Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
612/22.1T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
COMPETÊNCIA DOS JUÍZOS DE FAMÍLIA E MENORES
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 117.º E 122.º, 1, C) E 2 DA LOSJ
ARTIGOS 96.º, A), 99.º; 100.º; 576.º; 577.º, A); 578.º; 1082.º, D); 1083.º, 1, B) E 1092.º, 1, B) E 2, DO CPC
Sumário:                1. Destinando-se o processo de inventário, nomeadamente, à partilha dos bens comuns do casal [art.º 1082º, alínea d), do CPC] e sendo da competência exclusiva dos tribunais judiciais sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial [art.º 1083º, n.º 1, alínea b), do CPC], à remessa para os meios comuns prevista no art.º 1092º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do CPC, determinada, por exemplo, por juízo de família e menores no âmbito de processo de inventário subsequente a divórcio, que nele tramita, subjaz a necessidade de uma mais larga indagação e discussão da matéria de facto.

               2. Exercendo os juízos de família e menores as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos (art.º 122º, n.º 2, da LOSJ), a remessa para os meios comuns (ou ação comum) significa, tão só, lançar mão de forma ou meio que permita uma mais larga e avisada indagação e discussão de uma mesma matéria que se considerou não poder/dever ser incidentalmente apreciada e decidida no próprio processo de inventário apenso.

               3. O Juízo de Família e Menores é materialmente competente para a tramitação e o conhecimento da questão a dilucidar - além das inerentes (e comuns) garantias processuais e probatórias, intervém o Juízo especialmente vocacionado para apreciar, entre outras, matérias que contendam com “as tradicionais e marcantes particularidades do estado de casado”, as especificidades da “comunhão conjugal” e os “três patrimónios” convocados na ponderação dessa realidade.

Decisão Texto Integral:

Apelação 612/22.1T8CTB.C1
Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Alberto Ruço
                 Vítor Amaral



                                                                     *
(…)


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            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            I. Em 08.4.2022, AA intentou a presente ação declarativa comum contra BB, no Juízo Central Cível ..., pedindo que o Réu seja condenado a:         

            a) Reconhecer, a fim de ser levado a partilhas no inventário para partilha subsequente a divórcio em que são partes a A. e o Réu, identificado nos art.ºs 3º e seguintes da petição inicial (p. i.), que o prédio urbano, destinado a habitação, de betão armado, alvenaria de tijolo e pedra, composto de rés-do-chão com 1 divisão assoalhada, cozinha e garagem; 1º andar com 3 divisões assoalhadas e casa de banho e sótão para arrumos, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o art.º ...01 e descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) da ... sob o n.º ...93, reconstruído por A. e Réu nas circunstâncias de tempo, lugar e modo descritos de 10º a 39º e de 43º a 46º, entre outros, da p. i., é de valor muito superior ao do palheiro então existente até à realização de tais obras, e é bem comum do dissolvido casal, constituído por A. e Réu e, por via de tal situação e comunhão, ser, como tal, declarado como bem comum a partilhar, relacionado e aditado à relação de bens constante do inventário para partilha subsequente a divórcio que corre termos, sob o n.º 436/19...., no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Família e Menores ..., para efeitos de partilha, do mesmo, entre A. e Réu, pelo valor que vier a ser declarado em perícia a realizar sobre o mesmo, mas nunca inferior a € 80 000;

            Ou, assim se não entendendo, subsidiariamente, para o caso de se entender o imóvel, objeto dos autos, como bem próprio do Réu;

            b) A indemnizar a A. pelo valor das benfeitorias úteis realizadas no prédio urbano descrito em 9º e 14º da p. i., melhor identificadas de 12º a 33º da p. i. e também melhor referenciadas na memória descritiva e justificativa, instruída no processo de licenciamento camarário n.º 385/00, da Câmara Municipal ..., que são insuscetíveis de serem levantadas sem detrimento do imóvel, de valor nunca inferior a € 40 000, correspondente ao valor da meação e crédito da A. no montante de tais benfeitorias, em consequência do casamento celebrado entre A. e Réu, agora já dissolvido por divórcio, quantia e montante que deverá ser acrescido, dos juros legais vencidos e vincendos, calculados desde a data da citação do Réu e até integral pagamento;

            Ou, ainda, em alternativa, sempre para o caso de se entender, que o imóvel objeto dos autos é bem próprio do Réu;

            c) Para efeitos de partilha no supra referido inventário, a reconhecer, como direito de crédito do património comum a partilhar, o valor total das benfeitorias úteis, efetuadas a expensas de A. e Réu, supra descritas em sede de articulado de p. i., no prédio imóvel deste objeto, as quais são insuscetíveis de serem levantadas sem detrimento do imóvel, no prédio supra referido, em montante e valor nunca inferior a € 80 000, devendo as mesmas, e por este valor, ou o que vier a resultar da sua avaliação, serem relacionadas no mesmo inventário, como direito de crédito do ativo a partilhar, sobre o Réu.

