Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
669/18.0T9GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA PENAL
LITISPENDÊNCIA
CASO JULGADO
ESTRUTURA ACUSATÓRIA DO PROCESSO PENAL
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
LIVRE CONVICÇÃO
CRIME DE PERSEGUIÇÃO
ASSÉDIO LABORAL
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
UÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º, ALÍNEA F), 7.º, 358.º, N.º 1, 359.º, E 412.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGO 580.º, N.º 1 E 2, E 581.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
ARTIGOS 154.º-A, N.º 1, E 155.º, N.º 1. ALÍNEAS C) E D), DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 29.º DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário: I – Da estruturação legal do processo penal segundo o modelo acusatório, muito especificamente do princípio da acusação e da tutela do direito de defesa do arguido, decorre para o tribunal de julgamento a sua vinculação temática seja à acusação do Ministério Público ou à do assistente, (se o procedimento depender de acusação particular), se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, seja ao despacho de pronúncia se esta tiver sido requerida.

II – A alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

III – A ratio legis para a imposição de comunicar a alteração não substancial de factos ao arguido prende-se com garantir o princípio do acusatório e os direitos de defesa, evitando que seja surpreendido pela condenação por factos não constantes da acusação ou da pronúncia.

IV – Só perante o caso concreto se pode aferir se a estratégia de defesa sai prejudicada pela não comunicação da alteração, uma vez que esta apenas tem lugar se tiver «relevo para a decisão da causa».

V – Os factos alegados no requerimento de indemnização civil, se provados, apenas relevam para o pedido de indemnização, não servem para agravar a responsabilidade criminal, pelo que não têm que ser comunicados ao abrigo do artigo 358.º do Código de Processo Penal.

VI – Na impugnação ampla da matéria de facto exige-se ao recorrente que «imponha» uma outra convicção e para isso é imperativo que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, não apenas o relativo do «possível», sim o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

VII – As menções exigidas pelo artigo 412.º, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal, não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

VIII – O crime de perseguição, como crime de mera atividade, não pressupõe uma lesão efectiva, um resultado, mas sim uma série de comportamentos que, por si e no contexto envolvente, visam lesar a liberdade de outrem.

IX – A conduta típica do crime de perseguição consiste em reiteradamente perseguir ou assediar outra pessoa, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, apelando-se à objectividade do homem médio para aferir se a conduta em causa é adequada a produzir a lesão, invocando-se, ainda, a individualidade das circunstâncias concretas que norteiam o ilícito, mormente as personalidades de agressor e vítima e o relacionamento entre ambos.

X – O injustificado e progressivo esvaziamento de funções laborais pelo superior hierárquico, de forma reiterada e prolongada no tempo, sabendo que intimidava, diminuía, humilhava, segregava profissionalmente, molestava a dignidade pessoal e a saúde psíquica do trabalhador, causando-lhe assim medo e inquietação, integra o crime de perseguição, previsto no artigo n.º 154º-A do Código Penal.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra


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I. RELATÓRIO

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1. … por despacho, datado de 05.11.2021, foi decidido indeferir o requerimento de suspensão do processo (motivado por alegada existência de questão prejudicial), bem como, julgar improcedente a exceção de litispendência invocada pela arguida.

2. Mediante sentença, datada de 05.09.2022, foi decidido:

a) condenar a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de perseguição agravada, previsto e punido pelos artigos 154º-A, n.º 1, e 155º, n.º 1, als. c) e d), do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, sendo a suspensão sujeita à regra de conduta de a arguida não assumir qualquer profissão ou cargo que lhe determine qualquer relação de superioridade hierárquica em relação à aqui assistente BB durante o período da suspensão, e sujeita à condição de a arguida proceder ao pagamento à demandante BB da quantia fixada a título de indemnização civil, até ao final do período da suspensão, disso fazendo prova documental nos autos no mesmo prazo. e,

b) condenar a demandada civil AA a pagar à demandante civil BB a quantia de €11.414,92 (onze mil quatrocentos e catorze euros e noventa e dois cêntimos), acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano desde a data em que a demandada foi notificada para contestar até efetivo e integral pagamento, a título de indemnização civil.



3. Inconformada, recorreu a arguida do despacho datado de 05.11.2021 formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«A) Vem o presente recurso interposto do Douto Despacho proferido nos presentes autos que indeferiu o requerimento de suspensão do presente processo, (motivado por existência de questão prévia prejudicial), feito pela recorrente na sua contestação, e ainda quanto à decisão de julgar improcedente a exceção de litispendência invocada pela recorrente na sua contestação do pedido civil, nos presentes autos.

B) A decisão sobre a ilicitude, ilegalidade ou irregularidade dos atos objeto da ação que corre termos no Tribunal Administrativo ... é de resolução prévia indispensável para se conhecer em definitivo da questão objeto dos presentes autos, sendo decisiva e determinante para a apreciação da conduta da recorrente já que a recorrente vem, nestes, pronunciada pela prática dos mesmos factos que naquela ação são imputados ao Município ... e aos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ....

C) A eventual improcedência dos pedidos deduzidos, pela aqui assistente, naquela ação administrativa, terá como consequência o não reconhecimento da ilicitude, ilegalidade ou irregularidade dos atos em questão cuja prática é, nos presentes autos, imputada à recorrente, como constituindo crimes e motivo de responsabilidade civil, pelo que, consequentemente, a arguida não pode ser condenada, penal e civilmente, pela prática dos crimes de que vem pronunciada, caso os factos em que radica essa condenação, não venham a ser considerados ilícitos, ilegais ou irregulares pela competente instância administrativa.

D) A decisão prévia sobre a ilicitude, ilegalidade ou irregularidade dos atos que são imputados à recorrente (que são os mesmos, objeto da ação que se encontra ainda a correr termos no TAF ..., não tendo sido proferida qualquer decisão quanto ao mérito da mesma), é de resolução prévia indispensável para se conhecer da responsabilidade criminal e civil da recorrente nos presentes autos.

E) Por assim ser deve o douto Despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene a suspensão dos presentes autos, pelas invocadas razões.

Sem prescindir,

F) Existe litispendência entre os pedidos formulados pela assistente na ação administrativa supra identificada que corre termos no TAF ... e o pedido de indemnização civil deduzido nos presentes autos, o que constitui intolerável e inadmissível duplicação de pedido de indemnização com identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido.

G) Salvo o devido respeito não assiste razão ao Mmº Juiz a quo quando considerou não estarem verificados os requisitos da litispendência.

I) Nos termos e com os fundamentos de Direito, quer doutrinais quer jurisprudenciais, que supra se deixaram alegados e invocados, estão verificados in casu, no que ao pedido de indemnização civil concerne, os requisitos consagrados no art.º 581º do CPC, ou seja, a mencionada tríplice identidade (de sujeitos, pedido e causa de pedir).

J) Estando verificados, como estão, os requisitos de litispendência entre o presente pedido de indemnização civil deduzido nos presentes autos e aquele formulado naquela ação há de concluir-se que o pedido de indemnização civil deduzido nos presentes autos conduz à verificação da exceção de litispendência, e consequentemente à absolvição da instância da aqui demandada, cujo conhecimento e declaração aqui se requer.

K) Nos termos e fundamentos que supra se deixaram alegados deve o douto Despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene a suspensão dos presentes autos por existência de causa prévia prejudicial e, sempre, deve ser conhecida e declarada a existência de litispendência entre os pedidos de indemnização formulados, pela assistente, na ação administrativa e os pedidos de indemnização civil formados pela assistente nos presentes autos.

L) O douto Despacho recorrido viola, entre outros, o disposto nos artºs 7º nºs 2 e 3 do CPP, e artºs. 581º, 577º, al. i), 576.º, n.º 2 e 278º nº1, al. e), todos do CPCivil.

…».

4. Notificado, respondeu o Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso.

5. Recorreu ainda a arguida da sentença nestes autos proferida, apresentando as seguintes conclusões (que se transcrevem):

            «A) Com observância do disposto no art.º 412.º n.º 5 do Cód. Proc. Penal, como supra se deixou alegado e aqui se conclui, quanto ao recurso referente ao despacho de fls. 816 a 818 (ref. n.º 28858120), … a aqui recorrente mantém pleno interesse no mesmo, …
B) Tal como se deixou alegado e concluído nesse recurso quanto à matéria crime, para se conhecer da existência dos crimes, por cuja prática foi pronunciada e condenada nos presentes autos, é necessário e imprescindível, julgar previamente a questão não penal objeto da ação administrativa nº 379/18...., que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., a qual não pode ser convenientemente resolvida no processo penal, dada a sua índole administrativa, que, por isso, é causa prejudicial quanto à matéria crime …
C) Já o presente recurso vem interposto da douta sentença final …
D) O presente recurso tem por objeto, (a) o conhecimento de inconstitucionalidades e nulidades, (a) a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, e (b) a decisão da matéria de direito, quanto à matéria crime e quanto ao pedido civil.
E) A douta sentença recorrida, conforme supra se deixou alegado:
- viola o princípio da legalidade da intervenção penal, (art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa) designadamente nos seus corolários de “nullum crimen sine legem” (art.º 29.º n.º1 da CRP) e de “nulla poena sine lege”,(art.º 29.º nºs 3 e 4 da CRP), bem como viola o princípio do “in dubio pro reo”, (art.º 32º n.º2 da CRP), pelo que está ferida de inconstitucionalidade;
- viola o princípio do “in dubio pro reo”, (art.º 32º n.º2 da CRP),
-viola o art.º 7.º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
- incorreu em omissão de pronúncia, por ter ignorado, omitido e não ter dado como provado um facto documentalmente provado nos autos que é a existência e pendência da referida ação n.º 379/18...., no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., que é da maior importância para a boa decisão da presente causa, facto esse que foi alegado pela aqui recorrente na sua contestação, razão pela qual deve ser declarada a sua nulidade prevista no art.º 379.º n.º 1 al. c) 1.º parte, que aqui se invoca para todos os legais efeitos, nos termos do disposto no art.º 379.º n.º 2 do Cód. Proc Penal.
- viola ainda o ainda o artº 358º e 379.º n.º 1 als. b) e c), ambos do Cód.P. Penal, porquanto não constam da pronúncia os factos abaixo referidos que constam da sentença recorrida pelo que está ferida de nulidades que devem ser conhecidas e declaradas com a consequente revogação da sentença recorrida.
- viola os art.ºs 14º, 15.º nºs 1 e 2 16. nº1 e 2, 115.º n.º 3, 154.º-A e 155.º nº 1 als. c) e d) todos do Código Penal, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente dos crimes por cuja prática foi condenada.
- decidiu a matéria de facto contra a prova documental constante dos autos, bem como com erro na apreciação da prova testemunhal gravada e decidiu a matéria de Direito com erro de Direito; - sem prescindir do que vem de se concluir:
- cometeu erro de direito, também na escolha da pena aplicada com o que violou o disposto no art.º 70.º do Cód. Penal;
- cometeu erro de direito nas condições que impôs para suspensão da pena de prisão com o que violou o disposto no art.º 51.º n. 2 do Cód. Penal
- cometeu erro de Direito e de julgamento na condenação que fez em sede de pedido civil, pelo que e deve ser revogada e substituída por outra que absolva a arguida, ou, quando assim não se entender a condene mas com as alterações que se deixaram alegadas.
F) O Mm.º Juiz a quo quanto à factualidade Provada e não Provada ignora, omite e não deu como provado um facto, documentalmente provado nos autos (fls159 a 187 e de fls. 320 a 343, 345), que é a existência, objeto, conteúdo e pendência da ação n.º 379/18...., no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., que a assistente, representada pelo STAL propôs em 06.09.2018, contra o Município ... e contra os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., (mas não contra a aqui arguida), na qual, a assistente atribui àqueles Réus (e não à aqui arguida), a prática dos factos pelos quais a arguida vem pronunciada nos presentes autos, sendo certo essa ação e o facto de na mesma a assistente atribuir aos ali Réus Município ... e contra os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ... (e não à aqui arguida), a prática dos factos pelos quais a arguida vem pronunciada nos presentes autos, é da maior importância para a boa decisão da presente causa, facto esse que foi alegado pela aqui recorrente na sua contestação mas que o Mm. Juiz a quo omitiu na sentença ora recorrida, pelo que estava o Mm.º Juiz a quo obrigado a conhecer da mesma na douta sentença final, ora recorrida, porque se trata de factos relevantes para a boa decisão da presente causa, mas não o fez, com o que incorreu na nulidade da sentença prevista no art.º 379.º n.º 1 al. c) 1.º parte, que aqui se invoca para todos os legais efeitos nos termos do disposto no art.º 379.º n.º 2 do Cód. Proc Penal, por não ter conhecido sobre a existência da referida ação no Tribunal Administrativo e Fiscal ... (alegada pela aqui recorrente na sua contestação) e das consequências que sobre a mesma a aqui recorrente retirou na sua contestação (independentemente da questão prejudicial e da litispendência – cuja decisão prévia é objeto do recurso já admitido que sobre a final com o presente), quanto a sua não responsabilização penal e civil pela prática dos atos por que vem pronunciada.
G) Pelas razões expostas e porque a existência e pendência da referida ação no Tribunal Administrativo e Fiscal ... e de tudo quanto consta dos respetivos articulados foi matéria alegada, na contestação do presente processo crime, pela recorrente e se encontra documentalmente provada nos presentes autos a fls159 a 187 e de fls. 320 a 343, 345, estava o Mm.º Juiz a quo obrigado a conhecer da mesma, na douta sentença final, ora recorrida, porque se trata de factos relevantes para a boa decisão da presente causa, a douta sentença recorrida incorreu em omissão de pronúncia razão pela qual deve ser declarada a sua nulidade prevista no art.º 379.º n.º 1 al. c) 1.º parte, que aqui se invoca para todos os legais efeitos nos termos do disposto no art.º 379.º n.º 2 do Cód. Proc Penal, a qual deve ser conhecida e declarada por Vossas Excelências.
H) Sem prescindir, tem também de concluir-se que, in casu, o Tribunal investigou e integrou no processo nas alíneas A) D), G) I), L), M), N), O), Q) R), U), X), Z), factos que não constavam da Pronúncia mas que têm relevo para a decisão do processo, pelo que os mesmos constituem, pelo menos, uma alteração não substancial dos factos, mas o Tribunal não cumpriu com a condição de admissibilidade, a que estava oficiosamente obrigado, de comunicar à arguida a alteração e não lhe concedeu o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (artigo 358.º, n.º 1 e 424º n. 3 do C.P.P.), sendo certo que essa alteração não derivou de factos alegados pela defesa, o que é causa de nulidade da sentença de acordo com o disposto no art.º 379.º n.º 1 al. b) do Cód. Proc. Penal, e, portanto, deve ser conhecida e declarada, de acordo com o disposto no art.º 379º. n.º 1 al. b) do C.P.P., a nulidade da sentença recorrida por violação do disposto nos art.ºs 358.º n.º 1 e 424.º n.º3 do C.P.P.
I) Sem conceder, ainda quanto à matéria de facto dada com provada impugna-se a mesma, no termos e fundamentos que supra se deixaram expostos, concluindo-se, em síntese que:
I.1.- Quanto ao ítem A). dos factos provados, vis-a-vis, o texto do mesmo ítem da Pronúncia foi cometido erro de julgamento quando não dá por provado que a assistente, nos períodos temporais ali indicados desempenhou funções nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., sob as ordens, direção e fiscalização da Câmara Municipal ..., o que, aliás se encontra documentalmente provado nos autos e é confessado pela assistente designadamente por documentos da sua autoria, pelo que no item A) da Factualidade Provada deve ser dado como provado que “(…) a assistente, nos períodos temporais ali indicados desempenhou funções nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., sob as ordens, direção e fiscalização do respetivo Conselho de Administração e da Câmara Municipal ...,(…)” e ainda nas suas declarações prestadas em audiência de julgamento (conforme consta da gravação 202203330150404_938535_3994045, minuto 2:18) e ainda (gravação 2022033000142144_938535_3994045 min. 2:18:10 a 2:19:19 -) .

I.2.- Quanto ao item B) dos factos provados, atenta a prova documental e a demais produzida nos autos deve ser dado como provado que a assistente esteve afeta ao serviço de Manutenção e Exploração de Sistemas de Águas e Saneamento dos SMAS desde 20 de maio de 2013 até 31 de Dezembro de 2017.
I.3.- Quanto ao item E) dos factos provados não se podem aceitar os factos ali considerados como provados uma vez que, tendo em conta os factos por cuja prática a arguida vem pronunciada, não é admissível que não se definam exaustivamente as tarefas e trabalhos que a assistente efetivamente desempenhou e quais os períodos de tempo em que o fez, não podendo subsistir tais indefinições.
I.4.- Quanto ao item F) dos factos provados só com flagrante erro de julgamento o Mm.º Juiz a quo pode julgar provada tal matéria, visto que se encontra documentado nos autos e foi confessado pela assistente, logo a fls 2 e ss da queixa crime e, por diversas vezes nas suas declarações em audiência de julgamento (v.g. gravação 20220330150404_938535_3994045, minuto 24:43), que, no período em causa nos autos, lhe foi instaurado, pelo Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados da ... em 31 de março de 2015, que resultou na aplicação de pena de suspensão de 90 dias, decisão tomada pelo Conselho de Administração em 3 de setembro de 2015, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 181º nºs 3 e 4, 182.º nº2, 186 alínea j) e 189.º, todos da Lei n.º 35/2014, com o consequente não exercício de funções e a perda de remunerações correspondentes e da contagem do tempo de serviço para antiguidade, por esse período da suspensão, produzindo efeitos de acordo com o disposto legalmente. Além desse processo disciplinar foram instaurados outros três processos à assistente no ano de 2016, conforme consta de fls 505 dos autos os quais, no entanto, vieram a ser arquivados por deliberação de 29 de Dezembro de 2017, do Conselho de Administração dos SMAS. Assim, face ao que se deixa demonstrado deve ser retirada da factualidade provada a matéria constante do item F).
I.5.- Existe contradição na decisão da Factualidade Provada nos itens G), H), I), J) e L), nos termos e pelas razões que supra se deixaram alegadas (tanto assim é que a assistente reconheceu que até Fevereiro de 2015 assinava como responsável de área e assinava informações como técnica.-(cfr.gravação 20220330150404_938535_3994045 minuto 4:26),
-pelo que devem ser retirados do factualismo Provado as als. H), J), L), M) do factualismo provado devendo passar a integrar novos números do Factualismo Não provado, considerando-se que discutida a causa resultaram não provados os seguintes factos:
“- Desde Setembro de 2014, a arguida, sem qualquer motivo legal e sem dar qualquer explicação, gradualmente foi retirando à assistente as funções próprias da sua categoria profissional e que a mesma tinha vindo a exercer até então, atribuindo-lhe apenas outras pequenas tarefas, em nada relacionadas com o conteúdo funcional da referida categoria.
- Desde a referida data de Setembro de 2014, a arguida passou, sem qualquer explicação, a atribuir as tarefas que a assistente vinha desempenhando a outras pessoas daqueles Serviços, de tal forma que as funções que a assistente dantes desempenhava, dentro da sua categoria, começaram a ser atribuídas pela arguida a outros funcionários ou prestadores de serviço que não detinham aquela categoria e que não eram qualificados da mesma forma, não tinham formação técnica nem legalmente as poderiam desempenhar, porque de competência reservada a profissionais de Engenharia Civil reconhecidos pela Ordem dos Engenheiros e pela Ordem dos Engenheiros Técnicos.
- E tudo isto sucedeu sem que alguma vez tivesse sido proferida ou comunicada à assistente qualquer deliberação do Conselho de Administração dos SMAS determinando a sua mobilidade ou a alteração das suas funções, o que a impediu de poder reagir formalmente contra a situação em que se viu colocada.”
I.6.- Ainda assim sempre se dirá que, quanto ao item J) dos Factos Provados o Mmº Juiz incorre em flagrante e decisivo erro de julgamento da matéria de facto, contrariando de forma inequívoca a prova constante dos autos, designadamente a que decorre da ação administrativa que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal ... sob o nº 379/18.... na qual a assistente é Autora, ali representada pelo STAL (cuja p.i. se encontra junta aos autos a fls. 159 a 177v., pelo que a factualidade dada como provada no ítem J) deve ser expurgada da matéria de facto dada como provada.
I.7.- Acresce que, quanto ao item J) da Factualidade Provada deve dizer-se que deve denunciar-se que a expressão “(…) outras pequenas tarefas em nada relacionadas com o conteúdo funcional da referida categoria” é vaga, imprecisa e indefinida uma vez que não concretiza quais as referidas “outras tarefas”, pelo que não é possível fazer uma avaliação da formulação que o Mm.º juiz a quo fez dessas tarefas, razão pela qual, sem prejuízo do que supra se deixou concluído também esse segmento da alínea J) deve ser retirado da matéria de facto dada como provada.
1.8 Quanto ao factualismo constante do item M) da Factualidade Provada, deve ser retirado dados Factos provados, porque, para além de tudo quanto já se deixou alegado e concluído, foi julgado contra a abundante prova produzida nos autos pelas declarações da arguida, pelas declarações da assistente, pelos depoimentos das testemunhas e pela prova documental, como decorre dos seguintes extratos das declarações    da assistente

(gravação 20220330150404_938535_3994045 (minuto 19.25),

(gravação 20220330150404_938535_3994045 (minuto 20.22),

(gravação  20220330150404_938535_3994045 (minuto 20:44),
e da vasta documentação junta aos autos de que se destaca o documento de fls. 24 dos autos oficio, de 22/12/2016, do Presidente do Conselho de Administração do SMAS, dirigido à assistente e os email’s de fls 12. e 13. bem como os demais documentos constantes de 14., 16., 20., 23., 25., 622., 635, 635 v., 636, 636 v., 637, 637 v., 638., 638 v., 639. 640., 640 v., 641, 641.v, 642, 642v., 643, 643 v. 644, 644 v., ( todos até ao final do ano de 2017), e depois, já em 2018, fls. 645, 645 v., 646, 646 v., 647, 647., 648, 648 v., 649, envio este que a assistente confirmou nas suas declarações em audiência de julgamento (gravação 20220330150404_938535_3994045 (minuto 20:44).
I.9.- Os factos constantes, respetivamente, dos itens M) e O) dos Factos Provados contradizem-se porquanto no primeiro foi dado como provado que a ausência de comunicação do Conselho de Administração dos SMAS impediu a assistente de poder reagir formalmente contra a situação que lhe foi criada, mas, depois, na al. O) foi dado como provado que a assistente se opôs a tal situação por parte da arguida, o que, também reforça o já alegado quanto á necessidade de se dar como não provado o que consta do ítem M) da Factualidade Provada.
I.10.- O facto dado como provado – e bem - no item P) dos Factos Provados, que se deve manter inalterado, demonstra, inequivocamente que a matéria de facto dada como Provada no item M) deve ser eliminada por contrariar a prova documental e testemunhal constante dos autos), evidencia que não pode ser imputada à arguida a retirada de funções à assistente, pelas razões que supra se deixaram invocada em sede de impugnação da matéria de facto mas também quanto à matéria de Direito, uma vez que atenta a matéria de facto dada como provada no item P) da Factualidade Provada, fica demonstrado que todos os atos descritos nos itens J), L) M), N), O), Q), R), S), T), U), V), X) e Z) não podem ser imputados à arguida porquanto deles teve conhecimento o Presidente da Câmara Municipal e o Conselho de Administração dos SMAS que nunca fizeram qualquer reparo ou censura à arguida e não lhe determinaram que modificasse a sua atuação.
I.11. - Quanto à matéria constante do item U) o Tribunal não pode ignorar que nos autos existe provada documental que revela que a situação da assistente se prolongou para além de 2017 e continuou em 2018 (quando a arguida já não era superior hierárquica da assistente, dado que em 31 de dezembro de 2017 foram extintos os SMAS) e passaram a trabalhar em Serviços e Unidades Orgânicas diferentes, o que demonstra que, ainda assim a assistente – já fora da tutela hierárquica da arguida – continuou a reclamar que não lhe eram cometidas as suas funções, como resulta dos emails datados de 2018 constantes de fls 645, 645 v., 646, 646 v., 647, 647 v., 648, 648 v. e 649 dos autos, com o que fica assim demonstrado que a não atribuição de funções à assistente não foi da responsabilidade da arguida, porquanto, esta, já depois de ser inferior hierárquica da arguida continuou a não ver serem-lhe atribuídas funções !
I.12.- O facto dado como provado no item AA) não é matéria de facto mas sim de Direito o que acontece quando ali é dado como provado que a arguida agiu “(…) com o propósito concretizado de perseguir e de assediar moralmente a assistente (…).
I.13.- A matéria dada com provada no item AC) contraria a prova documental constante dos autos, designadamente as comunicações envidas por emails da assistente para o Senhor Presidente da Câmara ... e para o Presidente do Conselho de Administração dos SMAS, constantes de fls. 14., 16., 20., 23., 25., 622., 635, 635 v., 636, 636 v., 637, 637 v., 638., 638 v., 639. 640., 640 v., 641, 641.v, 642, 642v., 643, 643 v. 644, 644 v., ( todos até ao final do ano de 2017), e depois, já em 2018, fls. 645, 645 v., 646, 646 v., 647, 647, 648, 648 v., 649, o que é confirmado pelas declarações da assistente, prestadas em audiência de julgamento (gravação 20220330154004_938535_3994045 minuto 19:25), e (20220330154004_938535_3994045 minuto 20:44).
I.14.- Os factos constantes do item AD) da factualidade Provada, tem de ser retirados da matéria dada como provada pelas razõesquesupra se deixaram alegadas, quanto a este item da matéria de facto e quanto á matéria de direito, dado que, em síntese, (a) à data do início dos factos (Setembro de 2022) não existia no Cód. Penal a norma do art.º 154.-A e a actual redação do art.º 155.º nº1, b (b) a arguida – nem ninguém – não saber nem pode ter consciência da proibição e punição da conduta antes que lei penal passasse a prever o respetivo tipo legal de crime (c) o próprio Mm.º Juiz a quo, porque não tem a certeza que a conduta da arguida constitui crime previsto e punido por lei penal, admite que poderá dizer-se que não se está aqui perante os casos mais frequentes e óbvios de “stalking” conforme supra foi definido, e portando caberá discutir se esta conduta por parte da arguida caberá ou não neste preceito legal incriminador do artigo 154º-A do Cód. Penal que vem invocado no despacho de pronúncia e supra citado.” e que “terá aqui sempre de se discutir se na verdade a conduta da arguida aqui em causa não poderá antes constituir apenas a prática desta contra-ordenação, e não do crime de perseguição pelo qual aqui foi pronunciada” e ainda que “(…) é frequente, designadamente ao nível dos nossos tribunais superiores, este tipo de questões ser tratado ao nível desta contra-ordenação, no contexto laboral, falando-se aqui frequentemente doconceitode “mobbing”,que é  algo diverso do conceito de “stalking”,
I.15- Acresce que     a arguida não é jurista, não tem formação jurídica nem nunca desempenhou, como não desempenha, funções nessa área e, consequentemente, nunca sequer, em suposição, teve consciência de, com a sua conduta, estar a cometer qualquer facto ilícito e, muito menos, penalmente punível sendo certo que, como já supra se deixou evidenciado, os superiores hierárquicos da arguida tomaram conhecimento da conduta da arguida, através das comunicações que, com frequência (primeiro semanal, depois, várias vezes por      semana           e,         posteriormente           diária, (cfr.     gravação 20220330150404_938535_3994045, minuto 20:44) a assistente lhes dava, por email´s, em reuniões com o Presidente do Conselho de Administração e com o Presidente da Câmara Municipal ...        e, depois, através  do próprio Sindicato        (cfr.     gravação 20220330150404_938535_3994045, minuto 32:03, 32:03, 32:24 e 32:26 da gravação) e nunca, nenhuma destas entidades considerou nem comunicou à arguida que a sua conduta integrava a prática de crime, (nem aquele por que foi condenada nem qualquer outro), ou qualquer outra atuação ilícita, pelo que deve ser revogada a decisão do item al. AD) da Factualidade Provada e, em consequência, deve ser inserido um novo ponto na Factualidade Provada ( ou substituída a redação do atual AD), com a seguinte redação: “A arguida agiu não sabendo nem tendo consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”

                 I.16.- Deve ser revogada a decisão do item al. AD) da Factualidade Provada e, em consequência, deve ser inserido um novo ponto na Factualidade Provada (ou substituída a redação do atual AD)), com a seguinte redação: “A arguida agiu não sabendo nem tendo consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”

                 I.17- Face ao exposto deve ser alterado todo o Factualismo integrante da matéria de facto dada como Provada da qual decorra que a arguida agiu mottu próprio, à revelia do conhecimento dos seus superiores hierárquico, com desconhecimento destes e contra as suas ordens e/ou orientações, uma vez que deve considerar-se provado que a assistente informou os seus superiores hierárquicos máximos, designadamente o Presidente do Conselho de Administração, logo a partir de Novembro de 2014, primeiro uma vez por semana, depois duas vezes por semana, e, depois, diariamente, até à extinção dos SMAS, em dezembro de 2017, de forma que os seus máximos superiores hierárquicos tiveram conhecimento da atuação da arguida e não lhe ordenaram que modificasse a sua atuação ou a alterasse quanto às funções a atribuir à assistente, razão pela qual a conduta da arguida passou a ser sancionada e respaldada pelos seus máximos superiores hierárquicos, que nada fizeram para porem termo á situação que lhes foi permanentemente informada e descrita pela assistente.

