Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
611/21.0T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: NEGLIGÊNCIA MÉDICA
ACOMPANHAMENTO DA GRAVIDEZ
ECOGRAFIAS FETAIS
NÃO DETEÇÃO DE MALFORMAÇÕES CARDÍACAS
DANO NÃO PATRIMONIAL
DEVER DE INDEMNIZAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, N.º 1, 487.º, N.º 2, 563.º, E 799.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Não tendo o médico especialista, que acompanhou a gravidez – âmbito em que realizou as ecografias fetais que considerou adequadas –, detetado as malformações existentes do coração do feto, e não tendo, em consequência, informado a grávida de tal deficiência, quando podia e devia fazê-lo, dando-se o nascimento sem que aquela (mãe) soubesse dessas malformações, pelo que invoca danos não patrimoniais sofridos por causa da morte da filha, ocorrida posteriormente ao nascimento, e por causa dos padecimentos e agonia da criança, é de concluir que o médico cumpriu defeituosamente os seus deveres de vigilância médica da gravidez e que, por aplicação do n.º 1 do art.º 799.º do Código Civil, se presume que esse cumprimento defeituoso procede de culpa sua, presunção que aquele não afastou.

II – Porém, se a omissão ilícita e culposa do médico não foi causa da morte da criança nem dos seus padecimentos e agonia, tal omissão também não poderá ser considerada causa dos danos não patrimoniais que a mãe sofreu com a morte, o sofrimento e a agonia da filha.

III – Não demonstrado o nexo de causalidade entre a omissão ilícita e culposa imputada ao médico e os danos não patrimoniais cuja indemnização se pretende, a ação tem de improceder.

Decisão Texto Integral:
Relator: Emídio Francisco Santos
1.ª Adjunta: Catarina Gonçalves
2.ª Adjunta: Maria João Areias


Processo n.º 611/21.0T8CTB.C1

Acordam na 1.º Secção Cível do tribunal da Relação de Coimbra

AA, residente na Rua ..., ..., ... ..., propôs a presente acção declarativa com processo comum contra BB, com domicílio profissional na Avenida ..., ... ..., pedindo a condenação do réu a pagar-lhe:
a) A quantia de cinquenta mil euros (€ 50 000,00) pelo dano morte sofrido pela CC;
b) A quantia de cinquenta mil euros a título de danos não patrimoniais sofridos por ela, autora, tudo conforme referido sob os artigos 159.º a 177.º da petição;
c) A quantia de dois mil cento e trinta e quatro euros e um cêntimo (2 134,01) pelos danos patrimoniais conforme referido sob os artigos 178.º e 179.º da petição;
d) Juros de mora à taxa legal calculados sobre as referidas quantias desde a data da sua liquidação até ao efectivo e integral pagamento.

Para o efeito alegou em síntese:
· Que engravidou na sequência de fertilização in vitro realizada no Hospital ..., tendo, a partir da consulta realizada no dia 7 de Maio de 2018 no consultório onde o réu exerce a sua actividade de médico ginecologista-obstetra, decidido ser acompanhada pelo mesmo;
· Que, no decurso das várias ecografias realizadas, o réu sempre lhe transmitiu que a gravidez e o feto evoluíam normalmente e que estava tudo bem;
· Que, no dia 18 de Dezembro de 2018, nasceu uma menina a quem a autora e o seu ex-marido (pai da criança) deram o nome de CC;
· Que, poucos dias após o nascimento, foi diagnosticada à criança, no Hospital Pediátrico ..., uma cardiopatia complexa cianótica;
· Que a criança foi submetida a múltiplos tratamentos, exames e várias intervenções cirúrgicas, vindo a falecer no dia 29 de Maio de 2019; 
· Que caso o réu tivesse identificado a cardiopatia nas sucessivas ecografias que fez à autora, sobretudo as que realizou após as 12 semanas de gestação, teria sido possível corrigi-las cirurgicamente durante a gestão ou eventualmente logo a seguir ao parto e teria sido, assim, possível à CC ter sobrevivido ou pelo menos teria francas chances de sobrevivência, mesmo que estivesse condicionada a futuras cirurgias e a um modo de vida também condicionado;
· Que mesmo que a sobrevivência/tratamento da CC fosse uma incógnita, não foi dada à autora qualquer outra opção, como por exemplo a interrupção da gravidez, o que ponderaria caso fosse informada, juntamente com o pai da CC, das consequências da dextrocardia, pois seguramente não teria permitido que a sua filha fosse sujeita, como foi, a um tão grande calvário;
· Que o réu omitiu o dever objectivo de cuidado a que estava contratualmente vinculado nomeadamente à obrigação de efectuar o diagnóstico que se impunha em face do caso concreto, resultando a sua omissão na ofensa do direito e interesse legalmente protegido de a CC ser devidamente tratada;
· Que o réu é responsável pela morte da CC e por danos não patrimoniais sofridos pela autora (depressão, tristeza e amargura e dor causadas tanto pelo sofrimento como pela morte da filha); deve ainda ressarcir a autora de todas as despesas que teve que fazer com os tratamentos de sua filha, incluindo viagens, e restituir-lhe os os honorários que lhe pagou, pelas consultas, exames e ecografias.

O réu contestou a acção, defendendo-se por excepção e por impugnação. Em matéria de excepção alegou em síntese:
· Que a autora não tinha legitimidade para, desacompanhada do ex-marido, reclamar indemnização pela perda da vida da menina CC; 
· Que o pedido constante da alínea c), ao tratar-se de despesas pagas com bens comuns do extinto casal, não pode ser reclamado isoladamente por um dos ex-cônjuges por se desconhecer se lhe foi atribuído em sede de partilha tal direito e acção;
· Que o réu é parte ilegítima na presente acção desacompanhada da seguradora, pois transferiu a sua responsabilidade civil profissional da sua actividade de médico para a seguradora Ageas Portugal Companhias de seguros.

Em sede de impugnação alegou que o falecimento da menina CC não resultou de qualquer acto médico dele, réu, nem este levou a qualquer tipo de doença e que faleciam os requisitos legais da responsabilidade civil por factos ilícitos sobre a qual a autora alicerçava a demanda.

A autora, na resposta à matéria das excepções, sustentou a improcedência da alegação do réu.

No despacho saneador, a Meritíssima juíza do tribunal a quo julgou improcedente as excepções invocadas na contestação.

A sentença

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu:
1. Condenar o réu a pagar à autora a quantia de € 25 000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença até integral pagamento;
2. Absolver o réu do pedido de pagamento das restantes quantias peticionadas.