            Alegou, em síntese: A. e Réu foram casados, entre si, no regime da comunhão de bens adquiridos desde .../.../1982 até .../.../2021, data em que foi decretado o divórcio, por sentença transitada em julgado e proferida nos autos de processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, que sob o n.º 436/19...., correram termos no Juízo de Família e Menores ..., do Tribunal Judicial da Comarca ...; a .../.../2021, o Réu intentou inventário para partilha subsequente a divórcio que corre termos no referido Juízo de Família e Menores por apenso (B) aos referidos autos de divórcio; em tais autos de inventário, por requerimento de 18.10.2021, a A., na qualidade de cabeça de casal, apresentou a relação de bens, tendo aí relacionado, entre outros, como direitos de crédito, as mencionadas benfeitorias realizadas, na constância do casamento, no prédio urbano atualmente descrito na CRP ... sob o n.º ...02, que consistiram na total reconstrução do prédio em ruínas, melhor descritas na memória descritiva e justificativa das obras de reconstrução (processo camarário de licenciamento de edificação n.º ...0, devidamente aprovado), e que A. e Réu, em materiais comprados e aplicados e mão de obra, gastos na obra de reconstrução do prédio objeto dos autos, gastaram, no mínimo, o montante de € 80 000; o Réu reclamou da relação de bens apresentada pela A./cabeça de casal, pugnando pela eliminação da verba n.º 1 do ativo onde estavam relacionadas, por aquela, as benfeitorias que a A. reclama nestes autos; por despacho de .../.../2022, emitido nos autos de inventário para partilha subsequente a divórcio, decidiu o tribunal remeter os interessados quanto a esta questão, para os meios comuns.

            O Réu contestou referindo, nomeadamente, que o que divide as partes não é a titularidade do bem, mas sim a realização ou não das alegadas benfeitorias. Concluiu pela improcedência da ação.

            Instruídos os autos e observado o contraditório, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, por decisão de 06.12.2022, julgou o Juízo Central Cível incompetente em razão da matéria para a tramitação dos presentes autos, nos termos dos art.ºs 96º, al. a), 99º, 100º, 576º, 577º, al. a), e 578º do Código de Processo Civil (CPC) e 117 e 122º, n.ºs 1, al. c) e n.º 2, da LOSJ, considerando o Juízo de Família e Menores ... competente para a tramitação (art.º 122º, n.º 1, al. c) e n.º 2, da LOSJ).

 Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - A competência material dos Juízos de Família e Menores, que integram Tribunais de competência especializada, está prevista nos art.ºs 122º (competência relativa ao estado civil das pessoas e família); 123º (competência relativa a menores e filhos maiores) e 124º (competência em matéria tutelar educativa e de proteção) da Lei da Organização do Sistema Judiciário - Lei n.º 62/2013, de 26.8.

            2ª - Estando em causa uma ação proposta pela recorrente para reconhecimento da sua contitularidade no direito de propriedade sobre certo bem imóvel, é manifestamente de excluir tal matéria, dos elencos de competência previstos naqueles art.ºs 123º e 124º e também manifestamente de excluir do elenco de competências previstos no n.º 1 do art.º 122º, designadamente da sua alínea c) e n.º 2 deste artigo, todos da LOSJ, como entendeu o Tribunal a quo.

            3ª - Surgindo questões conexas, é certo, com bens relacionados ou a relacionar e sempre a final a partilhar, para cuja resolução se revelam inadequados os constrangimentos inerentes ao processo de inventário, cuja tramitação difere substancialmente da prevista para o processo comum, justificou-se a remessa dos interessados para os meios comuns, e justifica-se que a matéria objeto dos autos seja decidida pelos tribunais comuns, designadamente, pelo Juízo Central Cível ..., onde foram instruídos.

            4ª - A questão primordial é relativa ao reconhecimento de propriedade sobre imóvel e benfeitorias no mesmo realizadas, sua natureza e valor, por recorrente e recorrido, de modo que, posteriormente, possam ser partilhados entre o dissolvido casal, matéria que é da competência dos tribunais comuns e excluída da competência dos Juízos de Família e Menores.