                 I.18.- Pelas razões e com os fundamentos que se deixam alegados, deve ao Factualismo considerado Provado e não Provado ser objeto das alterações que supra se deixam indicadas.

                 J) A recorrente, pelas razões e com os fundamentos que supra alegou não se conforma com a análise dos factos e respetiva aplicação do direito e consequente “ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL decididos pelo Mm.º Juiz a quo na douta Sentença recorrida.

                 K) O tipo de crime de perseguição previsto no art. 154º-A do Cód. Penal é novo no nosso ordenamento jurídico tendo sido aditado ao Código Penal pela Lei 83/15, de 5.08, que, conforme dispõe o seu art.º 3.º, entrou em vigor em 5.09.2015. tendo sido vontade expressa do legislador incluir nesse novo tipo legal e crime apenas as situações de stalking mas não as de assédio laboral (“mobbing”) conforme decorre das atas da Assembleia da República que supra se deixam citadas e parcialmente transcritas.

                 L)Segundo a melhor doutrina “Concluindo não nos parece rigoroso tomar o crime deperseguição como o modo de punir criminalmente o assédio laboral. Este está expressamente previsto como contraordenação e é nesse âmbito que deve ser, à partida, equacionado. (…) Assim, em rigor, a punição segura do assédio laboral como crime implicaria a criação de um crime especificamente pensado para esse efeito, o que remete para as tradicionais questões da dignidade e da necessidade penal. (…) Em favor da criminalização autónoma deste valor, cabe referir que no processo legislativo inerente à criminalização do crime de perseguição foi expressamente manifestada por uma deputada a vontade de criminalizar o assédio laboral, de que se prescindiu optando-se “por uma criminalização mais robusta do crime de perseguição”, por carência de tempo para apresentação de uma iniciativa nesse sentido” – cfr. Diário da Assembleia da República, IIª Série A, n.º 150/ XII/ 4ª, de 17 de junho de 2015, p. 9. -“Também o parecer apresentado pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, solicitado no âmbito do mesmo processo legislativo embora dirigido a um projeto de criminalização do assédio sexual, refere, por comparação à contraordenação laboral existente, que “a falta duma tipificação clara e objetiva, que seja expressa e concisa, pode dificultar às vítimas uma defesa adequada dos seus direitos, na medida em que não se transmite à comunidade o desvalor real das condutas típicas que integram a prática de atos de assédio, nomeadamente sexual” – cfr- Diário da Assembleia da República, IIª Série A, n.º 150/ XII/ 4ª, de 17 de junho de 2015, ps.3 a 5.- – cfr. Sandra Tavares, (Professora Auxiliar da Universidade Católica Portuguesa, CEID - Centro de Estudos e Investigação em Direito, Faculdade de Direito – Escola do Porto), in “As virtualidades do crime de perseguição na tutela do assédio laboral”, (consultável in www.cielolaboral.com )”

                 M) Ora, tal como o Mm.º Juiz a quo reconheceu a questão em apreço nos presentes autos configura uma situação de assédio moral laboral, que, pelas razões e motivos exposto, não é enquadrável na previsão do novo art.º 154.ºA do Cód. Penal, sendo certo que até hoje inexiste no Código Penal qualquer norma autónoma e específica que puna o “mobbing”, ou seja o assédio laboral, pelo que, consequentemente não pode a arguida ser punida – atenta a situação de assédio laboral (ou “mobbing”) configurada nos presentes autos – por falta de disposição pela autónoma que classifique tal conduta como criminalmente punível e daí que deva a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva a arguida da prática do crime de perseguição p. e p. pelo art.º 154.º-A do Código Penal.

                 N) Sem prescindir sempre se concluirá que não assiste razão ao Mm.º Juiz a quo quando, na douta sentença recorrida, afirma que: “(…) entendemos que a questão e os factos aqui em causa não se restringem a esta singela contra-ordenação, por várias ordens de razões que passaremos a referir”.

                 O) Embora o Mm.º Juiz a quo reconheça que o “(…) artigo 29º do Cód. do Trabalho foi recentemente alterado pela Lei n.º 73/2017, de 16 de Agosto, mediante a qual o seu n.º 1 passou a referir expressamente que “é proibida a prática de assédio” (o que antes não dizia), (…)”, com a alteração do n.º 5 do art.º 29.º do Código do Trabalho a lei passou a prever, expressamente, que o assédio constitui contra-ordenação muito grave, sem prejuízo de eventual responsabilidade penal, podendo a responsabilidade que advier pela prática de assédio ser imputada em simultâneo a título de contra-ordenação muito grave e, eventualmente, a título penal, mas a verdade é que a lei penal continua a não conter disposição escrita, certa, inequívoca e autónoma que puna o assédio laboral, pelo que perdem consistência as duas primeiras razões invocadas pelo Mm.º Juiz a quo na douta sentença recorrida, para sustentar que a situação dos autos configura a prática dos crimes pelos quais a arguida foi condenada.

                 P) O Mmº Juiz a quo incorre em flagrante violação da Constituição da República Portuguesa de do Código Penal quando, no primeiro argumento afirma que “(…) Não se diz que “lei” seja essa, mas pensamos que não poderá ser outra senão justamente o crime de perseguição previsto no artigo 154º-A do Cód. Penal pelo qual a aqui arguida veio pronunciada, atenta a similitude das situações previstas numa norma e na outra.”, pelo que não se pode admitir este raciocínio sob pena de se estar a admitir a aplicação da analogia que é proibida em direito penal porque, tal como supra se deixou realçado, o argumento da analogia é, em direito penal, proibido por força do conteúdo de sentido do princípio da legalidade, sempre que ele funcione contra o agente e vise servir a fundamentação ou a agravação da sua responsabilidade.

                 Q) Quanto à terceira razão invocada pelo Mmº Juiz a quo também não lhe assiste razão, uma vez que a argumentação ali expendida, tem relevância, não para que dessa realidade se extraia que os mesmos integram (ou não) o tipo legal previsto e punido pelo art.º 154.º-A do Cód. Penal, mas sim porque deles resulta que – ainda que se considerasse que constituem crime – nunca a aqui recorrente pode ou deve ser condenada pela prática do mesmo, pelo que importa concluir que não é, legislativa, legal, judicial, jurisprudencial e doutrinariamente, pacífico, claro, expresso, certo, indiscutível e irrebatível que os comportamentos dados como provados – ainda que tenham ocorrido – integrem o tipo legal de crime p. e p. pelo artº 154.-A do Cód. Penal e, por assim ser, ainda que se admitisse, – que não admite –, a subsunção dos comportamentos em questão àquele tipo legal de crime, sempre terá, “in casu” que se considerar que a arguida agiu com erro sobre proibições a que se refere o art.º 16.º n.º 1 do Cód. Penal, erro esse que reúne todas as condições para que a arguida seja absolvida.

                 R) Quanto á quarta razão aduzida pelo Mmº Juiz a quo também a mesma improcede, pelas razões que supra, extensamente se deixaram alegadas, reafirmando-se que relativamente ao tipo objetivo de ilícito, quanto ao art.º 155.º do Cód. Penal, só cabe fazer referência aos elementos especializadores dos crimes previstos nos art.ºs 153.º a 154.º-C do Cód. Penal advertência esta que, aliás já Américo Taipa de Carvalho, a propósito do tipo objetivo de ilícito, deixou expressa no comentário de sua autoria, sobre a anterior redação do art.º 155.º (Coação Grave), do Cód. Penal, ínsito in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág.371.

                 S) Ainda quanto a esta quarta razão aduzida pelo Mm.º Juiz a quo deve concluir-se que a razão da agravação da pena para a perseguição feita por funcionário com grave abuso de autoridade ou contra funcionário, não tem nada que ver com a sua relação e atividade laboral, sendo que a previsão ínsita nos art.ºs 154º-A e 155.º do Cód. Penal não respeita a condutas cometidas no foro das relações intralaborais ou interlaborais, ou seja, entre funcionários, no âmbito e por causa de relacionamento laboral/funcional, tornando-se claro que, quando no art.º 155.º se dispõe que o crime será agravado se for cometido contra uma série de profissionais dos mais diversos âmbitos no exercício das suas funções ou por causa delas (nos termos da alínea c) do artigo 155º, n.º 1, e do artigo 132º, n.º 2, al. l), ambos do Cód. Penal), sendo igualmente agravado por ser cometido por funcionário com grave abuso de autoridade (nos termos da alínea d) do mesmo artigo 155º, n.º 1, do Cód. Penal), visa prever e punir condutas alheias ao relacionamento laboral entre autores e vitimas.

                 T) O legislador ao diferenciar na qualificação a qualidade de funcionário seja do autor ou de vítima, pretendeu agravar a conduta praticada por ou contra um funcionário instrumentalizando essas funções, sendo certo que, no caso de, quer autor quer a vítima, serem ambos funcionários e os factos serem praticados no âmbito do exercício de funções de ambos, ou por causa delas, aquela qualificação não tem razão de ser, porquanto ambos se encontram munidos do mesmo estatuto e a lei nada prevê para o caso de ambos terem o estatuto de funcionários.

                 U) Sem prescindir do que se deixa exposto, impõe-se que aqui se deixe a conclusão segundo a qual ao Mm.º Juiz a quo não é legalmente permitido concluir que “(…)os próprios termos em que o artigo 155º, n.º 1, als. c) e d), do Cód. Penal, prevê determinadas agravações deste crime de perseguição, (…)não podem deixar de remeter para um contexto necessariamente laboral, pelo menos em parte.” Visto que esta última expressão, “pelo menos em parte” é ininteligível, não sendo, na sentença recorrida, explicitado o alcance da mesma, ficando, pois, sem se saber qual “a parte” em que foi considerado que os mencionados termos do disposto no art.º 155.º n.º 1, als. c) e d), do Cód. Penal remetem para um contexto laboral.

                 V) Também o Mm.º Juiz a quo não pode concluir, nesta quarta razão da sua argumentação, que tendo em conta a qualidade das pessoas mencionadas no art.º 155.º n.º 1 als. c) e d) “(…) então trata-se também pelo menos de indícios claros de que o legislador não pretendeu afastar o contexto laboral da prática do crime de perseguição aqui em apreço, antes pelo contrário.”, visto que, tal como decorre dos extratos das atas da Assembleia da República, que supra se deixaram transcritas, o legislador foi claro e expresso ao pretender afastar o contexto laboral da prática do crime de perseguição, criminalização essa de que se prescindiu por carência de tempo para apresentação de uma iniciativa nesse sentido (– cfr. Diário da Assembleia da República, IIª Série A, n.º 150/ XII/ 4ª, de 17 de junho de 2015, p. 9. -), tendo sido afirmado, em sede de Plenário, que “O restante assédio está coberto pela lei laboral e não deve entrar no Direito Penal.” -cfr. Atas da Assembleia da República supra citadas. – ficando, assim expressamente demonstrada a inexistência de quaisquer indícios de que tenha sido pretensão do legislador incluir a prática do assédio laboral na prática do crime de perseguição, razão pela qual não assiste razão ao Mm.º Juiz a quo no raciocínio interpretativo que faz quanto a esta matéria na sentença recorrida.

                 W) Sempre se dirá que a tipificação criminal de condutas e comportamentos não pode ser feita só porque existem indícios claros da intenção do legislador e muito menos pela negativa, ou seja, no caso concreto, afirmando-se que o legislador “(…) não pretendeu afastar o contexto laboral da prática do crime de perseguição aqui em apreço, antes pelo contrário.”, pelo que ao decidir como base nessas premissas o Mmº. Juiz a quo viola frontalmente o disposto nos art.ºs 29º da Constituição da Republica Portuguesa.

                 X) A existência do tipo legal de crime não pode decorrer da existência de indícios de que o legislador, in casu, não pretendeu afastar o contexto laboral da prática do crime de perseguição (ou seja, a conduta tipificada não pode ser definida por “exclusão de partes”, ou seja pela negativa), reafirmando-se que, no direito penal, a legalidade dos ilícitos é conseguida através da técnica da tipicidade que consiste em descrever, de forma clara, precisa e rigorosa, através de lei anterior escrita e certa, a conduta ou o facto, considerados criminalmente reprováveis, constituindo esta descrição aquilo se chama “tipo” e assim aquela conduta ou aquele facto são chamados “conduta típica” ou “facto típico”.

                 Y) Ora, basta o facto de o Mm.º Juiz a quo afirmar que, na sua interpretação existem indícios claros de que o legislador não pretendeu afastar o contexto laboral da prática do crime de perseguição, para daí se concluir que não existe, na lei escrita e certa, a descrição clara, precisa e rigorosa das condutas ou dos factos que, em contexto laboral, integrem aquele tipo legal de crime, devendo sempre aqui deixar-se sublinhado que o intransponível princípio “nullum crimen sine legem” significa ser completamente vedado ao juiz, seja embora na base da mais esclarecida e avançada consciência político-criminal, criar instrumentos sancionatórios criminais que não se encontrem estritamente previstos em lei anterior.” - cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. Pág. 182, § 10. –

                 Z) Consequentemente, tem de concluir-se que não assiste razão ao Mm.º Juiz a quo segundo a qual atento o disposto no art.º 155.º do CP é levado a concluir que existem “(…) indícios claros de que o legislador não pretendeu afastar o contexto laboral da prática do crime de perseguição aqui em apreço, antes pelo contrário.”

                 AA) Quanto à quinta razão invocada pelo Mm.º Juiz a quo para fundamentar a interpretação de que o assédio laboral e os seus elementos constitutivos merecem tutela penal como crime de perseguição, não pode aceitar-se que o Mm. Juiz a quo recorra e invoque qual a tutela legal penal que existia no ordenamento jurídico brasileiro quanto ao Assédio Moral, até a aprovação da Lei 14.132/2021, o que faz mencionando “(…) artigo académico intitulado “Stalking Ocupacional: A Tipificação do Crime de Perseguição pela Lei 14.132/2021 Como Punição Penal ao Assédio Moral”, da autoria de Ângela Diniz Linhares Vieira, publicado em 2021 na Revista de Direitos Fundamentais nas Relações do Trabalho, Sociais e Empresariais, (…)”. uma vez que as conclusões de tal estudo são inaplicáveis no ordenamento jurídico-penal português, (não obstante ter de se dizer que, salvo melhor leitura do mesmo dele não consta que o assédio laboral, ou assédio moral no contexto laboral e seus elementos constitutivos, estejam integrados na previsão do art.º 154.º-A do Código Penal Português), pelo que temos por adquirido que a invocação de tal artigo doutrinário, produzido a propósito e no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, por uma académica brasileira, não pode merecer acolhimento nem aceitação para sustentar a tese de que o assédio laboral integra o tipo legal de crime de perseguição no ordenamento jurídico-penal português.

                 AB) Em síntese, salvo o devido respeito, não colhe nenhuma das razões invocadas pelo Mm.º Juiz a quo para sustentar segundo o entendimento segundo o qual “(…) a conduta da aqui arguidaquese deu como provada integra todososelementosobjectivosdocrime deperseguição pelo qual veio pronunciada, quer na sua forma simples prevista no artigo 154º-A, n.º 1, do Cód. Penal, quer em ambas as suas formas agravadas previstas no artigo 155º, n.º 1, als. c) e d), do mesmo Cód. Penal” pelo que, consequentemente, deve decidir-se que a situação em apreço nos presentes autosnão integra os tipos legaisde crimes, e respetivos elementos objetivos, previstos e punidos pelos art.º 154.º-A e 155.º do Código Penal, absolvendo-se a arguida.

                 AC) Também não estão verificados os elementos subjectivos dos tipos legais dos crimes por cuja prática a recorrente foi condenada, sendo certo que não agiu com dolo, uma vez que a recorrente agiu sem consciência, conhecimento, previsão, ou realização do facto típico ( art.º 14º do Cód. Penal), ou, quando assim não se entender sempre terá de se decidir que a recorrente agiu com erro sobre as circunstâncias de facto ou de direito ou, ainda com erro sobre a ilicitude, sendo que o erro não lhe era censurável, pelo que a sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs. 14.º, 15.º n.ºs 1 e 2 e 16 nºs 1 e 2, todos do Cód Penal.

                 AD) Dado que a recorrente não praticou o crime p. e p. pelo art.º 155.º do Cód. Penal, pelas razões que se deixaram alegadas, a decisão recorrida viola o disposto no art.º 115.º n.º 3 do Cód. Penal.

                 AE) Sem prejuízo de se pugnar pelo provimento do recurso, já admitido e que sobe com o presente do que vem de se concluir, sempre deverá decidir-se que a sentença ora recorrida, tendo presente tudo quanto se deixou exposto:

                 - deve ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente da prática dos crimes por que vem condenada, uma vez que não estão verificados, in casu, os elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais de crime pelos quais a recorrente foi condenada;

                 - sempre se deve decidir que a recorrente agiu sem dolo, ou com erro sobre os elementos de facto e de direito dos tipos legais de crime por que foi condenada, devendo ainda decidir-se que agiu sem culpa porque sem consciência da ilicitude, dado que o erro não é censurável, tudo pelas razões que supra se deixaram alegadas;

                 - caso assim não se entenda, terá de se reconhecer que cometeu erro de direito, na aplicação da pena (que deve ser de multa e não de prisão, nos termos do disposto no art.º 70.º do C.Penal); - cometeu quanto às condições que impôs para suspensão da pena de prisão (devendo ser eliminada a obrigação de não assumir profissão ou cargo que lhe determine relação de superioridade hierárquica em relação à assistente atento o disposto no artº. 51.º n.º 2 do C.Penal);

AF)Deve ser julgado não provado e improcedente o pedido civil deduzido pela assistente, porque também quanto a esta matéria, a douta sentença recorrida incorre em erro de julgamento, já que o pedido civil deduzido nos presentes autos mais não é do que a repetição, quer quanto às causas quer quanto aos efeitos e danos, do pedido de indemnização que a assistente deduz, na ação nº 379.18.8BECTB. mas ainda porque a atuação da demandada, aqui recorrente, não preenche os pressupostos da responsabilidade civil, não demonstrada a ilicitude da atuação da recorrente até porque, naquela ação a demandante/assistente imputa tal ilicitude ao Município ... e aos SMAS mas não à aqui arguida.

AG) O Mm.º Juiz a quo, na douta sentença recorrida, não conheceu da pendência dessa ação nem das repercussões da mesma na decisão de direito com o que cometeu a nulidade, já supra denunciada, de omissão de pronúncia; caso assim não se entenda sempre se estará perante uma situação de litispendência, tal qual se deixou alegado no recurso já admitido e que sobe com o presente, pelo que o pedido civil deduzido nos presentes autos mais não é do que uma inadmissível repetição do pedido civil deduzido naqueles autos, pelo que o mesmo deve ser julgado totalmente improcedente.

AH) Sem prescindir do que acaba de se deixar concluído, sempre se dirá que a indemnização fixada pelo Mm.º Juiz a quo a título de danos não patrimoniais é exagerada, desproporcional e excessiva tendo em vista que não se provaram todos os danos não patrimoniais que a demandante invocou no pedido de indemnização civil, pelo que ainda que se entendesse que a recorrente devesse ser condenada no pagamento de danos não patrimoniais, sempre o valor dos mesmos deveria ser drasticamente reduzido dada a importância e valor dos danos não patrimoniais que foram julgados não provados.

AI) Quanto aos danos patrimoniais a Motivação da douta sentença limita-se a transcrever os montantes constantes dos factos dados como provados mas não plasma uma única fundamentação, não indica um único documento e não invoca uma única razão para justificar cada um dos valores que foram considerados em tal decisão, pelo que por falta de qualquer justificação em sede de Motivação, quanto aos danos patrimoniais, a douta sentença ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente da condenação no pagamento de danos patrimoniais.

AJ) A sentença recorrida violou os princípios e os dispositivos legais que se deixaram enumerados nas alegações de recurso e que se deixam assinalados nestas conclusões.

AK) Face a tudo quanto se deixa alegado e concluído dever a douta sentença recorrida ser revogada absolvendo-se a recorrente ou, caso assim não se entenda, modificando-a de acordo com o que se deixa exposto.

Termos em que, concedendo-se provimento ao presente recurso, far-se-á Justiça».

6. Notificado do recurso respondeu o Ministério Público pugnando pela sua improcedência.

7. O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso do despacho e pela procedência parcial do recurso da sentença.

8. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi exercido o contraditório.

9. Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.

10.


A)

(despacho recorrido)


No caso concreto, são as seguintes as questões que importa decidir:

1. Da alegada verificação de questão prejudicial e consequente suspensão da instância;

2. Da alegada verificação da litispendência e consequente absolvição da instância na parte referente ao pedido de indemnização cível


B)

(sentença recorrida)


1. Da falta de comunicação à arguida da alteração de factos, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos art.ºs 358.º n.º 1 e 359.º do CPP;

2. Da falta de fundamentação quanto aos valores dos danos patrimoniais considerados provados
3. Da omissão de pronúncia relativamente à existência, objeto, conteúdo e pendência da ação n.º 379/18...., no Tribunal Administrativo e Fiscal ...;

4. Da sindicância da matéria de facto;

5. Do enquadramento jurídico penal;

6. Das consequências jurídicas do crime;

7. Do pedido de indemnização cível.


*

II. Decisões recorridas

A) Despacho recorrido (transcrito no que ora releva)


«Mediante a contestação por si deduzida, veio a arguida e demandada AA invocar, em suma, que a assistente BB, representada pelo “STAL (Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local e Regional, Empresas Públicas, Concessionárias e Afins), propôs em 6 de Setembro de 2018, no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., uma acção administrativa contra o Município ... e contra os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., (mas não contra a aqui arguida), acção essa que ainda ali corre termos sob o n.º 379/18...., na qual, a assistente atribui àqueles Réus (que não à aqui arguida), a prática dos factos pelos quais a arguida vem pronunciada nos presentes autos, alegando que, por isso, os mesmos incorrem em violação de lei, por violarem, entre outras as seguintes disposições legais: artigo 29º, n.º 2, 70º a 72º e 82º da LTFP e artigo 59º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa, pedindo que a acção seja julgada provada e procedente e em  consequência:

“1) Serem os Réus condenados a reconhecer que a associada do Autor tem direito a desempenhar as funções correspondentes à carreira de Técnica Superior Engenheira Civil, em que se encontra integrada;

2) Ser reconhecido que as funções que a associada do Autor vem desempenhando desde 2016 não são as que correspondem à carreira e categoria de Técnica Superior Engenheira Civil;

3) Serem os Réus condenados a atribuir à associada do Autor as funções correspondentes à carreira de Técnica Superior Engenheira Civil; e

3) Serem os Réus condenados a pagar à associada do Autor a quantia de €10.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais que a situação supra descrita lhe causou, acrescida de juros moratórios desde a citação até efectivo e integral pagamento.”.

Alega assim a arguida e demandada que essa acção se encontra ainda a correr termos no TAF ..., não tendo sido proferida qualquer decisão quanto ao mérito da mesma, e que, tendo presente o seu objecto, torna-se evidente que a decisão prévia sobre a ilicitude, ilegalidade ou irregularidade dos actos objecto da mesma, por cuja prática a arguida vem pronunciada nos presentes autos, mas que naquela são imputados ao Município ... e aos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., é de resolução prévia indispensável para se conhecer em definitivo da questão principal nos presentes autos. E mais alega que que existe duplicação, quanto à mesma causa de pedir, entre o de pedido de indemnização civil deduzido nos presentes autos e o pedido de indemnização civil deduzido na supra mencionada acção administrativa.

Como tal, requer a arguida e demandada que, nos termos do disposto no artigo 7º, n.os 2 e 3, do Cód. de Proc. Penal, se ordene a suspensão do presente processo penal para que, previamente, se decida aquela questão do Tribunal Administrativo e Fiscal ..., que a arguida entende que é prejudicial, e ao mesmo tempo entende que, com base no disposto no artigo 580º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil, se verifica a excepção dilatória de litispendência entre a supra referida acção administrativa e o pedido de indemnização civil contra si deduzido nos presentes autos.

O Ministério Público e a assistente e demandante já se pronunciaram no sentido do indeferimento de tal pretensão de suspensão e de tal excepção dilatória invocadas pela arguida e demandada.

Ora, a respeito da pretendida suspensão do presente processo penal, estabelece com interesse o artigo 7º, n.os 1 e 2, do Cód. de Proc. Penal, com a epígrafe “Suficiência do processo penal” que:

 “1 - O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.

2 - Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.”.

Assim sendo, como se vê, a regra é a de que o processo penal, em princípio, é auto-suficiente, e nele podem e devem ser resolvidas todas as questões que interessem à causa, apenas se concedendo que assim não seja, excepcionalmente, quando, para se conhecer da existência de um crime, for verdadeiramente necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal.

Neste caso concreto, entendemos, claramente, que não é necessária a decisão de qualquer questão prévia não penal que não possa ser aqui apreciada, de modo a que se possa aqui concluir então se existiu ou não o crime que vem imputado à arguida no despacho de pronúncia, muito menos a questão não penal colocada na acção administrativa a que a arguida se refere.

Com a devida vénia, subscrevemos grande parte daquilo que o Ministério Público expendeu a este respeito, no sentido de que nos presentes autos vem a arguida pronunciada pela prática de um crime de perseguição agravado, p. e p. pelos artigos 154-A.º, n.ºs 1, 3 e 4 e 155.º, n.º 1, als. c) e d), com referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l) do Código Penal, em virtude de, em síntese, na qualidade de Chefe de Divisão Geral dos SMAS da ..., ter deixado de atribuir gradualmente quaisquer funções naqueles Serviços à assistente BB até lhe retirar todas essas funções e ter deixar de a convocar para quaisquer reuniões de trabalho, tendo perdurado tal situação durante mais de um ano, estando ciente a arguida que segregava profissionalmente a assistente e molestava a sua dignidade pessoal bem como a sua saúde psíquica, e que lhe causava medo e inquietação e prejudicava a sua capacidade de tomar decisões livremente, nomeadamente quanto à sua permanência naqueles Serviços, resultados estes que representou.

Ora, a aqui arguida não é Ré na acção administrativa acima identificada pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., sendo certo que uma coisa é a eventual responsabilidade administrativa e civil do Município ... e dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ... por actos e omissões dos seus funcionários, e outra é a própria responsabilidade criminal destes últimos (funcionários) por actos que tenham desempenhado no exercício das suas funções e em abuso dessas funções, como é o caso alegado nos presentes autos.

Dito de outra forma ainda, não nos parece de todo que a eventual procedência ou improcedência dos pedidos formulados na acção administrativa a que a arguida faz referência traga qualquer espécie de consequência para a apreciação da responsabilidade penal da arguida que se imputa nos presentes autos, e nem essa responsabilidade penal ficará melhor ou pior definida em consequência de tal eventual procedência ou improcedência da referida acção. Uma coisa sempre será a responsabilidade penal da aqui arguida pelos factos e pelo crime que aqui lhe são imputados, outra coisa será a responsabilidade civil e administrativa que caiba ou não aos Réus da acção administrativa a que a arguida se refere (onde a aqui arguida nem sequer é parte), e nem esta última responsabilidade tem qualquer implicação na primeira.

Aliás, sem prescindir, sempre mais se dirá que, caso fosse decretada a suspensão do presente processo penal como a arguida o pretende, e em seguida a acção administrativa a que a arguida se refere fosse julgada procedente, será que por via disso a arguida aceitaria então que daí pudesse automaticamente decorrer qualquer espécie de responsabilidade penal para si nos presentes autos? Parece-nos manifestamente que não, e daí mais uma vez a ausência de cabimento de tal suspensão.

Como tal, pelo exposto, e por ausência de fundamento legal ou factual suficiente, indefere-se desde já a pretendida suspensão do presente processo penal ao abrigo do estabelecido no artigo 7º do Cód. de Proc. Penal que veio requerida pela arguida na sua contestação.

