Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
331/21.6GBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ESTRUTURA ACUSATÓRIA DO PROCESSO PENAL
REJEIÇÃO DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
VOCÁBULOS «FURTO» E «SUBTRAIR»
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DO FUNDÃO
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º E 32.º, N.ºS 1 E 5, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA/C.R.P.
ARTIGOS 283.º, N.º 3, ALÍNEAS B) E C), 287.º E 288.º, N.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário: I – A estrutura acusatória do direito processual penal português, assente na dignidade da pessoa humana e na garantia constitucional dos direitos de defesa, impõe «que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução».

II – Por isso o requerimento para abertura de instrução deve narrar o concreto pedaço de vida que constitui o objeto da instrução, de forma a possibilitar a subsunção ao crime imputado, sendo a narração dos factos que vai permitir ao arguido organizar a defesa e ao juiz de instrução realizar a instrução e proferir decisão instrutória, como refere o artigo 288.º, n.º 4, do C.P.P.

III – O RAI deve descrever os eventos materiais e concretos na perspetiva do arguido, autor da acção, de forma clara e simples, correspondendo a cada parágrafo factos distintos, por forma a permitir a apreensão imediata do pedaço de vida imputado, mas a narração na perspectiva do assistente não constitui óbice a que o requerimento de abertura de instrução seja recebido, posto que nele constem de forma inequívoca, mesmo que com algum esforço interpretativo, os elementos típicos do crime imputado.

IV – Não obstante os vocábulos «furto» e «subtrair» serem conceitos jurídicos e corresponderem à denominação do crime de furto e a um dos elementos objetivos deste tipo legal, eles também podem assumir o conteúdo inequívoco de que a arguida retirou o envelope contendo o dinheiro do assistente, permitindo, assim, a realização da instrução e a prolação da decisão instrutória, tanto mais que nesta decisão juiz não se encontra vinculado às palavras que foram utilizadas pelo assistente.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª secção, do Tribunal da Relação de Coimbra


I–RELATÓRIO


1. Por despacho datado de 07.11.2022 foi decidido rejeitar por inadmissibilidade legal, nos termos dos (cf. os artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), e 287.º, n.ºs 1, alínea b), 2 e 3, do Código de Processo Penal) o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente …

2. Inconformado, recorreu o assistente apresentando as seguintes conclusões

«…

2. Considera o Recorrente que o despacho recorrido denuncia, por um lado, um erro de julgamento – particularmente quanto à falta de observação e constatação dos factos constitutivos das infrações penais descritas no requerimento de abertura de instrução - e, por outro lado, por errada subsunção dos factos ao direito, in casu cabendo a admissibilidade legal da abertura da fase de instrução, gerando, igualmente, a nulidade do despacho por deficiente fundamentação da decisão.

4. Apresentou assim o Recorrente, o seu requerimento de abertura de instrução:

IV. DOS FACTOS

34.

No dia 24 de Junho de 2021, sensivelmente pelas 09:30, deslocou-se o Ofendido à dependência da Caixa Geral de Depósitos no ..., sita na Rua ... naquela cidade.

35.

Tendo efetuado, ao balcão, o levantamento do montante de 5.000,00€ (cinco mil euros), sendo-lhe entregues 100 (cem) do Banco Central Europeu, com o valor facial de 50,00€ (cinquenta euros).

36.

Após tal levantamento e tendo saído da agência da CGD, o Ofendido dirigiu-se para o seu veículo automóvel, estacionado na Rua ..., onde colocou o envelope contendo o montante levantado em cima do tablier, tendo, naquele momento, sido abordado pela Arguida.

37.

Tal abordagem foi feita através de gestos e pancadas no vidro da sua viatura, tendo o Ofendido ouvido a Arguida dizer, numa pronúncia que identificou como não sendo portuguesa, as expressões “dinheiro, dinheiro”.

38.

Razão pela qual o Ofendido saiu da viatura, deixando a porta desta aberta e ao ver a indicação da Arguida para a parte traseira do veículo, ali se deslocou, constatando existirem diversas notas caídas no chão.

