Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2258/13.6TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CONTRATO MISTO DE LOCAÇÃO E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PARQUE DE CAMPISMO
DEVER DE VIGILÂNCIA
DEVER DE GUARDA
Data do Acordão: 03/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - FIGUEIRA FOZ - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: PORTARIA Nº 1320/2008 DE 17/11.
Sumário: 1.- Configura um contrato misto de locação e prestação de serviços aquele em que um campista/caravanista celebra com uma entidade exploradora de um parque de campismo, mediante o qual esta se obriga a ceder o gozo temporário de um determinado espaço conjuntamente com a prestação de determinados serviços ( relacionados com o conforto, higiene e segurança), mediante o pagamento de uma retribuição pelo campista/caravanista.

2.- O âmbito do dever de vigilância que o artigo 23º da Portaria nº 1320/2008, de 17 de novembro, faz impender sobre as entidades que exploram parques de campismo, não abarca um específico dever de guarda dos equipamentos de campismo/caravanismo ou dos objectos existentes no seu interior.

3.- Tal dever de vigilância terá de ser aferido em função dos serviços proporcionados ao utente de um parque de campismo e das obrigações a eles inerentes, consistindo numa obrigação de meios e não de resultado.

Decisão Texto Integral:

 

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I - RELATÓRIO

A (…) e J (…) intentaram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra:
1. O (…), S.A. e
2. A (…) Seguros, S.A.,

pedindo a condenação destas a pagar-lhe a quantia de € 10.264,74, acrescida de juros de mora desde a citação e até integral pagamento.

Alegando para tal e em síntese,

 os AA. celebraram com a Ré O (...) um contrato de parcela, tendo em vista a instalação de equipamento de campismo/caravanismo no Parque de Campismo da Ré O (...) , sito na G (...) ;

no dia 17 de Outubro de 2010, ocorreu um incêndio que provocou danos na sua caravana, inutilizando-a;

a Ré O (...) tinha um dever de vigilância, que lhe impunha que prevenisse sinistros desta natureza, podendo a causa do incêndio ser imputável à R. O (...) ;

a Ré O (...) transferiu para a R. A (...) a sua responsabilidade civil;

os autores sofreram danos no seu equipamento, no valor de € 5.264,74, ficando privados do uso do mesmo, peticionando uma indemnização de € 3.000,00 a este título, tendo ainda sofrido danos não patrimoniais, pelos quais pedem a fixação de uma indemnização de € 2.000,00.

A Ré O (...) contestou, por exceção, invocando a ilegitimidade ativa dos AA. e a sua ilegitimidade passiva, bem como a ineptidão da petição inicial e, por impugnação, negando qualquer responsabilidade da sua parte na eclosão do sinistro. Deduz pedido reconvencional, pedindo a condenação dos AA. no pagamento da quantia de 7.762,50 €, equivalente ao valor da diária cobrado pela ocupação da parcela entre o dia 1 de abril de 2012 e o dia 14 de novembro de 2013.

A Ré A (...) apresentou contestação, negando qualquer responsabilidade da Ré O (...) na eclosão do incêndio em causa bem como pelos danos invocados pelos AA.; o incêndio em causa não decorreu do exercício da atividade da 1ª Ré, não se encontrando abrangido pelo contrato de seguro, sendo que, sempre seria de descontar a franquia contratualmente prevista. Impugnou os danos peticionados, referindo, ainda, que o dano da privação do uso nunca estaria abrangido pelo seguro celebrado entre as Rés.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as exceções dilatórias bem como não verificada a invocada ineptidão da petição inicial, não admitindo a reconvenção deduzida pela Ré A (...) .

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação improcedente, absolvendo as rés do pedido.

Não se conformando com a mesma, os autores dela interpõem recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:

(…)


*

A Ré O (...) apresentou contra-alegações defendendo a manutenção do decidido.

Cumpridos que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no artigo 657°, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.                                                                                              
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões suscitadas na sequência da interposição dos recursos da autora e da ré, são as seguintes:
1. Nulidade por omissão de pronúncia.
2. Impugnação da matéria de facto.
3. Se a Ré O (...) se encontrava obrigada ao dever de vigilância e se violou tal obrigação.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Nulidade por omissão de pronúncia.