            5ª - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, nos termos do art.º 40º da LOSJ.

            6ª - E, nos termos do art.º 117º da mesma Lei, cabe aos Juízos Centrais Cíveis, ao abrigo da sua respetiva competência material, a preparação e julgamento de ações

declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000, tal como é o caso dos autos.

            7ª - O tribunal a quo, ao decidir como o fez violou o disposto nos referidos art.ºs 40º, 117º, 122º, 123º e 124º, da LOSJ e nos art.ºs 96º, alínea a), 99º, 100º, 576º, 577º, alínea a) e 578º do CPC.

            8ª - Devendo a sentença recorrida ser substituída por outra que julgue o Juízo Central Cível ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., o materialmente competente para conhecer da matéria em apreço nos autos e em consequência ordene o seu prosseguimento até final como peticionado na p. i..

O Réu não respondeu.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, questiona-se a competência em razão da matéria para conhecer do objeto do litígio (máxime, se o Juízo de Família e Menores é competente em razão da matéria para conhecer da ação proposta pela A./recorrente).


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II. 1. Além da matéria que resulta do relatório que antecede, importa considerar o mencionado despacho de 27.01.2022, proferido nos autos de processo de inventário n.º 436/19...., com o seguinte teor: «Quanto às alegadas “benfeitorias” realizadas no imóvel, atenta a sua natureza e a complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente trata-se de questão que não deve ser incidentalmente decidida, pelo que remeto as partes para os meios comuns, o que determinará a suspensão da instância (art.º 1092º, n.º 1, al) b) do CPC). / Notifique nos termos e para efeito do disposto no art.º 1092º, n.º 3 do citado normativo legal.»

2. Cumpre apreciar e decidir.

Vistos os autos, o atual regime jurídico e a posição da jurisprudência sobre a matéria, afigura-se, sem quebra do respeito sempre devido por entendimento diverso, que nada será de objetar ao assim decidido em 1ª instância.

Refere-se na decisão sob censura (acrescentam-se algumas “notas”):

«A questão que importa aqui decidir é a de saber a quem compete tramitar os presentes autos, que surgem na sequência de inventário pendente para partilha de bens entre A. e Réu, na sequência de divórcio entre ambos, e que foi remetida para os meios comuns, pela Mm.ª Juiz do Juízo de Família e Menores ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., onde corriam os autos de inventário para separação de meações subsequente a divórcio.

               É pacífico o entendimento de que a competência de um tribunal se afere ou é determinada em função dos termos em que a ação é configurada pelo autor.[1]

               Não há dúvida que, independentemente do mérito dos pedidos formulados, a A. moveu a ação por suspensão do inventário, pendente em Tribunal, e da remessa para os meios comuns relativamente ao objeto da presente ação.

               Nos termos do disposto no art.º 40º, n.º 1, da LOSJ[2], «Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».[3]

               A competência material dos Juízos centrais cíveis está regulada no artigo 117º da LOSJ, cabendo-lhe a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000.[4]

               A competência em razão da matéria dos Juízos de família e menores, está fixada no seu artigo 122º, nos termos do qual, no que aqui interessa, lhe compete a preparação e julgamento das ações de separação de pessoas e bens e de divórcio (n.º 1, al. c), cabendo-lhes, ainda, de acordo com o seu n.º 2: «as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos».

               Dispõe-se ainda no art.º 1083º, n.º 1, al. b), do CPC (...) [que] o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais, sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.

               E, segundo seu art.º 1133º, n.º 1, decretado divórcio, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.

               Conclui-se pela verificação de uma conexão entre o inventário para separação de meações e a ação de divórcio que o precedeu, como decorre do disposto no art.º 206º, n.º 2, do CPC e que o inventário para separação de meações, subsequente a ação de divórcio, corre termos nos Juízos de família e menores – neste sentido os Acórdãos da RL de 14.7.2020-processo n.º 99/16.6T8CSC-D.L1-7, da RC de 23.02.2021-processo n.º 435/20.2T8PBL-A.C1 e de 04.5.2021-processo 592/20.8T8PBL.C1.

               Refere-se neste último aresto: «Ora, cabendo a competência aos Juízos de família e menores para a tramitação dos autos de inventário para partilha dos bens comuns, subsequente a divórcio, o que se justifica pela relação de dependência e conexão entre ambos os processos, justificada por razões de economia processual, atento a que no processo de divórcio constarão – ou poderão constar – elementos relevantes para a determinação da partilha a efetuar no inventário subsequente, não vemos razões para que assim deixe de ser no caso de se tratar de uma ação intentada na sequência da suspensão do processo de inventário, motivada pela remessa da decisão de uma concreta questão para os meios comuns.