39.

Em consequência, inclinou-se para recolher as notas caídas, tendo posteriormente constatado que a Arguida já não se encontrava no local.

40.

Ao entrar, de novo, no seu veículo verificou que o envelope que ali tinha deixado, contendo a quantia levantada pouco antes, tinha sido furtado pela Arguida.

41.

Alarmado com a situação, percorreu aquela rua com vista a alcançar a Arguida, não logrando o objetivo, porquanto a mesma já se havia posto em fuga.

42.

Nesse mesmo dia, dirigiu-se por duas ocasiões ao Posto Territorial ..., sito na Rua ..., no ..., a primeira para efectuar a competente denuncia, a segunda para questionar se já havia sido recuperado o seu dinheiro.

45.

Como consequência direta e necessária da conduta da Arguida, AA, acima descrita, o Ofendido, BB ficou despojado do montante de 5.000,00€.

46.

Como consequência direta e necessária da atuação do arguido, o Ofendido ficou com o seu património diminuído em valor equivalente ao montante subtraído pela Arguida.

47.

Com toda a sua conduta, supra descrita, a Arguida agiu sempre com o propósito de ludibriar para se apropriar indevidamente do montante de 5.000,00€ pertença do Ofendido, o que conseguiu.

48.

A arguida agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo, ainda, que a sua conduta era proibida e criminalmente punida.

49.

Procedendo do modo anteriormente descrito, cometeu a arguida, o crime de furto qualificado, p. e p. art.º 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, al. b) do Código Penal.”

6. Sucede que para o Tribunal a quo tal descrição circunscrita, mas objetiva dos factos, leva a considerar que “(...) não se vislumbra um só facto objetivo integrador do tipo ilícito de que ora tratamos”.

7. A rejeição do Rai do recorrente pelo Tribunal a quo fundou-se na inadmissibilidade legal da instrução, decorrente do não preenchimento pela referida peça processual dos requisitos exigidos pelas disposições conjugadas do n.º 1, al. s), 2 e 3 do art. 287º e do n.º 3 do art. 283º, ou seja, por não conter a descrição dos factos pelos quais o assistente pretende que a arguida seja pronunciado, mais concretamente a factualidade integradora do tipo objetivo do crime.

10. Percorrendo integralmente o RAI, não só a segunda parte em que a assistente redige uma acusação alternativa, mas também a primeira em que discorre sobre as razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento, constata-se que nele são descritos.

11. Elemento objetivo: apropriação ou subtração ilegítima de coisa móvel alheia. O que foi logrado pelo furto da Arguida, descrito pelo recorrente, ali assistente.

13. Isto porque através do estrábico olhar com que foi analisado o RAI, faz o Tribunal a quo incorrer numa parca e deficiente fundamentação do despacho.

14. Manifesto nas motivações do presente recurso, entende o ora Recorrente que não se cumpriu o disposto no artigo 607.º, n.º 4, do Código Processo Civil, …

15. O Recorrente não poderia censurar mais o despacho recorrido por vício de nulidade nos termos do art. 615 º,nº 1, alínea b) do CPC, por omissa na referência às razões que, à luz dos princípios legais aplicáveis justificaram a não admissão do RAI apresentado.

16. Entende o Recorrente que a decisão vertida no despacho de que se recorre não só está inquinada, como, de resto, se resume a esta justificação:

“Ora percorrido o requerimento para abertura de instrução, não se vislumbra um só facto objetivo integrador do tipo ilícito de que ora tratamos”

17. E nada mais diz o Sr. Juiz de Instrução sobre a alegada ausência.

18. E é tal atropelo à Lei e às normas aplicáveis que deve ser, para além do mais, considerada nula tal decisão por falta de fundamentação que originou a decisão recorrida.

3. O Ministério Público, respondendo ao recurso, pugnou pela sua improcedência.

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente, procedendo-se à requerida instrução.

5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.

6. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

7. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

De acordo com as conclusões da motivação do recurso interposto nestes autos, é a seguinte a questão a que cabe dar resposta:

- Do requerimento para abertura de instrução constam os elementos objetivos do crime imputado?

           

II. Despacho recorrido (transcrito na parte ora relevante)

            «…, veio o mesmo requerer a sua constituição como assistente, bem como a abertura de instrução …

Para tanto alegou, em suma, que «[b]astaria socorrer-se o Ofendido do despacho de arquivamento (...) para que na óptica do Assistente as diligência de investigação perseguidas pelo OPC, fossem consideradas razoáveis e sem qualquer dúvida suficientes, para que com segurança pudesse o Ministério Público lavrar a devida e imposta acusação».

E é por isso que se impõe tecer algumas considerações.

Prescreve o artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na parte que aqui importa, que «[o] requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º».

Por outra via, o artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ensina que o requerimento de abertura de instrução «só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução».

Neste seguimento, se bem interpretamos as disposições legais que acabaram de se citar, é distinto o campo de aplicação de cada uma delas. Se, por um lado, o assistente se vê na obrigação de narrar, ainda que sinteticamente, os factos de que depende a aplicação de uma pena ao arguido, isso mais não é do que o corolário da similitude entre o requerimento de abertura de instrução por parte deste sujeito processual e a acusação do Ministério Público.

Ora, é precisamente pela existência desta similitude que também o requerimento de abertura de instrução do assistente, tal como acontece com a acusação do Ministério Público, não está sujeito ao convite ao aperfeiçoamento do juiz quando lhe falte a narração dos factos que vimos supra …

O mesmo é dizer, portanto, que o artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, é apenas a «barreira primeira» que o requerimento de abertura de instrução do assistente tem de ultrapassar, ou seja, o obstáculo formal.

Diametralmente oposto é o consagrado no artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. É que, quer a temporaneidade dos atos, quer a competência do juiz, quer a admissibilidade legal da instrução, são já muito mais do que formalidades dos atos processuais, antes pressupostos do próprio processo (ou, neste caso concreto, pressupostos da fase do processo, a instrução), o que serve por dizer que estamos, num e noutro domínio, em planos diferenciados de apreciação.

O Ministério Público abriu inquérito aos factos participados pelo assistente …, tendo a jusante concluído, por despacho de arquivamento …, inexistirem indícios da prática de qualquer crime pela arguida.

Ora, o assistente, ao optar pela via judicial, em detrimento da via hierárquica, na sindicância do arquivamento do inquérito, num caso em que entende que o Ministério Público tem já nos autos elementos necessários à dedução da acusação, deve incluir no requerimento para abertura de instrução, não só as razões da sua discordância com a não dedução da acusação contra o arguido, como igualmente deve formular uma acusação alternativa à não deduzida pelo Ministério Público, assim almejando o despacho de pronúncia.

A falta de menções essenciais no requerimento para abertura de instrução, como seja a falta de narração dos factos constitutivos das infrações penais, integra o conceito de «inadmissibilidade legal da instrução» a que alude o já citado artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, pois a realização da instrução em tal situação seria um ato inútil, tendo desde logo em mente o artigo 309.º, n.º 1, do mesmo diploma.

Em suma: o requerimento para abertura de instrução do assistente deve conter uma qualificação jurídico-penal correta dos factos, bem como ser seguro quanto à versão dos factos que, no entender do assistente, ocorreram, tal como sucede numa acusação.


*

O crime de furto encontra-se previsto no artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, …

Ora, percorrido o requerimento para abertura de instrução, não se vislumbra um só facto objetivo integrador do tipo de ilícito de que ora tratamos.

Do teor daquele requerimento, descortina-se apenas, ao nível objetivo do tipo, que a arguida «furtou» o envelope que o assistente havia deixado no interior da sua viatura, o que mais não é do que uma conclusão jurídica sem substrato fáctico, por diminuto que seja.