A circunstância de o juiz a quo não ter tido em consideração o teor de determinada norma na apreciação de determinada questão que lhe é colocada no âmbito do processo, não integra a verificação de qualquer nulidade, nomeadamente a prevista na al. d) do artigo 615º do NCPC – “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

O sentido de tal nulidade é o seguinte: “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constituiu nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica diferentes da sentença, que as partes hajam invocado[1]”.

Respeitando a discordância dos apelantes à relevância que o artigo 23º da Portaria 1320/2008 possa ter no conteúdo do contrato celebrado entre as partes, a circunstância de o juiz não ter feito, na sentença recorrida, qualquer referência ao dever de vigilância consagrado em tal norma, não integra qualquer omissão de pronúncia, sobretudo quando, nos seus articulados, os autores não fizeram derivar a existência de tal dever de uma norma que só agora invocam, em sede de alegações de recurso.

 Não se tem por verificada a invocada nulidade.

2. Impugnação da matéria de facto
Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.
Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Para que o tribunal se encontre habilitado para proceder à reapreciação da prova, o artigo 640º, do CPC, impõe as seguintes condições de exercício da impugnação da matéria de facto:
1 – Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
A impugnação da matéria de facto que tenha por fundamento a errada valoração de depoimentos gravados, deverá, assim, sob pena de rejeição, preencher os seguintes requisitos:
a) indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, que deverão ser enunciados na motivação do recurso e sintetizados nas conclusões;
b) indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, sobre os pontos da matéria de facto impugnados;
c) indicação, ou transcrição, exata das passagens da gravação erradamente valoradas. 
Estes requisitos visam assegurar a plena compreensão da impugnação deduzida à decisão sobre a matéria de facto, mediante a identificação concreta e precisa de quais os pontos incorretamente julgados e de quais os motivos de discordância, de modo a que se torne claro com base em que argumentação e em que elementos de prova, no entender do impugnante, se imporia decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal.
Tais exigências surgem como uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo[2], assegurando a seriedade do próprio recurso intentado pelo impugnante.
No caso em apreço, defendem os Apelantes que “se mostram erroneamente provados os factos dados como não provados sob as alíneas d), e), g), j) e q), do ponto 2.1.2, da sentença recorrida”.
Contudo, na sua pretensão, os apelantes não cumprem minimamente os ónus que o legislador faz impender sobre a parte que pretenda a alteração da decisão proferida quanto a algum ponto da matéria de facto:
- não referem qual a decisão que, em seu entender, deveria ter sido proferida relativamente a cada um dos factos contidos nas citadas alíneas dos factos dados como não provados, em violação do disposto no artigo 640º, nº1, al. c), do CPC;
- misturando considerações de direito com discordâncias relativas à decisão proferida quanto à matéria de facto, não indicam quais os meios de prova que, relativamente à matéria constante dos pontos d), g), j) e k), imporiam decisão diversa, em incumprimento do disposto no artigo 640º, nº1, al. b), do CPC.
Por outro lado, chamando a atenção para o facto de a gravação ser de má qualidade, “máxime dos depoimentos das testemunhas (…) tendo momentos largos em que é totalmente impercetível”, os apelantes acabam por daí não retirar qualquer consequência, não formulando qualquer pretensão a tal respeito (para além de, no corpo das alegações de recurso, referirem que V/exas. Julgarão tais vícios na gravação, sendo no limite, a hipótese que se vislumbra é a renovação de tal prova, com repetição dos depoimentos…). De qualquer modo, caso pretendesse invocar a nulidade decorrente de tais deficiências, deveria tê-lo feito no momento previsto no nº4 do artigo 155º do CPC. Não o tendo feito, não poderá este tribunal conhecer de tal vício.
Concluindo, é de rejeitar a impugnação à decisão proferida quanto à matéria de facto deduzida pelos apelantes, relativamente às alíneas as alíneas d), e), g), j) e q), dos factos dados como não provados, por incumprimento dos ónus impostos pela als. a) e b), do nº1 do art. 640º do NCPC.

