código de Processo Civil) prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como vimos, como um autêntico dever. […]». A conclusão a que se chega em resultado do exposto é, pois, a de foi ilegal a decisão de não realizar a audição em causa, pelo que importa revogar o despacho em que assim se decidiu, com as necessárias consequências. * IV – Decisão:Nos termos expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgando a apelação procedente, revogar o despacho recorrido, e determinar que o Tribunal “a quo” proceda à audição da beneficiária, a que se reportam os artºs 897º, nº 2 e 898º, do NCPC, anulando-se todo o processado que depois da omissão dessa audição teve lugar e que da realização dessa diligência dependia necessariamente, incluindo, pois, a sentença, se a mesma já tiver sido proferida.
Luiz José Falcão de Magalhães (relator) António Domingos Pires Robalo Sílvia Maria Pereira Pires
1 Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original. 3 Sem, contudo, os sublinhados e “negritos” do texto original. |