Por conseguinte, e naquele que acreditamos ser o melhor dos entendimentos, o requerimento para abertura de instrução do assistente mostra-se totalmente desprovido de factos que, uma vez suficientemente indiciados, pudessem conduzir à prolação de despacho de pronúncia pelo crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.o, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

E tanto mais é assim se considerarmos apenas poder ser do seguinte teor um eventual facto provado em sede de sentença, com os elementos constantes do requerimento para abertura de instrução:

«O assistente, ao reentrar na sua viatura, verificou que o envelope que ali tinha deixado, contendo a quantia levantada pouco antes, tinha sido furtado pela arguida».

Ora, a estrutura acusatória do processo penal português (cf. o artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa) assenta, de entre o mais, no respeito pela dignidade da pessoa humana, impondo, com relevância para o caso concreto, que o objeto do processo seja, com rigor, fixado (cf., com interesse, o artigo 283.º, n.º 3, alínea b), ex vi artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

É, aliás, também dessa forma, que se salvaguardam os direitos de defesa do arguido, porquanto só assim podem os factos que constituem o objeto do processo ser submetidos ao contraditório e a prova idónea.

Não inovamos se dissermos ser imprescindível, em obediência aos princípios da suficiência e clareza, que a acusação contenha uma narração, além de percetível e clara, também completa, tanto quanto possível, dos factos cuja prática se pretende imputar ao arguido.

E se assim é, temos necessariamente de concluir que o requerimento para abertura de instrução do assistente não assegura o mínimo exigível para que o Tribunal declare aberta aquela fase, devendo ser rejeitado por inadmissibilidade legal.

…».


*

III. Apreciando e decidindo

*

            …

Face às conclusões do recurso, a questão a decidir é a de saber se do requerimento para abertura de instrução constam todos os elementos objetivos do crime imputado.

Vejamos.

O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público consubstancia, em termos materiais, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal.

Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c) (ambos do Código de Processo Penal), ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.

Para o que nos ocupa, interessa a al. b) do n.º 3 do art.º 283 que dispõe que a acusação, e por força da remissão do n.º 2 do art.º 287,º, também o requerimento de abertura de instrução do assistente, deve conter:

«A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».

O que bem se compreende, tendo presente a estrutura acusatória do direito processual penal português, assente na dignidade da pessoa humana e a garantia constitucional dos direitos de defesa (art.ºs 1º, e 32.º n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, ou CRP), a impor «que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução» - Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/04.

Portanto, no requerimento para abertura de instrução deve ser narrado o concreto pedaço de vida que constitui o objeto da instrução, de forma a que possibilitar a subsunção ao crime imputado.

A narração dos factos vai, então, permitir ao arguido organizar a defesa.

E, ao juiz de instrução realizar a instrução e proferir decisão instrutória (art.º 288.º n.º 4 do CPP).

De tal modo que, havendo omissão de elementos típicos, a instrução será inexequível, por inexistir um verdadeiro objeto da instrução (art.º 288.º n.º 4 do CPP).

Nessa situação, deve o requerimento de abertura de instrução ser rejeitado, por não ser apto a conduzir à prolação de uma decisão instrutória que seja válida.

«No mínimo (e dizemos «mínimo» porque nessas condições parece inexistir um verdadeiro objeto da instrução), tal decisão seria nula, nos termos do art.º 309.º, n.º 1» - Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 01.04.2009, proc. 2899/06.8TALRA.C1 (rel. Des. Jorge Gonçalves, disponível in www.dgsi.pt, como os demais a que, sem especificação, nos referiremos no presente Acórdão).

Dito isto.

No nosso caso, o que importa perceber é se os factos imputados à arguida se encontram descritos de modo a que, sem margem para dúvidas, todos possam ficar a saber qual o pedaço de vida em discussão.

Seja o arguido, para que se possa defender.

Seja o juiz, a quem compete realizar a instrução tendo em conta o requerimento de abertura de instrução (art.º 288.º n.º 4 do CPP).