Relativamente à invocada litispendência que a arguida e demandada invoca, estabelece com interesse o artigos 580º, n.os 1 e 2, Cód. de Proc. Civil, com interesse para aqui, que a excepção de litispendência pressupõe a repetição de uma causa estando a causa anterior ainda em curso, tendo-se por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

E mais nos complementa o subsequente artigo 581º do mesmo Cód. de Proc. Civil no sentido de que:

 “1 - Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”.

Finalmente, nos termos ainda dos artigos 577º, al. i), e 278º, n.º 1, al. e), ambos do mesmo Cód. de Proc. Civil, a litispendência constitui uma excepção dilatória, a qual, a verificar-se, implica que o juiz deva abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância, que neste caso seria a instância referente ao pedido de indemnização civil deduzido pela aqui assistente e demandante contra a arguida e demandada nos presentes autos.

Ora, no nosso caso concreto, igualmente entendemos que a pretensa litispendência aqui invocada de modo algum se verifica. 

Com efeito, antes do mais e desde logo, como a própria o concede, a arguida e demandada nos presentes autos nem sequer é parte (designadamente Ré) na acção administrativa a que se refere e que causaria a pretensa litispendência que invoca, pelo que as partes nem sequer são as mesmas numa causa e na outra.

Por seu turno, também os pedidos formulados numa causa e na outra são totalmente diversos, na medida em que mais uma vez se refira que uma coisa sempre será a eventual responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos da aqui demandada pelos factos e pelo crime que aqui lhe são imputados e que se discute na presente causa, e outra coisa bem diversa sempre será a eventual responsabilidade civil e administrativa que caiba ou não aos Réus da acção administrativa a que a demandada se refere e onde esta última nem sequer é parte.

Aliás, veja-se, caso procedesse a excepção dilatória de litispendência aqui invocada, tal implicaria que a aqui arguida e demandada seria imediatamente absolvida da instância relativamente ao pedido de indemnização civil contra si formulado nos presentes autos. E posteriormente, mesmo que viesse a ter procedência a acção administrativa que causaria tal litispendência, nem por isso a aqui arguida e demandada seria aí condenada ou obrigada ao que quer que fosse, nem sofreria qualquer consequência por via dessa procedência dessa acção, uma vez que nem sequer é parte na mesma. Seria, no mínimo, caricato, e representaria uma total carência de tutela jurisdicional efectiva para a pretensão que a assistente e demandante pretende exercer contra a arguida e demandada nos presentes autos.

Assim, pelo exposto, improcede igualmente a excepção dilatória de litispendência que a arguida e demandada aqui invocou a respeito do pedido de indemnização civil contra si deduzido nos presentes autos.

Notifique».


B )Sentença recorrida (transcrita no que ora releva):


«II. FUNDAMENTAÇÃO

A) DOS FACTOS

1. FACTUALIDADE PROVADA

Discutida a causa, resultaram provados, com relevância para a decisão final, os seguintes factos:

A) A assistente BB desempenhou funções nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., os quais se integravam no Município ..., desde 15 de Setembro de 2009 e até 31 de Dezembro de 2017, durante o primeiro ano através do regime de POC (programa ocupacional) e depois, desde 15 de Setembro de 2010 a 14 de Fevereiro de 2011, através de um contrato de prestação de serviços, e a partir de 15 de Fevereiro de 2011 enquanto trabalhadora ao abrigo de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, com a categoria profissional de Técnica Superior - Engenheira Civil.

B) No âmbito das referidas funções, a assistente estava afecta ao serviço de Manutenção e Exploração de Sistemas de Água e Saneamento dos SMAS.

C) O conteúdo funcional da referida categoria profissional da assistente era genericamente e oficialmente o seguinte: “Funções consultivas, de estudo, planeamento, programação, avaliação e aplicação de métodos e processos de natureza técnica e/ou científica, que fundamentam e preparam a decisão. Elaboração, autonomamente ou em grupo, de pareceres e projectos, com diversos graus de complexidade, execução de outras atividades de apoio geral ou especializado nas áreas de atuação comuns, instrumentais e operativas dos órgãos e serviços. Funções exercidas com responsabilidade e autonomia técnica, ainda que com enquadramento superior qualificado. Representação do órgão ou serviço em assuntos da sua especialidade, tomando opções de índole técnica, enquadradas por diretivas ou orientações superiores”.

D) Para além de tal conteúdo funcional genérico, a assistente tinha ainda como funções mais específicas, segundo o quadro de pessoal dos SMAS, as seguintes: “Propor acções que visem o apoio à tomada de decisão ao nível superior no domínio da Manutenção e Exploração de sistemas de abastecimento de água, procurando a constante optimização da mesma através de uma adequada política de controlo de perdas; Manutenção e conservação de sistemas de esgotos domésticos e industriais, procurando a sua constante optimização através de controlo de carácter separativo das redes e destino final dos esgotos; Operação, manutenção e reparação do equipamento electromecânico, associado à bombagem, tratamento e controlo de água e esgoto; Operação, manutenção dos sistemas de automatismo instalados nas redes de água e esgotos; Reparação e aferição de contadores adoptando todas as medidas conducentes adequada manutenção destes equipamentos por forma a controlar desvios anormais provenientes da submedição e sobremedição; Coordenação de obras por administração directa previstas no plano anual de actividades; Execução de obras de ampliação e remodelação de redes e execução de ramais de ligação; Elaborar relatórios de operacionalidade dos sistemas; Implementação de programas de procedimentos com vista a melhorar a operacionalidade e articulação dos meios envolvidos. Assim como o desempenho de outras funções conexas.”.

E) Como tal, no âmbito das referidas funções, a assistente elaborava informações e pareceres técnicos, fazia inspecções aos locais, acompanhava e superentendia a execução de ramais de água e saneamento, de reparação de rupturas e acompanhava os serviços externos e o piquete, muitas vezes durante a noite, coordenando as reparações de avarias, tais como rebentamentos, entre muitas outras.

F) A assistente sempre exerceu as funções inerentes à sua categoria profissional, de uma forma geral, com empenho, zelo, dedicação e competência.

G) A assistente exerceu, na prática, as funções de Responsável pela mencionada Área de Manutenção e Exploração de Sistemas dos SMAS, desde 26 de Abril de 2013 até 3 de Fevereiro de 2015.

H) Desde 2009 e até Setembro de 2014, a assistente sempre desempenhou tarefas de acordo com o conteúdo funcional da respectiva categoria profissional.

I) Em Abril de 2014, a arguida AA passou a exercer funções de Chefe de Divisão Geral dos referidos SMAS, e nessa qualidade passou por isso a desempenhar funções de superior hierárquica da assistente.

J) Desde Setembro de 2014, a arguida, sem qualquer motivo legal e sem dar qualquer explicação, gradualmente foi retirando à assistente as funções próprias da sua categoria profissional e que a mesma tinha vindo a exercer até então, atribuindo-lhe apenas outras pequenas tarefas, em nada relacionadas com o conteúdo funcional da referida categoria.

L) Desde a referida data de Setembro de 2014, a arguida passou, sem qualquer explicação, a atribuir as tarefas que a assistente vinha desempenhando a outras pessoas daqueles Serviços, de tal forma que as funções que a assistente dantes desempenhava, dentro da sua categoria, começaram a ser atribuídas pela arguida a outros funcionários ou prestadores de serviço que não detinham aquela categoria e que não eram qualificados da mesma forma, não tinham formação técnica nem legalmente as poderiam desempenhar, porque de competência reservada a profissionais de Engenharia Civil reconhecidos pela Ordem dos Engenheiros e pela Ordem dos Engenheiros Técnicos.

M) E tudo isto sucedeu sem que alguma vez tivesse sido proferida ou comunicada à assistente qualquer deliberação do Conselho de Administração dos SMAS determinando a sua mobilidade ou a alteração das suas funções, o que a impediu de poder reagir formalmente contra a situação em que se viu colocada.

N) A arguida proibiu a assistente de falar com clientes e proibiu-a de sair do gabinete sem a sua autorização, ao que a assistente lhe questionou se para ir à casa-de-banho também precisava de lhe pedir autorização, tendo a arguida respondido que até podia lá ficar fechada todo o dia se quisesse ou que se quisesse ficar trancada sozinha no gabinete, que ficasse, mas que estava proibida de sair dali sem a sua autorização.

O) A assistente opôs-se a tal situação por parte da arguida, reiterando que lhe incumbia desempenhar as funções de Técnica Superior – Engenheira Civil, na área de Manutenção e Exploração de Sistemas dos SMAS, tendo solicitado à arguida que a ordem para desempenhar outras tarefas ou serviços lhe fosse dada por escrito, o que nunca sucedeu, pois sempre que a assistente solicitou à arguida que as ordens lhe fossem dadas por escrito, isso foi-lhe recusado expressamente.

P) A assistente procurou junto do Conselho de Administração dos SMAS e, bem assim, junto do Sr. Presidente da Câmara Municipal ..., chamar a atenção para a situação profissional vivida e para a resolução da mesma, pois tratava-se de uma Técnica Superior a quem não era permitido desempenhar as suas funções, mas nunca foi colocado termo à situação que a assistente vivia.

Q) Já durante o ano de 2017, a arguida, na referida qualidade de Chefe de Divisão Geral dos SMAS, sem qualquer motivo legal, acabou por deixar de atribuir por completo à assistente todas e quaisquer funções, quer da sua categoria profissional, quer de qualquer outra, sem a informar do respectivo motivo ou de qualquer deliberação nesse sentido, recusando dar ordens por escrito, apesar de solicitado por parte da assistente.

R) E nesse período, durante algum tempo, a arguida restringiu o acesso a software de trabalho e à internet no computador pessoal da assistente, tendo existido uma altura em que a assistente apenas tinha acesso ao site do Diário da República.

S) No indicado período de 2014 a 2017, a assistente, progressivamente e por ordem da arguida, foi deixando de ser convocada para reuniões de trabalho, foi deixando de receber processos administrativos para tramitar e foi deixando de emitir pareceres ou informações técnicas, apesar de continuar a comparecer no respetivo local de trabalho e de cumprir o seu horário de trabalho.

T) E em consequência da actuação da arguida, a assistente chegou a passar dias inteiros de trabalho sentada na sua secretária, sem efectuar qualquer tipo de tarefa, apesar de as solicitar à arguida.

U) O assim descrito e praticado especificamente pela arguida e demandada perdurou pelo menos até 31 de Dezembro de 2017, altura em que os SMAS foram extintos e os respectivos serviços foram integrados na Câmara Municipal ..., com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2018, tendo então a assistente e demandante passado a encontrar-se ao serviço do Município ... e assim passado a exercer funções no Município.

V) Em consequência da descrita actuação da arguida e demandada, a assistente e demandante desenvolveu uma depressão, tendo tido necessidade de ser consultada por psiquiatra e psicologia clínica e de tomar medicação.

X) E a demandante sentiu-se perseguida e amedrontada, sob a ameaça de lhe serem instaurados processos disciplinares.

Z) E foi conduzida a um sentimento de frustração e desinteresse.

AA) A arguida quis agir da forma descrita, com o propósito concretizado de perseguir e de assediar moralmente a assistente no âmbito das funções que esta exercia nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., bem sabendo que a sua conduta a intimidava, diminuía, humilhava e amedrontava.

AB) A arguida estava ciente que, na qualidade de Chefe de Divisão Geral dos SMAS da ... e de superior hierárquica da assistente, ao deixar de atribuir gradualmente a esta última quaisquer funções naqueles Serviços, até lhe retirar todas essas funções, e ao deixar de a convocar para quaisquer reuniões de trabalho, tendo perdurado tal situação durante mais de um ano, a segregava profissionalmente e molestava a sua dignidade pessoal bem como a sua saúde psíquica, e lhe causava medo e inquietação e prejudicava a sua capacidade de tomar decisões livremente, nomeadamente quanto à sua permanência naqueles Serviços, resultados estes que representou.

AC) A arguida estava ainda ciente da qualidade de funcionária pública da assistente e de que a mesma se encontrava no exercício das suas funções, bem sabendo também que actuava nos termos acima descritos aproveitando-se da autoridade que, na qualidade de Chefe de Divisão Geral dos SMAS da ..., sobre a mesma exercia, e que, não obstante, não possuía motivo legal para actuar como actuou.

AD) A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal.

AE) A arguida é em geral tida como sendo pessoa respeitadora e respeitada, educada, considerada pela generalidade dos que a conhecem e com ela trabalham e trabalharam, tendo sido sempre uma funcionária cumpridora e zelosa e nunca tendo tido qualquer reparo ou censura disciplinar ou penal.

AF) A arguida trabalha actualmente ao serviço do Município ..., como assessora do Presidente da Câmara Municipal ..., mediante o que aufere um salário de €1.800,00 por mês. É solteira, vive sozinha, não tem filhos nem encargos para além da respectiva subsistência, e tem como habilitações literárias um Mestrado em Gestão de Empresas.

AG) A arguida não tem quaisquer antecedentes criminais.

AH) A demandante é em geral tida como pessoa educada, pacata, trabalhadora, responsável, respeitada e respeitadora, nos meios social, profissional e pessoal, para além de ter como valores a dignidade, a justiça e a educação.

AI) Em consequência da conduta da demandada, a demandante foi deixando de ter contacto com os seus colegas e com os assuntos do serviço, o que lhe causou frustração e vexame perante os seus colegas de trabalho, que se iam apercebendo da situação.

AJ) E passou por sentimentos de medo por passar os dias sem trabalho e não poder fazer nada para ajudar a passar o tempo, pois receava que lhe abrissem processos disciplinares por estar na internet ou por ler um livro, chegando mesmo a um ponto em que tinha receio que qualquer coisa que fizesse fosse um motivo para a demandada lhe fazer uma participação que gerasse a instauração de um processo disciplinar.

AL) E mais sentiu a demandante ansiedade extrema, diarreia, preocupações, stress, transtornos, frustração, revolta, indignação, crescente mal-estar, tristeza, angústia e perda de auto-estima, sentindo que foi ostracizada e que não tinha valor algum.

AM) E mais se sentiu uma incompetente, uma inútil, uma burra, uma ignorante, assim como que era uma má pessoa, que não valia nada, que devia ser doida, que ela é que estava mal e que não tinha perfil para estar na função pública.

AN) A situação profissional que foi causada à demandante pela demandada foi tema de conversa de muitos dos seus colegas de trabalho, que nela viam uma clara e evidente punição pela manifestação de divergências com a demandada.

AO) E assim a demandante se sentiu envergonhada e marginalizada por muitos colegas seus que se afastaram de si, deixando de lhe falar com medo de represálias por serem vistos a falar consigo, pois muitos deles consideravam desaconselhável a manutenção de quaisquer contactos com a demandante por isso poder ser interpretado como eventual discordância para com a demandada e dirigente máxima dos serviços, criando um inevitável estigma, fazendo com que a demandante se sentisse sozinha e isolada no local de trabalho durante estes anos aqui em causa e fazendo-a sentir-se a pior pessoa do mundo.

AP) A demandante sentiu que a sua carreira profissional deixara de existir, pois não estava a exercer a sua profissão nem a concretizar o sonho que já foi concretizável e que a satisfazia profissionalmente e pessoalmente, que era alcançar na Ordem dos Engenheiros o grau de Membro Especialista na área de Hidráulica, objectivo esse que já podia ter alcançado anteriormente se a demandada não lhe tivesse retirado e interrompido o exercício da sua profissão e funções.

AQ) Também em face da conduta da demandada, foi afectado negativamente o relacionamento familiar da demandante, uma vez que estes factos provocaram uma alteração na sua personalidade, passando passando a demandante a revelar menor tolerância às contrariedades do dia-a-dia, irritabilidade fácil, alienação e isolamento.

AR) E passou a ficar mais introvertida, mais fechada e distante das pessoas, a ficar mais isolada, pois deixou de sair de casa porque tinha vergonha do que lhe estava a acontecer e de ter vida social, por achar que não valia nada e que era uma má pessoa que não interessava a ninguém e que merecia mesmo o isolamento.

AS) E tudo isto acarretou à demandante um esgotamento emocional, com insónias, dores de cabeça, nervosismo, dificuldades de concentração e da memória, estado de fadiga constante e sentimento de cansaço ao acordar sem vontade e motivação de se levantar para ir trabalhar, assim como passava o dia no trabalho cansada, com sono, pois era com muito esforço que se conseguia manter acordada no local de trabalho, e ao chegar a casa adormecia logo mesmo sentada numa cadeira.

AT) A demandante viveu assim anos de desalento em face da conduta da aqui demandada, continuando ainda hoje a recuperar do transtorno emocional sofrido.

AU) Todo o transtorno emocional causado pela actuação da demandada fez com que a demandant e ganhasse cerca de 20kg de peso, o que deitou ainda mais abaixo a sua auto-estima, sentindo que se ela própria não gostava do que via ao espelho, também ninguém gostaria, tendo-se isolado ainda mais e a sua vida se tendo restringido assim a trabalho / casa /trabalho.

AV) E assim a demandante começou a duvidar das suas capacidades, se teria condições para aguentar o dia-a-dia a viver sozinha, já que naquela altura estava a comprar casa e iria sair de casa dos pais, tendo pensado muitas vezes em desistir já com as obras quase concluídas.

AX) Não obstante, a demandante acabou por se mudar para a sua casa, mas passou assim a estar sozinha 24 horas por dia, o que fez com que não houvesse ninguém a fazer-lhe companhia após o horário de trabalho, para que a mente pudesse abstrair-se do clima penoso que vivia no local de trabalho, o que fez com que sentisse grande solidão e se isolasse ainda mais no seu canto.

AZ) Como tal e assim, a demandante teve que recorrer a tratamento psiquiátrico e psicológico para a ajudar a lidar com o que lhe estava a suceder, que culminaram em depressão e em pensamentos suicidas que teve, para assim terminar com o sofrimento por que estava a passar e a causar também à sua família.

BA) Devido aos factos aqui praticados pela demandada, a demandante esteve de baixa psiquiátrica de 12 Dezembro a 23 de Dezembro de 2016; de 15 de Fevereiro a 24 de Fevereiro de 2017; de 10 de Outubro de 2017 a 21 Outubro de 2017 e de 22 de Março de 2018 a 23 Março de 2018, tendo tido alta médica apenas em Dezembro de 2019.

BB) Devido aos factos aqui praticados pela demandada, a demandante teve que ser acompanhada em diversas consultas de psiquiatria e psicologia, nas quais despendeu um total de €265,15, assim discriminado: consulta de parapsicólogo €85,00; consultas de psiquiatria €63,00; consultas de psicologia €48,00; consultas na Unidade Local de Saúde ... e no centro de saúde da ... €44,50; exames €24,65.

BC) E teve a demandante que adquirir a medicação que lhe era prescrita, com a qual despendeu €96,75, tudo assim num total de €361,90.

BD) Quando apresentou as baixas médicas acima referidas, a demandante deixou de auferir todo o seu vencimento, resultando num prejuízo patrimonial que se contabiliza em €1.053,02, na medida em que, na baixa médica de 12 dias que teve início em 12 de Dezembro de 2016, a demandante deixou de receber o vencimento e o subsídio de refeição referente aos 12 dias de baixa, tendo recebido da Segurança Social €200,61, pelo que deixou assim de auferir €334,23 (12 * €40,05 [valor diário da sua remuneração] + 12 * €4,52 [valor diário do subsídio de refeição] - €200,61 = €334,23).

BE) E na baixa médica de 10 dias que teve início em 15 de Fevereiro de 2017, a demandante deixou de auferir o vencimento e subsídio de refeição correspondente, tendo recebido da Segurança Social €156,03, donde resulta que recebeu a menos nesse mês o valor de €289,67 (10 * €40,05 + 10 * €4,52 - €156,03 = €289,67).

BF) E nos 12 dias de baixa médica com início a 10 de Outubro de 2017, a demandante deixou de auferir o vencimento e o subsídio de refeição correspondente a esses dias, tendo recebido da Segurança Social €198,36, o que se traduz num decréscimo de €339,48 na sua remuneração nesse mês (12 * €40,05 + 12 * €4,52 - €198,36 = €339,48).

BG) E nos 2 dias de baixa médica que se iniciaram a 22 de Março de 2018, a demandante deixou de auferir o vencimento e subsídio de refeição correspondente a esses dias, não tendo recebido qualquer valor por parte da Segurança Social, pelo que recebeu a menos €89,64 no seu vencimento e subsídio de refeição referente a esses 2 dias de baixa (2 * €40,05 + 2 * €4,77 = €89,64).

BH) E assim tudo o que perfaz um valor total de €1.414,92 (€1.053,02 + €361,90 = €1.414,92) de prejuízo monetário sofrido pela demandante.

2. FACTUALIDADE NÃO PROVADA

1) Os factos referidos em J) e L) apenas se tenham verificado a partir de Abril de 2015.

2) O facto referido em Q) se tenha verificado durante todo o ano de 2017 e logo a partir do mês de Janeiro desse ano.

3) A demandante tenha sofrido humilhações quase diariamente por parte da demandada, que constantemente a rebaixasse e enxovalhasse, em privado ou perante os seus pares e colegas de trabalho, a quem ameaçasse com o mesmo tipo de tratamento que deu à demandante.

4) A demandada tenha espalhado boatos pelo SMAS insinuando que a demandante tinha casos amorosos com colegas de trabalho, todos casados.

5) A demandada tenha enveredado numa senda pessoal contra a demandante, a fim de exercer pressão para que esta última tomasse a iniciativa de sair dos SMAS.

6) Os factos aqui em causa tenham causado amenorreia e ausência de menstruação à demandante.

7) A demandante estivesse constantemente cheia de frio e mesmo no pico do Verão tivesse de estar no local de trabalho com o radiador ligado por ter frio, em consequência dos factos aqui em causa praticados pela demandada.

8) A conduta da demandada tenha causado à demandante um quadro fóbico acentuado manifestado na condução de veículos automóveis, que por sua vez lhe tenha causado ataques de pânico e ansiedade a conduzir, que lhe surgem quando começa a sair para fora das localidades, e com mais frequência, quase constante, em estradas com precipícios, com pontes, com curvas, em estradas com alguma inclinação, quando algum veículo a ultrapassa, em estradas sem iluminação à noite ou com o simples facto de olhar pelo retrovisor e verificar que vem um veículo atrás, e que fazem com que comece a sentir suores nas mãos, a perder as forças no corpo como que a desfalecer, a ficar tensa / rígida, a ficar pálida, com batimentos cardíacos acelerados, com dores na vista devido ao esforço para tentar manter-se focada na estrada, levando posteriormente a dores de cabeça, a uma sensação de perda de controlo do veículo, a não conseguir respirar correctamente, a bloquear as suas reacções, a travar de repente, a fugir para a faixa contrária colocando-se em contramão ou, no caso das auto-estradas, colocar-se na via do meio ou no meio de duas vias e a quase parar no meio das vias, fazendo com que se coloque em perigo a si e aos outros, por estar sujeita a provocar um acidente.

9) Dentro das localidades, na malha urbana, a demandante nunca tenha tido ataques de pânico, por a velocidade praticada ser mais reduzida, ou por se sentir mais segura, como se estivesse dentro de uma bolha / redoma que a protege do que a rodeia e o ambiente que a rodeia seja mais controlável.

10) E esta situação causada pela demandada e relacionada com ataques de pânico e ansiedade a conduzir cause grande frustração à demandante, a faça sentir-se revoltada e indignada, pois adorava conduzir e de um momento para o outro tenha ficado limitada a conduzir dentro da cidade ....

11) Desde que tem carta de condução que a demandante tenha conduzido veículos sem nunca ter tido um acidente ou multa, mesmo tendo o “pé pesado” como às vezes lhe diziam, não tenha tido problemas ou dificuldades em conduzir qualquer tipo de veículo ligeiro, fosse carros, carrinhas, pick-ups 4x4, ou em conduzir em qualquer tipo de condições climatéricas ou hora do dia, em qualquer tipo de terreno / estradas, até porque no seu dia-a-dia de trabalho conduzia uma pick-up 4x4 com bastante cilindrada e devido ao serviço que tinha muitas vezes tinha que conduzir em estradas / caminhos complicados, caminhos de terra e em mau estado, íngremes, estreitos, isolados onde não passava ninguém e essas características facilmente as encontrava todas juntas num só caminho / estrada.

12) Devido a qualquer conduta da demandada, a condução tenha assim deixado de ser um prazer e passar a ser um calvário para a demandante, com a fobia que lhe tenha surgido, sentindo-se assim a demandante como se lhe cortassem as pernas e deixasse de poder andar, possuindo um sentimento de incapacidade e impotência, sentindo que a sua liberdade lhe foi tirada.

13) E a demandante sinta por isso que se tornou numa “prisioneira” na cidade ..., pois quer ir passear para fora da cidade, ir de férias, ir passar fins-de-semana fora da cidade ou ir até Lisboa ter com familiares, mas apenas se pode deslocar em transportes públicos, por ter receio de ter um ataque de pânico no caminho.

14) E assim a demandante não saiba se algum dia conseguirá sair desta “prisão” a que a demandada a tenha submetido devido aos ataques de pânico e ansiedade a conduzir que se vêm referindo, por poder viver o resto da vida “presa” na cidade ... e limitada aos serviços de transportes públicos.

15) A demandante tenha tomado medicação até Fevereiro de 2020 devido aos factos aqui em causa.

16) A arguida e demandada tenha agido sempre no âmbito dos seus deveres funcionais, reportando sempre ao Conselho de Administração dos SMAS as atribuições cometidas à assistente e demandante e a situação profissional desta.

17) A arguida e demandada tenha sempre agindo de forma a seguir escrupulosamente as ordens e orientações que lhe dimanassem a esse respeito pelo aludido Conselho de Administração dos SMAS.

18) A arguida e demandada nunca tenha disposto de autonomia nem de autoridade próprias e independentes para agir de sua livre e espontânea iniciativa quanto às funções a atribuir ou não atribuir à assistente e demandante.


*

3. MOTIVAÇÃO


Os factos que se deram como provados sob os itens A) a H), a respeito das funções que a assistente desempenhou nos SMAS do Município ... e os períodos temporais em que tal sucedeu, para além de não terem sido colocados em causa pela arguida nas declarações que a própria prestou em audiência de julgamento, resultam das declarações que a assistente prestou igualmente em audiência e sobretudo encontram-se mais do que suficientemente documentadas a fls. 495 a 497 (contrato de trabalho da assistente celebrado em 15 de Setembro de 200), a fls. 498 (declaração do Presidente do Conselho de Administração dos SMAS da ... acerca das funções aí desempenhadas pela assistente e suas datas), a fls. 504 (“print” do anexo à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, onde se define a categoria funcional de “técnico superior”) e a fls. 399 verso e 500 a 504, de onde consta o mapa de pessoal dos SMAS e as respectivas categorias e conteúdos funcionais dos trabalhadores que aí se inseriam, incluindo a aqui assistente como técnica superior de engenharia civil.

Ainda assim, haverá que especificar melhor acerca da data de 3 de Fevereiro de 2015 que consta do item G), como sendo a data final em que a assistente na verdade desempenhou  funções como Responsável da Área de Manutenção e Exploração de Sistemas dos SMAS da ..., na medida em que a arguida não aceitou especificamente esta data nas suas declarações, e antes apontou para a data de 8 de Abril de 2014, como aliás expressou também num parecer escrito que a própria subscreveu e consta de fls. 375 dos autos.

Com efeito, verifica-se que esta data de 8 de Abril de 2014 foi aquela em que produziu efeitos a deliberada extinção da estrutura orgânica dos SMAS da ... que incluía aquela Área de Manutenção e Exploração de Sistemas pela qual a assistente se encontrava (embora informalmente) como responsável, e daí não só o aludido parecer da arguida de fls. 375, como as declarações passadas pelo Município ... de fls. 363, 368 e 380 que referem esta data como sendo a data final em que a aqui assistente exerceu essas funções. Veja-se ainda, aliás, a publicação desta mudança orgânica no SMAS no Diário da República que consta de fls. 520 a 522, datada de 3 de Abril de 2014, para ter efeitos a 8 de Abril de 2014.

No entanto, igualmente se verifica que os novos responsáveis pelas 3 novas áreas que foram criadas (incluindo uma semelhante de Obras, Manutenção e Exploração) apenas foram formalmente nomeados em acta do Conselho de Administração dos SMAS de 31 de Março de 2015, embora com efeitos retroactivos a 3 de Fevereiro de 2015, e daí a assistente entender (como também da nossa parte assim entendemos) que na prática a própria (assistente) se manteve naquelas funções de responsável de área até esta última data de 3 de Fevereiro de 2015. Neste sentido, veja-se a acta de fls. 388 e 389, 523 e 524 e 1021 a 1025, bem como a declaração do Município ... de fls. 390.