O recurso

O réu não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se julgasse procedente o mesmo e a absolvição dele do pedido.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes.
1. A Meritíssima juíza “a quo” decidiu considerar parcialmente procedente a presente acção e em consequência condenar o réu no pagamento à autora da quantia de 25000€, a título de danos morais.
2. Considerou o tribunal “a quo” que entre a autora e o réu foi estabelecida uma relação contratual, ela na qualidade de grávida e o réu na qualidade de médico ginecologista-obstetra. Considerou, ainda, que no âmbito da relação contratual o réu se vinculou a uma obrigação de resultado.
3. Partindo deste pressuposto o tribunal “a quo” declarou o incumprimento contratual, por violação das leis da arte médica aplicáveis quanto ao modo como tais exames devem ser executados, concluindo pela existência de um erro médico e, portanto, de uma actuação ilícita do réu.
4. Considerou o tribunal “a quo” que o recorrente agiu com culpa, apesar de os dados transmitidos pelo ecógrafo comportarem uma margem de erro.
5. Afirmou o tribunal “a quo” que a presente acção não se inclui nas denominadas wrongful birth actions.
6. O recorrente não se conforma com a douta sentença.
7. O recorrente impugna os factos dados como provados: “80. A ecografia referente ao segundo trimestre de gestação não poderia deixar de revelar a existência de sinais que fundamentavam a suspeita de que a CC padecia de uma cardiopatia. nº 88: O Réu não se apercebeu da dextrocardia que era visível através da realização de ecografias fetais.” Pois, considera que devem ser considerados não provados.
8. Chega a tal conclusão quanto ao n.º 80, pela audição do depoimento do perito, DD, com depoimento gravado em 14/11/2022 desde 09.43.54h a 10.20.24h, cujo trecho se ressalva de 14.35 min. a 17.01 min., da passagem do depoimento de 22.32 min. a 26.45 min., e ainda do min.30.44 a 34.50min. Do depoimento da cardiologista pediátrica, EE, com depoimento gravado em 28/11/2022 desde 15.49.09 a 16.30.19h, cuja passagem se ressalvam, de 34.20 min. a 36.40min. E quanto ao facto n.º88 - da audição do depoimento de Dr. FF com depoimento gravado em 28/11/2022 desde 14.38.33 a 14.57.28h, cuja passagem se ressalva de 8.26 min. a 9.30 min; e do Depoimento de Drª GG gravado em 14/11/2022 desde 11.23.10 a 12.00.33h, cujas passagens se ressalvam, de 18.20min. a 21.01min; de 27.38 min a 28.55min.
9. Dando-se por não provados tais factos não resulta que o réu tenha praticado qualquer facto ilícito, isto é, que tenha violado os seus deveres contratuais na transmissão de informação errada após a realização da ecografia.
10.Ao longo da extensa e densa petição inicial, a autora veio “desenhar” a responsabilidade do réu alegando em síntese: Que a cardiopatia de que a CC era portadora, poderia ser reversível, através de cirurgia ou poderia ser atenuada desde que fosse detectada a tempo!” (cfr. art.126º, 134º, 135º, 136º, entre outros da P.I.); Alegou a autora que a ecografia morfológica não poderia deixar de revelar a cardiopatia bem como a asplenia (cfr.arts.127º e 128º da P.I.); Afirmando que lhe foi sonegado o direito à informação das patologias do feto (cfr.art.136º da P.I.); Ou afirmando que não lhe foi dada a oportunidade de optar pela interrupção da gravidez (cfr. art.138º da P.I., entre outros). Alega, que face à omissão de detecção da patologia com a sua conduta colocou em causa a sobrevivência da recém-nascida.
11.Resulta dos factos provados que não foi comunicada durante a gestação à autora a patologia de que o feto padecia e que não lhe foi dada a oportunidade de optar pela interrupção da gravidez.
12.Face a estes caracteres e aos pedidos formulados terá de se considerar que a acção proposta pela autora se trata de uma mistura de “wrongful birth action” e “wrongful life action” ao contrário do afirmado pelo tribunal “a quo” que não se trata nem de uma nem de outra.
13.As “wrongful birth actions” surgem quando uma criança nasce malformada e os pais, em seu próprio nome, pretendem reagir contra o médico e/ou instituições hospitalares, pelo facto de os terem privado de um consentimento informado que, eventualmente poderia ter levado à interrupção da gravidez. As quais são em tudo semelhantes com as acções de “wrongful life” que parte do mesmo ponto, ou seja, o nascimento de uma criança com graves problemas que poderiam ter sido detectados durante a gravidez e poderiam ter influenciado a decisão da mãe em continuar, ou não, com tal gravidez. A grande diferença entre as acções de “wrongful life” e as de “wrongful birth” é que estas últimas são instauradas pela própria criança, ou, pelo menos em sua representação, tendo com fundamento os danos derivados do facto de terem nascido com grave doença ou deficiências, devido a uma omissão ou erro realizado pelo médico durante a monitorização da gravidez da sua mãe.
14.Quanto ao caso “wrongful life” o tribunal considerou que não estavam preenchidos os requisitos de responsabilidade civil.
15.A autora enumera uma série de danos morais resultantes do facto de ter existido um erro ou negligência no diagnóstico pré-natal por parte do réu, tendo sido dada uma falsa representação da realidade fetal e que pensando que tudo corria dentro da normalidade levasse a sua gravidez até ao termo. Impedindo, o réu face ao erro de diagnóstico das ecografias, a autora de utilizar o meio legal que lhe era oferecido, atento o tempo de gestação em curso. No caso em concreto os danos morais da autora não podem ser dissociados do facto de a autora ter sido privada de uma informação e um consentimento informado que, eventualmente poderia ter levado à interrupção da gravidez. Concluindo o tribunal “a quo” dizendo que: “…omissão da detenção da cardiopatia que afetava a CC e da prestação da informação da existência da mesma à sua mãe é adequada para a produção dos danos a que se tem vindo a aludir”.
16.Tal fundamentação preenche na íntegra os requisitos de acção de “wrongful birth” e não os de uma pura acção de responsabilidade civil contratual como defende o tribunal “a quo”. Já que, depende sempre da omissão da informação que poderia levar à interrupção da gravidez e por tal evitar e/ou minorar os danos da autora.
17.O tribunal “a quo” fez errada interpretação dos factos alegados pela autora, afastando a acção do enquadramento das acções de “wrongful birth”.
18.A procedência da acção “wrongful birth”, depende da alegação e prova de um facto essencial, isto é, da possibilidade da mãe poder abortar. Essa faculdade depende e terá de ser conforme o regime legal existente em Portugal na data.
19.No caso em apreço a autora teria de alegar e provar que “…que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo” (cfr. art.142.º n.º 1 alínea c) do Cód. Penal) o que não sucedeu, pois não alegou a autora que o feto era inviável, nem que a patologia era incurável, a qual teria de ser certificada, à data ou em juízo, pela comissão técnica de certificação de acordo com o art.º 20.º da Portaria n.º 741- A/2007 de 21 de Junho.
20.Não tendo sido provada pela autora a faculdade de a mãe poder abortar em conformidade com a lei face à patologia de que padecia a bebé terá a acção de improceder. (neste sentido o Ac RP de 01/07/2021 proc. nº5397/16.8T8PRT.P1 in www.dgsi.pt).
21.Mesmo que se entendesse, tal como o fez o tribunal recorrido, que estamos face a uma pura acção de responsabilidade civil contratual considera o recorrente não estarem preenchidos os requisitos necessários à procedência da acção.
22.O acordo havido entre a autora e o réu médico ginecologista e não médico ecografista (facto provado 82), com vista à efectivação de exames neo-natais, consistentes nas ecografias estabelecidas como obrigatórias pela DGS configura uma obrigação de meios, pois tais exames e dever de informação destinam-se primacialmente à identificação, determinação e informação de eventuais distúrbios e malformações do feto, sendo acessórios da sua obrigação principal de deveres de cuidado, protecção e acompanhamento da grávida na gestação e no parto, o que fez.
23.O tribunal “a quo” presumiu a culpa do réu por ter configurado a obrigação de resultado.
24.É consensual que será na ecografia do 2.º trimestre que melhor se pode efectuar o estudo do coração, com a obtenção do plano das quatro cavidades, do cruzamento das grandes artérias e do corte dos três vasos. Pois, após esse período com o crescimento do feto tal diagnóstico torna-se inviável (cfr. relatórios periciais e seus esclarecimentos).
25.Dos factos provados 96 a 107 considera o réu que ilidiu a presunção de culpa que sobre si impendia, consequentemente cabia à autora provar a omissão da mais elevada medida de cuidado exterior. Quanto a isto resultou provado números 80, 83, 87 e 88, matéria conclusiva pelo que tem de ser considerada como não escrita designadamente, não poderia deixar de revelar; de forma desatenta; podia e devia ter detectado; não se apercebeu da dextrocardia.
26.Eliminada tal matéria conclusiva e escalpelizada a matéria provada dos números 96 a 107 resulta a ausência de culpa do recorrente.
27.O nexo de causalidade entre os danos não patrimoniais da autora e a actuação do médico não se verifica.
28.O incumprimento do médico reduz-se em última análise ao seu dever de informação sobre o prognóstico, diagnóstico e riscos envolvente o que faz partes dos deveres laterais do contrato médico.
29.O tribunal recorrido fez errada interpretação do 799.º n.º 1 do CC, pois o pressuposto determinante da responsabilidade médica em apreço é a ausência de comunicação do resultado de um exame o que configura erro de diagnóstico, e a deficiência/patologia verificada na criança que poderia ter culminado com a faculdade de os pais interromperem a gravidez e obstar ao nascimento de uma criança com deficiência ou patologia grave poupando-se ao sofrimento de ver a bebé ser submetida a intervenções cirúrgicas.
30.Este nexo de causalidade carece, como pressuposto essencial, de ver alegada e provada a possibilidade legal de interromper a gravidez nos termos do artigo 142.º n.º 1, alínea c), do Cód. Penal e/ou que os pais pretendiam mesmo assim levar a gravidez até ao final da gestação, o que no caso não resulta alegado e provado.
31.A não ser assim, como se reclama neste recurso, mantendo-se a sentença estar-se-á a condenar o recorrente em violação do disposto pelo artigo 563.º, do CC, “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
32.Sem resultar provado que a mãe poderia legalmente interromper a gravidez o recorrente nunca poderia ter sido condenado por inexistir nexo de causalidade.
33.Os danos referidos nos factos provados números 77, 78, 89 não resultam da actuação do recorrente nem de forma indirecta, antes sim da actuação de terceiros, outros médicos que consideraram que a vida da bebé era viável e por tal a submeteram a intervenções cirúrgicas e a medicação.
34.A perda da vida da bebé não resulta da actuação do réu (cfr. ponto 100 factos provados), pelo que não pode ser assacada responsabilizado pelos danos referidos em 90 a 93.
35.Na tese defendida pelo tribunal “a quo” a indemnização é devida pelo impacto e surpresa de após o nascimento serem confrontados com a cardiopatia complexa. Sucede que, os factos provados em que o tribunal alicerça os danos morais sofridos pela autora nada têm a ver com tal surpresa, antes sim com o dano vida da filha, o qual nestes autos não pode ser considerado. Nenhuma ligação têm com a surpresa derivada do falso positivo relatado pelo R.
36.Caso considerem V.Exªs. que a sentença recorrida deve ser mantida, o que não se concede, crê o recorrente que a indemnização arbitrada é excessiva. A manter-se a quantia atribuída à recorrida na sentença, estar-se-á a inflacionar os danos não patrimoniais sofridos pelos pais da falecida em montante superior ao que os tribunais fixam pelo próprio dano vida.
37.Tomando em consideração as decisões da jurisprudência em casos semelhantes afigura-se suficiente a quantia de 10 000€. (cfr. Ac.RL 30/04/2015 proc nº 2101/11.0TVLSB.L1-8 in www.dgsi.pt).

A autora respondeu, sustentando a manutenção da decisão recorrida. Para o efeito alegou nas conclusões:

(…).


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Segundo a ordem das conclusões, as questões suscitadas pela apelação são em síntese as seguintes:
· Saber se a decisão recorrida errou ao julgar provada a matéria discriminada sob os números 80 e 88 e, em caso de resposta afirmativa, se tal decisão é de alterar no sentido de se julgar não provada tal matéria;
· Saber se, julgando-se não provados tais factos, é de concluir que o réu não praticou qualquer facto ilícito;
· Saber se, face à alegação da autora e aos pedidos formulados, terá de considerar-se que a acção proposta pela autora é uma mistura de “wrongful birth action” e “wrongful life action”;
· Saber se a procedência da acção dependia da alegação e prova da possibilidade de a autora poder abortar, o que não sucedeu;
· Saber, na hipótese de se estar perante uma pura acção baseada em responsabilidade civil, se não estavam preenchidos os requisitos necessários à procedência da acção, concretamente a culpa do réu, o nexo de causalidade entre a actuação do réu e os danos não patrimoniais pelos quais foi condenado;
· Saber, no caso de o réu estar constituído na obrigação de indemnizar os danos, se o montante é excessivo, devendo ser reduzida para dez mil euros (10 000,00 euros).

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Impugnação da decisão relativa à matéria de facto

(…).


*

Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto e resolvidas as restantes questões com relevância em sede de fundamentação de facto, consideram-se provados e não provados os seguintes factos:

Provados:
1. No dia 14 de Junho de 2014 a autora AA casou com HH.
2. O casamento da autora foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento no dia 3 de Setembro de 2020.
3. A autora AA e o seu marido HH tinham o desejo de ter filhos.
4. Em concretização do desejo de ambos, e na sequência de fertilização in vitro realizada nos Hospitais ..., a autora engravidou.
5. O réu é médico de profissão, com a especialidade de ginecologia-obstetrícia.
6. À data dos factos a que se reportam os presentes autos, o réu exercia a sua actividade em prática privada, no seu consultório situado em ..., o que acumulava com o cargo de Director do Serviço de Obstetrícia/..., encontrando-se actualmente aposentado destas funções públicas.
7. Atendendo às boas referências que tinha do réu, a autora marcou uma consulta que se realizou no consultório do mesmo no dia 23 de Abril de 2018 para vigilância, tendo nesse mesmo dia, correspondente às cinco semanas de gestação, sido realizada uma ecografia onde só era possível verificar o saco gestacional.
8. No dia 7 de Maio de 2018, às sete semanas de gestação, a autora deslocou-se ao consultório do réu, onde foi realizada nova consulta e nova ecografia que permitiu percepcionar os batimentos cardíacos do embrião, tendo o réu dito à autora e ao seu marido que estava tudo a correr normalmente.
9. A partir dessa consulta, a autora decidiu ser acompanhada pelo réu durante a gravidez.
10.No dia 25 de Maio de 2018, na sequência da realização de mais uma consulta, foi efectuada nova ecografia, na qual foi possível visualizar o embrião em formação e ouvir os seus batimentos cardíacos, tendo o réu referido uma vez mais que estava tudo bem.
11.Nessa ocasião o réu referiu também que, possivelmente, teria visualizado uma onfalocele.
12.Às nove semanas foram realizados exames para despiste de trissomia, indicando os mesmos que o risco era reduzido para a síndrome de Down, para a trissomia 18 e para a trissomia 13.
13.No dia 14 de Junho de 2018, às doze semanas de gestação e no decurso de nova consulta, foi realizada nova ecografia através da qual foi possível visualizar o corpo do feto, as mãos, os pés, a cabeça, a translucência nucal e os batimentos cardíacos, mantendo o réu que tudo decorria normalmente.
14.No dia 19 de Julho de 2018 foi realizada uma nova ecografia, tendo o réu verificado o comprimento do fémur, o perímetro cefálico e também os batimentos cardíacos do feto, mantendo que tudo corria normalmente.
15.A autora, que não percebia as imagens das ecografias e não possuía conhecimentos médicos, confiava no Réu.
16.No dia 8 de Agosto de 2018, às vinte semanas de gestação, foi efectuada uma nova ecografia, na qual foi visualizada a coluna, o perímetro cefálico, os batimentos cardíacos, a placenta e o colo do útero, tendo o réu confirmado, mais uma vez, que estava tudo bem.
17.No dia 5 de Setembro de 2018, por volta das vinte e quatro semanas, foi realizada a ecografia referente ao segundo trimestre, através da qual o réu visualizou o perímetro cefálico e os batimentos cardíacos, referindo, mais uma vez, que estava tudo bem.
18.No dia 1 de Outubro de 2018 a autora realizou análises de hematologia geral, hemóstase, química clínica geral (creatinina, ureia, ácido úrico, TGO, TGP, urina tipo II), serologia (reação de VDRL), infeciologia (hepatite B, AC Anti-HCV, AC AntiHIV 1+2/Ag.p24, AC Anti-citomegalovírus (CMV) IgG, AC anti-citomegalovírus (CMV) IgM, AC anti-toxoplasma IgG, AC anti-toxoplasma IgM).
19.As referidas análises apresentaram resultados normais e revelaram que a autora não era imune relativamente à toxoplasmose, o que a levou a ter cuidados redobrados durante a restante gestação.
20.No dia 11 de Outubro de 2018, por volta das vinte e nove semanas, o Réu procedeu à realização de uma nova ecografia em que mediu o perímetro cefálico, o comprimento do fémur e o peso do feto.
21.No dia 9 de Novembro de 2018, às trinta e três semanas, o réu procedeu à realização da ecografia referente ao terceiro trimestre.
22.Nesta ecografia foi possível visualizar o perímetro cefálico, o comprimento do fémur e os batimentos cardíacos, tendo o réu referido que tudo decorria normalmente.
23.No dia 21 de Novembro de 2018, a autora realizou novas análises ao chamado tempo de protrombina, o qual apresentou resultados normais, bem como pesquisa de streptococcus grupo B, exsudado vaginal e rectal, ambos com resultado negativo.
24.No dia 3 de Dezembro de 2018, às trinta e sete semanas de gestação, foi realizada uma nova ecografia, tendo sido visualizado o cérebro, perímetro cefálico, comprimento do fémur, coração e retornos venosos e batimentos cardíacos, tendo o réu referido que tudo estava a correr bem.
25.No mesmo dia 3 de Dezembro de 2018, na consulta da autora, foi registado pelo réu: Colo adormecido com 30% de apagamento dilatado a 01 dedo franco, apresentação cefálica baixa com ecografia em todos os parâmetros avaliados normais; Feto percentil 50 e peso de 2551g, fez CTG no Hospital; Líquido amniótico normal; Placenta posterior grau 1,2; Frequência cardíaca 153; Doppler à artéria umbilical e cerebral média com resultados normais.
26.No dia 10 de Dezembro de 2018, às trinta e oito semanas de gestação, mantinha-se a situação ginecológica e obstétrica, tendo o réu registado peso estimado de 2.995 gramas, placenta grau 02 e colocado a hipótese de internamento no dia 18 de Dezembro de 2018.
27.No dia 17 de Dezembro de 2018, às trinta e nove semanas de gestação, foi realizada uma nova ecografia, na qual foi visualizado o coração e batimentos cardíacos, tendo o réu referido, mais uma vez, que estava tudo bem.
28.No mesmo dia 17 de Dezembro de 2018, na consulta da autora, foi registado pelo réu: Colo dilatado a 02 cm, apagado a 60%; Líquido amniótico normal; Placenta grau 02; Doppler normal; Frequência cardíaca 138; Apresentação cefálica; - Peso estimado 3100g.
29.Nesse dia, o réu, após constatar que a autora já estava com 2 cm de dilatação, decidiu que se iria provocar o parto no dia seguinte.
30.No dia 18 de Dezembro de 2018 a autora deu entrada no serviço de obstetrícia do Hospital ... em ....
31.Nesse dia, pelas 22h15, nasceu, de cesariana, uma menina com 3.220 gramas, 49,7 cm e índice de Apgar de 9/10/10, parâmetros estes normais, à qual a autora e o seu marido decidiram chamar CC.
32.A CC nasceu sem sinais de sofrimento respiratório, apresentando auscultação cardíaca sem sopros.
33.A CC encontrava-se hemo-dinamicamente estável após o parto, sendo os sinais cardíacos normais após o nascimento.
34.No dia 20 de Dezembro de 2018, à hora do banho, a médica pediatra que se encontrava de serviço constatou que a CC apresentava cianose peri bucal e das extremidades, tendo a mesma sido, de imediato, transferida para a UCERN do Hospital ....
35.Seguidamente, foram realizados exames e análises complementares, tendo a pediatra que se encontrava de serviço entrado em contacto, por videoconferência, com a equipa médica do Hospital Pediátrico ....
36.A ecocardiografia então realizada à CC foi inconclusiva, tendo sido realizado um RX ao tórax que revelou dextrocardia.
37.Por ter surgido a suspeita de que a CC apresentava uma cardiopatia congénita cianótica, foi a mesma transferida para o Hospital Pediátrico ... ainda no dia 20 de Dezembro de 2018.
38.No Hospital Pediátrico ... foi efectuado um primeiro diagnóstico de cardiopatia cianótica complexa, tendo a autora e o pai da CC sido informados de que a mesma tinha uma cardiopatia congénita que lhe provocava uma hipoxemia grave e que tinha também um diagnóstico de asplenia (ausência de baço).
39.Ainda no Hospital Pediátrico ... foi realizada investigação não invasiva que confirmou o diagnóstico inicial, tendo a CC iniciado terapêutica com prostaglandina ev e fármacos anti congestivos (furosemida e espironolactona).
40.Da investigação realizada no Hospital Pediátrico ... resultaram os seguintes diagnósticos:
· Isomerismo direito, dextrocardia com dextroapex;
· Malposição das grandes artérias, com comunicação interventricular grande;
· Atresia da válvula pulmonar. Ramos da artéria pulmonar confluentes, hipoplásicos e com origem no canal arterial. Estenose do ramo esquerdo da artéria pulmonar;
· Retorno venoso pulmonar anómalo total (RVPAT) supra-cardíaco, com coletor à direita, drenando na veia cava superior esquerda através da veia vertical;
· Anomalia retorno venoso sistémico, com veia cava superior direita a drenar na aurícula esquerda. Persistência da veia cava superior esquerda;
· Comunicação interauricular tipo ostium secundum (CIA-OS) grande.
41.Durante o internamento no Hospital Pediátrico ... foi realizado o rastreio neonatal (teste do pezinho), não tendo o mesmo revelado qualquer patologia referente às doenças rastreadas.
42.Aos vinte e um dias de vida a CC foi transferida para o Hospital ... para avaliação diagnóstica e terapêutica cirúrgica.
43.Nessa altura foi confirmada à autora e ao pai da CC a gravidade e complexidade da sua cardiopatia.
44.No Hospital ... foram efectuados os seguintes diagnósticos concomitantes: Asplenia, sob profilaxia com amoxicilina; Hipogamaglobulinemia, com infeções de repetição por organismos multirresistentes; Anemia hemolítica, com necessidade de suporte transfusional frequente; Hipotiroidismo central, medicado.
45.A equipa médica do Hospital ... informou a autora de que a CC teria que ser submetida a uma cirurgia, não garantindo que a mesma resultasse numa melhoria, e que provavelmente seriam necessárias outras cirurgias paliativas.
46.No dia 17 de Janeiro de 2019, a CC foi submetida à realização de cirurgia cardíaca para correcção do retorno venoso pulmonar anómalo total, implantação de shunt Sano (5mm), plastia dos ramos da artéria pulmonar, encerramento da comunicação interauricular tipo ostium secundum e laqueação do canal arterial.
47.O período pós-operatório foi complicado de: síndrome da veia cava superior, resolvido após revisão cirúrgica; hemorragia pulmonar, resolvida medicamente; taquicardia juncional ectópica, condicionando instabilidade hemodinâmica por baixo débito cardíaco.
48.O quadro descrito em 47 justificou a implantação de assistência circulatória mecânica contínua (ECMO), que se manteve durante sete dias.
49.No dia 24 de Janeiro de 2019 o cirurgião retirou a ECMO.
50.Durante o período em que a CC permaneceu na Unidade de Cuidados Intensivos ... ocorreram várias complicações de etiologia infecciosa, duas infecções do trato urinário com isolamento de Pseudomonas aeruginosa e Enterococcus faecium, tendo cumprido antibioterapia dirigida com resolução do quadro.
51.No dia 5 de Fevereiro de 2019 a CC foi extubada.
52.Cerca de um mês após a realização da intervenção cirúrgica a CC foi transferida para a enfermaria.
53.A evolução da CC, neste período, caracterizou-se por hipoxemia progressiva, com saturações de cerca de 75%, dependendo de oxigénio suplementar.
54.Para esclarecimento do quadro clínico da CC foi decidida a realização de angioTC e ecocardiograma com administração de soro agitado.
55.Esses exames revelaram a existência de lesão residual, com estenose do shunt de Sano e anomalia da drenagem da veia cava superior (retorno venoso da veia cava superior e veias pulmonares a drenar na aurícula à direita e veia cava inferior e veias supra-hepáticas a drenar na aurícula à esquerda. Shunt Sano patente com obstáculo mais significativo no ramo esquerdo da artéria pulmonar).
56.Neste contexto a CC foi submetida novamente a cirurgia cardíaca no dia 21 de Março de 2019 para realização de atrioseptectomia, plastia do ramo esquerdo da artéria pulmonar e implantação da veia cava superior no apêndice auricular direito e secção do shunt Sano com realização de shunt central.
57.A evolução pós-operatória foi sempre caracterizada por hipoxemia persistente e dependência de ventilação mecânica invasiva.
58.Para esclarecimento da situação foi realizado um cateterismo cardíaco de diagnóstico que objectivou obstrução no retorno venoso pulmonar, assimetria da perfusão pulmonar, com hipo perfusão do pulmão direito.
59.Foi efectuada tentativa de cateterização das veias pulmonares direitas para eventual dilatação, sem sucesso, por provável estenose grave na sua desembocadura.
60.A CC foi então submetida a uma terceira cirurgia cardíaca no dia 15 de Abril de 2019 para desobstrução do retorno venoso pulmonar à direita e atriosepectomia total.
61.A observação intraoperatória confirmou a obstrução na drenagem das veias pulmonares direitas.
62.O pós-operatório desta terceira cirurgia foi complicado por: choque e acidose metabólica, a necessitar de suporte inotrópico elevado, com melhoria gradual nas primeiras 48 horas, mantendo suporte vaso pressor até ao vigésimo segundo dia de pós-operatório; intercorrências infecciosas, nomeadamente urossépsis, com isolamentos de Pseudomonas aeruginosa, Citrobacter freundii e Enterococcus faecium, e sépsis com ponto de partida respiratório por Klebsiella pneumonia ESBL; lesão renal aguda secundária à instabilidade hemodinâmica e nefrotoxicidade dos antibióticos, com necessidade de diálise peritoneal durante três dias e melhoria progressiva da função renal; disfunção hepática com cito colestase, hiperamoniemia e coagulopatia; dependência de ventilação mecânica invasiva, provavelmente multifatorial, o que motivou a transferência da CC para a Unidade de Cuidados Intensivos ... no dia 20 de Maio de 2019.
63.Durante o internamento no Hospital ... a CC realizou ecografias transfontanelar seriadas a 18 de Fevereiro de 2019, a 20 de Março de 2019 e a 18 de Abril de 2019, com achados dentro dos parâmetros de normalidade.
64.Nas 72 horas subsequentes à realização da intervenção cirúrgica a que se alude em 60) a CC registou uma melhoria progressiva da diurese em consequência da colocação de cateter de diálise.
65.A CC efectuou algumas tentativas de desmame ventilatório, das quais resultou o agravamento da função respiratória.
66.A última vez que a CC esteve em SIMV foi no dia 11 de Maio, sendo colocada em PRVC por se apresentar completamente desadaptada do ventilador.
67.Nessa altura houve necessidade de ser aumentada sedação em perfusão que já se encontrava em desmame com diazepan em bólus PO.
68.A CC tinha secreções mucopurulentas, chegando a ter secreções hemáticas, o que deixou de suceder a partir do dia 12 de Maio de 2019, tendo apenas, pontualmente, secreções raiadas de sangue.
69.A certa altura a autora e o pai da CC dirigiram-se aos Cuidados Intensivos e foram informados de que deveriam vestir batas e colocar luvas e máscaras, em virtude de a mesma ter contraído uma infecção generalizada muito grave.
70.A partir dessa data a autora e o pai da CC só puderam tocar na sua filha com luvas.
71.No dia 26 de Maio de 2019 a autora e o pai da CC foram convocados para uma reunião com uma parte da equipa médica do Hospital ... e com a Dr.ª GG, do Hospital ..., tendo-lhes sido transmitido que era preciso saber quando parar.
72.No decurso dessa reunião os pais da CC foram informados, pelo corpo clínico, de que não havia nenhuma solução para reverter o quadro clínico da CC.
73.No final da reunião os pais da CC declararam que, acontecesse o que acontecesse, não queriam que a sua filha sofresse mais, tendo-lhes sido referido que a CC iria ser colocada em coma, o que efectivamente aconteceu.
74.O coração da CC parou no dia 29 de Maio de 2019, pelas 00h34, no Hospital ..., estando os seus pais ao seu lado no exacto momento em que isso aconteceu.
75.A autora e o pai da CC voltaram para ... com a sua filha, tendo a CC sido sepultada no Cemitério ....
76.Os pais da CC sempre a acompanharam na sua luta pela vida, nunca desistindo de a manter viva.
77.A autora não esquece o sofrimento e a agonia da sua filha.
78.A autora vivenciou todo o padecimento e sofrimento da sua filha, assistindo, impotente, à contínua degradação da vida da CC, o que lhe provocou sofrimento, tristeza e profunda depressão.
79.No dia 29 de Setembro de 2011, a Direcção Geral da Saúde, por proposta conjunta do Departamento da Qualidade na Saúde e da Ordem dos Médicos, emitiu a Norma n.º 023/2011, actualizada a 21 de Maio de 2013, com o seguinte teor:

“I – NORMA

Da prescrição

1 – Na vigilância da gravidez de baixo risco realizam-se os seguintes exames ecográficos de rastreio, com os critérios e nos períodos que a seguir se definem:

a) 1º trimestre: ecografia obstétrica, realizada entre as 11 e as 13 semanas e seis dias (Nível de evidência A, Grau de recomendação I);

b) 2º trimestre: ecografia obstétrica, realizada entre as 20 e as 22 semanas (Nível de evidência A, Grau de recomendação I);

c) 3º trimestre: ecografia obstétrica, realizada entre as 30 e as 32 semanas (Nível de evidência C, Grau de recomendação II-a).