               Não deixa, por isso, de se tratar de uma questão que tem que ver com a partilha a efetuar, não relevando, salvo o devido respeito por contrário entendimento, para a determinação da competência em apreço, que a questão seja decidida no próprio processo de inventário ou em ação própria para tal intentada, que só o foi por decisão tomada no processo de inventário.

               Realce-se que o n.º 2 do art.º 122º da LOSJ atribui aos Juízos de família e menores “as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de … divórcio”.

               Ora, se o legislador pretendesse estabelecer qualquer diferenciação entre as questões a resolver no processo de inventário, designadamente, que a competência dos Juízos de família e menores ficava limitada aos termos estritos do processo de inventário e não já às ações instauradas na sequência deste, por remessa para os meios comuns, tê-lo-ia dito, o que não fez.

               Ao invés, estabelece, em termos gerais, as competências dos Juízos de família e menores, no que respeita à tramitação dos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens ou divórcio

               Pese embora não se ignore o voto de vencido vertido no referido aresto, bem como a jurisprudência vertida no Acórdão da RP de 26.10.2020-processo 1029/20.8T8PRD.P1, certo que é também bons argumentos se expendem no Acórdão da RC de 04.5.2021-processo 592/20.8T8PBL.C1. Repare-se que, não havendo a decisão de suspender o processo de inventário para remessa para os meios comuns relativamente a uma determinada questão pela sua complexidade (que não ficou patente qual, mas que se conclui ser complexidade para a estrutura incidental da reclamação à relação de bens em inventário), sempre seria o Juízo de Família e Menores a decidir a questão. A remessa para os meios comuns poderá, então, e como bem se afirma no aresto citado, ter o significado de necessidade de haver uma ação autónoma (face, nomeadamente à complexidade de facto), com os prazos previstos para a ação declarativa. Mas não deixa de ser uma ação instaurada na sequência do processo de inventário e de se entender que a apreciação da matéria de facto não se coaduna com o incidente de reclamação à relação de bens, bem podendo integrar-se na previsão do art.º 122º, n.º 2, da LOSJ.

               Assim, concluindo, o presente Juízo Central Cível é materialmente incompetente para a tramitação dos presentes autos, sendo competente para tal o Juízo de Família e Menores ..., o que se decidirá (art.ºs 96º, al. a), 99º, 100º, 576º, 577º, al. a), e 578º do CPC e 117º, 122º, n.ºs 1, al. c) e n.º 2, da LOSJ).»

            3. Destinando-se o processo de inventário, nomeadamente, à partilha dos bens comuns do casal [art.º 1082º, alínea d), do CPC] e sendo da competência exclusiva dos tribunais judiciais sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial [art.º 1083º, n.º 1, alínea b), do CPC], dúvidas não restam de que a remessa para os meios comuns operada na situação dos autos - prevista no art.º 1092º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do CPC -, justifica-se, apenas, pela necessidade de uma mais larga indagação e discussão da matéria de facto em causa, dada a sua relativa complexidade[5], e não, propriamente, porque se trate de questão que deva ser submetida à apreciação de outro tribunal/juízo de competência especializada.[6]

            Exercendo os juízos de família e menores as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos (art.º 122º, n.º 2, da LOSJ), a remessa para os meios comuns (ou ação comum) significa, tão só, lançar mão de forma ou meio que permita uma mais larga e avisada indagação e discussão de uma mesma matéria que se considerou não poder/dever ser incidentalmente apreciada e decidida no próprio processo de inventário apenso.[7]

            4. Na situação em análise, decidindo-se como na 1ª instância, além das inerentes (e comuns) garantias processuais e probatórias, afirma-se a intervenção do correspondente Juízo de Família e Menores, especialmente vocacionado para apreciar, entre outras, matérias que contendam com “as tradicionais e marcantes particularidades do estado de casado”, as especificidades da “comunhão conjugal” e os “três patrimónios” convocados na ponderação dessa realidade.[8]

            Assim, acolhendo o demais expendido na decisão recorrida[9], o Juízo de Família e Menores ... é materialmente competente para a tramitação e o conhecimento da questão a dilucidar.

            5. A decisão recorrida não desrespeita as normas do processo ou da organização judiciária.[10]

            6. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas pela A./apelante, sem prejuízo do apoio judiciário concedido a fls. 64 verso.