Quanto àquilo que se deu como provado sob o item F), no sentido de que a assistente sempre exerceu as funções inerentes à sua categoria profissional, de uma forma geral, com empenho, zelo, dedicação e competência, não só entendemos que esse foi o entendimento por parte da generalidade da prova testemunhal que foi produzida com conhecimento a esse respeito, por terem trabalhado em conjunto com a assistente, como entendemos que tal asserção em nada é prejudicada pelo simples processo disciplinar que foi instaurado à assistente e que culminou na respectiva pena disciplinar de suspensão por 90 dias, conforme se encontra documentado a fls. 1026 a 1062, e muito menos pelos demais processos disciplinares em que a assistente foi igualmente visada nos SMAS e que foram instaurados entre 15 de Dezembro de 2016 e 16 de Janeiro de 2017, até porque estes últimos foram pura e simplesmente arquivados a 29 de Dezembro de 2017, conforme consta igualmente documentado a fls. 52 a 65, 505 a 518 e 527 a 539, e surgem já no contexto e no período de todos os demais factos aqui em causa.

Quanto agora ao que se deu como provado sob o item I), no sentido de que em Abril de 2014, a arguida passou a exercer funções de Chefe de Divisão Geral do referido SMAS, e nessa qualidade passou por isso a desempenhar funções de superior hierárquica da assistente, tais factos igualmente nunca estiveram em causa e foram plenamente confessados e assumidos pela arguida nas declarações que a própria prestou em audiência de julgamento.

Quanto ao que em seguida se deu como provado sob os itens J) a U), a respeito do contínuo e progressivo esvaziamento de funções da assistente por parte da arguida entre 2014 e 2017, até ao esvaziamento total durante este último ano, e a atribuição das funções da assistente a outros funcionários também por parte da arguida, diremos que esta última, nas declarações que prestou em audiência, disse no essencial que não aceitava estes factos, que não tinha competência nem poderes para tomar decisões acerca da distribuição de serviço à assistente, nem para instaurar processos disciplinares, reportando tudo ao Conselho de Administração dos SMAS da ..., sendo este que decidia; que a própria essencialmente não passava de um elo de ligação entre o referido Conselho de Administração e os funcionários (entre os quais a aqui assistente); que a assistente teve comportamentos “menos correctos” em 2015, que levaram a que lhe fossem instaurados processos disciplinares; que após a instauração do primeiro desses processos disciplinares, o aludido Conselho de Administração dos SMAS da ... teria dado instruções à arguida (embora não escritas em parte alguma nem constantes de qualquer documento ou acta) para que a mesma evitasse que a assistente tivesse qualquer contacto com o público, a fim de se protegerem os serviços e os utentes e não se repetirem situações que deram origem aos aludidos processos disciplinares; que em 2016 abriram candidaturas dos SMAS a um projecto para obtenção de fundos comunitários designado POSEUR (Programa Operacional de Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos) que implicaria avultados planos e obras a realizar caso a candidatura tivesse sucesso e a assistente teria feito parte de uma equipa que trabalhou em tal candidatura em 2016 e talvez em 2017; que a assistente trabalhou já no ano de 2017, embora já não nas suas funções normais de ramais, perdas e rupturas de água, embora elaborando base de dados relativa às aludidas rupturas e em quantificação, orçamentação e lançamento de concurso para contratar uma empresa externa para repavimentações após os trabalhos realizados pelos SMAS (sendo para isso necessário também tirar medidas a buracos e perceber como se haveria de repor o pavimento), bem como em vistorias de águas e saneamentos em obras particulares; que as funções que a assistente deixou de realizar passaram para CC, que era assistente operacional, e para o engenheiro topógrafo DD, que era contratado não fazia parte do quadro de pessoal; que a assistente cumpria o horário de trabalho mas manifestava o seu desagrado com a sua situação em diversos emails à própria arguida e à Administração; que foi sugerida à assistente uma alteração de divisão mas a mesma não aceitou; que os SMAS foram extintos e os respectivos serviços foram integrados no Município no final do ano de 2017, sendo que a partir a própria (arguida) daí deixou de ter qualquer relação funcional com a assistente ou qualquer supervisão sobre esta no Município; e que é falso que tenha restringido qualquer acesso da assistente à internet, tanto mais que nenhum colaborador sequer o tinha.

Ora, tendo sido estas, no essencial, as declarações prestadas pela arguida em audiência de julgamento, as mesmas, como se vê, ou são já largamente confessórias de grande parte do que aqui se deu como provado, ou em outra parte (em que não são confessórias) não mereceram credibilidade, na medida em que foram amplamente desmentidas por vários outros elementos de prova, inclusivamente até por vários depoimentos prestados por testemunhas arroladas pela própria arguida, como em seguida melhor veremos.

Com efeito, e antes do mais, quer do depoimento prestado pela assistente, quer por literalmente todas as demais testemunhas que foram ouvidas com conhecimento a este respeito, por já terem tido as mais variadas ligações funcionais aos SMAS no período da sua existência e durante os anos dos factos aqui em causa, resultou de forma claríssima e unânime, sem qualquer espécie de dúvida, que, enquanto chefe de divisão geral dos SMAS da ..., desde a sua tomada de posse como tal até ao final desses serviços no final do ano de 2017, era a arguida quem superiormente e operacionalmente tomava todas as decisões e igualmente assim decidia e geria no dia-a-dia, a atribuição de funções a cada um dos respectivos funcionários e seus subordinados (embora em articulação com os respectivos chefes de divisão), e por isso aí se incluía claramente a aqui assistente. E ao mesmo tempo, o Conselho de Administração não tinha influência em tais decisões operacionais e funcionais do dia-a-dia, nem o poderia fazer, por não se encontrar vocacionado para tais tarefas de cariz prático e técnico. Evidentemente que, formalmente, era ao Conselho de Administração que incumbia deliberar a instauração de processos disciplinares, mas mesmo assim era obviamente com base nas informações que lhes chegavam por parte dos responsáveis e superiores hierárquicos no terreno que essas decisões e deliberações eram tomadas, como aliás, aconteceu mais do que uma vez em relação à aqui assistente.

Enfim, conclui-se, por isso, que manifestamente não correspondeu à verdade aquilo que a arguida disse em sentido diverso, fazendo-se passar como um simples “elo de ligação” entre o Conselho de Administração dos SMAS da ... e os demais funcionários e eximindo-se de quaisquer decisões ou responsabilidades em relação ao que sucedeu à aqui assistente e se deu como provado, assim tendo por isso resultado os factos constantes dos itens 16) a 18), integrantes da defesa da arguida, como claramente não provados.

Quanto aos “comportamentos menos correctos” e processos disciplinares em que a aqui assistente foi visada, os mesmos encontram-se suficientemente documentados, com os seus fundamentos, a fls. 52 a 65, 505 a 518, 527 a 539 e 1026 a 1062, e todos eles, na verdade, pressupuseram um contacto da assistente com o público, como era o natural, em grande medida, das suas funções.

No entanto, quanto à forma como a arguida, nas suas declarações se escudou em tais processos disciplinares para que fosse determinada a redução e até exclusão de funções da assistente, como supra se referiu, a mesma não convence minimamente e mais uma vez, salvo o devido respeito, não declarou com verdade.

Com efeito, antes do mais, e embora a arguida não o tenha assumido claramente, tanto a assistente como a testemunha e sua mãe EE, como ainda a demais testemunha FF foram claras no sentido de que o esvaziamento de funções da assistente por parte da arguida não se iniciou apenas em Abril de 2015, mas sim já em Setembro de 2014, logo após a assistente regressar de férias nesse ano, sendo certo que o primeiro dos processos disciplinares contra a assistente de que aqui temos notícia apenas viria a ser instaurado por despacho do Presidente do Conselho de Administração dos SMAS da ... datado de 24 de Março de 2015, tendo os demais sido instaurados a 15 de Dezembro  de 2016 e a 16 de Janeiro de 2017. Assim, não só se diga desde já que foi por isso que o facto constante do item 1) resultou como não provado, como também é por isso que jamais se poderia entender que os processos disciplinares aqui documentados contra a assistente tivessem sido causa para qualquer atitude que fosse por parte da arguida, ao contrário do que esta deu a entender no seu depoimento, muito menos com base em supostas instruções que lhe teriam sido dadas pelo Conselho de Administração de forma que nem sequer se encontraria escrita ou documentada, como a própria arguida o assumiu.

Mas de todo o modo, para além do que se acaba de dizer, será ainda mais relevante referir a própria testemunha GG, actual Presidente da Câmara Municipal ... e vereador camarário e Presidente do Conselho de Administração do SMAS na altura dos factos, o qual tendo sido arrolado pela própria arguida, veio mais uma vez desmenti-la de forma clara. Com efeito, disse esta testemunha, para além do mais, e no essencial nesta parte, que, para além de a arguida, como chefe de divisão geral, ter a plena responsabilidade de atribuir as funções devidas aos funcionários, entre os quais a aqui assistente, não podendo alterar o seu conteúdo funcional, mais o próprio apenas teria pedido à arguida que não fosse atribuído qualquer serviço à assistente que fosse directamente relacionado com os munícipes e utentes em concreto em relação aos quais havia os já aludidos processos disciplinares pendentes contra a aqui assistente, e nada mais. Disse que nem o próprio nem o Conselho da Administração dos SMAS da ... jamais teriam dado qualquer ordem ou efectuado qualquer pedido à aqui arguida no sentido de que a assistente devesse ser afastada de todo e qualquer contacto com o público ou os utentes em geral, ao contrário do que (mais uma vez) a arguida disse no seu depoimento. A testemunha GG concluiu mesmo lapidarmente no seu depoimento no sentido de que se a aqui assistente não teve funções atribuídas como deveria, então a responsabilidade por isso apenas poderia ser da aqui arguida e ninguém mais, embora, a talho de foice, não poderemos nós deixar de mencionar que o próprio GG era o Presidente do Conselho de Administração dos SMAS da ... e também a ele (para além de à arguida) a assistente profusamente e muito frequentemente lhe pediu que lhe fossem atribuídas funções, conforme resulta designadamente dos emails juntos aos autos a fls. 12, 13, 14, 20, 25 e 635 a 649. Foi também com base nestes elementos que se deu especificamente como provado o constante dos itens O) e P), para além do declarado pela assistente no seu depoimento nesse sentido.

Prosseguindo, quanto às funções que a arguida disse que a assistente foi ainda assim mantendo ao longo dos anos de 2015, 2016 e 2017, as mesmas foram ainda mais elaboradamente detalhadas pela assistente no seu depoimento, tendo até esta última tido a honestidade de assumir que teve ainda algumas funções atribuídas pela arguida já no ano de 2017, até ao contrário do que se alega no despacho de pronúncia e no seu próprio pedido de indemnização civil, e daí desde já o item 2) dos factos não provados ter resultado como tal.

Contudo, a assistente foi igualmente clara no seu depoimento no sentido de que o esvaziamento de funções que sofreu por parte da arguida foi gradual, a tal ponto que as funções que já na parte final lhe restaram, ou não tinham sequer a ver com o seu normal conteúdo funcional, ou apenas lhe ocupavam uma fracção ínfima do seu tempo e do seu horário de trabalho, até ao ponto de ter ficado já sem todo e qualquer trabalho algures durante o início do ano de 2017 e até ao final desse ano, altura em que os SMAS foram extintos. E mais disse ainda que as funções que a própria tinha foram atribuídas pela arguida designadamente a CC (assistente operacional e motorista) e ao engenheiro DD, que era topógrafo e meramente contratado pelo Município, entendendo a assistente que tais pessoas que a substituíram não possuíam as necessárias habilitações e experiência para cumprir as funções que se encontravam atribuídas à assistente, como da nossa parte demos como provado e também assim o entendemos, atendendo a que é de aceitar que efectivamente as funções de um técnico superior de engenharia civil devam ser necessariamente exercidas por um engenheiro civil (como é o caso da aqui assistente) e não possam nem devam ser exercidas por um engenheiro topógrafo ou por um assistente operacional, ainda que a testemunha CC (apesar de ser assistente operacional e motorista, com apenas o 12º ano de escolaridade à data dos factos) tenha procurado dar a entender que se encontrava capacitado para exercer as funções em que substituiu a aqui assistente, mas no que não merece credibilidade.

Neste sentido e quanto a estes factos que representam o essencial desta causa, aliás, o depoimento prestado pela assistente, para além de ser ele próprio detalhado, sólido e credível, foi largamente corroborado, ainda que de forma mais limitada, dentro dos seus conhecimentos, por numerosas testemunhas que foram ouvidas em audiência de julgamento (mesmo várias delas arroladas até pela arguida), designadamente HH, II, FF, JJ, KK, EE, LL, MM, NN, OO e até CC.

De outra banda, e sobretudo, haverá que referir também que o declarado pela assistente a respeito destas questões e destes factos não foi directamente contrariado por qualquer outro meio de prova, a não ser o declarado pela arguida e que, como vimos, não merece credibilidade. Os autos de vistoria que constam de fls. 525 e 526, em que a assistente participou, para além de constituírem apenas uma pequena fracção das funções que a assistente deveria ter, dizem respeito apenas aos três concretos dias de 8 de Julho de 2015, 11 de Fevereiro de 2016 e 6 de Julho de 2016, nada constando sequer respeitante a todo o ano de 2017. E quanto à documentação relativa ao aludido projecto POSEUR que a arguida juntou em faz e de instrução a fls. 540 a 555, nada do que aí consta nos impele minimamente em sentido diverso do que se deu como provado nem prejudica o que quer que seja que foi declarado pela assistente no seu depoimento.

Por seu turno, também será de referir que não existiu qualquer discussão quanto ao que se deu como provado nos itens M) e Q) no sentido de que não foi proferida ou comunicada à assistente qualquer deliberação do Conselho de Administração dos SMAS da ... determinando a sua mobilidade ou a alteração das suas funções, o que a impediu de poder reagir formalmente contra a situação em que se viu colocada, ou de que a arguida nunca informou a assistente dos motivos para a sua actuação ou de qualquer deliberação nesse sentido, recusando dar ordens por escrito, apesar de solicitado por parte da assistente, tudo isto na medida em que nem a arguida disse que tais deliberações ou ordens escritas existissem, nem nada consta dos autos nesse sentido.

Ora, aqui chegados, poderá a arguida argumentar mais uma vez que não foi responsável pelo aqui sucedido, com base na constatação de que, apesar de os SMAS terem sido extintos no final do ano de 2017, os respectivos serviços terem sido integrados no Município ... e assim terem deixado de existir formalmente os cargos que a arguida e assistente detinham e a respectiva relação funcional formal, ainda assim a assistente persistiu em continuar a dirigir emails a GG, pelo menos até 17 de Setembro de 2018, queixando-se que continuava a não lhe ser atribuído serviço. É o que resulta designadamente de fls. 645 a 649 dos autos.

No entanto, a assistente explicou com lógica no seu depoimento, no que não foi contraditada por qualquer outro meio de prova, que GG tinha conhecimento e foi convivente com os actos da aqui arguida, sendo que, embora tivesse cessado como Presidente do Conselho de Administração dos SMAS da ... por tais serviços terem sido extintos enquanto tal no final do ano de 2017, persistia contudo como vereador do Município e fez divulgar por todos os antigos funcionários dos SMAS que as ordens da arguida eram para continuar a ser cumpridas, daí persistir a influência da arguida sobre as funções da assistente mesmo já após a aludida extinção dos SMAS. E mais não será despiciendo referir que, como a própria assume, a arguida trabalha actualmente como assessora de GG, o qual é o actual Presidente da Câmara Municipal ..., daí a inegável relação de grande confiança pessoal mútua que terá forçosamente de existir entre ambos e que os próprios obviamente não negaram nos seus depoimentos.

Enfim, perante todo o exposto, igualmente entendemos que é razoável que a assistente, como disse, se tenha sentido amedrontada pela arguida, sob a ameaça de lhe serem instaurados processos disciplinares, como disse e como se deu como provado sob o item X), isto também na medida em que na verdade a assistente foi realmente visada em diversos processos disciplinares no período aqui em causa e foi mesmo condenada na pena disciplinar de 90 dias de suspensão de funções em um deles, para além de lhe ter sido recusado o pedido que efectuou no sentido de lhe ser permitida a acumulação de funções privadas nesse período, com parecer pessoalmente formulado pela arguida nesse sentido, como resulta documentado a fls. 28 a 49, e ainda porque diversos depoimentos das testemunhas já acima citadas foram igualmente no sentido de que a arguida não mantinha boas relações com diversos dos seus demais subordinados, tinha uma postura algo autoritária, era mais “chefe” do que “líder” e não criava grandes condições para que existisse um bom ambiente de trabalho nos serviços. E para além disto, como é óbvio, e como já o dissemos antes, encontra-se sempre em geral nos poderes de qualquer superior hierárquico participar factos e ocorrências relativas aos seus subordinados para que contra eles venha a ser instaurado um processo disciplinar.

Isto posto, agora quanto ao conhecimento e intencionalidade da arguida na sua actuação, como se deu como provado sob os itens AA) a AD), pensamos que é o que resulta de forma clara dos demais factos objectivos e exteriormente verificados, analisados à luz das regras da experiência comum, nada nos levando a concluir que o conhecimento e intencionalidade da arguida na sua actuação fossem quaisquer outros diversos dos provados, antes pelo contrário. Em sentido diverso não nos impressiona o afirmado pelo ilustre mandatário da arguida nas suas alegações finais, no sentido de que a arguida não teria consciência da eventual ilicitude criminal da sua actuação, pelo simples facto de o crime de perseguição aqui em causa ser recente na nossa legislação e sobretudo porque a Lei n.º 73/2017, de 16 de Agosto, que alterou o artigo 29º do Cód. do Trabalho (como melhor veremos adiante na fundamentação de direito da presente sentença) só aí ter passado a prever que o assédio laboral não prejudica a eventual responsabilidade penal prevista na lei, o que entrou em vigor já em data muito próxima da consumação e cessação dos factos nestes autos.

Com efeito, parece-nos manifesto que a ressonância ética de condutas como aquela aqui em causa por parte da arguida já há muito existia na consciência da comunidade em geral antes que a lei passasse a prever o respectivo enquadramento penal, e por isso seguramente que a arguida não deixaria de dispor também ela dessa consciência.

Passando agora às consequências dos factos aqui em causa para a pessoa da assistente e demandante, conforme se deram como provadas sob os itens V), Z) e AI) e BH), para além de se mostrarem razoáveis e aceitáveis à luz das regras da experiência comum em face do aqui sucedido, foi tudo sobejamente narrado pela própria assistente e demandante no seu depoimento, conjugado com o depoimento impressivo no mesmo sentido prestado pela testemunha e sua mãe EE, para além de que todas as demais testemunhas que foram colegas de trabalho da assistente e demandante no período dos factos aqui em causa e já supra mencionadas foram claras quanto ao ambiente de comentário e de alguma intimidação e segregação da assistente por parte da arguida que se gerou no local de trabalho deles próprios, da arguida e da assistente neste período, como aqui se dá como provado. O depoimento prestado pela testemunha NN mostrou-se particularmente impressivo a este respeito, quando o mesmo disse que o ambiente que se vivia nos SMAS da ... sob a chefia da aqui arguida era de “feudalismo”, “trevas”, “obscurantismo” e “poder exacerbado”, em que os funcionários “não falavam por medo de represálias”, e em que “se perdeu a união e espírito de grupo que anteriormente existia.”.

Por seu turno, e ainda a este mesmo respeito, existe abundante prova documental constante dos autos, designadamente certificados de incapacidade temporária para o trabalho da assistente e demandante entre as datas de 12 e 23 de Dezembro de 2016 (fls. 67, 394 e 628), de 15 a 24 de Fevereiro de 2017 (fls. 68, 399 e 629), de 10 a 21 de Outubro de 2017 (fls. 69, 404 e 630) e de 22 a 23 de Março de 2018 (fls. 410); recibos de taxas moderadoras de consultas externas da assistente e demandante na Unidade Local de Saúde ... e no centro de saúde da ..., entre 13 de Dezembro de 2016 e 13 de Dezembro de 2019, conforme constam de fls. 395, 400, 408, 411, 412, 418, 419, 421, 422, 423, 427, 428, 430, 431, 432, 435, 436, 439, 440, 445, 446, 450, 452 e 453; declarações escritas no sentido de a assistente e demandante ter frequentado consultas de psiquiatria e psicologia clínica entre 13 de Dezembro de 2016 e 13 de Dezembro de 2019, conforme constam de fls. 564 a 582; receitas de medicação psiquiátrica tomada pela assistente e demandante, com datas entre 13 de Dezembro de 2016 e 2 de Dezembro de 2019, conforme constam de fls. 396, 397, 401, 402, 405, 406, 407, 413, 414, 424, 425, 433, 434, 437, 438, 441, 442, 443, 447, 448, 449, 451 e 586; talões de farmácia de medicação psiquiátrica tomada pela assistente e demandante, com datas entre 16 de Dezembro de 2016 e 11 de Abril de 2019, conforme constam de fls. 398, 403, 409, 415, 416, 417, 426, 429 e 444; relatórios de consultas psiquiátricas da assistente e demandante datados de 15 de Fevereiro de 2017 e de 27 de Setembro de 2018, conforme constam de fls. 391, 392, 631 e 632, em que se diz que a mesma é seguida em consulta de psiquiatria desde 13 de Dezembro de 2016, sofre de episódio depressivo e encontra-se medicada com “Fluoxetina” e “Xanax”, bem como que não tinha antecedentes psiquiátricos até Outubro de 2016, e aí começou a apresentar humor depressivo, marcada ansiedade, insónia inicial e choro fácil, referindo problemas graves no trabalho; relatório de acompanhamento psicológico da assistente e demandante datado de 9 de Outubro de 2018, no mesmo sentido, conforme consta de fls. 393, 633 e 634; e facturas de análises clínicas efectuadas pela assistente e demandante, com datas de 23 de Setembro de 2019 e de 23 de Fevereiro de 2019, conforme constam de fls. 455, 456 e 457. Finalmente, de registar ainda os recibos de vencimento com baixas médicas da assistente e demandante, de Janeiro de 2017, Março de 2017, Novembro de 2017 e Abril de 2018, conforme constam de fls. 459 a 462, bem como os valores pagos pela Segurança Social à assistente e demandante que constam das listagens de fls. 463 a 466, daí resultando especificamente os cálculos que constam espelhados nos itens BD) a BH) dos factos provados.

Ainda assim, ainda no âmbito do pedido de indemnização civil, foi dado como não provado o constante dos itens 3) e 4), no sentido de que a demandante tenha sofrido humilhações quase diariamente por parte da demandada, que constantemente a rebaixasse e enxovalhasse, em privado ou perante os seus pares e colegas de trabalho, a quem ameaçasse com o mesmo tipo de tratamento que deu à demandante, e de que a demandada tenha espalhado boatos pelos SMAS insinuando que a demandante tinha casos amorosos com colegas de trabalho, todos casados, tudo isto na medida em que nem a demandada o confessou nem foi produzida prova minimamente convincente neste sentido.

Por seu turno, quanto ao que foi dado como não provado sob o item 5), no sentido de que a demandada tenha enveredado numa senda pessoal contra a demandante, a fim de exercer pressão para que esta última tomasse a iniciativa de sair dos SMAS, dir-se-á que, perante a prova que foi produzida (não obstante a sua abundância), não nos é possível em consciência afirmar que a motivação ou o objectivo da actuação da arguida e demandada tenha sido este ou sequer qualquer outro. Tudo o que se possa afirmar a respeito da motivação e objectivos da arguida e demandada para esta sua actuação que aqui se deu como provada, não passa de conjecturas e especulações.

Por outro lado, mais resultou ainda como não provado o constante do item 6), no sentido de que os factos aqui em causa tenham causado amenorreia e ausência de menstruação à demandante, isto na medida em que, não obstante a própria assistente e demandante tenha declarado nesse sentido, trata-se de um facto duvidoso sem prova científica e médica que o suporte (a qual não existe nos autos), e foi a própria testemunha EE, mãe da assistente e demandante, que afirmou no seu depoimento que os problemas da sua filha nesta área já provinham desde uma altura anterior à dos anos dos factos aqui em causa, e por isso não podem ser imputados de forma clara à conduta da aqui demandada.

Quanto ao que foi dado igualmente como não provado sob os itens 7) e 15), no sentido de que a demandante estivesse constantemente cheia de frio e mesmo no pico do Verão tivesse de estar no local de trabalho com o radiador ligado por ter frio em consequência dos factos aqui em causa praticados pela demandada, e de que a demandante tenha tomado medicação até Fevereiro de 2020 devido aos factos aqui em causa, diremos apenas que não foi produzida prova neste sentido nem obviamente a demandada o confessou.

Quanto a tudo o que se deu como não provado sob os itens 8) a 14), a respeito de um alegado quadro fóbico acentuado e de pânico que teria passado a ser manifestado pela aqui assistente e demandante na condução de veículos automóveis em consequência dos factos aqui em causa, é verdade que a assistente e demandante e a sua mão EE procuraram convencer neste sentido no seu depoimento. No entanto, mais uma vez se refira que se trata de uma matéria bastante específica e científica, e justamente neste sentido consta do próprio relatório de acompanhamento psicológico datado de 9 de Outubro de 2018 que foi junto a fls. 393, 633 e 634 que a própria assistente e demandante declarou à psicóloga clínica que a examinou que tal quadro fóbico e de pânico na condução de veículos já se iniciou no ano de 2012 (ou seja, muito antes dos anos dos factos aqui em causa), altura em que a própria aqui demandante teve uma crise de ansiedade ao conduzir numa estrada com precipício do lado direito, tendo vindo gradualmente já desde então a generalizar o medo e a evitar situações semelhantes, designadamente estradas com precipícios, pontes, curvas apertadas, tráfego mais intenso com carros a ultrapassá-la e estradas com inclinação significativa. Perante estes elementos, enfim, é manifesto que estes factos aqui em causa, no sentido em que este quadro fóbico e de pânico na condução de veículos seria imputado à aqui arguida e demandada, sempre teriam de ser julgados como não provados, conforme o foram.

Prosseguindo, já quase em jeito de conclusão, quanto ao que se deu como provado sob o item AH), a respeito das qualidades pessoais e profissionais da aqui assistente e demandante, diremos que essa foi a opinião generalizada e unânime de praticamente todas as numerosas testemunhas que foram inquiridas com o mínimo de conhecimento da pessoa da assistente e a este respeito, não nos parecendo que a mera impressão em sentido ligeiramente diverso que teve a testemunha PP nos haja de impelir em sentido diverso, e muito menos haverão de impelir os processos disciplinares em que a assistente foi visada e que já foram supra mencionados, mais a mais quando os mesmos acabaram por ser pura e simplesmente arquivados na sua quase totalidade, e foram instaurados no contexto e no período de todos os demais factos que aqui se deram como provados, em que a arguida era superior hierárquica da assistente e o Conselho de Administração do respectivo serviço era conhecedor das queixas que a assistente apresentava nesse sentido e nada fez no sentido de os evitar.

Por seu turno, quanto ao que se deu como provado sob o item AE), a respeito do modo de vida e personalidade também da arguida, diremos igualmente que nesse sentido depuseram a generalidade das testemunhas ouvidas com conhecimento da pessoa da arguida e a este respeito, especialmente QQ, RR e SS, cujos depoimentos foram dirigidos especificamente neste sentido, para além de outras, sem qualquer prova relevante em sentido diverso, e sem prejuízo de tudo o mais que se deu como provado que a arguida praticou e que esteve directamente em causa nos presentes autos e que nem por isso fica invalidado.

Finalmente, quanto ao que se deu como provado a respeito da actual condição pessoal, familiar e sócio-económica da arguida (item AF)), é o que resulta das declarações prestadas pela própria em audiência de julgamento nesse sentido, não existindo elementos para de si duvidar nesta parte, e quanto à ausência de antecedentes criminais por parte da arguida (item AG)), é o que resulta do respectivo CRC de fls. 284, do qual nada consta.


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B) DA ANÁLISE DOS FACTOS E DA APLICAÇÃO DO DIREITO

1. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL

Vem a arguida pronunciada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de perseguição agravada, p. e p. pelos artigos 154º-A, n.os 1, 3 e 4, e 155º, n.º 1, als. c) e d), ambos do Cód. Penal.