De um modo geral pode dizer-se que a narração quer-se descrita na perspetiva do arguido (autor da ação), de forma clara e simples, correspondendo a cada parágrafo factos distintos, por forma a permitir a apreensão imediata do pedaço de vida imputado.

Por via de regra, serem os factos descritos, como é o caso, segundo a perspetiva do assistente não integra as boas prática da narração.

No entanto, tal não constitui óbice a que o requerimento de abertura de instrução seja recebido, posto que nele constem de forma inequívoca, embora com algum esforço interpretativo, os elementos típicos do crime imputado.

No caso, onde a questão se coloca com maior acuidade é na utilização que é feita, no requerimento de abertura de instrução, dos vocábulos «furto» e «subtrair», os quais, além de conceitos jurídicos, são palavras que correspondem, respetivamente, à denominação do crime imputado e a um dos elementos objetivos do tipo.

Como é sabido, se a narrativa se reporta a factos deve referir-se a eventos materiais e concretos, e não conter, implicitamente, a solução da questão de direito a decidir.

Para mais quando nos encontramos, como é o caso, perante palavras que podiam, facilmente, ser substituídas por outras sem valoração jurídica, como por exemplo a palavra «retirar».

Temos, por certo, portanto, que o requerimento de abertura de instrução, também aqui, não observa as boas práticas da narração factológica.

Ainda assim, no contexto da narrativa elaborada pelo assistente, os vocábulos utilizados acabam por assumir, sem esforço interpretativo de maior, aliás, um conteúdo inequívoco, e que é, afinal, o de que a arguida retirou o envelope contendo o dinheiro do assistente.

E o que verificamos lendo o requerimento de abertura de instrução é que se detetam todos os factos que integram o tipo de crime imputado.

Pois, o que, designadamente se descreve, embora seja outra a redação do assistente, é que:

- No dia 24 de junho de 2021, na Rua ..., a arguida retirou, do interior da viatura do assistente, um envelope contendo 100 notas com o valor facial de € 50,00, que a este pertenciam, após o que, abandonou o local, levando-os consigo;

- A arguida agiu sabendo que o envelope e as 100 notas com o valor facial de € 50 não lhe pertenciam e pretendeu fazê-los seus, como efetivamente fez, contra a vontade do dono, estando consciente da ilicitude da sua conduta.

Tudo para dizer que a narração constante do requerimento de abertura de instrução, permite à arguida organizar a defesa e ao juiz de instrução realizar a instrução e proferir decisão instrutória (art.º 288.º n.º 4 do CPP).

Em suma.

Pese embora não tenham sido adotadas as melhoras práticas na descrição dos factos, ainda, assim da leitura do requerimento de abertura de instrução revela-se possível apreender, sem margem para dúvidas, quais os factos concretamente imputados.

Ao contrário do decidido no Tribunal recorrido, tal peça permite aferir da verificação dos elementos do crime, pelo que não se apresenta como absolutamente inútil a instrução requerida pelo assistente.

Porventura, a concreta redação do requerimento de abertura de instrução não será a melhor, mas também o juiz de instrução, num eventual despacho de pronúncia ou de não pronúncia que venha a proferir, não se encontra vinculado às palavras que foram utilizadas pelo assistente. (Como, aliás, também não se encontra vinculado aos vocábulos por nós utilizados, ao identificarmos os factos essenciais que foram narrados).

Concluímos que o requerimento de abertura de instrução não devia ter sido rejeitado com o fundamento invocado na decisão recorrida, ou seja, por inadmissibilidade legal da instrução, impondo-se a revogação desse despacho, procedendo o recurso.


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IV. DISPOSITIVO

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Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente, revogando o despacho recorrido e ordenando que o mesmo seja substituído por outro que, na ausência de qualquer outro motivo impeditivo, admita a instrução requerida por aquele, seguindo-se os ulteriores termos processuais.

Sem tributação.

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).


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Coimbra, 12.07.2023

Alexandra Guiné (relatora)

Isabel Valongo (adjunta)

Jorge França (adjunto)