            Vão os autos com vista ao Exmo. Magistrado do M.º Público (cf. fls. 64 verso, 71 a 74 e 130 a 136).


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16.5.2023




[1] A competência material do tribunal afere-se em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida - vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 91 e 95 e os Acórdãos do STJ de 12.01.1994, 22.01.1997, 20.5.1998 e 26.6.2001, in CJ-STJ, II, 1, 38 e V, 1, 65; BMJ, 477º, 389 e CJ-STJ, IX, 2, 129, respetivamente -, sendo que o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (i. é, o pedido) se encontra necessariamente correlacionado com o facto concreto que lhe serve de fundamento/causa de pedir.

[2] Lei da Organização do Sistema Judiciário/LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8.

[3] Normativo idêntico ao art.º 64º do CPC.

  Consta do n.º 2 do mesmo art.º da LOSJ que esta Lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada (n.º 2; a 1ª parte deste n.º é idêntica ao art.º 65º do CPC).

   Preceitua a mesma Lei que os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca (art.º 79º); são competentes para preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais (art.º 80º, n.º 1); têm competência genérica ou competência especializada (n.º 2).

   E, ainda, que os tribunais de comarca podem compreender, entre outros, os seguintes juízos de competência especializada: Central cível; Local cível; Família e menores (art.º 81º, n.ºs 1 e 3).
[4] Art.º 117º, n.º 1, alínea a).

[5] Nos termos do referido art.º, sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância: a) Se estiver pendente uma causa em que se aprecie uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha; b) Se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas; c) Se houver um interessado nascituro, a partir do conhecimento do facto nos autos e até ao nascimento do interessado, exceto quanto aos atos que não colidam com os interesses do nascituro (art.º 1092º, n.º 1 do CPC, na redação conferida pelo Lei n.º 117/2019, de 13.9). No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens (n.º 2).
   Relativamente a outras questões prejudiciais, estabelece o n.º 1 do art.º 1093º do CPC: se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.
[6] É, pois, a necessidade de uma larga, aturada e complexa indagação, que não se compadece com uma instrução sumária, que justifica a remessa das partes para os meios comuns – cf., de entre vários, no domínio de aplicação de normas similares do CPC de 1961, acórdão do STJ de 16.12.1980, BMJ 302º, 257.

[7] Ademais, findo o processo de divórcio, visando o requerente acautelar a partilha dos bens do extinto casal a concretizar no processo de inventário, os juízos especializados de família e menores são os tribunais materialmente competentes para preparar e julgar os procedimentos cautelares que sejam prévios ou incidentais dos processos de inventário instaurados em consequência de separação de divórcio (art.º 122º, n.º 2, da LOSJ) – cf., neste sentido, nomeadamente, acórdão da RG de 14.02.2019-processo 1551/18. 6T8VRL.G1, publicado no “site” da dgsi.
[8] Vide F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I., 5ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, págs. 505 e seguintes.

[9] Mormente na parte em que se reproduz a fundamentação do acórdão desta Relação de 04.5.2021-processo 592/20.8T8PBL.C1 [com o sumário: «Os juízos de família e menores são competentes em razão da matéria para tramitar a ação declarativa instaurada na sequência de decisão proferida no sentido de suspender o processo de inventário pendente em Cartório Notarial e de remeter os interessados para os meios comuns relativamente a determinadas questões concretas suscitadas naquele processo.»], publicado no “site” da dgsi.

[10] Com uma diferente perspetiva, cf. o acórdão da RP de 26.10.2020-processo 1029/20.8T8PRD.P1 [assim sumariado: «I - A remessa dos interessados para os meios comuns, determinada pela autoridade competente para inventário em curso, integra uma remissão para a ação ou procedimento adequados e perante o tribunal materialmente competente, já que sendo fundamento daquela remessa a existência de questão ou questões que, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto e de direito, há que tratar e decidir fora do processo de inventário, a competência material do respetivo tribunal há-de buscar-se pela matéria discutida;
II - Não cabe nos elencos de matérias da competência do Juízo de Família e Menores, a ação, proposta na sequência daquela remessa para os meios comuns, de
reconhecimento da contitularidade da Autora no direito de propriedade sobre certos bens móveis e ainda do seu direito de propriedade exclusiva sobre outros bens móveis e condenação do Réu à sua restituição.»], publicado no “site” da dgsi, bem como a “declaração de voto” junta ao acórdão mencionado na “nota 9”, supra.