Ora, tal artigo 154º-A, n.º 1, do Cód. Penal, foi introduzido pela primeira vez no nosso ordenamento jurídico e nesse Código por via da Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, e estabelece, até hoje sem qualquer alteração, que “1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, directa ou indirectamente, de forma adequada a provocar- lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.”.

Por seu turno, o crime em causa é agravado nos termos do aludido 155º, n.º 1, als. c) e d), do Cód. Penal, se for praticado contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132º do mesmo Código, no exercício das suas funções ou por causa delas (onde se incluem os funcionários públicos), bem como se for praticado por funcionário com grave abuso de autoridade.

Tem-se entendido a respeito deste crime que em geral que se trata de um crime de perigo concreto, não sendo necessária a efectiva lesão do bem jurídico, mas a adequação da conduta a provocar aquela lesão, desde que se trate de conduta idónea a prejudicar a liberdade de determinação da vítima ou a provocar-lhe medo.

Por seu turno, trata-se de um crime de mera actividade e de execução livre, pois a conduta punida pode ser levada a cabo por qualquer meio, directa ou indirectamente, embora seja necessária a sua reiteração, uma vez que a ratio da norma incriminadora reside na protecção da liberdade de autodeterminação individual, sem prejuízo de reflexamente tutelar outros bens jurídicos, como a salvaguarda da privacidade e da intimidade.

Como é evidente, muitas dessas condutas que se acabam de referir, se vistas ou ocorridas isoladamente, podem não ferir sequer qualquer bem jurídico. No entanto, pela persistência com que possam ser praticadas, podem tornar-se intimidatórias e perturbadoras, causando um enorme desconforto na vítima e atentando contra a reserva da vida privada e liberdade de determinação pessoal desta.

Do ponto de vista subjectivo, trata-se de um crime doloso (em qualquer uma das modalidades do dolo directo, necessário ou eventual), o que significa que o agente tem que ter vontade e consciência de estar a praticar o facto tido como ilícito e punido penalmente.

Em suma, este crime tem como seus elementos constitutivos, objectivamente, a acção do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, directo ou indirecto; a adequação da acção a provocar medo ou inquietação na vítima ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; e a reiteração da acção. Subjectivamente, exige-se o dolo, em qualquer das modalidades referidas no artigo 14º do Cód. Penal, se do este constituído pelo conhecimento dos elementos objectivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los.

Dito de outra forma, e como superiormente já entendido, a perseguição consiste na vitimação (palavra formada por derivação do verbo “vitimar”), que significa acto ou efeito de vitimar, tendo este verbo as seguintes acepções: fazer vítima, reduzir à condição de vítima, matar, imolar, sacrificar, oferecer a vida de um ser vivo em troca de protecção divina, prejudicar, danificar, destruir, - de alguém que é alvo, por parte de outrem, o assediante, de um interesse e atenção continuados e indesejados, como vigilância, ou perseguição, os quais são susceptíveis de gerar ansiedade e medo na pessoa-alvo.

O “stalking” de que aqui frequentemente se trata pode definir-se como uma forma de violência relacional. Segundo a maioria da legislação norte-americana, o crime consiste num padrão intencional de perseguição repetida ou indesejada que uma “pessoa razoável” consideraria ameaçadora ou indutora de medo. Já a legislação australiana define o “stalking” como “perseguir uma pessoa, permanecer no exterior da sua residência ou em locais por ela frequentados, entrar ou interferir na sua propriedade, oferecer-lhe material ofensivo, mantê-la sob vigilância, ou agir de um modo que se poderia esperar com razoabilidade que fosse susceptível de criar stress ou medo na vítima”. Pode-se caracterizar também por uma série de comportamentos padronizados que consistem num assédio permanente, nomeadamente através de tentativas de comunicação com a vítima, vigilância, perseguição, etc.. Embora estes comportamentos possam ser aparentemente corriqueiros se não forem percebidos no seu contexto do “stalking”, as condutas que integram o seu tipo objectivo podem ser bastante intimidatórios pela persistência e intensidade com que são praticadas, causando um enorme desconforto na vítima e atentando claramente à reserva da vida privada.

De acordo com a jurisprudência uniforme, verbi gratia o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Março de 2015 (in www.dgsi.pt), a propósito de “stalking”, ainda que antes da criminalização autónoma da conduta, o mesmo caracteriza-se como “uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora de angústia e temor, com frequência motivada pela recusa em aceitar o fim de um relacionamento”. Assim, este tipo de crime previsto no artigo 154º-A, n.º 1, do Cód. Penal, como já antes largamente se disse, tem como seus elementos constitutivos objectivos, a acção do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, directo ou indirecto; a adequação da acção a provocar naquela medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; e a reiteração da acção, e tem como elementos subjectivos, o dolo, em qualquer das modalidades referidas no artigo 14º do Cód. Penal, constituído pelo conhecimento dos elementos objectivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê- los.

Ora, neste caso concreto, perante os factos que se deram como provados, deles resulta, em apertada síntese, que a aqui arguida, como superior hierárquica da assistente no âmbito de um serviço público camarário de águas e saneamento, foi retirando à assistente as funções que a mesma exercia como técnica superior de engenharia civil, até durante meses reduzir a assistente à condição de ter de cumprir um horário de trabalho sem ter absolutamente quaisquer trabalhos ou funções a realizar durante todo o dia de trabalho, tendo sido a assistente substituída pela arguida nessas suas habituais funções por outros funcionários que até nem sequer dispunham de qualificações técnicas suficientes. E daqui derivaram toda uma série de consequências francamente nefastas e adversas para a pessoa da assistente, quer no contexto laboral, quer no contexto pessoal e familiar, que todas elas igualmente resultaram como provadas.

Como tal, poderá dizer-se que não se está aqui perante os casos mais frequentes e óbvios de “stalking” conforme supra foi definido, e portando caberá discutir se esta conduta por parte da arguida caberá ou não neste preceito legal incriminador do artigo 154º-A do Cód. Penal que vem invocado no despacho de pronúncia e supra citado.

Ora, da nossa parte, entendemos desde logo que a conduta da arguida que se deu como provada constituiu um verdadeiro assédio (em contexto laboral) sobre a aqui assistente, sendo certo que a norma punitiva prevê que tal assédio se pode verificar “por qualquer meio directo ou indirecto”. E igualmente entendemos que a conduta da arguida foi adequada a provocar medo e inquietação na assistente e limitar a sua liberdade de determinação, nomeadamente por a assistente se ver coagida a cumprir um horário de trabalho mesmo sem ter quaisquer funções em concreto para executar, sob pena de poder incorrer em sanções disciplinares, sentindo-se a assistente intimidada por isso pela arguida por esta última ser sua superior hierárquica e por isso poder de si participar, assim como não há dúvida que esta acção por parte da arguida foi reiterada e protelada no tempo.

Como tal, e salvo o devido respeito por opinião diversa, tendemos a considerar que esta conduta por parte da aqui arguida que se deu como provada preenche todos os elementos objectivos do crime de perseguição pelo qual aqui veio pronunciada.

De todo o modo, é certo que não pode deixar de ser aqui compaginada e ponderada a demais norma contida no artigo 29º do Cód. Trabalho, o qual, na sua redacção originária que lhe foi dada pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, com a epígrafe “Assédio” estabelecia o seguinte: “1 - Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.

2 - Constitui assédio sexual o comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objectivo ou o efeito referido no número anterior.

3 - À prática de assédio aplica-se o disposto no artigo anterior.

4 - Constitui contra-ordenação muito grave a violação do disposto neste artigo.”.

Como tal, terá aqui sempre de se discutir se na verdade a conduta da arguida aqui em causa não poderá antes constituir apenas a prática desta contra-ordenação, e não do crime de perseguição pelo qual aqui foi pronunciada.

Com efeito, é frequente, designadamente ao nível dos nossos tribunais superiores, este tipo de questões ser tratado ao nível desta contra-ordenação, no contexto laboral, falando-se aqui frequentemente do conceito de “mobbing”, que é algo diverso do conceito de “stalking”, nomeadamente no sentido de que se configura uma situação de assédio moral (ou “mobbing”) quando há aspectos na conduta do empregador para com o trabalhador (através do respectivo superior hierárquico), que apesar de isoladamente analisados não poderem ser considerados ilícitos, quando globalmente considerados, no seu conjunto, dado o seu prolongamento no tempo, são aptos a criar no trabalhador um desconforto e mal estar no trabalho que ferem a respectiva dignidade profissional e integridade moral, física e psíquica.

Como tal, este assédio laboral tem usualmente como fim intimidar, diminuir, humilhar, amedrontar e consumir emocional e intelectualmente a vítima, com o objectivo de eliminá-la da organização ou satisfazer a necessidade insaciável de agredir, controlar e destruir que é apresentada pelo assediador, que aproveita a situação organizacional particular (reorganização, redução de custos, burocratização, mudanças drásticas, etc.) para canalizar uma série de impulsos e tendências que se podem até encarar como psicopáticas.

No entanto, entendemos que a questão e os factos aqui em causa não se restringem a esta singela contra-ordenação, por várias ordens de razões que passaremos a referir. Com efeito, verifica-se que este artigo 29º do Cód. do Trabalho foi recentemente alterado pela Lei n.º 73/2017, de 16 de Agosto, mediante a qual o seu n.º 1 passou a referir expressamente que “é proibida a prática de assédio” (o que antes não dizia), e sobretudo, o no seu novo n.º 5 passou então a estabelecer o que antes já dizia o seu n.º 4, no sentido de que a prática de assédio constitui contra-ordenação laboral muito grave, mas agora acrescentou-se expressamente nesse novo n.º 5 que tal é assim “sem prejuízo da eventual responsabilidade penal prevista nos termos da lei”.

Ou seja, se tal já não decorresse, é manifesto que pelo menos a partir desta nova redacção dada a este artigo 29º do Cód. do Trabalho por via desta Lei n.º 73/2017, de 16 de Agosto, a contra-ordenação laboral aí prevista não prejudica a eventual responsabilidade penal prevista “nos termos da lei”. Não se diz que “lei” seja essa, mas pensamos que não poderá ser outra senão justamente o crime de perseguição previsto no artigo 154º-A do Cód. Penal pelo qual a aqui arguida veio pronunciada, atenta a similitude das situações previstas numa norma e na outra.

De todo o modo, dir-se-á que quase nem seria necessária esta previsão legal decorrente desta alteração legislativa acabada de referir, na medida em que já há muito que o artigo 20º do Dec.-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra-Ordenações), com a epígrafe “Concurso de infracções” prevê que “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contra-ordenação”. Sempre teria de qualquer forma de ser este aqui o caso.

Por seu turno ainda, para o caso de ser necessário, sempre se aponta ainda que esta alteração legal introduzida pela Lei n.º 73/2017, de 16 de Agosto, entrou em vigor no primeiro dia do segundo mês seguinte ao da sua publicação (cfr. o respectivo artigo 7º), ou seja, entrou em vigor no dia 1 de Outubro de 2017, sendo certo que o crime aqui em causa pelo qual a arguida se encontra pronunciada se prolongou para além dessa data e apenas se teve como consumado e cessado no dia 31 de Dezembro de 2017, ou seja, já esta nova redacção legal se encontrava em vigor e por isso não haverá aqui sequer de se colocar qualquer questão relevante ao nível de sucessão de leis no tempo.

Prosseguindo, e ainda a respeito desta mesma questão, não podemos igualmente deixar de referir que os próprios termos em que o artigo 155º, n.º 1, als. c) e d), do Cód. Penal, prevê determinadas agravações deste crime de perseguição, conforme a aqui arguida, aliás, se encontra igualmente pronunciada, não podem deixar de remeter para um contexto necessariamente laboral, pelo menos em parte. Com efeito, sendo este crime agravado se for cometido contra uma série de profissionais dos mais diversos âmbitos no exercício das suas funções ou por causa delas (nos termos da alínea c) do artigo 155º, n.º 1, e do artigo 132º, n.º 2, al. l), ambos do Cód. Penal), e sendo igualmente agravado por ser cometido por funcionário com grave abuso de autoridade (nos termos da alínea d) do mesmo artigo 155º, n.º 1, do Cód. Penal), então trata-se também pelo menos de indícios claros de que o legislador não pretendeu afastar o contexto laboral da prática do crime de perseguição aqui em apreço, antes pelo contrário.

Por seu turno ainda, e embora no âmbito do direito brasileiro, não podemos deixar de mencionar o artigo académico intitulado “Stalking Ocupacional: A Tipificação do Crime de Perseguição pela Lei 14.132/2021 Como Punição Penal ao Assédio Moral”, da autoria de Ângela Diniz Linhares Vieira, publicado em 2021 na Revista de Direitos Fundamentais nas Relações do Trabalho, Sociais e Empresariais, e disponível em https://indexlaw.org/index.php/revistadireitosfundamentais/article/view/7782.

Nos termos do respectivo resumo, tal texto propõe a possibilidade da tutela penal ao trabalhador contra a violência perversa provocada pelo assédio moral através da leitura e análise da Lei 14.132/2021 que tipificou o crime de perseguição. Propõe-se num primeiro momento, abordar o conceito de Assédio Moral, para, num segundo momento, averiguar qual a tutela legal penal que existia no ordenamento jurídico brasileiro, quanto ao Assédio Moral, até a aprovação da Lei 14.132/2021. Por último, tecem-se considerações iniciais sobre o crime de perseguição e a sua possibilidade de aplicação quanto à perseguição provocada pelo Assédio Moral.

Com efeito, da leitura de tal texto se alcança perfeitamente o conceito e os vários tipos de assédio moral no contexto laboral e seus elementos constitutivos, que a nosso ver se enquadram, numa das suas possíveis variantes, na factualidade dada como provada neste caso concreto, e onde então se conclui no sentido de que situações como esta merecem tutela penal como crime de perseguição, não só ao nível do direito brasileiro, mas sim ao nível de outros ordenamentos jurídicos, entre os quais o português, aí se referindo expressamente que casos como este já merecem tutela penal no direito penal português, justamente por via do artigo 154º-A do Cód. Penal Português aqui em apreço.

Enfim, como largamente já o fomos dizendo, concluímos no sentido de que, no nosso entendimento, a conduta da aqui arguida que se deu como provada integra todos os elementos objectivos do crime de perseguição pelo qual veio pronunciada, quer na sua forma simples prevista no artigo 154º-A, n.º 1, do Cód. Penal, quer em ambas as suas formas agravadas previstas no artigo 155º, n.º 1, als. c) e d), do mesmo Cód. Penal, pelas quais a arguida vem igualmente pronunciada, na medida em que este crime se mostra cometido contra uma funcionária pública no exercício das suas funções e por causa delas (veja-se ainda o artigo 132º, n.º 2, al. l) do Cód. Penal, como aí se abarcando os “funcionários públicos”), quer porque foi cometido igualmente por uma funcionária com grave abuso de autoridade. Para o conceito de “funcionário” para este efeito e com interesse neste caso veja-se ainda o estabelecido no artigo 386º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal.

Ao nível do tipo subjectivo, e como também já se disse, trata-se de um crime necessariamente doloso, sendo o dolo usualmente entendido como o conhecimento e vontade de preenchimento do tipo objectivo de ilícito, em qualquer das suas formas de dolo directo, necessário ou eventual previstas no artigo 14º do Cód. Penal, bastando um dolo genérico, não sendo necessário qualquer dolo específico.

Neste caso concreto, demonstrou-se no essencial e com interesse nesta parte que a arguida quis agir da forma descrita, com o propósito concretizado de perseguir e de assediar moralmente a assistente no âmbito das funções que esta exercia nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., bem sabendo que a sua conduta a intimidava, diminuía, humilhava e amedrontava. E que a arguida estava ciente que, na qualidade de Chefe de Divisão Geral dos SMAS da ... e de superior hierárquica da assistente, ao deixar de atribuir gradualmente a esta última quaisquer funções naqueles Serviços, até lhe retirar todas essas funções, e ao deixar de a convocar para quaisquer reuniões de trabalho, tendo perdurado tal situação durante mais de um ano, a segregava profissionalmente e molestava a sua dignidade pessoal bem como a sua saúde psíquica, e lhe causava medo e inquietação e prejudicava a sua capacidade de tomar decisões livremente, nomeadamente quanto à sua permanência naqueles Serviços, resultados estes que representou. E que a arguida estava ainda ciente da qualidade de funcionária pública da assistente e de que a mesma se encontrava no exercício das suas funções, bem sabendo também que actuava nos termos acima descritos aproveitando-se da autoridade que, na qualidade de Chefe de Divisão Geral dos SMAS da ..., sobre a mesma exercia, e que, não obstante, não possuía motivo legal para actuar como actuou. E finalmente que a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal. Assim, entende-se que se encontra igualmente preenchido o tipo subjectivo de ilícito por parte da arguida, sob a forma de dolo directo.

Enfim, por todo o exposto, mais entendemos que não se verifica qualquer causa que exclua a ilicitude, a culpa ou punibilidade da conduta da arguida, pelo que a mesma terá de ser condenada pela prática do crime de perseguição agravada pelo qual se encontra pronunciada, como a final se decidirá.

Apenas aqui uma referência mais se poderá justificar a respeito do disposto no artigo 115º, n.º 3, do Cód. Penal, atendendo a que o ilustre mandatário da arguida, nas suas alegações finais, referiu, entre tudo o mais, que o procedimento criminal pelo crime aqui em cauda depende de queixa e a norma legal acabada de mencionar estabelece que “O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa.”. A argumentação é genericamente no sentido de que a aqui arguida não teria actuado sozinha, mas sim com a “conivência” e por isso numa espécie de comparticipação com o Sr. Presidente do Conselho de Administração dos SMAS da ... na altura dos factos, GG.

Ora, a este respeito, diremos desde logo e antes do mais que não é verdade que o procedimento criminal pelo presente crime de perseguição pelo qual a aqui arguida se encontra pronunciada dependa de queixa, na medida em que não se trata aqui apenas da sua forma simples prevista no artigo 154º-A, n.º 1, do Cód. Penal, e cujo n.º 5 faz depender o procedimento criminal de queixa, mas trata-se, sim, da sua forma agravada prevista também no subsequente artigo 155º, n.º 1, als. c) e d), do mesmo Código. Entendemos que esta forma agravada se reveste já de natureza pública, exactamente nos mesmos termos em que a vasta e esmagadora maioria da jurisprudência dos nossos tribunais superiores já se pronunciou a respeito da natureza também pública do crime de ameaça agravada, conforme é previsto e punido pelos artigos 153º e 155º do mesmo Cód. Penal. Em face disto, cai logo pela base esta argumentação deduzida pelo ilustre mandatário da arguida e aqui em causa.

De todo o modo, mesmo que assim não fosse e sem prescindir, mais se dirá que não existe qualquer factualidade provada (nem ela foi expressamente alegada por qualquer sujeito processual) que permitisse concluir no sentido de que existiria qualquer espécie de comparticipação da aqui arguida com mais quem quer que seja. Se em face da prova produzida se entendesse que a arguida agiu com a conivência de um superior hierárquico seu, neste caso do Presidente do Conselho de Administração dos SMAS da ..., na medida em que este último ia tendo conhecimento dos factos por via de queixas sucessivas que a assistente também lhe dirigia e nada fez para os impedir, ainda assim apenas poderia existir, quando muito, uma eventual responsabilidade autónoma por omissão por parte desse superior da aqui arguida, e não uma qualquer relação de comparticipação com esta última.


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2. DO TIPO E MEDIDA CONCRETA DAS PENAS APLICÁVEIS:

O crime de perseguição agravada pelo qual a arguida vai condenada é punível com pena principal de prisão de 1 a 5 anos e com as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição, sendo certo que a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, tudo nos termos das disposições conjugadas dos artigos 154º-A, n.os 1, 3 e 4, e 155º, n.º 1, ambos do Cód. Penal.

A determinação do tipo e da medida concreta da pena a aplicar, dentro da moldura abstracta prevista na lei, far-se-á atendendo ao grau de culpa documentado nos factos e às exigências de prevenção geral e especial que, no caso, se mostrem relevantes, tomando em linha de conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra a arguida - cfr. artigo 71º, nº.s 1 e 2 do Código Penal.

Tal medida concreta, situada entre um máximo ditado pela culpa e um mínimo reclamado pelas exigências de prevenção geral positiva, resultará, em cada caso, das necessidades de realização dos fins que a prevenção especial positiva se destina a assegurar. A medida da pena será, pois, determinada dentro de uma moldura de prevenção, funcionando a culpa do agente, como limite máximo inultrapassável - cfr. artigo 40º, nº.s 1 e 2 do Código Penal; neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, págs. 227 e ss. e Ac. S.T.J. de 29.03.95, “in” B.M.J. 445º-163.

No caso dos autos, haverá antes do mais que determinar, em face dos critérios referidos, qual o tipo e medida concreta da pena principal cuja aplicação à arguida se afigure como justa, adequada e proporcional, sendo certo que, como se viu, apenas se encontra legalmente prevista a possibilidade de aplicação de uma pena de prisão, e não de qualquer pena de multa.

Ao nível das exigências de prevenção geral, consideramos que as mesmas são apenas medianas, nada de específico havendo a registar face ao específico tipo de crime que aqui se encontra em causa.

Relativamente às exigências de prevenção especial, as mesmas são reduzidas, uma vez que a arguida não apresenta quaisquer antecedentes criminais e se encontra perfeitamente inserida na respectiva comunidade, quer a nível social, quer a nível profissional, sendo pessoa que é em geral tida como sendo respeitadora e respeitada, educada, considerada pela generalidade dos que a conhecem e com ela trabalham e trabalharam, tendo sido sempre uma funcionária cumpridora e zelosa e nunca tendo tido qualquer reparo ou censura disciplinar ou penal, mais sendo certo que a arguida trabalha actualmente como assessora do Presidente da Câmara Municipal ....

Quanto à culpa que a arguida patenteia nos factos, é este, como se disse, o limite máximo inultrapassável da medida concreta da pena, o qual se traduz no juízo de censura que é lícito formular-se acerca da conduta do agente. A este respeito, pensamos que a culpa apresentada pela arguida é mediana, sem nada de especialmente agravante ou atenuante a considerar a este nível, sem prejuízo das agravações que já se consideraram noutra sede e a outro nível a respeito da própria tipificação do crime aqui em causa, mas que não podem nem devem ser aqui novamente valoradas.

Ponderados todos os elementos que se acabam de aduzir, afigura-se-nos que a aplicação que será justa, adequada e proporcional a aplicação à arguida de uma pena principal de 2 anos de prisão.

De todo o modo, diz-nos o artigo 50º, n.os 1, 2, 3 e 5, do Cód. Penal, que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos (como é aqui o caso) se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, o tribunal subordina a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, sendo certo que os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.

Ora, neste caso concreto, entendemos antes do mais que a referida suspensão da execução da pena de prisão aqui em causa é claramente de aplicar, na medida em que, como já se disse a outro propósito, a arguida não apresenta quaisquer antecedentes criminais e se trata de pessoa perfeitamente inserida na respectiva profissão e comunidade, pelo que é de entender que a aplicação de uma pena de prisão efectiva desde já (ainda que em eventual cumprimento em regime de permanência na habitação com recurso a meios de vigilância electrónica) representaria uma decisão manifestamente criminógena e excessiva, sem que previamente se concedesse à arguida a oportunidade que decorre da presente suspensão.

Por seu turno, entendemos que não se justifica neste caso sujeitar a suspensão aplicada a qualquer regime de prova ou plano de reinserção social, na medida em que a arguida não revela necessidades de intervenção a esse nível, nem tal intervenção seria de todo adequada a este caso concreto.

No entanto, ainda assim, pensamos que será essencial subordinar a suspensão em causa à regra de conduta de a arguida não assumir qualquer profissão ou cargo que lhe determine qualquer relação de superioridade hierárquica em relação à aqui assistente durante o período da suspensão, ao abrigo do estabelecido no artigo 52º, n.º 2, al. a), do Cód. Penal, como a final se decidirá.

Por seu turno, atendendo a que a arguida apresenta uma carreira e profissão estável, com um rendimento já bastante razoável, e ao mesmo tempo é solteira, vive sozinha e não apresenta encargos relevantes para além da respectiva subsistência, igualmente pensamos que será razoável impor-lhe que pague à aqui assistente e demandante civil a indemnização que infra lhe irá ser fixada, como condição da suspensão da execução da pena de prisão aqui em causa, devendo o pagamento ser efectuado no prazo da suspensão e comprovado nos autos, como a final também se decidirá, aqui ao abrigo do estabelecido no artigo 51º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, não se tratando, a nosso ver, de um sacrifício que não se mostre razoável impor à arguida.

Por outro lado, ainda, quanto ao período da suspensão da execução da pena de prisão aplicada, o mesmo é fixado entre 1 a 5 anos, conforme decorre do estabelecido no artigo 50º, n.º 5, do Cód. Penal. Neste caso concreto, atendendo ao que será necessário que a arguida proceda neste prazo ao pagamento da indemnização à assistente e demandante que lhe irá ser fixada, impõe-se que tal prazo se mostre suficientemente alargado para o efeito, e por isso será fixado em 3 anos, que se considera justo, adequado e proporcional.

Finalmente, entendemos que as supra aludidas penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição não se mostram prementes neste caso concreto, e por isso não as aplicaremos, com as elevadas limitações que isso determinaria de parte a parte designadamente devido à necessária vigilância electrónica, sobretudo atendendo a que o contexto hierárquico e laboral que levou à prática do crime aqui em causa já se encontra neste momento esbatido e afastado quase por completo.

E mais será de referir que também a medida de segurança de interdição de actividades prevista no artigo 100º do Cód. Penal e que foi referida pela ilustre mandatária da assistente nas respectivas alegações finais, para além de não ter sido apontada à arguida na acusação nem no despacho de pronúncia aqui proferidos, igualmente não pode nem deve ser aqui aplicada, na medida em que não se vê que exista aqui um fundado receio de que a arguida possa vir a praticar outros factos desta mesma espécie no futuro, conforme o preceito legal aqui em causa o exige.


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3. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL:


Conforme acima já se expôs, BB, assistente nos autos, deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida e demandada AA, alegando no essencial os factos constantes da acusação (hoje convertida em despacho de pronúncia) e os danos para si daí decorrentes, peticionando a condenação da demandada no pagamento de uma indemnização no valor de €14.500,00 a título de danos não patrimoniais e de €1.414,92 a título de danos patrimoniais, tudo assim no total de €15.914,92 (quinze mil novecentos e catorze euros e noventa e dois cêntimos), acrescido de juros computados desde a da de produção dos danos, que aponta para a data da apresentação da queixa, até efectivo e integral pagamento.

A arguida e demandada apresentou contestação e arrolou prova testemunhal, mais alegando e afirmando aquilo que já supra se referiu no relatório da presente sentença e que neste momento se dá por pressuposto.

Com interesse para a decisão do pedido em causa, estabelece o artigo 129º do Cód. Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes da prática de crime é regulada pela lei civil. Assim sendo, reza o artigo 483º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil que “Aquele que, em dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.

Ora, para operacionalização do instituto da responsabilidade civil, a doutrina aponta como pressupostos o facto humano, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Entende-se como o primeiro uma acção ou omissão controlada ou controlável pela vontade; pela segunda uma violação objectiva da ordem jurídica; pela terceira um nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto ilícito à vontade do agente, o que deve ser apreciado em abstracto ou, neste caso, e à falta de outro critério legal, como diz a lei, pela “diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”, nos termos do disposto no art. 487º, n.º 2, do Cód. Civil, traduzindo-se em dolo ou simples negligência; pelo quarto a existência de um prejuízo sob a forma de dano emergente ou de lucro cessante; e quanto ao quinto considera-se o que escreve Antunes Varela (Das Obrigações em geral, vol. I, 6ª ed., Coimbra 1989, p. 861 e 864) no sentido de que “O facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto”.

No nosso caso concreto, face à matéria de facto que se deu como provada, dela resulta claramente que a demandada AA praticou actos controlados pela sua vontade, contrários à ordem jurídica na medida em que limitaram sem motivo atendível e válido a liberdade e prejudicaram a saúde física e mental da demandante BB, culposos na medida em que a demandada não actuou com a prudência de um bom pai de família, causando os prejuízos sob a forma de dano emergente neste caso na esfera da demandante, sendo os danos sofridos consequência clara e directa da conduta da demandada.

Pensamos que estão assim reunidos todos os pressupostos para que opere o instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos conforme acima aludido.