2 – Sempre que existam razões para duvidar da idade cronológica ou impossibilidade de a calcular, pode ser realizada ecografia para datação da gravidez.

3 – Quando o cálculo da idade gestacional é feito pelo comprimento crânio-caudal, na ecografia das 11-13 semanas e seis dias, mantém-se inalterável ao longo de toda a gravidez.

Da execução

4 – Em todos os exames ecográficos realizados nos períodos anteriormente definidos, são avaliados os seguintes itens:

a) número de fetos e placentas;

b) atividade cardíaca;

c) movimentos fetais;

d) biometria (valores colocados em gráfico de referência para o tempo de gestação e documentados por imagem);

e) localização da placenta e quantidade de líquido amniótico;

5-  No exame ecográfico realizado no 1º trimestre

a) devem ser avaliados os seguintes itens, para além daqueles definidos no n.º 4 da presente Norma:

i. comprimento crânio-caudal;

ii. frequência cardíaca;

iii. medida da translucência da nuca (valor absoluto e percentil para a idade gestacional);

iv. quantificação do risco de trissomia 21 (baseado na medida de translucência da nuca e na idade materna), usando para este fim uma base de dados informatizada;

v. anatomia do feto: pólo cefálico, coluna vertebral, estômago, parede abdominal e membros;

vi. corionicidade (definição em caso de gravidez múltipla);

vii. anexos (observação e descrição).

b) deve ser produzido um relatório escrito onde obrigatoriamente deve constar informação sobre:

i. itens definidos no n.º 4 da presente Norma;

ii. itens definidos no n.º 5, a) da presente Norma;

iii. eventuais limitações à qualidade do exame;

iv. cálculo da idade gestacional a que corresponde o comprimento crâniocaudal e cálculo do risco de trissomia 21.

6 – No exame ecográfico realizado no 2º trimestre:

a) para além dos itens definidos no n.º 4 da presente Norma, deve incluir-se o estudo das seguintes estruturas:

i. contorno craniano e cérebro: estruturas inter-hemisféricas incluindo o cavum do septum pellucidum; ventrículos laterais; plexo coróideu; cerebelo e cisterna magna;

ii. face e pescoço: órbitas, perfil, osso nasal, lábios, maxilares e prega da nuca;

iii. tórax: coração (quatro cavidades, cruzamento das grandes artérias e corte dos três vasos, frequência e ritmo cardíaco), pulmões;

iv. abdómen: parede abdominal, fígado, estômago, intestino, rins, bexiga;

v. coluna vertebral;

vi. membros superiores: três segmentos;

vii. membros inferiores: três segmentos;

viii. cordão umbilical: inserção e número de vasos;

ix. genitais externos.

b) deve ser produzido relatório escrito onde obrigatoriamente deve constar informação sobre:

i. itens definidos no n.º 4 da presente Norma;

ii. itens definidos no n.º 6, a) da presente Norma;

iii. eventuais limitações à qualidade do exame;

iv. enquadramento do observado num padrão de normalidade e referência a eventual patologia identificada.

7 – No exame ecográfico realizado no 3º trimestre:

a) para além dos itens definidos no n.º 4 da presente Norma, deve incluir também:

i. apresentação fetal;

ii. perímetro cefálico;

iii. perímetro abdominal;

iv. comprimento do fémur;

v. estimativa ponderal;

vi. parâmetros biofísicos de avaliação do bem-estar fetal. b) deve ser produzido um relatório escrito onde obrigatoriamente deve constar informação sobre:
i. itens definidos no n.º 4 da presente Norma;
ii. ii. itens definidos no n.º 7, a) da presente Norma;
iii. eventuais limitações à qualidade do exame;
iv. iv. percentil e referência a eventual patologia identificada.

8 – Os relatórios dos exames ecográficos são fornecidos à grávida, registados no Boletim de Saúde da Grávida (BGS) e no seu processo clínico. (…).

II – CRITÉRIOS
A. Os exames e rastreios definidos na presente Norma são realizados a todas as grávidas, sendo que as de risco acrescido fazem, além destes, os exames adequados ao risco identificado.

(…). IV – FUNDAMENTAÇÃO

A. A ecografia realizada entre as 11 e as 13 semanas e seis dias tem como objetivos: confirmar a viabilidade fetal, determinar o número de fetos e corionicidade, datar corretamente a gravidez, diagnosticar malformações major e contribuir para a avaliação do risco de aneuploidias. (…).

E. A ecografia do segundo trimestre permite confirmar alguns dados da ecografia do primeiro trimestre, mas destina-se, sobretudo, à identificação de malformações fetais. São de especial relevância as malformações incompatíveis com a vida ou associadas a elevada morbilidade pós-natal, anomalias com potencial para tratamento intrauterino ou que exigem tratamento ou investigação pós-natal.

F. Estima-se uma prevalência de malformações fetais de cerca de 2% e uma taxa global de deteção pré-natal de cerca de 45% (15-85,3%). Existe, no entanto, uma grande variação na sensibilidade da ecografia para a deteção de malformações fetais, consoante os diferentes estudos, que poderá ser explicada: pelo tipo de anomalia, pela idade gestacional à data da ecografia, pela técnica do ecografista e pela qualidade do equipamento utilizado.

G. Existem poucos trabalhos que abordem a altura ideal para a realização da ecografia do 2º trimestre. Pretende-se um compromisso entre a idade gestacional em que melhor se visualizam as diferentes estruturas fetais com aquela em que a eventual opção de interrupção da gravidez é legal e eticamente aceitável para os casais. O período entre as 20 e as 22 semanas é aquele em que o exame é mais fácil de executar e com menos probabilidade de necessitar repetição quando comparado com as 18 semanas.

 H. A ecografia obstétrica realizada entre as 30 e as 32 semanas é o exame de eleição para a avaliação do desenvolvimento fetal e o diagnóstico de anomalias tardias. (…).”.

80. A ecografia referente ao segundo trimestre de gestação não poderia deixar de revelar a existência de sinais que fundamentavam a suspeita de que a CC padecia de uma cardiopatia.

81. Quando, no decurso da realização de ecografias de rastreio, surja a suspeita da existência de uma malformação cardíaca, a boa prática médica impõe o encaminhamento da grávida com vista à realização de um ecocardiograma ao coração do feto.

82. O réu, enquanto técnico de saúde e médico ginecologista-obstetra especializado, não podia deixar de identificar a malformação do coração da CC.

83. O réu não identificou a referida malformação por ter visualizado os exames ecográficos realizados à autora de forma desatenta.

84. O diagnóstico pré-natal de uma cardiopatia congénita impõe, de acordo com as boas práticas da medicina, o encaminhamento da grávida para estabelecimento hospitalar especializado, no qual deverá ser realizado o parto.

85. Não foi concedida à autora a possibilidade de optar pela interrupção da gravidez.

86. A autora, juntamente com o pai da CC, teria ponderado a possibilidade de interromper a gravidez caso tivesse sido informada das consequências da dextrocardia de que a sua filha padecia.

87. O réu podia ter detectado a anomalia que afectava o coração da CC.

88. O réu não se apercebeu da dextrocardia que era visível através da realização de ecografias fetais.

89. A CC viveu praticamente todos os dias da sua vida em agonia, sujeita a medicação, cuidados continuados e três intervenções cirúrgicas.

90. A autora recorda permanentemente a sua filha com enorme tristeza e saudade.

91. A autora não se conforma com a perda da sua filha.

92. A autora devotou todo o seu amor e carinho à CC durante a sua vida.

93. A autora é uma pessoa triste, amargurada e revoltada por ter perdido a sua filha.

94. A autora teve uma gravidez de baixo risco, sem complicações, por não ter sido identificado qualquer factor acrescido de morbilidade materna e fetal.

95. Numa situação de situs inversus total o estômago está posicionado mais à direita, o que nunca foi detectado pelo réu no decurso dos exames ecográficos a que a autora se submeteu.

96. Em nenhum dos exames ecográficos realizados foi detectada pelo réu qualquer situação de alarme que justificasse a realização de algum exame complementar, sendo as condições de observação da grávida as consideradas normais.

97. O réu nunca identificou qualquer sinal de patologia cardíaca do feto, sendo os registos cardiotocográficos reactivos e normais.

 98. Nas imagens referentes às ecografias juntas aos autos pela autora não se detecta qualquer situs inversus, nem qualquer comunicação interventricular ou outra patologia.

99. A CC faleceu por insuficiência renal e insuficiência cardíaca, na sequência das infecções por si contraídas durante o período de internamento hospitalar a que esteve sujeita.

100. O falecimento da CC não resultou de qualquer acto médico praticado pelo réu, nem este provocou qualquer tipo de doença ou patologia.

101. A dextrocardia, só por si, não provoca a morte.

102. A comunicação interventricular pode ser corrigida com a realização de cirurgias.

103. O réu não é responsável pela implantação dos grandes vasos na gestação da CC, nem pelas patologias que a afectavam.

104. O retorno venoso pulmonar anómalo total e a atresia pulmonar são de muito difícil diagnóstico intrauterino.

105. Os dados transmitidos pelo ecógrafo comportam uma margem de erro.

106. Foi prestada à CC a mesma assistência médica que se revelaria adequada caso a cardiopatia tivesse sido diagnosticada antes do seu nascimento.

107. A dextrocardia não é a causa de qualquer comunicação interventricular nem da malposição das grandes artérias, nem do retorno venoso pulmonar anómalo total.