*
Os Apelantes insurgem-se ainda contra a decisão proferida relativamente à alínea i) dos factos “não provados”:

“i) A Ré O (...) se comprometeu a guardar e/ou vigiar o equipamento dos utentes.”
Alegam que tal teria de ser dado como provado face ao dever de vigilância plasmado no artigo 23º da portaria 1320/2008.
Relativamente a tal facto, o juiz a quo justificou a sua convicção afirmando que relativamente à matéria contida em tal alínea se provou precisamente o contrário. Ora, se os autores não lograram provar a existência de qualquer acordo entre as partes nesse sentido (e os apelantes não invocam a seu favor qualquer meio de prova que impusesse resposta diversa), o facto de tal dever de vigilância poder estar consagrado ou resultar de algum diploma legal, não implica qualquer alteração à decisão relativa à matéria de facto, constituindo, tão só, uma circunstância a valorar em sede de subsunção dos factos ao direito.
Improcede o pedido de alteração relativamente à decisão proferida quanto a tal matéria.

*
Alegam ainda a existência de contradição entre o facto dado como provado no ponto 18 e a resposta de “não provado” dada à matéria constante da alínea e). Contudo, não se vislumbra qualquer contradição lógica entre dar como provado que “passaram a passar as férias em casa”, e dar como “não provado” que “Nunca mais foram passar férias ou fins de semana à Figueira da Foz ou outro lugar”. Com efeito, o teor da matéria contida na al. e), vai para além do simples facto dado como provado de que após o sinistro terão passado a passar férias em casa, o que dá uma ideia de uma mera habitualidade, não implicando que nunca mais tenham ido passar férias e muito menos, fins de semanas à Figueira da Foz.
*