Quanto ao valor dos danos e a fixar à indemnização, haverá que aferir antes do mais dos alegados danos não patrimoniais, sendo certo que os mesmos apenas são indemnizáveis se dispuserem de suficiente gravidade para que mereçam a tutela do direito, devendo ser compensados à luz do disposto nos artigos 496º e 494º do Cód. Civil, ou seja, a considerar equitativamente pelo tribunal, tendo em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.

No nosso caso concreto, como já se disse a respeito da parte criminal da causa, resultou como demonstrado, no essencial, que a demandada, enquanto superior hierárquica da demandante e sendo esta última técnica superior de engenharia civil nos SMAS da ..., foi esvaziando a demandada de funções profissionais ao longo de vários anos, entre 2014 e 2017, até que neste último ano a demandante se viu despojada de todas e quaisquer funções, passando dias inteiros no local e no cumprimento de um horário de trabalho sem absolutamente nada fazer.

Como tal, e como efeitos de tal conduta por parte da demandada, demonstrou-se que a demandante desenvolveu uma depressão, tendo tido necessidade de ser consultada por psiquiatra e psicologia clínica e de tomar medicação. E a demandante sentiu-se perseguida e amedrontada, sob a ameaça de lhe serem instaurados processos disciplinares. E foi conduzida a um sentimento de frustração e desinteresse. E a demandante foi deixando de ter contacto com os seus colegas e com os assuntos do serviço, o que lhe causou frustração e vexame perante os seus colegas de trabalho, que se iam apercebendo da situação. E passou por sentimentos de medo por passar os dias sem trabalho (apesar de o pedir diariamente sem obter resposta) e não poder fazer nada para ajudar a passar o tempo, pois receava que lhe abrissem processos disciplinares por estar na internet ou por ler um livro, chegando mesmo a um ponto em que tinha receio que qualquer coisa que fizesse fosse um motivo para a demandada lhe fazer uma participação que gerasse a instauração de um processo disciplinar. E mais sentiu a demandante ansiedade extrema, diarreia, preocupações, stress, transtornos, frustração, revolta, indignação, crescente mal-estar, tristeza, angústia e perda de auto-estima, sentindo que foi ostracizada e que não tinha valor algum. E mais se sentiu uma incompetente, uma inútil, uma burra, uma ignorante, assim como que era uma má pessoa, que não valia nada, que devia ser doida, que ela é que estava mal e que não tinha perfil para estar na função pública. E esta situação profissional foi tema de conversa constante de muitos dos colegas de trabalho da demandante, que nela viam uma clara e evidente punição pela manifestação de divergências com a demandada. E assim a demandante se sentiu envergonhada e marginalizada por muitos colegas seus que se afastaram de si, deixando de lhe falar com medo de represálias por serem vistos a falar consigo, pois muitos deles consideram desaconselhável a manutenção de quaisquer contactos com ela por isso poder ser interpretado como eventual discordância para com a dirigente máxima dos serviços, criando um inevitável estigma, fazendo com que a demandante se sentisse sozinha e isolada no local de trabalho durante estes anos aqui em causa e fazendo-a sentir-se a pior pessoa do mundo. E a demandante sentiu que a sua carreira profissional deixara de existir, pois não estava a exercer a sua profissão nem a concretizar o sonho que já foi concretizável e que a satisfazia profissionalmente e pessoalmente, que era alcançar na Ordem dos Engenheiros o grau de Membro Especialista na área de Hidráulica, objectivo esse que já podia ter alcançado anteriormente se a demandada não lhe tivesse retirado e interrompido o exercício da sua profissão e funções. E foi afectado negativamente o relacionamento familiar da demandante, uma vez que estes factos provocaram uma alteração na sua personalidade, passando a demandante a revelar menor tolerância às contrariedades do dia-a-dia, irritabilidade fácil, alienação e isolamento. E passou a ficar mais introvertida, mais fechada e distante das pessoas, a ficar mais isolada, pois deixou de sair de casa porque tinha vergonha do que lhe estava a acontecer e de ter vida social, por achar que não valia nada e que era uma má pessoa que não interessava a ninguém e que merecia mesmo o isolamento. E tudo isto acarretou à demandante um esgotamento emocional, com insónias, dores de cabeça, nervosismo, dificuldades de concentração e da memória, estado de fadiga constante e sentimento de cansaço ao acordar sem vontade e motivação de se levantar para ir trabalhar, assim como passava o dia no trabalho cansada, com sono, pois era com muito esforço que se conseguia manter acordada no local de trabalho, e ao chegar a casa adormecia logo mesmo sentada numa cadeira. E a demandante viveu assim anos de desalento em face da conduta da aqui demandada, continuando ainda hoje a recuperar do transtorno emocional sofrido. E todo o transtorno emocional causado pela actuação da demandada fez com que a demandante ganhasse cerca de 20kg de peso, o que deitou ainda mais abaixo a sua auto-estima, sentindo que se ela própria não gosta do que vê ao espelho, também ninguém gostará, tendo-se isolado ainda mais e a sua vida restringe-se assim a trabalho / casa / trabalho. E assim a demandante começou a duvidar das suas capacidades, se teria condições para aguentar o dia-a-dia a viver sozinha, já que naquela altura estava a comprar casa e iria sair de casa dos pais, tendo pensado muitas vezes em desistir já com as obras quase concluídas. E, não obstante, a demandante acabou por se mudar para a sua casa, mas passou assim a estar sozinha 24 horas por dia, o que fez com que não houvesse ninguém a fazer-lhe companhia após o horário de trabalho, para que a mente pudesse abstrair-se do clima penoso que vivia no local de trabalho, o que fez com que sentisse grande solidão e se isolasse ainda mais no seu canto. Como tal e assim, a demandante teve que recorrer a tratamento psiquiátrico e psicológico para a ajudar a lidar com o que lhe estava a suceder, que culminaram em depressão e em pensamentos suicidas que teve, para assim terminar com o sofrimento por que estava a passar e a causar também à sua família.

Ora, assim sendo, entendemos desde logo que se trata de danos sofridos pela aqui demandante que sem dúvida apresentam suficiente gravidade de modo a merecer a tutela do direito. Tendo presente tais circunstâncias e mais o que foi dado como provado em sede criminal, bem como ainda a apurada situação económica da demandada, por recurso o mais possível a casos semelhantes e à equidade, afigura-se-nos justa, adequada e proporcional a fixação de uma compensação indemnizatória à demandante no valor de €10.000,00 a título de danos não patrimoniais, sendo por isso desde já o pedido parcialmente procedente nesta parte.

A respeito de danos patrimoniais, também peticionados, mais foi dado como provado que, também devido aos factos aqui praticados pela demandada, a demandante teve que ser acompanhada em diversas consultas de psiquiatria e psicologia, nas quais despendeu um total de €265,15, assim discriminado: consulta de parapsicólogo €85,00; consultas de psiquiatria €63,00; consultas de psicologia €48,00; consultas na Unidade Local de Saúde ... e no centro de saúde da ... €44,50; exames €24,65. E teve a demandante que adquirir a medicação que lhe era prescrita, com a qual despendeu €96,75, tudo assim num total de €361,90. E quando apresentou as baixas médicas acima referidas, a demandante deixou de auferir todo o seu vencimento, resultando num prejuízo patrimonial que se contabiliza em €1.053,02, na medida em que, na baixa médica de 12 dias que teve início em 12 de Dezembro de 2016, a demandante deixou de receber o vencimento e o subsídio de refeição referente aos 12 dias de baixa, tendo recebido da Segurança Social €200,61, pelo que deixou assim de auferir €334,23 (12 * €40,05 [valor diário da sua remuneração] + 12 * €4,52 [valor diário do subsídio de refeição] - €200,61 = €334,23). E na baixa médica de 10 dias que teve início em 15 de Fevereiro de 2017, a demandante deixou de auferir o vencimento e subsídio de refeição correspondente, tendo recebido da Segurança Social €156,03, donde resulta que recebeu a menos nesse mês o valor de €289,67 (10 * €40,05 + 10 * €4,52 - €156,03 = €289,67). E nos 12 dias de baixa médica com início a 10 de Outubro de 2017, a demandante deixou de auferir o vencimento e o subsídio de refeição correspondente a esses dias, tendo recebido da Segurança Social €198,36, o que se traduz num decréscimo de €339,48 na sua remuneração nesse mês (12 * €40,05 + 12 * €4,52 - €198,36 = €339,48). E nos 2 dias de baixa médica que se iniciaram a 22 de Março de 2018, a demandante deixou de auferir o vencimento e subsídio de refeição correspondente a esses dias, não tendo recebido qualquer valor por parte da Segurança Social, pelo que recebeu a menos €89,64 no seu vencimento e subsídio de refeição referente a esses 2 dias de baixa (2 * €40,05 + 2 * €4,77 = €89,64). E assim tudo o que perfaz um valor total de €1.414,92 (€1.053,02 + €361,90 = €1.414,92) de prejuízo monetário sofrido pela demandante.

Como tal, este valor de €1.414,92 que vem peticionado pela demandante a título de danos patrimoniais será procedente e igualmente lhe será concedido, nesta parte na totalidade.

Ambos os valores fixados a título de danos patrimoniais e não patrimoniais serão acrescidos de juros à taxa legal de 4% ao ano desde a data em que a demandada foi notificada para contestar até efectivo e integral pagamento».


III. APRECIANDO E DECIDINDO

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A)

Recurso do despacho de 05.11.2021

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Como fundamento de pretendida suspensão da instância criminal, devido a questão prejudicial, e absolvição da instância cível, por alegada litispendência, invoca a arguida e demandada a pendência de ação administrativa no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., intentada pela aqui assistente contra Município ... e dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ... para definição de responsabilidade administrativa e civil destes réus por atos e omissões dos seus funcionários.

Resulta dos autos que o STAL (Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local e Regional, Empresas Públicas, Concessionárias e Afins, em representação e defesa da sua associada BB) propôs Ação Administrativa contra o Município ... e os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ... pedindo que: os réus sejam condenados a reconhecer que a associada do Autor tem direito a desempenhar as funções correspondentes à carreira de Técnica superior - Engenheira Civil, em que se encontra integrada; ser reconhecido que as funções que a associada do autor vem desempenhando desde 2016 não são as que correspondem à carreira e categoria de Técnica superior - Engenheira Civil; serem os réus condenados a atribuir à associada do autor as funções correspondentes à carreira de Técnica superior- Engenheira Civil; e, serem os réus condenados a pagar à associada do autor a quantia de € 10.000 por danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios. 

Ora, nos presentes autos, a arguida foi pronunciada pela prática de um crime de perseguição agravado, p. e p. pelos artigos 154-A.º, n.ºs 1, 3 e 4 e 155.º, n.º 1, als. c) e d), com referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l) do Código Penal, em síntese, por na qualidade de Chefe de Divisão Geral dos SMAS da ..., ter retirado gradual e injustificadamente as funções de BB, não a convocando, ainda para reuniões, ciente de que segregava profissionalmente a assistente, a quem molestava na dignidade pessoal bem como na sua saúde psíquica, causando-lhe medo e inquietação, e prejudicando-a na sua capacidade de tomar decisões livremente, resultados estes que representou e pretendeu.

O pedido de indemnização foi deduzido pela assistente demandante contra a arguida demandada, fundado na alegada prática de crime de perseguição agravado.

Importa, ainda considerar que:

- A aqui arguida não é ré na ação administrativa;

- A responsabilidade criminal da arguida por ato desempenhado no exercício das suas funções e em abuso dessas funções não se confunde com a eventual responsabilidade administrativa e civil do Município ... e dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ... por atos e omissões dos seus funcionários.

Dito isto.

1. Da alegada verificação de questão prejudicial e consequente suspensão da instância

No que respeita à pretendida suspensão da instância justificada por alegada questão prejudicial, importa considerar o disposto no art.º 7.º do CPP, que dispõe, sob a epígrafe «Suficiência do processo penal», no seu n.º 1 que «O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa», acrescentando no seu n.º 2 que «Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente».

Ou seja, como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 23.05.2012, proc. 387/08.7TATMR.C1 (rel. Des. Jorge Jacob) disponível in www.dgsi.pt, como os demais a que nos referiremos no presente Acórdão:

« (…) tendencialmente, todas as questões suscitadas que interessem à decisão da causa deverão ser resolvidas no processo penal (nº 1). Contudo, se a verificação da existência de um crime exigir o julgamento de questão não penal (por exemplo, questão de natureza civil cuja verificação seja essencial ao preenchimento do tipo legal de crime) e se essa questão não puder ser convenientemente resolvida no processo penal (por exemplo, pela necessidade de observar um formalismo dificilmente compaginável com o andamento do processo penal), o tribunal poderá (a título excecional) suspender o processo penal para que a questão seja decidida no foro próprio (nº 2)».

Resulta evidente que não se vislumbra nos autos que:

- Face aos elementos do tipo legal, a questão penal não possa ser resolvida sem a prévia decisão da questão prejudicial;

- Seja, sequer conveniente, a prévia decisão por Tribunal de competência distinta.

No caso, podendo no processo penal serem resolvidas todas as questões que interessam à decisão da causa, e não sendo necessário julgar questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal (art.º 7.º do CPP), não se justifica a pretendida suspensão do processo até à decisão da ação intentada no Tribunal Administrativo e Fiscal.

Conclui-se que, improcede este segmento do recurso do despacho em crise.

Importa, agora, apreciar e decidir da segunda das questões suscitadas pelo recurso que ora nos ocupa.

2. Da alegada verificação da litispendência e consequente absolvição da instância na parte referente ao pedido de indemnização cível

Entende a recorrente que, no caso, relativamente à instância cível se verifica a exceção da litispendência, impondo-se a consequente absolvição da instância.

Efetivamente, a litispendência constitui uma exceção dilatória cuja verificação obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância – arts. 576.º, n.º 2, e 577.º, alínea i), e 278.º e) do Código de Processo Civil (CPC).

A exceção de litispendência pressupõe a repetição de uma causa, quando a anterior ainda está em curso, tendo por fim, assim como na exceção dilatória do caso julgado, evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – art.º 580.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

De harmonia com o disposto no art.º 581.º, n.º 1, do CPC, repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir; há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (n.º 2); há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (n.º 3); há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo efeito jurídico (n.º 4).

A litispendência, pressupondo a repetição da mesma ação em dois processos, depende, pois, da verificação cumulativa da identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir, de modo a evitar contradizer ou reproduzir decisão anterior.

No caso dos autos, o requerimento de indemnização cível deduzido pela assistente e demandante contra a arguida e demandada funda-se na alegada prática de crime por esta cometido.

Não se traduz, portanto, numa repetição da ação intentada no Tribunal Administrativo e Fiscal, intentado para apuramento da responsabilidade administrativa e civil do Município ... e dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ... por atos e omissões dos seus funcionários

Uma vez que são distintos os sujeitos, o pedido e a causa de pedir (art.º 580.º n.ºs 1 e 2 e 581.º, ambos do CPC, ex vi art.º 4.º do CPP).

Ora, não havendo repetição da causa, não há fundamento para se invocar a exceção dilatória a litispendência (artºs 577º, al. i), e 278º, n.º 1, al. e), ambos do mesmo CPC), não se justificando pretendida a absolvição da instância.

Conclui-se que improcede, também neste segmento, e assim por inteiro, o recurso do despacho datado de 05.11.2021.


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Cumpre agora apreciar e decidir das questões suscitadas pelo recurso da sentença.

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B)

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Recurso da sentença

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1. Da falta de comunicação à arguida da alteração de factos, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos art.ºs 358.º n.º 1 e 359.º do CPP

Alega a recorrente que foram integrados, sob as alíneas A) D), G) I), L), M), N), O), Q) R), U), X), Z), factos provados que não constavam da pronúncia, nem derivaram da defesa, mas que têm relevo para a decisão do processo.

No entender da recorrente, tal factualidade constitui, «pelo menos, uma alteração não substancial dos factos», pelo que o Tribunal recorrido deveria ter comunicada à arguida a alteração, deveria ter-lhe concedido o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (artigo 358.º n.º 1 CPP).

Como o não fez, conclui a recorrente que a sentença é nula, nos termos do disposto no art.º 379.º n.º 1 al. b) do CPP.

Vejamos, então.

Da estruturação legal do processo penal segundo o modelo acusatório, muito especificamente, do princípio da acusação e da tutela do direito de defesa do arguido decorre para o tribunal de julgamento a sua vinculação temática seja à acusação do Ministério Público ou à do assistente (se o procedimento depender de acusação particular), se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução; seja ao despacho de pronúncia se esta tiver sido requerida - cf. art.ºs 311.º, 358.º, 359.º e 379.º do CPP.

É na acusação, ou havendo-a, na pronúncia que se descreve o pedaço de vida delimitado do comportamento de um indivíduo que vai ser sujeito a um juízo de subsunção jurídico-penal. É nela que se encontra o objeto do processo, sendo na impossibilidade de o ultrapassar que radica o princípio da vinculação temática.

Nos termos do art.º 379.º n.º 1 al. b) do CPP é nula a sentença que «condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».

Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 10.07.2014, proc. 345/11.0PBSTB.E1 (rel. Des. Ana Barata Brito), sendo «o sistema do Código de Processo Penal português de acusatório impuro, ou de acusatório mitigado por um princípio da investigação (oficiosa, pelo juiz, art.º 340º nº1 do Código de Processo Penal), de modo a viabilizar nos limites do possível (com a salvaguarda das garantias de defesa) a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa, o juiz pode intervir excecionalmente na narrativa dos factos das acusações (do Ministério Público e do assistente), reconformando-os ou mesmo acrescentando-os.

Essa reconformação da acusação, sempre que se trate de uma verdadeira alteração de factos juridicamente relevante, opera-se por via dos mecanismos previstos nos arts 358º e 359º do Código de Processo Penal».

Dispõe o art.º 359.º do CPP que:

«1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

2. A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objeto do processo.

3. Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal».

Encontramos na alínea f) do art.º 1º do CPP, a norma que dispõe no sentido de a alteração substancial dos factos ser aquela que tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

A imputação de um crime diverso significa que os novos factos vão além do objeto do processo fixado pela acusação ou pela pronúncia.

A «alteração substancial» dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Se houver uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, esta não pode ser tomada em conta pelo tribunal para efeito de condenação no processo em curso, sob pena de nulidade da sentença (art.ºs 1.º al. f), 359.º n. 1 e 379.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal).

Ressalvam-se as situações em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com continuação do julgamento, pelos novos factos, caso em que é dado ao arguido, se requerido, prazo para a preparação da sua defesa (art.º 359.º n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal).

Por sua vez, nos termos do art.º 358.º do CPP:

«1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3. O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia».

Portanto, «as modificações da base factual do processo que não se repercutam nas situações previstas na al. f) do art.º 1º podem ser levadas em conta pelo tribunal, devendo, no entanto, cumprir-se o art.º 358º do Código de Processo Penal quando contendam com o exercício dos direitos da defesa.

De tudo resulta que poderão ocorrer alterações nos enunciados fácticos da acusação que não relevem para a decisão da causa e/ou não contendam com os direitos de defesa. Como tal, estas não carecem de qualquer notificação» -  Cf. citado Ac. do TRE datado de 10.07.2014.

Ou seja, não é qualquer alteração que faz surgir o dever de comunicação.

A ratio legis para a imposição de comunicar a alteração de factos ao arguido prende-se com garantir o princípio do acusatório e os direitos de defesa evitando que seja surpreendido pela condenação por factos não constantes da acusação ou da pronúncia.

Só perante o caso concreto se pode aferir se a estratégia de defesa sai prejudicada pela não comunicação da alteração, uma vez que esta apenas tem lugar, nos termos do n.º 1 do art.º 358.º do CPP se tiver «relevo para a decisão da causa».

            Dito isto.

Verifica-se que os factos em causa e que, no entender da recorrente, deveriam ter sido comunicados por constituírem uma alteração não substancial foram alegados no requerimento de indemnização cível, notificados à demandada, previamente à audiência de julgamento, e, portanto, foram, portanto, objeto de prova, tendo sido julgados provados pelo Tribunal recorrido.

Efetivamente, não consta da pronúncia a matéria julgada provada na sentença sob as alíneas:

- B), na parte em que se fez constar que os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ... «se integravam no Município ...»; quando se pode ler na pronúncia que a ora assistente, desempenhava as funções «sob as ordens, direção e fiscalização da Câmara Municipal ...»;

- G), na parte em que foi aditada a expressão «na prática»;

- I), na parte em que foi acrescentado «nessa qualidade passou por isso a desempenhar funções de superior hierárquica da assistente»;

- Q), na parte em que se escreveu «durante o ano de 2017», ao invés da expressão de «Desde pelo menos Janeiro de 2017».

No entanto, o aditamento sob a alínea I) deduz-se da descrição constante da pronúncia de que a assistente exercia funções «nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento (SMAS)» e que a arguida «passou a exercer funções de Chefe de Divisão Geral dos referidos SMAS».

Provar-se sob a alínea Q), que a conduta da arguida foi praticada durante o ano de 2017, constituiu um minus relativamente à indiciação de que o foi desde «pelo menos Janeiro de 2017».

As modificações assinaladas quanto às alíneas B) e G) são meros esclarecimentos que em nada contendem com a defesa da arguida.

E por essa razão, não se impunha que a matéria ora em apreço fosse comunicada.



Por outro lado, tal como alegado pela recorrente, não consta, ainda, da pronúncia a matéria provada sob as alíneas D), M), N), R), Z), bem com a descrita, nas alíneas:

L), na parte em que refere «de tal forma que as funções que a assistente dantes desempenhava, dentro da sua categoria, começaram a ser atribuídas pela arguida a outros funcionários ou prestadores de serviço que não detinham aquela categoria e que não eram qualificados da mesma forma, não tinham formação técnica nem legalmente as poderiam desempenhar, porque de competência reservada a profissionais de Engenharia Civil reconhecidos pela Ordem dos Engenheiros e pela Ordem dos Engenheiros Técnicos»;

O) na parte em que refere que «a assistente opôs-se a tal situação por parte da arguida, reiterando que lhe incumbia desempenhar as funções de Técnica Superior – Engenheira Civil, na área de Manutenção e Exploração de Sistemas dos SMAS»;

U) na parte em que se refere que «o assim descrito e praticado especificamente pela arguida e demandada até à altura em que os SMAS foram extintos e os respetivos serviços foram integrados na Câmara Municipal ..., com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2018, tendo então a assistente e demandante passado a encontrar-se ao serviço do Município ... e assim passado a exercer funções no Município»;

X) na parte em que refere «sob a ameaça de lhe serem instaurados processos disciplinares».

Tais modificações não constituem um minus, nem uma concretização, nem sequer um esclarecimento face ao que já constava da pronúncia.

No entanto, importa recordar que os factos em causa foram: alegados no requerimento de indemnização cível; notificados à demandada, previamente à audiência de julgamento; objeto de prova, e, consequentemente, foram julgados provados pelo Tribunal recorrido.

Perscrutada a sentença em crise não podemos concluir que os factos contribuíram para agravar a responsabilidade criminal da arguida, por via de um maior grau de ilicitude e/ou um mais forte juízo de censura.

O que bem se compreende.

O requerimento de indemnização cível não serve para ampliar o objeto do processo.

A alegação do requerimento de indemnização cível não releva para a decisão criminal da causa.

Os factos alegados no requerimento de indemnização cível não resultaram da discussão da causa (no «decurso da audiência»).

Se julgados provados «apenas» devem ser considerados na medida em que relevam para o pedido de indemnização cível deduzido.

Não servem para agravar a responsabilidade criminal da arguida.

Nem, consequentemente, têm de ser comunicados à arguida, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 358.º do CPP.

Em suma. 

O dever de comunicação previsto no art.º 358.º do CPP pressupõe a alteração do objeto do processo e destina-se a garantir o direito de defesa do arguido.

No caso, o objeto do processo foi fixado no despacho de pronúncia, dos quais não constam os factos relativamente aos quais a recorrente invoca a falta de comunicação. 

Os factos provados sob as alíneas B), G), I), e Q), na parte em que foi modificada a factualidade constante da pronúncia, constituem um minus, ou uma concretização, ou um esclarecimento face ao que já constava da pronúncia.

E, a matéria das alíneas D), M), N), R), Z), bem com parte da que se encontra descrita nas alíneas L), O), U) e X), embora não se encontre descrita na pronúncia, não serviu, nem serve para agravar a responsabilidade criminal da arguida, apenas sendo considerada na medida em que releva para o pedido de indemnização cível deduzido.

Em qualquer dos casos, as modificações introduzidas não violam o princípio do acusatório, nem os direitos de defesa da arguida, pelo que não se impunha o dever de comunicação, previsto no art.º 358.º do CPP.

Concluímos que, improcede, neste segmento, o recurso. 


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3. Da omissão de pronúncia relativamente à existência, objeto, conteúdo e pendência da ação n.º 379/18...., no Tribunal Administrativo e Fiscal ...

Invoca a recorrente omissão de pronúncia por a sentença não considerar provada a existência e pendência da referida ação n.º 379/18...., no Tribunal Administrativo e Fiscal ....

            Vejamos.

            Em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

            Dispõe o n.º 2 do art.º 374.º do mesmo diploma legal, relativamente aos requisitos da sentença que: «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».

            Não sofre dúvida que da sentença devem constar os factos provados e não provados, sendo igualmente pacífico que tais factos são os que constam da acusação ou pronúncia, da contestação, do pedido de indemnização civil e ainda os que resultarem da discussão da causa, conforme sobressai do teor do art.º 368.º do CPP, sob a epígrafe «Questão da culpabilidade».

            Determina o n.º 2 deste artigo que, na deliberação que é realizada após o encerramento da discussão, «(…) se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, o presidente enumera discriminada e especificamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões de saber:

a) Se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime;

b) Se o arguido praticou o crime ou nele participou;

c) Se o arguido atuou com culpa;

d) Se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;

e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;

f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil».

Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 27.05.2020, no proc. 825/18.0PBMAI.P1 (rel. Des. Maria Joana Grácio):

«Decorre, assim, desta norma que não são quaisquer factos provenientes da acusação/pronúncia, da defesa, do pedido de indemnização civil ou da produção de prova em julgamento que importa verter entre os provados e não provados a enumerar na sentença mas apenas aqueles que são relevantes, isto é, essenciais, para a definição dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime e do tipo de participação do agente, para a determinação da respetiva culpa, para a verificação de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, para a verificação dos pressupostos de punibilidade ou de aplicação de medida de segurança, bem como dos de arbitramento da indemnização civil e, finalmente, de acordo com o preceituado no art. 369.º do CPPenal, os atinentes à determinação da sanção, sendo de realçar os relativos aos antecedentes criminais do arguido, à personalidade do arguido e ao seu enquadramento social, posto todos eles influenciarem e serem determinantes da escolha e medida concreta da pena a encontrar pelo Tribunal.

De fora da apontada obrigação de enumeração dos factos provados e não provados ficam todos aqueles que são acessórios ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, e bem assim aqueles que se mostram prejudicados com a solução dadas a outros, por apenas os contrariarem, ou seja, representarem mera infirmação, negação, de outros já constantes do elenco dos factos provados ou não provados».

            No caso, a existência e pendência da ação n.º 379/18...., no Tribunal Administrativo e Fiscal ... foi alegada na contestação da arguida.

No entanto, tal como já dissemos relativamente à responsabilidade criminal, a responsabilidade civil da aqui arguida e demandada por ato desempenhado no exercício das suas funções e em abuso dessas funções não se confunde com a eventual responsabilidade administrativa e civil do Município ... e dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ... por atos e omissões dos seus funcionários.

Podendo no presente processo serem resolvidas todas as questões que interessam à decisão da causa.

            Sem prejuízo de a prova documental constante dos autos, incluindo a respeitante à pendência da referida ação, poder ser examinada e apreciada tendo por referência outros factos considerados relevantes, a inclusão nos factos provados da factualidade que ora nos ocupa resulta irrelevante.

            E, assim sendo, não deveria ser feita constar dos factos provados.

            Nem a sentença recorrida enferma de nulidade por não se ter pronunciado, fazendo constar dos factos provados a existência e pendência da ação n.º 379/18...., no Tribunal Administrativo e Fiscal ... foi alegada na contestação da arguida.

            Concluímos que, também neste segmento, improcede a defesa da recorrente.


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4. Da sindicância da matéria de facto

Na sindicância da matéria de facto, invoca a recorrente:

- Insuficiente concretização quanto ao teor das alíneas E) e J);

- Ser conclusiva/de direito a matéria descrita sob a alínea AA);

- Ocorrer erro de julgamento quanto à matéria descrita sob as alíneas erro de julgamento quanto à matéria descrita sob as alíneas A), B), E) F), H), J), L) M), U) (no que respeita quanto à imputação à arguida), AC) e AD);

- Serem contraditórios entre os factos sob as alíneas G), H), I), J) e L), devendo ser retirados do factualismo provado e aditado ao não provado os factos sob as alíneas H), J); L); e M);

- Ser contraditória a matéria sob as alíneas M) e O);

- Ser contraditória a matéria da alínea P) e a imputação dos atos e danos descritos sob as alíneas itens J), L) M), N), O), Q), R), S), T), U), V), X) e Z)

Vejamos então.