Não provados:
a) Que a autora engravidou no dia 15 de Abril de 2018.
b) Que a autora efectuou transferência de dois embriões no dia 7 de Abril de 2018.
c) Que uma semana após a consulta a que se alude em 7) dos factos considerados provados a autora deslocou-se aos Hospitais ... para realizar a primeira ecografia, naquele Centro Hospitalar, depois da fertilização in vitro, tendo sido possível ouvir os batimentos cardíacos do embrião.
d) Que na ocasião mencionada em 10) e 11) dos factos considerados provados o réu referiu que a onfalocele, nessa idade gestacional de nove semanas, era uma “coisa banal e corriqueira”.
e) Que o réu não transmitiu à autora e ao seu marido nenhuma informação relativa ao objectivo da ecografia realizada às doze semanas.
f) Que o réu não informou a autora da importância da ecografia a que se alude em 17) dos factos considerados provados.
g) Que a autora nunca se apercebeu de qualquer diferença entre a ecografia a que se alude em 17) dos factos considerados provados e as anteriores.
h) Que todas as consultas e ecografias realizadas pelo réu tinham uma duração limitada que não excedia, em média, os 10 ou 15 minutos.
i) Que as ecografias referentes ao primeiro, ao segundo e ao terceiro trimestres tiveram uma duração de cerca de quarenta e cinco minutos.
j) Que as restantes ecografias e exames realizados à autora duraram sempre, pelo menos, vinte a trinta minutos.
k) Que na ecografia mencionada em 21) dos factos considerados provados foi possível visualizar o cérebro, o formato da face, o coração e seus retornos venosos.
l) Que na ocasião mencionada em 34) dos factos considerados provados, a médica pediatra que se encontrava de serviço auscultou a CC e constatou a existência de dificuldades respiratórias, apresentando, a mesma, saturações de 50% de oxigénio.
m) Que no dia 20 de Dezembro de 2018 o réu, que se encontrava no Hospital ... e, casualmente, se deparou com a Autora, perguntou-lhe se estava tudo bem, tendo a autora respondido que a CC tinha nascido com o coração rodado para a direita, após o que o Réu, manifestando surpresa, exclamou “rodado para a direita?!”.
n) Que na sequência de reunião com o cirurgião cardíaco do Hospital Pediátrico ..., ocorrida no final do mês de Dezembro de 2018, o mesmo informou que nada tinha para oferecer à CC, devido à alta complexidade do caso, e que as suas hipóteses de sobrevivência eram diminutas.
o) Que no Hospital Pediátrico ... a CC esteve sempre com diagnóstico estável, mas sempre com saturações entre os 70% e os 80%, devido à administração de alprostadilo.
p) Que, em face da complexidade da cardiopatia em causa, a equipa médica do Hospital ... quis fazer exames mais completos e específicos como angiografias, TAC ecocardiogramas, RX e, mais tarde, outros exames como cateterismos e TAC pulmonar.
q) Que, na ocasião mencionada em 45) dos factos considerados provados, a autora foi informada de que a CC teria que se submeter à realização de cirurgias para mudança de shunt até aos vinte anos de idade.
r) Que só no Hospital ... é que os pais da CC tiveram conhecimento efectivo da patologia concreta de que a mesma padecia.
s) Que pelo médico interno, Dr. II, foi referido que a cardiopatia que afectava a CC “era altamente complexa e que já há muito tempo que não aparecia naquele Hospital uma cardiopatia tão grave”.
t) Que após a realização da cirurgia a que se alude em 46) dos factos considerados provados a CC ficou com o esterno aberto, sedada, algaliada e com cateteres centrais para administração de medicação (milrinona, heparina, soro composto, morfina, midalozam, dopamina, furosemida, albumina humana, cisatracúrio, adrenalina, noradrenalina, amicacina, aminofilina, vancomicina, gentamicina, meropenem, diazepam, ertapenem).
u) Que, na ocasião indicada em 49) dos factos considerados provados, o cirurgião disse aos pais da CC para estarem preparados para o pior pois a mesma teria poucas hipóteses de sobrevivência, uma vez que não conseguiria sobreviver sem a ECMO, já que estava com saturações que não ultrapassavam os 30%, com tendência a diminuir.
v) Que durante a madrugada do dia 24 para o dia 25 de Janeiro de 2019 a CC começou a apresentar melhorias.
w) Que no dia 26 de Janeiro de 2019 a CC teve uma recaída, começando por ficar mais cianótica e com a saturação muito baixa, motivo pelo qual a equipa médica decidiu fazer um teste ao nível de hemoglobina.
x) Que, como o nível de hemoglobina estava muito baixo, a equipa médica decidiu fazer uma transfusão de sangue e aumentar o nível de oxigénio.
y) Que, no dia 28 de Janeiro de 2019, foi realizado um cateterismo cardíaco de diagnóstico para perceber se as artérias teriam alargado e provocado essa melhoria.
z) Que tal melhoria manteve-se nos dias seguintes, apesar de a CC continuar com arritmias e batimentos ventriculares prematuros (extrassístoles).
aa)Que na ocasião mencionada em 52) dos factos considerados provados foi efectuado prognóstico de implicações no desenvolvimento psicomotor da CC, em função das intervenções e terapêuticas de que a mesma necessitava.
bb)Que, como a CC, entretanto, melhorou, o passo seguinte era reaprender a mamar do biberão para poder ir para casa.
cc)Que a equipa médica comunicou ainda à autora a possibilidade de vir a ser realizada uma cirurgia denominada de Fontan, o que teria que ser decidido conforme o crescimento da CC, pois seria preciso apurar se o seu coração iria ficar com uma função uni ventricular ou não.
dd)Que durante a sua permanência na enfermaria a CC deixou de poder mamar no biberão porque não aguentava o cansaço e teve que passar a ser exclusivamente alimentada por sonda nasogástrica.
ee)Que foi ainda necessário administrar-lhe medicação para dormir, para evitar que as saturações baixassem para níveis drásticos. (Hidrato de 8/8 horas).
ff)Que como a CC tinha frequentes crises de baixas saturações a Dr.ª EE teve a necessidade de encontrar uma técnica que consistia em colocá-la deitada no berço a direito, sem qualquer inclinação e com as pernas flectidas.
gg)Que também em relação à alimentação foram feitos reajustes e a CC passou a ser alimentada por sonda continuamente (só fazia duas pausas por dia de meia hora), cerca de 25 mililitros /hora, para não fazer esforço.
hh)Que o plano seguinte consistia em fazer um treino para lhe retirar o oxigénio que consistia em baixar diariamente 0,5 ml, no sentido de fazer um desmame.
ii)Que nesta fase foi ponderada pela equipa médica a alta hospitalar da CC, apesar de esta não conseguir atingir os 75% de saturação, mesmo tomando oxigénio.
jj)Que essa sugestão causou perplexidade à autora, tendo-lhe sido explicado pelo corpo clínico que seria normal a CC ter dias piores que outros e que provavelmente iria com oxigénio portátil e algumas recomendações, evitando sair para lugares públicos e fechados.
kk)Que entre Fevereiro e Abril de 2019 a CC fez a vacina mensal VSR (vírus sincicial respiratório) devido à sua insuficiência cardíaca e respiratória.
ll)Que a cirurgia a que se alude em 56) dos factos considerados provados demorou cerca de seis horas.
mm)Que ao terceiro dia de pós-operatório o cirurgião fechou o esterno e a CC começou a melhorar progressivamente.
nn)Que o cateterismo cardíaco de diagnóstico a que se alude em 58) dos factos considerados provados foi realizado no dia 11 de Abril de 2019.
oo)Que, na ocasião mencionada em 69) dos factos considerados provados, o Prof. Doutor JJ adiantou que se tornava imperativo tratar da infecção e, caso fosse necessário, faria uma traqueostomia.
pp)Que, no Hospital ..., a autora e o pai da CC foram informados de que a sua filha contraíra uma nova bactéria hospitalar, começando a fazer mais um antibiótico, pois as análises mostravam que os parâmetros infecciosos estavam muito elevados, mas que ao longo dos dias seguintes iam descendo lenta e gradualmente.
qq)Que a autora e o pai da CC verificaram ainda que a sua filha continuava a piorar ao ponto de ficar quase desfigurada devido à baixa diurese, situação que foi aumentando progressivamente ao longo dos dias.
rr)Que, no dia 21 de Maio de 2019, a Dr.ª GG, do Hospital ..., deslocou-se ao Hospital ... para fazer um eletrocardiograma à CC, cujo resultado indiciava que com o coração estava tudo bem.
ss)Que ao longo dos dias foi necessário aumentar para parâmetros muito elevados o suporte ventilatório.
tt)Que a insuficiência renal da CC levou a que os médicos subissem para uma elevada percentagem a medicação, na tentativa de a levar a urinar, o que nunca chegou a acontecer.
uu)Que, em simultâneo, especialistas médicos realizaram ainda várias ecografias renais em que concluíram que dificilmente conseguiriam reverter a situação.
vv)Que, no decurso da reunião a que se alude em 71) dos factos considerados provados, a Dr.ª GG afirmou que já tinha falado com o Prof. Doutor JJ e que este tinha informado que não iria fazer mais nenhuma cirurgia à CC.
ww)Que, nessa reunião, o corpo clínico informou ainda os pais da CC de que tinha sido admitida a hipótese de inserir um cateter, mas como as veias da CC eram muito pequeninas, existia um grande risco de esta vir a ter uma hemorragia e, por conseguinte, esta alternativa foi descartada, pelo que teria que se esperar para se ver se a CC respondia ou não à medicação.
xx)Que, quando a Autora tocava na sua filha para lhe colocar creme ou quando tinham que a posicionar, verificava que a mesma ficava com poças na pele devido ao extremo inchaço.
yy)Que a CC estava irreconhecível e, devido a esse inchaço, já era impossível verificar os níveis de saturação e tensão arterial, até que, progressivamente, o seu ritmo cardíaco começou a diminuir.
zz)Que, no dia 28 de Maio de 2019, o capelão do Hospital ..., apercebendo-se do seu estado de espírito, acercou-se dos pais da CC, na tentativa de os acalmar e conformar com a situação da sua filha, pelo que, nesse mesmo dia, decidiram baptizar a CC.
aaa) Que a cardiopatia que afectava a CC poderia ter sido revertida através de cirurgia, ou, pelo menos, atenuada se tivesse sido detectada antes do seu nascimento.
bbb) Que a ecografia morfológica não poderia deixar de revelar a asplenia de que a CC padecia.
ccc) Que o réu não podia deixar de identificar a ausência de baço.
ddd) Que o réu não identificou a malformação do coração da CC, nem a ausência de baço por usar um aparelho desactualizado.
eee) Que a Autora pagou todos os serviços médicos que lhe foram prestados pelo Réu.
fff) Que a detecção da cardiopatia no decurso das ecografias realizadas pelo réu teria permitido corrigi-la cirurgicamente ainda durante a gestação ou logo a seguir ao parto.
ggg) Que a detecção da cardiopatia no decurso das ecografias realizadas pelo Réu teria permitido à CC sobreviver ou, pelo menos, aumentaria a probabilidade de a mesma sobreviver.
hhh) Que a CC já reagia aos estímulos da autora, sorrindo, esbracejando e sentindo-se confortável na sua presença.
iii) Que a Autora despendeu a quantia de € 1.496,51 com os tratamentos da sua filha, incluindo despesas referentes a Via Verde e parques no montante de € 632,45.
jjj) Que a autora pagou ao réu o montante de € 637,50, a título de honorários, pelas consultas, exames e ecografias que realizou.
kkk) Que o réu nunca teve qualquer caso semelhante ao dos presentes autos ao longo da sua carreira profissional de mais de quarenta anos de trabalho.
lll) Que o réu realizou milhares de ecografias desde o ano de 1981, data em que se iniciou na prática e análise de ecografias nos Hospitais ....
mmm) Que ao longo do acompanhamento da autora, o réu procedeu à realização de treze ecografias obstétricas, o que fez por forma a ter um maior grau de certeza e melhor acompanhamento do feto, designadamente síndromes fetais, problemas placentares, níveis de líquido amniótico e evolução do feto.
nnn) Que nos três exames trimestrais ecográficos realizados o réu cumpriu escrupulosamente os parâmetros e critérios constantes da Norma da Direcção Geral da Saúde a que se alude em 79) dos factos considerados provados, avaliando todos os itens aí indicados.
ooo) Que o réu elaborou os relatórios escritos correspondentes às três ecografias trimestrais indicadas na Norma da Direcção Geral da Saúde a que se alude em 79).
ppp) Que, nos restantes dez exames ecográficos realizados à autora, o réu, seguindo a orientação da cabeça do feto, procurou sempre analisar: - a posição do coração, com estudo da orientação do apex em relação ao estômago; - a posição do ventrículo direito mais próximo da parede torácica e à esquerda da coluna, o que se verificava no caso da CC; - as quatro cavidades cardíacas, sua simetria e dimensões; - estudo do septo interventricular com uso de doppler para despiste de comunicação interventricular; - refluxo da tricúspide; - análise dos grandes vasos (aorta e artéria pulmonar); - ritmo cardíaco; - doppler da artéria umbilical (03 vasos) e a artéria cerebral média; - placenta; - líquido amniótico e comprimento do colo uterino; - peso estimado do feto (para avaliar se não há restrições de crescimento); - análise de rins e bexiga, entre outros que se mostrassem necessários.
qqq) Que só com a realização de um angiotac foi possível detectar a dextrocardia e a patologia dos grandes vasos que afectavam a CC.
rrr) Que o diagnóstico intrauterino da dextrocardia que afectava a CC não era possível.
sss) Que nas imagens referentes às ecografias juntas aos autos pela autora observa-se o coração posicionado à esquerda e quatro cavidade simétricas.
ttt) Que, em teoria, a dextrocardia pode ser detectada após as trinta e duas semanas de gestação.
uuu) Que o réu realizou as consultas e ecografias com zelo, diligência e rigor.
vvv) Que no Hospital ... foi prestada à CC toda a assistência necessária que lhe seria prestada em qualquer outro Hospital.