2. Se a Ré O (...) se encontrava obrigada ao dever de vigilância e se violou tal obrigação.
A. São os seguintes, os factos dados como provados na sentença recorrida e que não foram objeto de qualquer alteração:
1. A R. O (...) dedica-se à exploração do Parque de Campismo O (...) , sito na G (...) , Figueira da Foz, espaço delimitado, aberto apenas aos respetivos utentes.
2. Os AA. e a R. O (...) outorgaram, em 1 de Janeiro de 2010, um acordo denominado “contrato de parcela”, com o n.º 1172/06, para instalação de equipamento de campismo/caravanismo, numa parcela de terreno, localizada no parque de campismo id. em 1., pelo prazo de 12 meses, renovando-se o mesmo, por igual período, caso as partes não o denunciassem num prazo de 15 dias antes do seu término, junto a fls. 16 a 21.
3. Os AA. eram clientes do Parque de Campismo id. em 1. há mais de 20 anos.
4. Os AA. instalaram na parcela referida em 2. uma caravana de marca Vimara, modelo 500BS, matrícula P (...) .
5. Os AA. tinham por hábito passar fins-de-semana e férias em família naquele local fazendo uso da sua caravana.
6. No dia 17 de Outubro de 2010, pelas 16h30m, no Parque de Campismo id. em 1., deflagrou um incêndio numa caravana instalada numa parcela vizinha à dos AA.
7. O incêndio referido em 6. danificou a caravana dos AA., derretendo janelas, entortando perfis e chapas de alumínio, fazendo estalar vidros e farolins, impossibilitando o seu uso.
8. Os AA. notificaram a R. O (...) no sentido de serem ressarcidos pelos danos referidos em 7., o que esta declinou.
9. A causa do incêndio referido em 6. é desconhecida.
10. A caravana onde deflagrou o incêndio estava desocupada aquando do início do mesmo.
11. A reparação do referido em 7. foi orçada em € 4.280,28, acrescida de IVA.
12. A caravana e o avançado continuaram no parque após o referido em 6. e 7.
13. Os danos referidos em 7. não foram reparados.
14. Em 2013, o avançado caiu.
15. A caravana deteriorou-se em virtude das condições climatéricas.
16. Desde o incêndio, não mais os AA. e os seus filhos puderam usufruir da caravana.
17. Deixaram de aí realizar as férias que faziam com o resto da família.
18. Passaram a passar as férias em casa.
19. Não mais os AA. se deslocaram ao parque de campismo id. em 1.
20. Era costume os filhos dos AA. passarem as férias escolares no parque de campismo id. em 1.
21. Os AA. ficaram amargurados por não poderem usufruir da sua caravana.
22. Aquando do incêndio referido em 6., por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 50. (...) , a R. O (...) tinha transferido para a R. A (...) (à data Seguros (…), S.A.) a sua responsabilidade civil extracontratual, na qualidade e/ou durante o exercício da atividade de exploração de parques de campismo, exploração de restaurante e supermercados situados nos parques de campismo da R., garantindo a referida apólice o pagamento de indemnizações legalmente exigíveis à R. por danos de natureza patrimonial e/ou não patrimonial, exclusiva e diretamente resultantes de lesões corporais e/ou materiais que sejam causadas a terceiros e decorrentes exclusivamente da atividade supra referida, até ao limite máximo de € 500.000,00, conforme documentos juntos a fls. 88 a 106 e 146 a 161.
Mais aí se refere que o contrato cobre a responsabilidade civil em que incorrer o segurado pelos danos produzidos em consequência de incêndio e/ou explosão ocorridos dentro do recinto da empresa assim como os ocasionados fora dela quando no desempenho de trabalhos ou da prestação de serviços.
Consta de tal documento que não ficam garantidos pelo contrato em caso algum, ainda que o tomador do seguro e/ou segurado possa ser civilmente responsável, as indemnizações, de natureza punitiva ou quaisquer outras que não tenham relação direta com a reparação dos danos provocados, ainda que o tomador de seguro e/ou segurado seja condenado por um tribunal”.
No referido contrato está previsto, ainda, o pagamento de uma franquia de 10% do montante a indemnizar por sinistro, no mínimo de € 600,00.
23. A R. O (...) não tinha acesso à caravana onde deflagrou o incêndio referido em 6., pertencendo esta a L (…).
24. Os presentes autos deram entrada em 09.10.2013.
25. Do contrato referido em 2. consta que o utente obriga-se a desligar a corrente elétrica que abastece o seu equipamento sempre que este esteja desocupado.
26. A R. O (...) disponibiliza o regulamento do parque de campismo aos utentes do parque de campismo, dele constando que a O (...) declina qualquer responsabilidade por acidentes, danos, furtos ou roubos dos campistas ou do seu material.
No regulamento em causa está previsto que é proibido instalar o equipamento campista e extras a uma distância inferior a um metro linear entre os diferentes elementos, devendo esta distância ser obrigatoriamente de dois metros em relação a equipamento de outros utentes.