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Alega a recorrente a insuficiente concretização da matéria constante das alíneas E e J) da factualidade provada, cujos teores são respetivamente os seguintes:

«E) Como tal, no âmbito das referidas funções, a assistente elaborava informações e pareceres técnicos, fazia inspecções aos locais, acompanhava e superentendia a execução de ramais de água e saneamento, de reparação de rupturas e acompanhava os serviços externos e o piquete, muitas vezes durante a noite, coordenando as reparações de avarias, tais como rebentamentos, entre muitas outras»;

«J) Desde Setembro de 2014, a arguida, sem qualquer motivo legal e sem dar qualquer explicação, gradualmente foi retirando à assistente as funções próprias da sua categoria profissional e que a mesma tinha vindo a exercer até então, atribuindo-lhe apenas outras pequenas tarefas, em nada relacionadas com o conteúdo funcional da referida categoria».

Vejamos.

Provou-se, sob a alínea A) que BB «desempenhou funções nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ...», «a partir de 15 de Fevereiro de 2011» «enquanto trabalhadora ao abrigo de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, com a categoria profissional de Técnica Superior - Engenheira Civil».

Provou-se sob a alínea C) que: «O conteúdo funcional da referida categoria profissional da assistente era genericamente e oficialmente o seguinte: “Funções consultivas, de estudo, planeamento, programação, avaliação e aplicação de métodos e processos de natureza técnica e/ou científica, que fundamentam e preparam a decisão. Elaboração, autonomamente ou em grupo, de pareceres e projectos, com diversos graus de complexidade, execução de outras atividades de apoio geral ou especializado nas áreas de atuação comuns, instrumentais e operativas dos órgãos e serviços. Funções exercidas com responsabilidade e autonomia técnica, ainda que com enquadramento superior qualificado. Representação do órgão ou serviço em assuntos da sua especialidade, tomando opções de índole técnica, enquadradas por diretivas ou orientações superiores”».

Nos termos do n.º 1 do art.º 80.º da Lei da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/2014, de 20.06) «A cada carreira, ou a cada categoria em que se desdobre uma carreira, corresponde um conteúdo funcional legalmente descrito».

Acrescenta-se, no n.º 2 do mesmo artigo que «O conteúdo funcional de cada carreira ou categoria deve ser descrito de forma abrangente, dispensando pormenorizações relativas às tarefas nele abrangidas».

Por outro lado, dispõe o n.º 1 do artigo seguinte que:

«A descrição do conteúdo funcional nos termos do artigo anterior não prejudica a atribuição de tarefas que lhe sejam afins ou funcionalmente ligadas, para as quais o trabalhador detenha a qualificação profissional adequada e não impliquem a desvalorização profissional».

Ora, as expressões das alíneas E) e J) acabam por encontrar a sua correspondência nas normas legais ora citadas, nomeadamente nas previsões de que:

- O conteúdo funcional de cada categoria é feito de forma abrangente, dispensando pormenorizações relativas às tarefas nele abrangidas; e de que,

- A descrição do conteúdo funcional não prejudica a atribuição ao trabalhador de funções, não expressamente mencionadas que lhe sejam afins ou funcionalmente ligadas, para as quais o trabalhador detenha a qualificação profissional adequada e que não impliquem desvalorização profissional.

Por outro lado, como resulta da leitura das alíneas ora em apreço, não nos deparamos com expressões genéricas que não encontrem no texto o limiar de indispensável concretização.

Efetivamente, na alínea E), precedendo a expressão «entre muitas outras» estão exemplificadas tarefas atribuídas e desempenhadas pela demandante, em execução do seu contrato de trabalho.

A interpretação da alínea J), na referência à atribuição «de outras pequenas tarefas, em nada relacionadas com o conteúdo funcional» da categoria da demandada, tem por delimitação negativa o conteúdo funcional previsto na alínea C).

Tudo ponderado, julgamos que a descrição plasmada na sentença apresenta suficiente concretização para permitir a subsunção e não ofender o direito ao contraditório.

Concluímos pela improcedência, neste segmento, da defesa da recorrente.


*

No entender da recorrente é conclusiva/de direito a matéria descrita sob a alínea AA), e por isso insuscetível de prova.

É o seguinte o teor da alínea que ora nos ocupa:

«AA) A arguida quis agir da forma descrita, com o propósito concretizado de perseguir e de assediar moralmente a assistente no âmbito das funções que esta exercia nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., bem sabendo que a sua conduta a intimidava, diminuía, humilhava e amedrontava».

Vejamos.

Não sofre dúvida que na parte fática da sentença devem constar factos e não enunciados meramente conclusivos, os quais, por serem insuscetíveis de prova encontram o devido lugar na fundamentação jurídica.

No entanto, a vontade da demandada perseguir e assediar moralmente a demandante, bem como o saber que a intimidade, diminuía, humilhava e amedrontava, não são meras conclusões, mas factos da vida interna, e portanto, suscetíveis de prova.

Aliás, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015, «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal

Tal como consta do Acórdão uniformizador n.o 1/2015 que «De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com «recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum».

Portanto, estando em causa crime doloso, a descrição dos elementos subjetivos na acusação revela-se necessária, desde logo, para que seja recebida.

O que apenas se compreende na consideração de que nos encontramos perante factos suscetíveis de prova, e não de enunciados meramente conclusivos.

Concluímos, também neste segmento, pela improcedência do recurso.


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No entender da recorrente ocorreu erro de julgamento quanto à matéria descrita sob as alíneas A), B), E) F), H), J), L) M), U) (no que respeita quanto à imputação à arguida), AC) e AD).

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            Vejamos.

A sindicância à matéria de facto pode ser deduzida ao abrigo do disposto no art.º 410.º n.º 2 al. c) do CPP, isto é, enquanto erro notório de apreciação da prova, ou nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do mesmo diploma legal, ou seja, fazendo uso da denominada impugnação ampla da matéria de facto.

Ora, se o erro notório na apreciação da prova se examina através da análise do texto, já o erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto - Cf. Ac. do TRL datado de 27.04.2022, proc. 342/19.1PBLRS.L1-3 (rel. Des. Florbela Sebastião e Silva).

No caso, a defesa apresentada no recurso respalda-se, designadamente, em prova gravada, pelo que excede o texto da decisão recorrida, apelando ao conteúdo do que foi dito, mas que não teria sido devidamente ponderado, remetendo, portanto, para o regime previsto no art.º 412.º do CPP.

A intromissão da Relação no domínio factual, nos termos do art.º 412.º cinge-se a uma intervenção cirúrgica e não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros - Cf. Ac. do STJ datado de 15.12.2005, proc. n.º 05P2951 (rel. Cons. Simas Santos).

Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (de impugnação ampla), o Tribunal da Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo - Cf. TRG, datado de 06.11.2017, proc. 3671/13.4 TDLSB.G1 (rel. Des. Ausenda Gonçalves).

Acontece, ainda que, sob pena de inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos acusam ou dos que esperam a decisão, a crítica à convicção do tribunal a quo, assente na imediação e oralidade e sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.

«A atividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de fatores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente» - Cf. Ac. do Tribunal da Relação de Évora, datado de 09.01.2018, proc. 16/15.2 GCABF.E1 (rel. Des. Martinho Cardoso).

«Acreditar ou não num depoente ou acreditar num depoente e não acreditar noutro é uma questão de convicção. Essencial é que a explicação do tribunal porque é que acredita naquele e já não acredita no outro seja racional e tenha lógica.

E quem está numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova» - Cf. citado Acórdão do TRE datado de 09.01.2018.

Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção (declarações, depoimentos, acareações) – assente que obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma «revisão» da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção «era possível».

Exige-se-lhe que «imponha» uma outra convicção. É imperativo que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais.

Não apenas o relativo do «possível», sim o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

No recurso em que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto, a lei processual, impõe ao recorrente, o ónus de proceder a uma tripla especificação (n.º 3 do art.º 412.º do Código de Processo Penal).

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação necessária dos factos individualizados que constam da decisão recorrida e que se consideram incorretamente julgados.

Tal como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 05.01.2011, proc. 888/04.6TAVIS.C1 (rel. Des. Eduardo Martins):

«A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação. Como todos sabem, uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão».

A especificação das «concretas provas» satisfaz-se com a indicação do conteúdo especifico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

Como pode ler-se no já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 05.01.2011:

« Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação.

Para atingir esse desiderato, aderimos à posição defendida no Acórdão de 14/7/2010, Processo n.º 508/07.7GCVIS.C1, deste Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt, onde se considera que o recorrente, a par da indicação das concretas provas, há-de proceder de uma das seguintes formas: - Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante; - Expor, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou - Situar objectivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas. Mas tal não basta. Na realidade, o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente obrigar o recorrente a relacionar o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado, conforme defende Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134/1135»

Tenhamos, ainda, presente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2002, proferido no Processo n.º 2124/02, (rel. Cons. Simas Santos) em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).
Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes
”.

Tudo o que vem de ser exposto significa, pois, que as menções exigidas pelo artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do CPP, não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto (cf. Ac. do TRC datado de 05.01.2011).

Se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação as especificações ordenadas pelos n.°s 3 e 4 do art.º 412.° do Código de Processo Penal, não há lugar ao convite a correção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite a correção das conclusões da motivação - Cf. Ac. do TRC, datado de 09.01.2012, proc. 7/10.0GAAVR.C1 (rel. Des. Alberto Mira).

Sendo o texto da motivação do recurso reservado aos respetivos fundamentos este é imodificável, e como tal, insuscetível de ser aperfeiçoado, pois tal implicaria um novo prazo para recorrer, com nova motivação e quiçá novos temas de impugnação coisa que não é possível, pelo que outra solução não pode deixar de ser que não a rejeição do recurso - Cf. Ac. do TRL datado de 05.04.2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9 (rel. Des. Filipa Costa Lourenço).

Dito isto.


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Alega a recorrente relativamente ao facto provado sob a alínea A) «(vis-a-vis, o texto do mesmo ítem da Pronúncia) (…) foi cometido erro de julgamento devendo ser dado como provado que «(…) a assistente, nos períodos temporais ali indicados desempenhou funções nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., sob as ordens, direção e fiscalização do respetivo Conselho de Administração e da Câmara Municipal ...».

Escreve-se sob a impugnada alínea A):

«A assistente BB desempenhou funções nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., os quais se integravam no Município ..., desde 15 de Setembro de 2009 e até 31 de Dezembro de 2017, durante o primeiro ano através do regime de POC (programa ocupacional) e depois, desde 15 de Setembro de 2010 a 14 de Fevereiro de 2011, através de um contrato de prestação de serviços, e a partir de 15 de Fevereiro de 2011 enquanto trabalhadora ao abrigo de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, com a categoria profissional de Técnica Superior - Engenheira Civil».

Ouvidas, neste Tribunal da Relação, as declarações da arguida e da assistente, e apreciado o teor de fls. 160 a 187, e em especial, 162 a fls. 175, não sofre dúvida que o fazia sob as ordens, direção e fiscalização sob as ordens, direção e fiscalização do respetivo Conselho de Administração e da Câmara Municipal ....

Esta matéria assume relevo ao precisar o contexto laboral dos factos.

Tudo ponderado, altera-se a alínea A) nos termos propugnados.

No entanto, como é patente, esta alteração não tem qualquer impacto, seja no enquadramento jurídico penal da conduta da arguida, seja nas consequências jurídicas do crime, seja na indemnização fixada.


*

Quanto à alínea B) dos factos provados, alega a recorrente que, atenta a prova documental e a demais produzida nos autos deve ser dado como provado que a assistente esteve afeta ao serviço de Manutenção e Exploração de Sistemas de Águas e Saneamento dos SMAS desde 20 de maio de 2013 até 31 de Dezembro de 2017.

É o seguinte o facto provado sob a alínea B):

«B) No âmbito das referidas funções, a assistente estava afecta ao serviço de Manutenção e Exploração de Sistemas de Água e Saneamento dos SMAS».
Na matéria importa considerar:
- A reorganização aprovada em Assembleia Municipal ... de 17 de dezembro de 2012, e publicada no Diário da República, 2ª série, n.º 91, de 13 de maio de 2013;
- A nova reorganização dos SMAS da Câmara Municipal ... aprovada e publicada nova Estrutura Orgânica no Diário da República, 2ª série, n.º 66, de 3 de abril de 2014, cfr. art.ºs 6.º e 7.º do Despacho 4846/014, D.R. , 2ª série, n.º 66, de 3 de abril de 2014 – fls. 520 v., dos autos;
- O teor de fls.523 e ss. dos autos.
Tudo ponderado, visando precisar o contexto laboral em que decorram os factos, e considerando a prova produzida, impõe-se a propugnada alteração.

No entanto, como é patente, esta alteração não tem qualquer impacto, seja no enquadramento jurídico penal da conduta da arguida, seja nas consequências jurídicas do crime, seja na indemnização fixada.


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No que respeita à impugnação da alínea E) não especificou a recorrente suporte probatório para a alegação de que a assistente não desempenhou as funções e tarefas em causa durante o período temporal referido na sentença, ou seja, desde 2009 até setembro de 2014, uma vez que os diferentes tipos de contrato que a assistente manteve ao longo do tempo e a estrutura orgânica da Organização SMAS em vigor não comportavam todas aquelas ditas funções.

Pelo que, nesta parte, nos termos do art.º 412 nº 3 al. b) do CPP, rejeita-se o recurso.


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            Considera o recorrente que deve ser retirada da factualidade provada, a matéria descrita sob a alínea F), cujo teor é o seguinte:

«A assistente sempre exerceu as funções inerentes à sua categoria profissional, de uma forma geral, com empenho, zelo, dedicação e competência».

Na matéria importa considerar que, foram instaurados três processos à assistente no ano de 2016, conforme consta de fls. 505 dos autos os quais, no entanto, vieram a ser arquivados por deliberação de 29 de dezembro de 2017, do Conselho de Administração dos SMAS.

Tal como alega a recorrente, encontra-se documentado nos autos e foi admitido pela assistente, a fls. 2 e ss da queixa crime e, por diversas vezes nas suas declarações, foi-lhe instaurado um processo disciplinar, pelo Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados da ..., em 31 de março de 2015, que resultou na aplicação de pena de suspensão de 90 dias, decisão tomada pelo Conselho de Administração em 3 de setembro de 2015.

No entanto, como se fez constar na motivação da sentença recorrida:

«Quanto àquilo que se deu como provado sob o item F), no sentido de que a assistente sempre exerceu as funções inerentes à sua categoria profissional, de uma forma geral, com empenho, zelo, dedicação e competência, não só entendemos que esse foi o entendimento por parte da generalidade da prova testemunhal que foi produzida com conhecimento a esse respeito, por terem trabalhado em conjunto com a assistente, como entendemos que tal asserção em nada é prejudicada pelo simples processo disciplinar que foi instaurado à assistente e que culminou na respectiva pena disciplinar de suspensão por 90 dias, conforme se encontra documentado a fls. 1026 a 1062, e muito menos pelos demais processos disciplinares em que a assistente foi igualmente visada nos SMAS e que foram instaurados entre 15 de Dezembro de 2016 e 16 de Janeiro de 2017, até porque estes últimos foram pura e simplesmente arquivados a 29 de Dezembro de 2017, conforme consta igualmente documentado a fls. 52 a 65, 505 a 518 e 527 a 539, e surgem já no contexto e no período de todos os demais factos aqui em causa».

Além das declarações da assistente, os depoimentos dos trabalhadores/responsáveis de KK, MM, TT, OO, e UU suportam a matéria impugnada.

Tudo considerado, concluímos que não se impõe a propugnada alteração.


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Alega a recorrente que devem ser retirados da matéria provada os factos descritos sob as alíneas G), H), J), L) cujos teores são respetivamente os seguintes:

«G) A assistente exerceu, na prática, as funções de Responsável pela mencionada Área de Manutenção e Exploração de Sistemas dos SMAS, desde 26 de Abril de 2013 até 3 de Fevereiro de 2015.

H) Desde 2009 e até Setembro de 2014, a assistente sempre desempenhou tarefas de acordo com o conteúdo funcional da respectiva categoria profissional.

J) Desde Setembro de 2014, a arguida, sem qualquer motivo legal e sem dar qualquer explicação, gradualmente foi retirando à assistente as funções próprias da sua categoria profissional e que a mesma tinha vindo a exercer até então, atribuindo-lhe apenas outras pequenas tarefas, em nada relacionadas com o conteúdo funcional da referida categoria»;

L) Desde a referida data de Setembro de 2014, a arguida passou, sem qualquer explicação, a atribuir as tarefas que a assistente vinha desempenhando a outras pessoas daqueles Serviços, de tal forma que as funções que a assistente dantes desempenhava, dentro da sua categoria, começaram a ser atribuídas pela arguida a outros funcionários ou prestadores de serviço que não detinham aquela categoria e que não eram qualificados da mesma forma, não tinham formação técnica nem legalmente as poderiam desempenhar, porque de competência reservada a profissionais de Engenharia Civil reconhecidos pela Ordem dos Engenheiros e pela Ordem dos Engenheiros Técnicos».

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Na matéria, a prova especificada pela recorrente que no sentido de que a «assistente reconheceu que até Fevereiro de 2015 assinava como responsável de área e assinava informações como técnica - (cfr.gravação 20220330150404_938535_3994045 minuto 4:26)», não impõe a pretendida alteração.

Até porque o que se provou foi uma retirada gradual de funções.

Atenta a suficiência do processo penal, o que se provou sob a alínea J) não sai contrariado pela p.i. (a fls. 159 a 177 v.º) apresentada no Tribunal Administrativo e Fiscal ... sob o nº 379/18.....

Concluímos que, neste segmento, improcede a defesa.


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            No entender da recorrente, ocorreu erro de julgamento relativamente à matéria provada sob a alínea M) cujo teor é o seguinte:

«M) E tudo isto sucedeu sem que alguma vez tivesse sido proferida ou comunicada à assistente qualquer deliberação do Conselho de Administração dos SMAS determinando a sua mobilidade ou a alteração das suas funções, o que a impediu de poder reagir formalmente contra a situação em que se viu colocada».

Sustenta a recorrente a impugnação em declarações da arguida e da assistente, nos depoimentos das testemunhas, e em prova documental.

Importa, no entanto, considerar que:

- Não resulta dos autos, designadamente do ofício datado de 22.12.2016, que se encontra nos autos, ter sido comunicada à arguida deliberação do Conselho de Administração dos SMAS determinando a sua mobilidade ou a alteração das suas funções;

- Os e-mails da assistente e as suas declarações produzidas em audiência não suportam a alegação de que tenha reagido «formalmente» contra a falta de atribuição de funções, impugnando a decisão administrativa.

Sendo, temos por evidente, o sentido que decorre da referida alínea E).

Pelo que, improcede a pretendida impugnação.


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Insurge-se a recorrente quanto à prova da matéria constante da alínea U), cujo teor é o seguinte:

«U) O assim descrito e praticado especificamente pela arguida e demandada perdurou pelo menos até 31 de Dezembro de 2017, altura em que os SMAS foram extintos e os respectivos serviços foram integrados na Câmara Municipal ..., com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2018, tendo então a assistente e demandante passado a encontrar-se ao serviço do Município ... e assim passado a exercer funções no Município».

Especifica a recorrente prova documental que, no seu entender, revela que a situação da assistente se prolongou para além de 2017 e continuou em 2018 (quando a arguida já não era superior hierárquica da assistente, dado que em 31 de dezembro de 2017 foram extintos os SMAS e passaram a trabalhar em Serviços e Unidades Orgânicas diferentes).

O que, alegadamente, demonstra que, ainda assim «a assistente – já fora da tutela hierárquica da arguida – continuou a reclamar que não lhe eram cometidas as suas funções, como resulta dos emails datados de 2018 constantes de fls 645, 645 v., 646, 646 v., 647, 647 v., 648, 648 v. e 649 dos autos, com o que fica assim demonstrado que a não atribuição de funções à assistente não foi da responsabilidade da arguida, porquanto, esta, já depois de ser inferior hierárquica da arguida continuou a não ver serem-lhe atribuídas funções».

Como é bom de ver, as condutas alegadamente praticadas por outrem não excluem a responsabilidade por aquelas que a demandada assumiu, e que resultaram provadas.

Concluímos que não se impõe a propugnada alteração.


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No entender da recorrente, deve considerar-se não provada a matéria dada como provada na alínea AC), cujo teor é o seguinte:

«A arguida estava ainda ciente da qualidade de funcionária pública da assistente e de que a mesma se encontrava no exercício das suas funções, bem sabendo também que atuava nos termos acima descritos aproveitando-se da autoridade que, na qualidade de Chefe de Divisão Geral dos SMAS da ..., sobre a mesma exercia, e que, não obstante, não possuía motivo legal para atuar como atuou».

Apela a recorrente a prova documental constante dos autos, designadamente «as comunicações enviadas por emails da assistente para o Senhor Presidente da Câmara ... e para o Presidente do Conselho de Administração dos SMAS, constantes de fls. 14., 16., 20., 23., 25., 622., 635, 635 v., 636, 636 v., 637, 637 v., 638., 638 v., 639. 640., 640 v., 641, 641.v, 642, 642v., 643, 643 v. 644, 644 v., (todos até ao final do ano de 2017), e depois, já em 2018, fls. 645, 645 v., 646, 646 v., 647, 647, 648, 648 v., 649, o que é confirmado pelas declarações da assistente, prestadas em audiência de julgamento (gravação 20220330154004_938535_3994045 minuto 19:25), e (20220330154004_938535_3994045 minuto 20:44)».

Novamente, as condutas alegadamente praticadas por outrem não excluem a responsabilidade por aquelas que a demandada assumiu, e que resultaram provadas.

Concluímos que não se impõe a propugnada alteração.


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No entender da recorrente deve ser retirado da factualidade provada e aditada à não provada a matéria da alínea AD), cujo teor é o seguinte:

«A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal».

Alega que os factos provados sob o item AD), tem de ser retirados da matéria dada como provada considerando que:

- À data do início dos factos não existiam nem a norma do art.º 154.-A, nem a atual redação do art.º 155.º nº1, b, ambos os artigos do Código Penal;

- A arguida não é jurista;

- Os superiores hierárquicos da arguida tomaram conhecimento da conduta da arguida, através das comunicações que, com frequência (primeiro semanal, depois, várias vezes por        semana           e,         posteriormente           diária, (cfr.     gravação 20220330150404_938535_3994045, minuto 20:44) a assistente lhes dava, por email´s, em reuniões com o Presidente do Conselho de Administração e com o Presidente da Câmara Municipal ... e, depois, através do próprio Sindicato         (cfr.     gravação 20220330150404_938535_3994045, minuto 32:03, 32:03, 32:24 e 32:26 da gravação) e nunca, nenhuma destas entidades considerou nem comunicou à arguida que a sua conduta integrava a prática de crime, (nem aquele por que foi condenada nem qualquer outro), ou qualquer outra atuação ilícita.

Vejamos.

Nada permite concluir que a arguida, como cidadã comunitariamente e profissionalmente inserida e no uso das suas faculdades, não tenha agido livre, voluntária e conscientemente.

O comportamento de outrem - a alegada omissão de outras entidades perante as comunicações da ora assistente - não afasta a ilicitude conduta da arguida.

O conhecimento da ilicitude da conduta decorre de um juízo de experiência e razoabilidade face ao comportamento objetivo provado, e à inserção comunitária e profissional da arguida.

A data do início dos factos não tem de coincidir com a data do início do crime.

Naturalmente que, o crime e o conhecimento da ilicitude criminal da conduta adotada reporta-se ao início da vigência do art.º 154.º A e a atual redação do art.º 155.º nº1, b, ambos os artigos do Código Penal.

Concluímos, neste segmento, pela improcedência do recurso.


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Alega a recorrente que se verifica contradição na decisão da Factualidade Provada sob as alíneas G), H), I), J), L).

No entender da recorrente, é contraditório

- julgar como provado que “G) A assistente exerceu, na prática, as funções de Responsável pela mencionada Área de Manutenção e Exploração de Sistemas dos SMAS, desde 26 de Abril de 2013 até 3 de Fevereiro de 2015.”; H) Desde 2009 e até Setembro de 2014, a assistente sempre desempenhou tarefas de acordo com o conteúdo funcional da respectiva categoria profissional; I) Em Abril de 2014, a arguida AA passou a exercer funções de Chefe de Divisão Geral dos referidos SMAS, e nessa qualidade passou por isso a desempenhar funções de superior hierárquica da assistente;
- e, depois, julgar como provado que “J) Desde Setembro de 2014, a arguida, sem qualquer motivo legal e sem dar qualquer explicação, gradualmente foi retirando à assistente as funções próprias da sua categoria profissional e que a mesma tinha vindo a exercer até então, atribuindo-lhe apenas outras pequenas tarefas, em nada relacionadas com o conteúdo funcional da referida categoria.” e ainda que “L) Desde a referida data de Setembro de 2014, a arguida passou, sem qualquer explicação, a atribuir as tarefas que a assistente vinha desempenhando a outras pessoas daqueles Serviços”.
A defesa da recorrente poderia (quando muito) enquadrar-se na alínea b) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, na parte em que prevê a contradição insanável na fundamentação, por a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidenciar premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis.
Concretamente por se terem dado como simultaneamente provados factos manifestamente inconciliáveis.
No entanto, no caso, tendo presente que a retirada de funções foi gradual, não se vislumbra qualquer contradição, entre os factos ora em apreço.
Concluímos que, neste segmento, improcede o recurso.


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Alega a recorrente ser contraditória a matéria sob as alíneas M) e O).

Ora, são os seguintes os teores das alíneas:

«M) E tudo isto sucedeu sem que alguma vez tivesse sido proferida ou comunicada à assistente qualquer deliberação do Conselho de Administração dos SMAS determinando a sua mobilidade ou a alteração das suas funções, o que a impediu de poder reagir formalmente contra a situação em que se viu colocada»;

«O) A assistente opôs-se a tal situação por parte da arguida, reiterando que lhe incumbia desempenhar as funções de Técnica Superior – Engenheira Civil, na área de Manutenção e Exploração de Sistemas dos SMAS, tendo solicitado à arguida que a ordem para desempenhar outras tarefas ou serviços lhe fosse dada por escrito, o que nunca sucedeu, pois sempre que a assistente solicitou à arguida que as ordens lhe fossem dadas por escrito, isso foi-lhe recusado expressamente».

Entendemos que não se verifica qualquer contradição, tendo presente que a assistente apenas informalmente logrou opor-se à situação criada pela arguida, uma vez que não pôde lançar mão de qualquer mecanismo legal previsto no direito administrativo-laboral, por falta de deliberação do Conselho de Administração decidindo pela alteração/retirada de funções.
Concluímos, neste segmento, pela improcedência do recurso.

Alega, ainda a recorrente haver contradição da matéria provada sob a alínea P), e que tem por assente, com a imputação à arguida dos atos descritos sob as alíneas J), L) M), N), O), Q), R), S), T), U), V), X) e Z).

É o seguinte o teor da alínea P):

«A assistente procurou junto do Conselho de Administração dos SMAS e, bem assim, junto do Sr. Presidente da Câmara Municipal ..., chamar a atenção para a situação profissional vivida e para a resolução da mesma, pois tratava-se de uma Técnica Superior a quem não era permitido desempenhar as suas funções, mas nunca foi colocado termo à situação que a assistente vivia».
A defesa da recorrente poderia enquadrar-se na alínea b) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, seja na parte em que prevê a contradição insanável na fundamentação, por a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidenciar premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis, seja na parte em que se prevê a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
Concretamente por se terem dado como simultaneamente provados factos manifestamente inconciliáveis.
Ou por nos encontrarmos perante factos provados que colidem com a fundamentação da decisão.
Considerando, no entanto, que a falta de tomada de posição por outrem não fasta a adoção dos comportamentos pela arguida não se verifica qualquer contradição.
Concluímos que, também neste segmento, improcede o recurso.


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            Tendo presente a decisão fática que se encontra consolidada (e a irrelevância das alterações a que se procedeu nesta Relação) vejamos agora do enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida, das consequências jurídicas do crime, e do montante da indemnização a fixar.