*

Resolução das restantes questões suscitadas pelo recurso.

Descritos os factos, cumpre passar à resolução das restantes questões suscitadas pelo recurso.

Antes de mais importa precisar que o objecto do recurso é constituído apenas pelo segmento da sentença que condenou o recorrente no pagamento, à autora, da quantia de 25 000,00 euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora. Fora do objecto do recurso estão, pois, os restantes segmentos da sentença, designadamente o que julgou improcedente o pedido de condenação do réu no pagamento da quantia de 50 mil, a título de indemnização pela morte da filha da autora (CC); o que julgou improcedente o pedido de indemnização por danos não patrimoniais em montante superior a 25 mil euros e o que julgou improcedente o pedido de condenação do réu no pagamento de e € 2.134,01, a título de indemnização por danos patrimoniais. E estão fora do objecto porque a parte que tinha legitimidade para os impugnar – a autora – não o fez.

A condenação do recorrente assentou, em síntese, nos seguintes fundamentos:
· Entre a autora e o réu foi celebrado um contrato de prestação de serviços médicos ou de cuidados de saúde, tendo por objecto o acompanhamento, pelo réu, da gravidez da autora, e no qual se incluía a realização das ecografias fetais que se mostrassem necessárias;
· A obrigação que resultava para o réu desta relação contratual era uma obrigação de resultado por oposição à obrigação de meios;
· O réu não cumpriu a sua obrigação, já que não detectou as malformações cardíacas que afectavam o feto e, consequentemente, não informou a autora acerca da existência das mesmas;
· O réu, na qualidade de médico ginecologista-obstetra, ao realizar as ecografias fetais não cumpriu as legis artis a que estava obrigado;
· Era exigível ao réu a detecção, através da realização da ecografia referente ao segundo trimestre de gestação, das malformações que afectavam o coração da CC, o que apenas não sucedeu por não ter sido empregue, na realização desse exame, a atenção devida por um profissional diligente e prudente, impondo-se concluir que o réu agiu com negligência ao não detectar a existência das anomalias que a referida ecografia permitia visualizar e, consequentemente, ao não encaminhar a Autora para a realização de um exame ecográfico mais específico ao coração do feto;
· Impendia sobre o réu uma presunção de culpa decorrente do disposto no artigo 799º, n.º 1, do Código Civil, não tendo o réu ilidido tal presunção; 
· O facto de o réu não detectar as malformações em causa e não informar a autora acerca da existência das mesmas, não foi indiferente para o modo como os danos não patrimoniais foram causados e, sobretudo, para o impacto e para a dimensão que os mesmos assumiram;
· O facto de a autora não ter sido alertada para a existência da cardiopatia congénita complexa que afectava a sua filha impediu-a de se preparar, durante a gravidez, para as adversidades que se aproximavam e implicou que tivesse tido o primeiro contacto com tais adversidades pouco depois do parto e, portanto, num momento que, por definição, comporta já alguma vulnerabilidade física e emocional;
· Tendo a autora sido confrontada com a notícia de que a sua filha padecia de uma cardiopatia congénita complexa apenas no segundo dia de vida da mesma, é evidente que acompanhou todo o seu sofrimento e padecimento em condições diferentes das que se teriam verificado se tivesse sido previamente informada e preparada para enfrentar um quadro clínico com essa gravidade.

O recorrente desfere várias críticas contra a decisão recorrida. Seguindo a ordem das conclusões, a primeira, exposta sob as conclusões 10.ª a 20.ª, é constituída pela seguinte alegação:
· Que face ao que foi alegado e aos pedidos formulados teria se de considerar que a acção proposta pela autora se tratava de uma mistura de “wrongful birth action” e “wrongful life action”;
· Que a procedência da acção “wrongful birth” dependia da alegação e prova da possibilidade de a mãe poder abortar e tal faculdade dependia e teria de ser conforme com o regime legal existente em Portugal na data;
· Que, no caso em apreço, a autora teria de alegar e provar, conforme artigo 142.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, que o nascituro viria a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
· Que a autora não alegou que o feto era inviável, nem que a patologia era incurável, a qual teria de ser certificada, à data ou em juízo, pela comissão técnica de certificação de acordo com o artigo 20.º da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho;
· Que não tendo sido provada pela autora a faculdade de a mãe abortar em conformidade com a lei face à patologia de que padecia a bebé a acção teria de improceder. Citou em seu abono do Acórdão da Relação do Porto de 01/07/2021, processo n.º 5397/16.8T8pRT.P1, publicado em www.dgsi.pt.

Apreciação do tribunal:

O fundamento do recurso ora em apreciação é de julgar improcedente.

Em primeiro lugar, cabe dizer que não merece qualquer reparo a caracterização que a sentença fez das acções que a doutrina designa como “wrongful birth actions” (nascimento indevido), ou seja, as acções nas quais “os pais pedem uma indemnização aos médicos pelos danos próprios causados pela má praxis profissional num período pós-concecional, a qual, se não tivesse existido, poderia ter motivado uma interrupção voluntária da gravidez (IVG) lícita”. Esta caracterização corresponde à que lhe é dada por António Pinto Monteiro em anotação ao acórdão do STJ proferido em 2001, no recurso n.º 01A1008, publicado em www.dgsi.pt. Segundo este autor, nas acções designadas por “wrongful birth” “os pais invocam os danos por eles sofridos, sejam danos patrimoniais (por exemplo, encargos com o sustento da criança), sejam danos morais resultantes, uns e outros, do nascimento de um filho não desejado. Estes casos de wrongful birth podem resultar, por exemplo, de esterilizações ou interrupções de gravidez mal sucedida, assim como informação deficiente sobre os riscos de nascimento de crianças com malformações. Poderá estar em causa, de algum modo, o poder de autodeterminação dos pais (e especialmente da mãe) quanto ao planeamento familiar” [Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 134, páginas 378 e 379]. E corresponde também à que é feita por Paulo Mota Pinto ao afirmar que “nos casos de nascimento indevido (Wrongful birth) releva o facto de o evento lesivo ter conduzido a um nascimento indesejado. … verificou-se um nascimento na sequência de um erro médico (também em sentido lato) que retirou à mãe a oportunidade de tomar uma decisão informada e tempestiva sobre a continuação ou interrupção da gravidez, afirmando os demandantes que, se não fosse o evento lesivo, a criança nunca teria nascido” [Indemnização em caso de “Nascimento Indevido” e de “Vida Indevida” (“Wrongful birth” e Wronful life” – Nos 20 anos do Código das Sociedades comerciais, volume III, ... Editora, página 916]. Na jurisprudência encontramos esta caracterização das acções designadas por “wrongful birth” no acórdão do STJ proferido em 12-03-2015, no processo n.º 1212/08.4TBBCL.G2.S1, publicado em www.dgsi.pt (citado na sentença recorrida), onde se escreveu: “As «wrongful birth actions» surgem quando uma criança nasce mal-formada e os pais, eu próprio nome, pretendem reagir contra o médico e/ou as instituições hospitalares ou afins, pelo facto de os terem privado de um consentimento informado que, eventualmente, poderia ter levado à interrupção da gravidez.

Trata-se de um cenário que ocorre ou porque o médico não efectuou os exames pertinentes, ou porque os interpretou, erroneamente, ou porque não comunicou os resultados obtidos, não se mostrando, porém, responsável pela verificação da deficiência, propriamente dita, que surge, normalmente, desde o início da vida pré-natal”.

Em segundo lugar, embora a presente acção tenha alguns pontos de contacto com as acima referidas, como sucede com o facto de a autora censurar o réu por não ter detectado a malformação do coração do feto e de, em consequência, não a ter informado de tal deficiência, e com o facto de alegar que, por não lhe ter sido prestada tal informação, não lhe foi dada qualquer outra opção, como por exemplo a interrupção da gravidez, o que ponderaria caso fosse informada, juntamente com o pai da CC, das consequências da dextrocardia, pois seguramente não teria permitido que a sua filha fosse sujeita a um tamanho calvário (artigo 138.º da petição), afasta-se delas noutros aspectos. Afasta-se em matéria de danos a ressarcir. Como bem se escreveu na sentença sob recurso, os danos cujo ressarcimento foi pedido ao réu não foram os emergentes do facto de não ter sido dada à mãe a oportunidade de interromper a gravidez ou, nos dizeres da sentença, os decorrentes da “impossibilidade de autodeterminação através da utilização da interrupção voluntária da gravidez”. Os danos a ressarcir são constituídos pelo dano da morte da criança, e pelos danos não patrimoniais que a autora sofreu por causa dessa morte e por causa dos padecimentos e agonia da criança.  Não são estes claramente os danos cuja indemnização é reclamada nas acções designadas de “wrongful birth”.

Daí que, salvo o devido respeito, não tenha pertinência para o caso a invocação do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1-07-2021, proferido no processo n.º 5397/16.8T8PRTP1, publicado em www.dgsi.pt, apesar de a acção onde foi proferido o acórdão ter semelhanças com a presente acção. Vejamos. Na acção onde foi proferido o mencionado acórdão, os pais de uma criança portadora de síndroma de Down demandaram uma clínica e um médico dessa clínica que havia acompanhado a gravidez da mãe da criança. Os pais alegavam que o acompanhamento da mãe havia sido deficiente visto que não detectaram durante a gravidez a doença da criança. Alegavam ainda que, devido ao facto de não ter sido diagnosticada a deficiência durante a gravidez, não tiveram a possibilidade de optar pelo não nascimento do filho. Pediram, com base nestes factos, indemnização pelos gastos acrescidos e indemnização por danos não patrimoniais sofridos com a incapacidade do filho. A acção foi julgada improcedente na 1.ª instância. O tribunal da Relação confirmou a decisão. Para tanto considerou, além do mais, que o dano a ressarcir em tal acção era “a impossibilidade de auto-determinação através da utilização da interrupção voluntária da gravidez” e que esse dano só existiria se a mãe tivesse a possibilidade legal, naquelas circunstâncias tempo e lugar de exercer a interrupção voluntária da gravidez, o que no caso não acontecia.

Como se vê da síntese efectuada, o dano que estava em causa na acção onde foi proferido o citado acórdão era “a impossibilidade de autodeterminação através da interrupção voluntária da gravidez”, o que claramente não sucede no âmbito da presente acção.