27. O parque de campismo id. em 1. dispõe de equipamento de proteção à instalação elétrica, o qual funcionou aquando do incêndio.
28. Dispunha de bocas-de-incêndio, uma das quais na proximidade da caravana e que foi acionada antes da chegada dos Bombeiros, bem como de vários extintores, tendo sido utilizados, pelo menos, seis extintores no combate ao incêndio em causa nos autos.
29. A R. O (...) participou à R. A (...) o sinistro referido em 6.
*
Os autores instauraram a presente ação, pela qual pretendem responsabilizar a O (...) pelo ressarcimento dos danos provocados na sua caravana, fundamentando tal responsabilidade, única e exclusivamente, nos seguintes factos:
- os AA. haviam celebrado com a O (...) um contrato de parcela com o nº 1172/06, para instalação do equipamento de campismo/caravanismo;
- os AA. instalaram na parcela contratada a sua autocaravana;
- no dia 17 de outubro de 2010, deflagrou um incêndio, no Parque de campismo, alegadamente numa caravana de uma parcela vizinha à dos AA;
- tal incêndio propagou-se às parcelas vizinhas, incluindo a dos AA.;
- à data da ocorrência os AA. não se encontraram no local;
- o chefe dos bombeiros referiu que as causas do incêndio eram desconhecidas, podendo dever-se a curto circuito ou outra causa diretamente imputável à Ré;
E se, na petição inicial, os autores são parcos nos factos dos quais fazem derivar a responsabilidade da ré, são ainda menos claros quanto ao fundamento da responsabilidade civil de que se pretendem socorrer: começam por alegar encontrarem-se preenchidos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos, nos termos do artigo 483º, nº1 do CC (artº. 46º da P.I.), o que nos remeteria para a responsabilidade extracontratual; e só quase no final do seu articulado, referem, então, genericamente, que “impende sobre a ré um dever especial de vigilância de modo a prevenir sinistros da natureza do relatado nos presentes autos”, sem esclarecer de onde retiram tal dever, se do contrato celebrado entre ambas ou se de alguma norma por que se reja o funcionamento dos parques de campismo ou se de algum dever geral de cuidado que se lhe imponha.
A Ré O (...) contestou, alegando não poder ser responsabilizada pelos prejuízos decorrentes de tal incêndio, porquanto o incêndio causador de danos no equipamento do autor teve causas desconhecidas, sendo que a Ré não detinha a posse do veículo onde deflagrou o incêndio. Por outro lado, o contrato celebrado entre as partes é um mero contrato de natureza mista de locação e de prestação de serviços: a Ré permite que os primeiros instalem o equipamento numa parcela do parque de campismo, sem que assuma qualquer dever de guarda e vigilância.
O juiz a quo exonerou a ré O (...) de qualquer responsabilidade, quer em sede extracontratual, quer em sede contratual, considerando quanto a esta que, tratando-se de um contrato misto de locação e prestação de serviços, a Ré O (...) não se encontrava obrigada a guardar o material de campismo/caravanismo do autor, nem este lhe foi entregue, sendo a cláusula 26 dos factos provados clara no sentido de especificar qual a extensão das obrigações contratuais.
Os Apelantes fazem assentar a sua discordância quanto ao decidido, em sede de direito, na existência de um dever de vigilância a cargo da Ré por força do artigo 23º da Portaria 1320/2008, de 17 de Novembro, dever este que nunca poderia ser afastado por qualquer regulamento interno, sendo que, sempre tal exclusão de responsabilidade seria ilícita nos termos conjugados das alíneas b) e c) dos artigos 18º e 20º do DL 446/85.
Antes de mais, como se afirma no Ac. do STJ de 07 de novembro de 1985[3], há que distinguir cuidadosamente entre as cláusulas de responsabilidade e as destinadas a modificar as relações contratuais. Quando se tem de resolver um problema de responsabilidade contratual, há que decidir previamente qual o conteúdo do próprio contrato, a fim de se conhecerem as obrigações a que o devedor está adstrito por força do contrato. Só pode falar-se em responsabilidade depois de serem conhecidas as obrigações a que o devedor estava sujeito, sob pena de se não saber, sequer, se chegou a haver inexecução do contrato.
Vejamos, assim, qual o âmbito do tal dever de vigilância consagrado no citado diploma e se, dos elementos de facto constantes dos autos, se pode concluir pelo incumprimento do mesmo por parte da ré.
O juiz a quo, seguindo o entendimento comum na jurisprudência, considerou encontrarmo-nos perante um contrato misto de locação e prestação de serviços – a remuneração paga pelo utente tem como contrapartida, não só a atribuição do gozo temporário de um determinado espaço onde o campista/caravanista pode instalar o seu equipamento, como, e sobretudo, toda uma série de benefícios que lhe são proporcionados pelo facto de se encontraram instalados num parque de campismo.