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5. Do enquadramento jurídico penal

A arguida AA foi condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de perseguição agravada, previsto e punido pelos artigos 154º-A, n.º 1, e 155º, n.º 1, als. c) e d), do Cód. Penal.

Relembremos que a matéria imputada, tal como se encontra descrita na pronúncia, constitui o objeto do processo.

Esta a factualidade, na medida em que resultou provada, é a que releva para efeitos da responsabilidade criminal da arguida.

E, a mesma, reconduz-se, no essencial, a ter a ora arguida, na qualidade de superiora hierárquica, ao longo de cerca de 1 ano, 3 meses e 26 dias, esvaziado progressiva e injustificadamente de funções a assistente, com o propósito concretizado de assediá-la, encontrando-se ambas, arguida e assistente em funções públicas.

Em conformidade com o disposto no art.154º-A, nº1 do C.P. (aditado pela Lei nº83/15, de 5 de agosto, com entrada em vigor a partir de 04.09.2015), comete o crime de perseguição: «Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal».

O crime de perseguição encontra-se inserto no capítulo IV do Título I (crimes contra as pessoas) da parte especial do CP, que elenca os crimes contra a liberdade pessoal.

«O bem jurídico protegido pela incriminação é a liberdade de decisão e ação de outra pessoa. O crime de perseguição é um crime abstrato-concreto (quanto ao bem jurídico) e de mera conduta (quanto ao objeto da ação) (…). A expressão legal «de forma adequada a» significa que o ato de perseguição deve ser apto, numa perspetiva ex ante, de prognose póstuma, a criar perigo para o bem jurídico protegido pela norma, devendo ser feita prova em tribunal da potencialidade da ação causar a lesão» - Cf. Albuquerque, Paulo Pinto, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, p. 663, 2.

«O tipo objetivo consiste na perseguição ou no assédio de outra pessoa, desde que praticado de modo reiterado. Trata-se de um crime de execução livre («por qualquer meio»). Atenta a natureza do crime não é aplicável a teoria da adequação, mas o ato tem de ser «adequado» a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do destinatário. Isto é, não necessário que o destinatário tenha efetivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade. Basta que o ato tivesse essa potencialidade» - Cf. Albuquerque, p. 663, 2 e 3.

O crime de perseguição assume a natureza de crime de mera atividade.

O tipo não pressupõe uma lesão efetiva (resultado), mas sim uma série de comportamentos que, por si, e no contexto envolvente, visam lesar a liberdade de outrem.

As condutas isoladamente consideradas podem não ferir qualquer bem jurídico.

«No entanto, pela persistência com que são praticadas, podem tornar-se intimidatórias e perturbadoras, causando um enorme desconforto na vítima e atentando contra a reserva da vida privada e liberdade de determinação pessoal desta» - Cf. Acórdão da Relação de Lisboa proc. 1709/16.2 PBR.L1-9, rel. Des. Filipa Costa Lourenço.

A conduta típica consiste em reiteradamente perseguir ou assediar outra pessoa, «de forma adequada» a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

Apela-se à objetividade do homem médio para aferir se a conduta é adequada a produzir a lesão, segundo o juízo de um homem comum, invocando-se, ainda a individualidade das circunstâncias concretas que norteiam o ilícito, mormente as personalidades de agressor e vítima, e o relacionamento entre ambos.

No que concerne ao elemento subjetivo, este tipo de crime dolo, este tipo só pode ser cometido dolosamente, podendo o dolo revestir qualquer uma das modalidades (direto, necessário e eventual) previstas no artigo 14º do Código Penal.

É certo, que dos trabalhos preparatórios da Lei n.º 83/2015, de 05 de agosto (que alterando o Código Penal criou o novo crime de perseguição) resulta que fonte do art.º 154º-A, nº 1 do CP, foi a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul.

Dispõe esta Convenção, no seu art.º 34.º dispõe que «As partes deverão adotar as medidas legislativas ou outras que se revele necessárias para assegurar a criminalização da conduta de quem intencionalmente ameaçar repetidamente outras pessoas, levando-a a temer pela sua segurança».

No entanto, a alteração Código Penal, com o aditamento ao artigo 154.ºA, foi além da Convenção de Istambul, cumprindo o desiderato de aperfeiçoar normativamente a resposta do sistema a situações de assédio em contexto laboral.

É o que permite a letra da lei, que nos art.º 154.º A prevê a incriminação de quem «por qualquer meio» e «de forma adequada» «a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação» «assediar outra pessoa».

Encontrando-se, por outro lado, juridicamente definido o assédio, no n.º 1 do art.º 29.º do Código do Trabalho, na redação inicial (da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, vigente quando foi aditado o art.º 154.ºA ao Código Penal), a que atualmente corresponde o n.º 2 do mesmo artigo 29.º (na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 73/2017, de 16 de agosto) como:

«o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradado, humilhante ou desestabilizador».

Aliás, na exposição de motivos do projeto de Lei n.º 371/XIII/2.ª que veio a ser acolhido nos atuais n.ºs 4 e 5 do art.º 29.º do Código do Trabalho, pode ler-se o seguinte (sendo nosso o sublinhado):

«É fundamental que se crie socialmente a convicção de que todos temos a responsabilidade de garantir e manter um ambiente de trabalho digno, rejeitando e denunciando qualquer situação de assédio de que sejam vitimas ou tenham tido conhecimento.

Cabe, pois, ao legislador, face às diferentes análises e resultados, procurar o aperfeiçoamento de soluções normativas que revelem insuficiências e, mais ainda, quando se trata, como é o caso, de uma causa justa e necessária.

Foi, aliás, cumprindo esse desiderato, que a alteração ao Código Penal prevista na Lei n.º 83/2015, de 05 de agosto, criou o novo crime de perseguição que vem punir «quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação».

Assim, relativamente ao Código do Trabalho, reformula-se os n.os 3 e 4 do artigo 29.º evidenciando de forma mais explícita e direta na respetiva redação que a prática de assédio confere o direito a indemnização, constitui contraordenação muito grave e que, em função das circunstâncias, pode constituir um ilícito penal.

(…)

Na área da administração pública, clarifica-se e reforça-se, na respetiva redação, que o regime de assédio do Código do Trabalho se aplica, por remissão do artigo 4.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, às trabalhadoras e trabalhadores das entidades públicas (…)».

A prática de assédio constitui contraordenação muito grave e que, em função das circunstâncias, pode constituir um ilícito penal (art.º 29.º n.º 3 do Código do Trabalho).

Como seja, pelo preenchimento dos elementos típicos do crime de perseguição.

Designadamente, nas situações como as descritas na pronúncia, em que o superior hierárquico nem sequer é responsável pela contraordenação (551.º do Código do Trabalho).

Sintetiza-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 11.09.2019, no processo n.º 8249/16.8T8PRT.P1.S1 (rel. Cons. Ferreira Pinto), o que será de considerar assédio moral em contexto de trabalho.

Assim: «parece poder considerar-se, com o contributo das várias áreas que estudam o fenómeno e do significado das várias denominações que lhe foram atribuídas a nível dos vários países, como assédio moral a exposição dos trabalhadores a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante o trabalho, sendo que em consequência desta conduta, a vítima é isolada do grupo, passando a ser hostilizada, ridicularizada, inferiorizada e culpabilizada diante dos seus colegas de trabalho.

A humilhação deve ser, pois, repetitiva e duradoura e ter um forte impacto na vida do trabalhador, acabando por comprometer a sua dignidade enquanto pessoa, a sua identidade, a sua capacidade de trabalho e o desenvolvimento das suas relações afetivas e sociais.

Trata-se de um sentimento que a vítima tem de ser ofendida, menosprezada, rebaixada, inferiorizada, e vexado pelo outro, causando-lhe, por isso, dor, tristeza e sofrimento e ocasionando-lhe graves danos à sua saúde física e mental.

Na maioria das vezes, a finalidade do assédio moral, consiste em tornar a relação da vítima com o ambiente do trabalho penosa e insuportável até a levar a apresentar a resolução do seu contrato de trabalho ou até mesmo abandonar o seu do posto de trabalho».

Citando Júlio Manuel Vieira Gomes (Direito do Trabalho, volume I – Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, páginas 428 a 442), escreve-se no referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 11.09.2019:

«mobbing ou assédio moral ou, ainda, como por vezes se designa, terrorismo psicológico, parece caracterizar-se por três facetas: a prática de determinados comportamentos, a sua duração e as consequências destes»

Quanto aos comportamentos em causa, refere que “para LEYMANN, tratar-se-ia de qualquer comportamento hostil. Para HIRIGOYEN, por seu turno, tratava-se de qualquer conduta abusiva manifestada por palavras (designadamente graçolas), gestos ou escritos, silêncios sistemáticos e muitos outros comportamentos humilhantes ou vexatórios. Daí a referência a uma polimorfia do assédio e, por vezes, a dificuldade em distingui-lo dos conflitos normais em qualquer relação de trabalho. Como veremos, tais comportamentos são, frequentemente, ilícitos mesmo quando isoladamente considerados, mas sucede frequentemente que a sua ilicitude só se compreende, ou só se compreende na sua plena dimensão, atendendo ao seu carácter repetitivo. E esta é a segunda faceta que tradicionalmente se aponta no mobbing: o seu carácter repetitivo.

A terceira nota característica do assédio, pelo menos para um sector da doutrina, consiste nas consequências deste designadamente sobre a saúde física e psíquica da vítima e sobre o seu emprego. O assédio pode produzir um amplo leque de efeitos negativos sobre a vítima que é lesada na sua dignidade e personalidade, mas que pode também ser objeto de um processo de exclusão profissional, destruindo-se a sua carreira e mesmo acabando por pôr-se em causa o seu emprego, quer porque a vítima de assédio acaba por ser despedida sem genuína justa causa, quer porque o assédio a conduz a, ela própria, fazer cessar o contrato de trabalho. Mas a vítima sofre tipicamente outros danos de natureza pessoal, dando mostras de ansiedade e entrando frequentemente em situações de depressão, ocorrendo nos casos mais extremos, suicídios ou tentativas de suicídio. Frequentemente, também, o assédio conduz a vítima a uma acentuada perda de autoestima. Os sintomas do assédio, as consequências deste na personalidade da vítima com as consequentes mudanças comportamentais por parte da vítima levam frequentemente a que a própria vítima se transforme em bode expiatório e seja designada como responsável pela situação.

A pessoa perseguida e angustiada passará a ser frequentemente menos produtiva, mostrará uma maior propensão para cometer erros, dará mostras de maior absentismo – tudo circunstâncias que poderão ser utilizadas contra ela em eventuais procedimentos disciplinares. Em certos casos, aliás, o assédio não terá nascido espontaneamente; com efeito, algumas empresas parecem lançar mão de um assédio estratégico, mais ou menos generalizado».

A matéria provada, no que ora releva, seria, porventura, suscetível de ser enquadrada como uma situação de assédio laboral, nos termos do n.º 1 do art.º 29.º do Código do Trabalho.

Na verdade, encontramos descrito:

a) - Um comportamento de assédio - e não um ato isolado - indesejado que representa um prejuízo injusto para a vítima (esvaziamento progressivo de funções, sem razão objetiva);

b) - Uma intenção de, com esse comportamento, exercer pressão moral sobre o outro, desconsiderando a situação de menor resistência que advém da subordinação hierárquica, em contexto laboral;

c) - A adequação desse comportamento e efeitos perturbadores, constrangedores, atentatórios da dignidade ou geradores de clima social negativo para o destinatário (à margem todos os comportamentos integráveis em padrões de normalidade no contexto social concreto);

d) - Um objetivo final ilícito ou eticamente reprovável, consistente na observação de um efeito psicológico na vítima, desejado pelo assediante (submissão total à vontade do assediante).

Consabidamente, o esvaziamento progressivo de funções pode configurar situação de assédio laboral - v. a título de exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 18.12.2018, no processo 4881/16.8T8MTS.P2 (rel. Des. Nelson Fernandes), e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 05.03.2020, no proc. 834/19.2T9VRL.G1 (relatado pela Des. Vera Sottomayor), e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 12.09.2018, no proc. 683/17.2T8Mr.2 (relatado pela Des. Paula do Paço) - suscetível de fazer incorrer o seu autor em responsabilidade contraordenacional, presentes que se encontrem os restantes requisitos.

Sem prejuízo, importa considerar que a responsabilidade pela contraordenação laboral, nos termos do art.º 551.º n.º 1 do Código do Trabalho recai sobre o empregador, ainda que praticada pelos seus trabalhadores no exercício das respetivas funções.

Encontra-se, portanto, afastada a eventual responsabilidade contraordenacional da arguida, tendo presente a conduta narrada na pronúncia e que resultou provada.

Tal não significa, no entanto, que o injustificado esvaziamento progressivo de funções seja permitido enquanto exercício legítimo e regular do poder hierárquico.

Permitindo, antes, a subsunção ao tipo do crime previsto no art.º 154.º A do Código Penal.

Efetivamente, provou-se que a arguida, na qualidade de superiora hierárquica, ao longo de cerca de um ano, 3 meses, e 27 dias, injustificadamente, e sem qualquer explicação, esvaziou gradualmente de funções a assistente.

Ou seja, de um modo reiterado a arguida assediou diretamente a assistente.

Trata-se de conduta adequada a provocar-lhe medo, inquietação, e a prejudicar a sua liberdade de determinação, tanto mais, que se provou que:

- Não foi apresentada qualquer explicação à assistente para a retirada gradual de funções próprias da sua categoria;

- A arguida, também sem qualquer explicação, passou a atribuir as tarefas que a ora assistente vinha desempenhando a outras pessoas dos mesmos Serviços;

- Desde pelo menos janeiro de 2017, a arguida, deixou de atribuir a BB quaisquer funções, quer da sua categoria profissional quer de outra, sem informá-la do respetivo motivo ou de qualquer deliberação nesse sentido, recusando dar ordens por escrito, apesar de solicitado por aquela.;

- O descrito perdurou até 31 de dezembro de 2017;

- Nesse período, a ora assistente, por indicação da arguida, deixou de ser convocada para reuniões de trabalho, deixou de receber processos administrativos para tramitar e emitir pareceres ou informações técnicas, apesar de aquela continuar a comparecer no respetivo local de trabalho e de cumprir o seu horário de trabalho;

- Nesse período e em consequência da atuação da arguida, BB passava os dias de trabalho sentada na sua secretária, sem efetuar qualquer tipo de tarefas, apesar de a mesma as solicitar àquela.

Também se encontra descrito que a arguida agiu com o propósito concretizado de assediar a assistente, sabendo que a intimidava, diminuía, humilhava e amedrontava, segregava profissionalmente, molestava na sua dignidade pessoal e na sua saúde psíquica, lhe causava medo e inquietação e prejudicava a sua capacidade de tomar decisões livremente, nomeadamente quanto à sua permanência nos Serviços, resultados estes que representou.

Invoca a recorrente que se verifica erro sobre as proibições, nos termos do n.º 1 do art.º 16.º do Código Penal.

Ora, provou-se que a arguido agiu ciente da ilicitude pena da sua conduta.

Ainda que assim não fosse, apenas quando o conhecimento da proibição legal seja razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar conhecimento da ilicitude do facto, o erro sobre as proibições legais exclui o dolo.

O erro sobre as proibições é aplicável, desde logo, «no âmbito do ilícito de mera ordenação social, mas também em algumas áreas do direito penal secundário, devido à irrelevância ou ténue relevância axiológica da conduta nestes campos». «Mas é também assim mesmo no campo do direito penal de justiça, quando o bem jurídico protegido pela norma não tenha «ainda sido nitidamente protegido pela comunidade e pela consciência de valores» - Cf. Albuquerque, Comentário …, p. 175, 10-176, 11.

Ora, no caso dos autos, encontramo-nos perante direito penal de justiça, e o bem jurídico tutelado pela incriminação encontra-se nitidamente sedimentado na comunidade e na sua consciência de valores.

Concluímos que arguida agiu dolosamente (art.º 14.º do CP), não assistindo razão, também, neste segmento do recurso, à recorrente.

E, manifestamente, e ao contrário do entendimento da recorrente, o crime foi cometido contra a assistente, no exercício de funções públicas, justificando-se a agravação da alínea c) do n.º 1 do art.º 155.º do CP pela especial relevância social da vítima.

Por outro lado, o crime foi cometido por funcionária no exercício de funções, no que não pode deixar de constituir um abuso grave de autoridade que justifica a agravação da alínea d) do art.º 155.º do CP, na medida em que, como é o caso, a finalidade do assédio foi egoísta e alheia às funções da arguida, que abusou dos poderes de que se encontrava investida, com finalidade egoísta (o propósito concretizado de perseguir e de assediar moralmente a assistente).

Relativamente à invocação do disposto no n.º 3 do art.º 115.º do Código Penal, não nos merece censura o que se escreve na sentença recorrida, e que passamos a citar:

«(…) não é verdade que o procedimento criminal pelo presente crime de perseguição pelo qual a aqui arguida se encontra pronunciada dependa de queixa, na medida em que não se trata aqui apenas da sua forma simples prevista no artigo 154º-A, n.º 1, do Cód. Penal, e cujo n.º 5 faz depender o procedimento criminal de queixa, mas trata-se, sim, da sua forma agravada prevista também no subsequente artigo 155º, n.º 1, als. c) e d), do mesmo Código. Entendemos que esta forma agravada se reveste já de natureza pública, exactamente nos mesmos termos em que a vasta e esmagadora maioria da jurisprudência dos nossos tribunais superiores já se pronunciou a respeito da natureza também pública do crime de ameaça agravada, conforme é previsto e punido pelos artigos 153º e 155º do mesmo Cód. Penal. Em face disto, cai logo pela base esta argumentação deduzida pelo ilustre mandatário da arguida e aqui em causa.

De todo o modo, mesmo que assim não fosse e sem prescindir, mais se dirá que não existe qualquer factualidade provada (nem ela foi expressamente alegada por qualquer sujeito processual) que permitisse concluir no sentido de que existiria qualquer espécie de comparticipação da aqui arguida com mais quem quer que seja. Se em face da prova produzida se entendesse que a arguida agiu com a conivência de um superior hierárquico seu, neste caso do Presidente do Conselho de Administração dos SMAS da ..., na medida em que este último ia tendo conhecimento dos factos por via de queixas sucessivas que a assistente também lhe dirigia e nada fez para os impedir, ainda assim apenas poderia existir, quando muito, uma eventual responsabilidade autónoma por omissão por parte desse superior da aqui arguida, e não uma qualquer relação de comparticipação com esta última».

Do exposto se conclui que a arguida cometeu em autoria material e na forma consumada, um crime de perseguição agravada, previsto e punido pelos artigos 154º-A, n.º 1, e 155º, n.º 1, als. c) e d), do CP, sem que se verifiquem, nem erro sobre as proibições, nem a extinção do direito de queixa invocados pela recorrente.

Concluímos que, também quanto ao enquadramento jurídico não nos merece censura a sentença recorrida, improcedendo, ainda neste segmento o recurso.



            6. Das consequências jurídicas do crime

                 No entender da recorrente, o Tribunal recorrido errou, ainda:

                 - Ao escolher a pena de prisão, ao invés de multa (art.º 70.º do Código Penal);

                 - Quando impôs como condição de suspensão a obrigação de a arguida não assumir profissão ou cargo que lhe determine relação de superioridade hierárquica em relação à assistente atento o disposto no art.º 51.º n.º 2 do CP).

                 Vejamos.

                 Em primeiro lugar, constata-se que o crime (na forma agravada) não prevê a pena de multa, pelo que ao Tribunal recorrido restaria, como o fez aplicar a prisão, a título de pena principal.

                 No que se refere à condição de suspensão, alega a recorrente que «não está na livre disponibilidade da condenada, aqui recorrente, ficar colocada em situação de superior hierárquica da assistente:

                 - Poderá ser a assistente a colocar-se num lugar de inferioridade hierárquica em relação à arguida, sem que para isso tenha qualquer intervenção, para, logo esta não poder cumprir, (por facto que apenas é imputável à assistente,) com a obrigação que foi imposta à arguida;

                 - Noutra perspetiva, bastará que os Serviços procedam a uma alteração orgânica, resultado da qual a arguida fique colocada numa relação de superioridade hierárquica em relação à assistente, ou vice-versa, para que logo a arguida não possa cumprir (por facto apenas imputável à eventual nova orgânica dos serviços) com a obrigação que lhe foi imposta.

                 Entendemos, no entanto, que o cumprimento da condição de suspensão fixada pelo Tribunal recorrido pressupõe que seja a arguida a «assumir», ou seja, por ato de vontade própria, profissão ou cargo que lhe determine relação de superioridade hierárquica em relação à assistente.

                 Portanto, a condição fixada não contempla, nem está pensada para os casos exemplificados pela recorrente, dependentes, estes, seja da vontade da assistente, seja de deliberação superior.

                 Em suma:

                 O tipo agravado cometido pela arguida não prevê a pena de multa como pena alternativa à pena de prisão.

                 A condição fixada para a suspensão não contempla condutas que não se encontrem na disponibilidade da recorrente.

                 Concluímos que, também aqui, improcede a defesa da recorrente.

                 Resta apreciar a 7.ª e última questão suscitada pelo Recurso.


*

7. Dos montantes indemnizatórios fixados pelos danos não patrimoniais causados

Analisando o recurso consta-se que, a recorrente requer a absolvição alegando que:

1 - O pedido civil deduzido nos presentes autos mais não é do que a repetição, quer quanto às causas quer quanto aos efeitos e danos, do pedido de indemnização que a assistente deduz, na ação nº 379.18.8BECTB, matéria sobre a qual já nos pronunciamos para concluir pela falta de identidade de causa;

2 - Não se encontra demonstrada a ilicitude da atuação da recorrente, tendo nós concluído que a conduta da demandada é ilícita (criminalmente);

Insurge-se, ainda, a recorrente contra a falta de fundamentação quanto à prova dos danos patrimoniais, questão esta relativamente sobre a qual já nos pronunciamos, considerando improcedente, nesse segmento a defesa.

Resta-nos apreciar se, como entende a recorrente, o montante fixado a título de danos não patrimoniais é exagerado.

Vejamos.

Indemnizáveis são os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (art.º 496.º do Código Civil).

Se não pude ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (art.º 566.º n.º 3 do Código Civil).

O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, designadamente, o grau de culpabilidade do agente (art.º 494.º do Código Civil).

Como alega a recorrente, não se provaram relevantes danos não patrimoniais - cf. factos não provados sob os n.ºs 1 a 15 - que a demandante invocou no seu requerimento de indemnização cível, no qual pediu, a título de indemnização por danos não patrimoniais, € 14 500,00.

Os danos não patrimoniais sofridos e que resultaram provados, falam por si.

Provou-se, designadamente, que a demandante sofreu:

- Progressivo isolamento perante colegas de trabalho, causador de frustração e vezame;

- Sentimentos de medo por passar dias sem trabalhar, receando que lhe abrissem processos disciplinares por estar na internet ou por ler um livro, ou por qualquer outro motivo;

- Ansiedade extrema, diarreia, preocupações, stress, transtornos, frustração, revolta, indignação, crescente mal-estar, tristeza, angústia e perda de auto-estima, causados, bem como o sentimento que fora ostracizada e que não tinha valor algum;

  Sentindo que era uma incompetente, uma inútil, uma burra, uma ignorante, assim como que era uma má pessoa, que não valia nada, que devia ser doida, que ela é que estava mal e que não tinha perfil para estar na função pública;

- Por a situação profissional que foi causada à demandante pela demandada foi tema de conversa de muitos dos seus colegas de trabalho, que nela viam uma clara e evidente punição pela manifestação de divergências com a demandada;

- Sentindo-se envergonhada e marginalizada por muitos colegas seus que se afastaram de si, deixando de lhe falar com medo de represálias por serem vistos a falar consigo, pois muitos deles consideravam desaconselhável a manutenção de quaisquer contactos com a demandante por isso poder ser interpretado como eventual discordância para com a demandada e dirigente máxima dos serviços, criando um inevitável estigma, fazendo com que a demandante se sentisse sozinha e isolada no local de trabalho durante estes anos aqui em causa e fazendo-a sentir-se a pior pessoa do mundo.

- Por sentir que a sua carreira profissional deixara de existir, pois não estava a exercer a sua profissão nem a concretizar o sonho que já foi concretizável e que a satisfazia profissionalmente e pessoalmente, que era alcançar na Ordem dos Engenheiros o grau de Membro Especialista na área de Hidráulica, objectivo esse que já podia ter alcançado anteriormente se a demandada não lhe tivesse retirado e interrompido o exercício da sua profissão e funções;

- Impacto negativo no relacionamento familiar da demandante, uma vez que estes factos provocaram uma alteração na sua personalidade, passando a demandante a revelar menor tolerância às contrariedades do dia-a-dia, irritabilidade fácil, alienação e isolamento;

- Ao ficar mais introvertida, mais fechada e distante das pessoas, ao ficar mais isolada, pois deixou de sair de casa porque tinha vergonha do que lhe estava a acontecer e de ter vida social, por achar que não valia nada e que era uma má pessoa que não interessava a ninguém e que merecia mesmo o isolamento.

- Um esgotamento emocional, com insónias, dores de cabeça, nervosismo, dificuldades de concentração e da memória, estado de fadiga constante e sentimento de cansaço ao acordar sem vontade e motivação de se levantar para ir trabalhar, assim como passava o dia no trabalho cansada, com sono, pois era com muito esforço que se conseguia manter acordada no local de trabalho, e ao chegar a casa adormecia logo mesmo sentada numa cadeira.

- Anos de desalento em face da conduta da aqui demandada, continuando ainda hoje a recuperar do transtorno emocional sofrido.

- Transtorno emocional o que fez com que ganhasse cerca de 20kg de peso, o que deitou ainda mais abaixo a sua auto-estima, sentindo que se ela própria não gostava do que via ao espelho, também ninguém gostaria, tendo-se isolado ainda mais e a sua vida se tendo restringido assim a trabalho / casa /trabalho.

- Ao começar a duvidar das suas capacidades, se teria condições para aguentar o dia-a-dia a viver sozinha, já que naquela altura estava a comprar casa e iria sair de casa dos pais, tendo pensado muitas vezes em desistir já com as obras quase concluídas.

- Acabando por se mudar para a sua casa, mas passou assim a estar sozinha 24 horas por dia, o que fez com que não houvesse ninguém a fazer-lhe companhia após o horário de trabalho, para que a mente pudesse abstrair-se do clima penoso que vivia no local de trabalho, o que fez com que sentisse grande solidão e se isolasse ainda mais no seu canto.

- Tendo que recorrer a tratamento psiquiátrico e psicológico para a ajudar a lidar com o que lhe estava a suceder, que culminaram em depressão e em pensamentos suicidas que teve, para assim terminar com o sofrimento por que estava a passar e a causar também à sua família.

O quantum da indemnização por danos não patrimoniais não deve ser simbólico, mas significativo, visando propiciar compensação quanto ao dano sofrido, com fixação equilibrada e ponderada, de acordo com critérios de equidade.

Ora, os danos psicológicos infligidos à demandante são de uma gravidade significativa.

Por outro lado, o tempo durante o qual foram produzidos tais danos também se mostra de evidente significado.

A ilicitude é elevada (a conduta assume relevância criminal).

A culpa - dolosa - é intensa.

Tendo em conta o elevado grau de ilicitude e de culpa, a duração da situação de inatividade, não nos merece censura, por equitativo o montante de € 10 000,00 fixado.

Concluímos, também, relativamente à questão dos montantes indemnizatórios fixados pelos danos não patrimoniais causados pela improcedência do recurso.


Por fim, de todo o exposto resulta que não vislumbramos as invocadas violações princípio da legalidade da intervenção penal, (art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa) designadamente nos seus corolários de “nullum crimen sine legem” (art.º 29.º n.º1 da CRP) e de “nulla poena sine lege”,(art.º 29.º nºs 3 e 4 da CRP), do princípio do “in dubio pro reo”, (art.º 32º n.º2 da CRP), e do art.º 7.º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.


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IV. DISPOSITIVO

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Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar:

1. Improcedente o recurso do despacho de 05.11.2021, mantendo a decisão recorrida.

2. - Improcedente o recurso da sentença, mantendo a sentença recorrida.

Custas do recurso do despacho datado de 05.11.2021, pela recorrente, fixando-se em 3 Uc´s (art.º 513.º do CPP).

Custas do recurso da sentença pela recorrente, fixando em 4 UC´s a taxa de justiça (art.º 513.º do CPP).


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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

Coimbra, 12 de abril de 2023

Alexandra Guiné (relatora)

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (adjunta)

João Novais (adjunto)