Segue-se do exposto que a faculdade de a autora abortar em conformidade com a lei face à patologia de que padecia o bebé não era facto constitutivo do direito de indemnização dos danos não patrimoniais reconhecidos pela sentença. Logo eram irrelevantes para a decisão sobre a procedência da acção, designadamente para a procedência do pedido que está em questão no presente recurso, os seguintes factos: 1) o facto de não ter sido alegado e provado que a autora teria interrompida a gravidez caso tivesse sido informada durante a gravidez das malformações do coração do feto; 2) o facto de não ter sido alegado e provado que lhe assistia tal faculdade à luz do regime da interrupção voluntária da gravidez, designadamente da alínea c) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal.


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Para a hipótese de este tribunal não atender ao fundamento do recurso apreciado anteriormente, o recorrente insurgiu-se, de seguida (conclusões 21.º a 26.ª), contra a sentença na parte em que entendeu que ele, recorrente, era merecedor de censura na modalidade de culpa, por não ter detectado as malformações do coração do feto durante a gravidez da autora. Para o efeito alegou:
· Que o tribunal a quo presumiu a culpa dele, réu, por ter considerado que a obrigação que resultava para ele da relação contratual estabelecida entre ele e a autora era uma obrigação de resultado, quanto tal obrigação configurava uma obrigação de meios, quando o acordo havido entre a autora e ele, réu, com vista à efectivação de exames neo-natais, consistentes nas ecografias estabelecidas como obrigatórias pela DGS configura uma obrigação de meios, pois tais exames e dever de informação destinam-se primacialmente à identificação, determinação e informação de eventuais distúrbios do feto, sendo acessórios da sua obrigação principal de deveres de cuidado, protecção e acompanhamento da grávida na gestação e no parto, o que ele fez;
· Que era consensual que é na ecografia do 2.º trimestre que melhor se poderá efectuar o estudo do coração, com a obtenção do plano das 4 cavidades, do cruzamento das grandes artérias e do corte dos três vasos, pois após esse período, com o crescimento do feto, tal diagnóstico torna-se inviável;
· Que dos factos provados 96 a 107 decorre que ele, réu, ilidiu a presunção de culpa que incidia sobre si, cabendo à autora provar a omissão da mais elevada medida de cuidado exterior;
· Que era de considerar não escrita a matéria dos pontos números 80, 83, 87 e 88.

Apreciação do tribunal:

O fundamento do recurso ora em apreciação também é de julgar improcedente.

Antes de mais, cabe dizer que, apesar de a alegação do recorrente remeter para a distinção entre obrigação de meios e obrigação de resultado, não é decisivo para responder à questão de saber se o réu, ora recorrente, é de censurar por não ter detectado as malformações do coração do feto durante a gravidez da autora responder à questão de saber se as obrigações que impendiam sobre o réu, decorrentes do acordo que estabeleceu com a autora, são obrigação de meios ou de resultado. O que é decisivo é determinar o conteúdo da relação estabelecida entre a autora e o réu e saber se decorre de tal relação que um dos objectivos da realização das ecografias era a identificação das malformações do feto.

No que diz respeito ao conteúdo da relação entre as partes, não vem posto em causa no recurso que o réu, ora recorrente, acordou com a autora em prestar-lhe, na qualidade de médico ginecologista, assistência e vigilância médica durante gravidez dela e que tal acordo configura um contrato de prestação de serviços médicos. E também não vem posto em causa que tal obrigação de assistência incluía a realização de ecografias obstétricas/fetais que se mostrassem necessárias, designadamente, como reconhece o recorrente, as estabelecidas como obrigatórias pela Direcção Geral de Saúde.

Quanto a saber se um dos objectivos da realização de tais ecografias era a identificação de malformações do feto, a resposta é claramente positiva, como o atesta a Norma da Direcção Geral de Saúde n.º 023/2011 actualizada a 21 de Maio de 2013, ao determinar: “a ecografia do segundo trimestre permite confirmar alguns dados da ecografia do primeiro trimestre, mas destina-se, sobretudo, à identificação de malformações fetais, sendo de especial relevância as malformações incompatíveis com a vida ou associadas a elevada morbilidade pós-natal, anomalias com potencial para tratamento intrauterino ou que exigem tratamento ou investigação pós-natal”.

O réu, ora, recorrente, não põe em causa este objectivo das ecografias, como o atesta o facto de afirmar (conclusão 22.ª) … que “… tais exames destinam-se primacialmente à identificação, determinação e informação de eventuais distúrbios e malformações do feto, sendo acessórios da sua obrigação principal e deveres de cuidado, protecção e acompanhamento da grávida na gestação e no parto”.

Visto que se provou que o coração do feto tinha malformações e que o réu, ora recorrente, não as detectou nas ecografias realizadas à autora, especialmente nas ecografias próximas do 2.º semestre de gestação, concretamente as realizadas em 8 de Agosto de 2018 e 5 de Setembro de 2018, há que concluir que o réu, ora recorrente, cumpriu defeituosamente os seus deveres de vigilância médica da gravidez da autora e que, por aplicação do n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil, presume-se que esse cumprimento defeituoso procede de culpa sua.

Incumbia ao réu, por aplicação do citado preceito, a prova de que o facto de não ter detectado as malformações do coração do feto não procedia de culpa sua. Seguindo a lição de Mário Júlio de Almeidas Costa, tal implicaria a prova de que o cumprimento defeituoso derivava “… de facto do credor ou de facto não imputável nem a um nem a outro. Ocorre a última hipótese, quando o inadimplemento derive de facto de terceiro ou, em termos gerais, existe caso fortuito ou de força maior” [Direito das Obrigações, 11.ª Edição Revista e actualizada, Almedina, página 1072].

O recorrente vê, na matéria dos pontos números 96.º a 107.º dos factos provados, a prova de que a não detecção das malformações do coração do feto não lhe é imputável, a título de culpa. A matéria em questão é a seguinte:
· Em nenhum dos exames ecográficos realizados foi detectada pelo réu qualquer situação de alarme que justificasse a realização de algum exame complementar, sendo as condições de observação da grávida as consideradas normais (96.º);
· O réu nunca identificou qualquer sinal de patologia cardíaca do feto, sendo os registos cardiotocográficos reactivos e normais (97.º);
· Nas imagens referentes às ecografias juntas aos autos pela autora não se detecta qualquer situs inversus, nem qualquer comunicação interventricular ou outra patologia (98.º);
· A CC faleceu por insuficiência renal e insuficiência cardíaca, na sequência das infecções por si contraídas durante o período de internamento hospitalar a que esteve sujeita (99.º);
· O falecimento da CC não resultou de qualquer acto médico praticado pelo Réu, nem este provocou qualquer tipo de doença ou patologia (100.º);
· A dextrocardia, só por si, não provoca a morte (101.º);
· A comunicação interventricular pode ser corrigida com a realização de cirurgias (102.º);
· O réu não é responsável pela implantação dos grandes vasos na gestação da CC, nem pelas patologias que a afectavam (103.º).
· O retorno venoso pulmonar anómalo total e a atresia pulmonar são de muito difícil diagnóstico intra-uterino (104.º);
· Os dados transmitidos pelo ecógrafo comportam uma margem de erro (105.º);
· Foi prestada à CC a mesma assistência médica que se revelaria adequada caso a cardiopatia tivesse sido diagnosticada antes do seu nascimento (106.º);
· A dextrocardia não é a causa de qualquer comunicação interventricular nem da malposição das grandes artérias, nem do retorno venoso pulmonar anómalo total (107.º).

Da matéria acabada de transcrever, a única que é susceptível de contender com as razões pelas quais o réu ora recorrente não detectou as malformações do coração do feto é a discriminada sob os números 104 e 105.º. Porém, como bem se observou na sentença, nenhuma desta matéria justifica o facto de o réu, ora recorrente, não ter detectado as malformações do feto. Assim:
· A circunstância de o retorno venoso pulmonar e a atresia pulmonar serem de muito difícil diagnóstico intra-uterino justificam a não detecção destas anomalias. Sucede que estas não eram as únicas malformações do coração. Havia outras, descritas no ponto n.º 40, em relação às quais não existiam tais dificuldades de diagnóstico intrauterino.
· A circunstância de os dados transmitidos pelas ecografias comportarem uma margem de erro também não justifica que o réu não tenha detectado nenhuma das anomalias do coração do feto, como sucedeu no caso. Como bem se escreveu na sentença, não resulta da matéria de facto que o erro em que incorreu o réu ora recorrente quanto ao diagnóstico das anomalias do coração do feto esteja compreendida na margem de erro das ecografias fetais.

Considerando a noção de culpa relevante no caso e a matéria assente, é de concluir, como fez a sentença sob recurso, que o facto de o réu, ora recorrente, não ter detectado nenhuma das malformações do coração do feto durante a gravidez da autora é-lhe imputável a título de culpa.

Vejamos.

Por aplicação conjugada do n.º 2 do artigo 799.º do Código Civil com o artigo 487.º, n.º 2, do mesmo diploma, a culpa do réu era apreciada, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso, visto que não era aplicável ao caso outro critério legal de apreciação da culpa. Socorrendo-nos da lição de Inocêncio Galvão Teles, a menção que o preceito faz à “diligência de um bom pai de família” tem em vista “um homem de diligência normal”. Por sua vez a referência “às circunstâncias de cada caso”, significa, também de acordo com o citado autor, o seguinte: “Em primeiro lugar, significa que o próprio padrão a ter em conta varia em função do condicionalismo da hipótese e designadamente do tipo de actividade em causa, não podendo o modelo ser o mesmo conforme se trata da construção de um imóvel ou da condução de um processo judicial. Ali o paradigma será um tipo normal de construtor, aqui um tipo normal de advogado. Em segundo lugar, a alusão às circunstâncias de cada caso significa que, para se concluir se houve ou não culpa, se deve conjecturar como o homem-padrão (o comerciante idóneo, se se tratar de actividade mercantil, ou o cirurgião idóneo, se se trata de uma operação, ou o simples homem médio, desprovido de atributos profissionais, se se trata de uma actividade comum) teria agido dentro do condicionalismo concreto na hipótese” [Direito das Obrigações, 7.ª Edição Reimpressão Wolters kluwer, Coimbra Editora, páginas 353 e 354].

Como se escreve na sentença, citando-se Henrique Gaspar, aplicando a fórmula do n.º 2 do artigo 487.º à actividade médica, a culpa é aferida “pelo zelo, pelas qualidades, pelo discernimento que em cada caso concreto teria tido um médico normalmente competente, cuidadoso, um profissional que, sem ter de ser excepcionalmente competente, atinja, pelo menos, o nível médio dos da sua classe” [A Responsabilidade Civil do Médico, Colectânea de Jurisprudência, Ano III, 1978, Tomo I, pág. 341].

Estando provado que a ecografia referente ao segundo trimestre de gestação não poderia deixar de revelar a existência de sinais que fundamentavam a suspeita de que a CC padecia de uma cardiopatia (ponto n.º 80); que o réu não identificou a malformação do coração do feto por ter visualizado os exames ecográficos realizados à autora de forma desatenta (83.º); que o réu podia ter detectado a anomalia que afectava o coração da CC (87.º); que o réu não se apercebeu da dextrocardia que era visível através da realização de ecografias fetais (88.º); que as considerações de observação da grávida eram as consideradas normais (96.º); e que nas imagens referentes às ecografias juntas aos autos pela autora não se detecta qualquer situs inversus, nem qualquer comunicação interventricular ou outra patologia, a conclusão a retirar de todos estes factos é a de que o réu, ora recorrente, não agiu como teria agido um médico ginecologista normalmente competente, cuidadoso e cumpridor das normas emitidas pelas autoridade de saúde sobre realização de ecografias obstétricas no segundo semestre de gravidez. Se o tivesse feito teria detectado com toda a probabilidade malformações do coração do feto. 

Pelo exposto, não merece reparo a sentença quando entendeu que o facto de o réu, ora recorrente, não ter detectado, durante a gravidez da autora, as malformações do coração do feto é de imputar ao mesmo, a título de culpa.