 Ou seja, a contraprestação da entidade que explora um parque de campismo consiste, não só na cessão de um espaço para instalação da caravana, mas também na prestação de um mínimo de serviços em condições de conforto, higiene e segurança.
E se, quando à obrigação de proporcionar ao campista o gozo de um espaço para instalar o seu equipamento, nos encontramos perante uma obrigação de resultado, relativamente a algumas outras obrigações inseridas no contrato a celebrar com os utentes, como o é a obrigação de vigilância, encontrar-nos-emos perante meras obrigações de meios.
Haverá que explicitar aqui a distinção entre uma obrigação de meios – em que o devedor apenas se compromete a desenvolver, prudente e diligentemente certa atividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza –, em contraposição com a obrigação de resultado – que se verifica quando se conclua da lei ou do negócio jurídico que o devedor está vinculado a obter um certo efeito útil[4].
Tal distinção, como já foi defendido no Acórdão do TRL de 22 de fevereiro de 2011[5], redigido pela aqui relatora, releva, não propriamente para efeitos de distribuição do ónus da prova da ilicitude e da culpa, que não se altera, operando, antes, ao nível da natureza da obrigação que recai sobre o credor.
Na responsabilidade contratual, ao credor incumbe a prova da existência da obrigação e ao devedor incumbe a prova de que cumpriu[6], sendo que, na ausência do resultado devido, se presume a culpa (artigo 799º CC).
Nas obrigações de resultado, o devedor prometerá certo resultado (transportar determinada mercadoria, construir um móvel) A simples ausência do resultado faz presumir a sua culpa. Nas obrigações de meios, o devedor prometerá adotar certas medidas, com vista à obtenção de um certo resultado. Ao credor incumbe a prova da existência da obrigação – quais as concretas medidas a que o devedor se obrigou –, e ao devedor incumbe a prova de cumpriu tal medidas, sendo que, na ausência de prova do cumprimento de tais medidas, se presume a culpa[7].
Cabendo ao credor provar que diligência deveria ter usado, em face da obrigação que assumiu (trata-se da prova do conteúdo da obrigação, a qual compete ao credor) e ao devedor provar que usou dessa diligência, isto é, que cumpriu a obrigação[8].
No caso em apreço, na petição inicial os Autores/apelantes não alegaram quaisquer factos relativos ao contrato celebrado com a apelada, limitando-se a juntar cópia do “Contrato de Parcela” celebrado entre ambos (doc. 1, junto a fls. 16 a 21, do processo físico), alegando genericamente um “especial dever de vigilância de modo a prevenir sinistros da natureza do relatado nos autos”, sem concretizar de onde retiram a existência de tal dever de vigilância a cargo da 1ª ré.
No texto de tal contrato, e quanto à prestação da Ré O (...) , apenas se encontra prevista a permissão de instalação no parque de campismo da G (...) de uma parcela de 50 a 80 m2, com equipamento + viatura + 3 pessoas, com disponibilização de água e eletricidade nos pontos de distribuição desses serviços existentes no Parque.
Também o regulamento se concretiza essencialmente na descrição de procedimentos a que os utentes se encontram obrigados, para além da cláusula genérica de que “A O (...) declina qualquer responsabilidade por acidentes, danos, furtos ou roubos dos campistas ou do seu material. A responsabilidade por estes atos deverá ser imputada aos seus autores ou aos tutores, no caso de se tratar de menores”.
 Assim sendo, quanto à delimitação das demais obrigações ou prescrições a que se encontra sujeita a atividade da ré teremos de nos socorrer do que se encontra prescrito na já citada Portaria nº 1320/2008, que disciplina o funcionamento dos parques de campismo.
A Portaria nº 1320/2008, de 17 de novembro, que estabelece os requisitos específicos de instalação, classificação e funcionamento dos parques de campismo e caravanismo, dispõe, no nº1 do seu artigo 23º, sob a epígrafe “serviço de vigilância”, que “nos parques de campismo e caravanismo deve existir um serviço permanente de vigilância ou videovigilância”.
O âmbito de tal dever de vigilância terá de ser aferido em função dos serviços proporcionados ao utente de um parque de campismo e das obrigações a eles inerentes, consagradas na citada portaria:
- disponibilização de um espaço físico, com acesso a água, energia elétrica, instalações sanitárias (cfr., arts. 12º e 13º, relativamente às regras a que deve obedecer a instalação e funcionamento da rede de energia elétrica e de abastecimento de água, e artigos 15º e 16º, quanto às características a que devem obedecer as instalações sanitárias e respetiva localização), equipamentos de utilização comum (receção, café, bar, sala de convívio, parque infantil, espaços reservados a lavagem de roupa, etc.);
- prestação de serviços de limpeza e de remoção do lixo (artigo 22º);
- o espaço do parque há de ser vedado de modo a preservar a segurança e tranquilidade dos campistas e caravanistas (nº1 do artigo 8º);
- há de dispor de vias de circulação  interna, que devem ser mantidas em bom estado de conservação e estar, a todo o tempo, totalmente desobstruídas (artigo 10º);
- há de dispor de uma receção instalada junto da sua entrada principal, que deve prestar, pelo menos, os serviços de registo de entradas e saídas dos campistas e caravanistas, receber guardar e entregar aos campistas correspondência e objetos que lhe sejam destinados e aceitação e entrega de mensagens;
O referido dever de vigilância estará intimamente ligado ao cumprimento das demais obrigações que recaem sobre a entidade gestora do parque – de assegurar ao campista o gozo do espaço e serviços que lhe são inerentes e de preservação da segurança e tranquilidade dos campistas – sendo o seu âmbito definido por estas. Tal dever de vigilância visará assegurar que as vedações se mantêm íntegras e que não representam perigo para os utentes, que não circulem pelo parque não utentes fora das normas do parque, que os utentes cumprem as regras constantes do regulamento, que a distância legal entre as caravanas se mostra respeitada, que os limites do ruído e horas de descanso sejam respeitados pelos utentes; assegurar que as vias se encontram desimpedidas, que os extintores de incendio se encontram em condições; e, se algo de extraordinário ocorrer, chamar o mais rapidamente possível os bombeiros ou autoridades.
E da conjugação do “Contrato de Parcela”, do Regulamento do Parque e do regime previsto na citada Portaria, não resulta a existência de qualquer específico dever de guarda dos equipamentos dos campistas/caravanistas ou dos objetos guardados no seu interior, para além de uma manutenção do parque em condições de segurança – devidamente vedado, com controle de acesso de quem lá entra, manter as vias de acesso desimpedidas, e os meios de auxilio à extinção de incêndios em condições de funcionamento, bem como um equipamento de primeiros socorros.
Ou seja, em nosso entender, a tal clausula a que se refere o nº26 da matéria de facto – a nosso ver, irrelevante para o caso em apreço –, não integra qualquer exclusão da responsabilidade da 1ª ré, encontrando-se em sintonia com a ausência de obrigação de guarda dos equipamentos e pertenças dos utentes.
Como se refere no acórdão do STJ de 07 de novembro de 1985, ao contrário do que sucede no contrato de depósito, nos parques de campismo nem os seus donos ficam obrigados a guardar as tendas ou caravanas, nem estas são entregues pelos campistas ao proprietário do parque[9].
Ficou por demonstrar (e atenção, que nem sequer foi alegada a existência deste específico dever de guarda) que sobre a Ré O (...) recaísse um dever de guarda do equipamento do autor instalado no Parque de Campismo.
Por outro lado, provou-se que a caravana onde deflagrou o incêndio estava desocupada aquando do seu início, desconhecendo-se qual a causa do incêndio, que a Ré O (...) não tinha acesso a tal caravana, que o parque de campismo dispõe de equipamento de proteção à instalação elétrica, o qual funcionou aquando do incendio, e que o Parque dispunha de bocas-de-incêndio, uma das quais na proximidade da caravana e que foi acionada antes da chegada dos Bombeiros, bem como de vários extintores, tendo sido utilizados, pelo menos, seis extintores no combate ao incêndio em causa nos autos.
Os autores não alegaram qualquer concreta obrigação a cargo da ré que pudesse ter sido violada por esta, sendo que, as obrigações que para esta resultariam de um dever geral de vigilância se mostram cumpridas. Assim sendo, não se tem por verificada, desde logo, de entre os diversos pressupostos da obrigação de indemnizar, a ilicitude do comportamento da ré.
Nas suas alegações de recurso, os apelantes imputam ainda a responsabilidade pelos danos ocorridos na caravana à Ré O (...) , com a alegação de que:
- a Ré impediu a retirada do equipamento, exigindo o pagamento por conta de uma fruição que se mostrava impossível;
- levou a cabo uma vistoria para averiguação da causa do incendio em momento muito ulterior à pratica dos factos, apagando os vestígios da sua responsabilidade.
Contudo, não são esses os factos que estão na base imputação da responsabilidade da ré na presente ação, nem são esses os danos aqui em causa – o que aqui se pede é o pagamento do valor da reparação dos danos sofridos pela caravana no sinistro e o valor da privação de uso até à data de hoje pelo facto de os danos decorrentes do acidente terem provocado a inutilização da caravana.
A não prova dos pressupostos da responsabilidade civil relativamente à 1ª Ré, importará necessariamente a absolvição da 2ª ré, enquanto mera garante da responsabilidade da 1ª.
A apelação é de improceder, na sua totalidade.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelos Apelantes.