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Sob as conclusões 27ª a 35.ª, o recorrente insurgiu-se contra o segmento da sentença que afirmou a existência de nexo de causalidade adequada entre a omissão ilícita e culposa que lhe é imputada (não ter detectado as malformações do coração do feto durante a gravidez da mãe, especialmente nas ecografias que realizou e, consequentemente, não a ter informado de tais anomalias) e os danos não patrimoniais sofridos pela autora. Fê-lo com a seguinte linha argumentativa.
· Que o incumprimento do médico reduzia-se, em última análise, ao seu dever de informação sobre o prognóstico, diagnóstico e riscos envolventes, o que faz parte dos deveres laterais do contrato médico;
· Que o tribunal recorrido fez errada interpretação do artigo 799.º, n.º 1, o Código Civil, pois o pressuposto determinante da responsabilidade médico em apreço era a ausência de comunicação do resultado de um exame, o que configuravas erro de diagnóstico, e a deficiência/patologia verificada na criança que poderia ter culminado com a faculdade de os pais interromperem a gravidez e obstar ao nascimento de uma criança com deficiência ou patologia grave, poupando-se ao sofrimento de ver a bebé submetida a intervenções cirúrgicas; 
· Que este nexo de causalidade carecia, como pressuposto essencial, de ver alegada e provada a possibilidade legal de interromper a gravidez nos termos do artigo 142.º do CP e/ou que os pais pretendiam mesmo assim levar a gravidez até ao fim, o que no caso não estava alegado nem provado;
· Que os danos referidos nos factos provados sob os números 77, 78 e 89 não resultavam da actuação do recorrente, nem de forma indirecta, mas da actuação de terceiros, outros médicos que consideraram a vida do bebé viável e que por tal razão a submeteram a intervenções cirúrgicas e medicação;
· Que a perda da vida não resulta da actuação do réu, pelo que não pode ser assacada responsabilizado pelos danos referidos em 90 a 93;
· Que tribunal a quo afirmou que a indemnização é devida pelo impacto e surpresa após o nascimento serem confrontados com a cardiopatia complexa;
· Que os factos provados em que o tribunal alicerça os danos morais sofridos pela autora não têm nada a ver com tal surpresa, mas sim com o dano vida da filha, o qual nestes autos não pode ser considerado.

Apreciação do tribunal:

O fundamento do recurso ora em apreciação é de julgar procedente, embora não por todas as razões alegadas pelo recorrente. Vejamos.

É incontroverso que a imposição ao réu, ora recorrente, da obrigação de indemnizar a autora pelos danos não patrimoniais que alegou pressupunha a prova de um nexo de causalidade entre a acção ilícita e culposa que lhe é imputada e tais danos. O fundamento legal de tal exigência encontra-se no artigo 563.º do Código Civil, ao dispor que “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (leia-se facto ilícito contratual ou extracontratual).

Seguindo a propósito da interpretação deste preceito as palavras de Mário Júlio de Almeida Costa, a ideia central da causalidade nele prevista é a de que “considera-se causa de um prejuízo a condição que, em abstracto, se mostra adequada a produzi-lo” ou, numa formulação mais ampla, “o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido unicamente em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais” [Direito das Obrigações, 11ª Edição revista e actualizada, Almedina, página 763]. Formulação ampla que o citado autor entende que deve valer no domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos culposos, contratuais ou extracontratuais. E formulação ampla que tem sido acolhida pela jurisprudência do STJ, como o atestam, entre outros, os seguintes acórdãos:
· O acórdão do STJ de 2-11-2004 processo n.º04A3457 publicado no sítio www.dgsi.pt onde se escreveu que a teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes: uma formulação positiva e uma formulação negativa. Segundo a formulação positiva (mais restrita), o facto só será causa adequada do dano sempre que este constitua uma consequência normal ou típica daquele, isto é, sempre que verificado o facto, se possa prever o dano como uma consequência natural ou como um efeito provável dessa verificação. Na formulação negativa (mais ampla), o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias anormais, excepcionais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto. Segundo este acórdão, por mais criteriosa, deve reputar-se adoptada pela nossa lei a formulação negativa da teoria da causalidade adequada;
· O Acórdão do STJ de 2-11-2010, processo n.º 2290/04.0TBBCL publicado também no sítio www.dgsi.pt, afirmando que o artigo 563.º do Código Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa, segundo a qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias;
· O acórdão do STJ proferido em 18-12-2013 no processo n.º1749/06.0TBSRS, também publicado no sítio www.dgsi.pt, onde se afirmou que o artigo 563º do Código Civil consagrava a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa.

Seguindo-se esta interpretação do artigo 563º do Código Civil, quando houver uma pluralidade de eventos que possam ter produzido o dano ou concorrido para a sua produção, o tribunal deverá começar por tomar em linha de conta todos esses eventos. Seguidamente deverá averiguar se o facto em questão foi condição do dano, no sentido de saber se está na cadeia de eventos que culminou com a produção do dano. Se a resposta for afirmativa, uma vez que na teoria da causalidade adequada, a idoneidade de um facto para produzir um determinado dano se afere em abstracto, no sentido do que é normal ou usual ocorrer em consequência desse facto, caberá ao tribunal indagar se a experiência ou curso normal das coisas mostram que é usual ou normal que o evento em causa produza o dano ou se para a sua produção do dano contribuíram decisivamente circunstâncias anormais, excepcionais, extraordinárias ou anómalas.

Interpretado o artigo 563.º com o sentido exposto, é de afirmar que os factos provados não demonstram o nexo de causalidade entre acção ilícita e culposa do réu, ora recorrente, e os danos que foram objecto de indemnização, embora, como se escreveu acima, não por todas as razões alegadas pelo recorrente.

A razão invocada que não tem pertinência para justificar a inexistência do nexo de causalidade é a constituída pela alegação de que tal nexo pressupunha a prova da possibilidade legal de a autora interromper a gravidez nos termos do artigo 142.º do Código Penal ou que os pais pretendiam, mesmo assim, levar a gravidez até ao final da gestação.

Ao alegar nestes termos, o recorrente argumenta como se a sentença sob recurso tivesse condenado o réu, ora recorrente, a indemnizar os danos não patrimoniais sofridos pela autora por esta não ter tido a possibilidade de interromper a gravidez, como teria sucedido no caso de ele, réu, ter diagnosticado a malformação do coração e de a ter informado de tais malformações. Sucede que não foi esta a razão da decisão recorrida para afirmar o nexo de causalidade. O tribunal a quo entendeu que havia tal nexo entre a omissão ilícita e culposa do réu e os danos não patrimoniais sofridos pela autora (sofrimento, tristeza, angústia, revolta e depressão que afectaram a própria autora, reflexamente, por ter acompanhado o padecimento e a agonia da sua filha recém-nascida e, mais tarde, pelo próprio falecimento da mesma) por tal omissão não ser indiferente a estes danos. E não era indiferente porque os potenciou. Segundo a sentença, a circunstância de a autora não ter sido informada da cardiopatia congénita que afectava a sua filha impediu-a de preparar-se durante a gravidez para as adversidades que se aproximavam; tendo tido conhecimento da cardiopatia no segundo dia de vida, acompanhou o sofrimento da criança e padecimento em condições diferentes das que se se teriam verificado se se tivesse informado.

As restantes alegações do recorrente já procedem contra a decisão recorrida.

Em primeiro lugar procede contra ela a alegação de que os danos não patrimoniais que foram objecto de indemnização não resultam da omissão ilícita e culposa imputada ao réu, ora recorrente. Os factos que deram origem aos danos não patrimoniais indemnizados são constituídos pela morte da criança e pelos padecimentos e agonia dela, como o atesta o seguinte trecho da sentença: “encontra-se agora em apreciação todo o sofrimento, tristeza, angústia, revolta e depressão que afetaram a própria Autora, reflexamente, por ter acompanhado o padecimento e a agonia da sua filha recém-nascida e, mais tarde, pelo próprio falecimento da mesma”.

Se a omissão ilícita e culposa do réu, ora recorrente, não foi causa da morte da criança nem dos seus padecimentos e agonia, tal omissão também não poderá ser considerada causa dos danos não patrimoniais que a autora sofreu com a morte, o sofrimento e a agonia da filha.

Em segundo lugar também procede a alegação de que não tem apoio nos factos provados a decisão de indemnizar os danos não patrimoniais com base nos seguintes factos: 1) no facto de a autora não ter sido informada da cardiopatia congénita que afectava a sua filha e de ter sido impedida de preparar-se durante a gravidez para as adversidades que se aproximavam; 2) no facto de, tendo tido conhecimento da cardiopatia no segundo dia de vida, ter acompanhado o sofrimento da criança e padecimento em condições diferentes das que se se teriam verificado se se tivesse informado.

Ao justificar nestes termos o nexo de causalidade entre as omissões do réu (omissão de diagnóstico e omissão de informação da autora) e os danos indemnizados, a sentença sob recurso navega nas águas da “perda de chance”. Na verdade, a lógica argumentativa da sentença é a seguinte: a autora, ao não ser informada, durante a gravidez, das malformações do feto, perdeu a oportunidade de se preparar para adversidades que a atingiram, concretamente a morte e o sofrimento da filha, e foi a perda desta oportunidade que fez com que o sofrimento da criança e o padecimento dela fossem vividos pela autora em condições diferentes das que se se teriam verificado se tivesse sido informada.

No plano das hipóteses, não é de excluir a hipótese de a autora, no caso de ter sido informada durante a gravidez que o coração do feto tinha malformações graves e complicadas, ter vivido a dolorosa situação por que passou a criança desde o seu nascimento até à morte de maneira algo diferente daquela viveu.

Sucede que, pese embora o mais elevado respeito que nos merece o sofrimento a autora, não decorre dos factos provados que os danos não patrimoniais que foram indemnizados pela sentença recorrida, tenham sido causados pelo facto de a ora recorrida não ter tido a oportunidade para se preparar durante a gravidez para as adversidades que experimentou, concretamente o padecimento e a morte da sua filha. E note-se que esta realidade não decorre da matéria assente não por qualquer insucesso probatório da demandante, mas porque esta a não alegou. A sua opção foi a de pedir a indemnização dos danos não patrimoniais que sofreu com a morte e os padecimentos da criança, sua filha, desde o nascimento até à sua morte. Daí que, ao fundamentar juridicamente o direito de indemnização pelos danos não patrimoniais, tenha invocado, no artigo 159.º da petição, o n.º 4 do artigo 496.º do Código Civil (por lapso a autora indicou o n.º 3 do artigo 496.º), na parte em que dispõe “no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”.

A conclusão a retirar da matéria de facto é a que a autora, ora recorrida, não demonstrou, como lhe cabia (n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil), o nexo de causalidade entre a omissão ilícita e culposa imputada ao réu, ora recorrente, e os danos não patrimoniais que foram objecto de indemnização. Visto que tal nexo de causalidade era condição necessária da obrigação de indemnizar tais danos, a decisão conforme à lei era a improcedência do pedido de condenação na indemnização de tais danos. Há, assim, fundamento para revogar a sentença e substitui-la por decisão que absolva o réu de tal condenação.


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Com a solução dada à questão do nexo de causalidade, fica prejudicado o conhecimento da última questão suscitada no recurso sob as conclusões 36.ª e 37.ª, relativa ao montante da indemnização.

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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência:
1. Revoga-se a sentença na parte em que condenou o réu, ora recorrente, a pagar à autora a quantia de € 25 000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença até integral pagamento;
2. Substitui-se esse segmento da sentença por decisão a absolver o réu do pagamento à autora a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde a data da sentença até integral pagamento, a título de indemnização por danos não patrimoniais.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a autora, ora recorrida, ter ficado vencida no recurso caberia à mesma suportar as custas do recurso. Uma vez que goza do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não se condena a mesma no pagamento de custas.

Coimbra, 30 de Maio de 2023