                                                                                 Coimbra, 1 de março de 2016

Maria João Areias ( Relatora )

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. O âmbito do dever de vigilância que o artigo 23º da Portaria nº 1320/2008, de 17 de novembro, faz impender sobre as entidades que exploram parques de campismo, não abarca um específico dever de guarda dos equipamentos de campismo/caravanismo ou dos objetos existentes no seu interior.

2. Tal dever de vigilância terá de ser aferido em função dos serviços proporcionados ao utente de um parque de campismo e das obrigações a eles inerentes, consistindo numa obrigação de meios e não de resultado.


[1] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 704.
[2] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 127.
[3] Acórdão relatado por Campos Costa, in BMJ nº 351, pág. 384.
[4] Cfr., neste sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, Almedina, 9ª ed., pág. 971, acrescentando que constituem, de um modo geral, obrigações de meios as obrigações de prestação de facto positivo, sobretudo as que se relacionam com atividades profissionais ou artísticas, dando como exemplos, a obrigação do depositário quanto à guarda da coisa depositada, ou a do monitor de equitação pelo que toca a uma eventual queda e consequente ferimento do cliente – obra citada, pág. 972, nota 1.
[5] Acórdão disponível in www.dgsi.pt.
[6] Tal ónus da prova não se estenderá ao incumprimento defeituoso, caso em que, a prova do defeito, incumbirá, sempre ao credor.
[7] Assumimos, assim, alguma divergência relativamente a alguns recentes estudos publicados sobre esta questão, que consideram que nas obrigações de meios é o credor que tem de provar que o devedor adotou uma conduta não conforme com as regras de comportamento fixadas ou aceites pelo círculo profissional a que pertence o agente – cfr., Carneiro da Frada, “Direito Civil, Responsabilidade Civil – O Método do Caso”, Almedina, pág. 80, e Ricardo Lucas Ribeiro, Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado, Coimbra Editora, pág. 130.
[8] Cfr., Adriano Vaz Serra, “Culpa do Devedor ou do Agente”, BMJ nº68, pág. 82.
[9] Acórdão disponível no BMJ nº 351, pág. 381 e ss., onde se afirma: “Com efeito, para além do gozo de certas instalações do parque, os campistas são beneficiados por alguns serviços prestados sobretudo pelos guardas, incumbidos de efetuar a vigilância permanente do parque (artigo 37º, nº4 do Decreto nº 127/71), vigilância exercida, entre outros, com os objetivos de assegurar que todos os utentes do parque cumpram os preceitos de higiene nele adotados, instalem o seu equipamento de modo a guardarem a distância de 2 metros em relação aos outros campistas, se abstenham de quaisquer actos suscetíveis de incomodar os demais utentes, não acendam fogo em locais não destinados a esse fim (artigo 57º do Dec. Nº 127/71). No elenco dos serviços prestados pelo pessoal dos parques não consta, em disposição alguma, a obrigação de ser assegurada a guarda das tendas ou caravanas e dos móveis nela contidos por forma a assegurar a restituição aos campistas de todo o seu material e sem danos de qualquer espécie”.