Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
311/18.9GAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INCUMPRIMENTO GROSSEIRO OU REITERADO
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AOS RECURSOS
Legislação Nacional: ARTIGOS 55.º E 56.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO PENAL/C.P.
Sumário:
I – Da conjugação dos artigos 55.º e 56.º do C.P. resulta que perante o incumprimento das condições da suspensão da execução da pena a lei prevê duas situações: a primeira, quando no decurso do período de suspensão o condenado, com culpa, deixa de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta, o tribunal pode optar pela aplicação de uma das medidas previstas no artigo 55.º; a segunda, com previsão no artigo 56.º, n.º 1, alínea a), quando, no decurso da mesma suspensão, o condenado, de forma grosseira ou repetida, viola os deveres ou regras de conduta impostos, revelando que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam ser alcançadas, caso em que a suspensão é revogada.

II – A omissão simples do pagamento parcial da indemnização nos momentos determinados na decisão condenatória justifica, ao menos num primeiro momento, não a imediata revogação da suspensão da pena, mas a aplicação pelo tribunal a quo de alguma das alternativas previstas no artigo 55.º.

III – A culpa requerida pelo artigo 56.º n.º 1, alínea a), contrariamente à pressuposta no artigo 55.º, exige um grau qualificado: tem que ser grosseira (ou seja, um conceito próximo da culpa grave), ou repetida (isto é, quando mediante condutas de descuido, incúria ou imprevidência, o condenado revela uma atitude de indiferença pelas limitações decorrentes da sentença e/ou do plano de reinserção).

IV – A justificação da ausência de pagamento com a insuficiência das condições económicas, mesmo que não documentalmente comprovadas, já resultantes do julgamento, e a justificação da ausência à audição presencial prevista no artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com a alegação de se encontrava, na data designada, fora de Portugal por ter surgido uma oportunidade profissional no estrangeiro, mesmo que também não documentalmente comprovadas, impossibilita que se apelide o incumprimento das condições de suspensão por parte do arguido como grosseiro ou reiterado, como exige o artigo 56.º, n.º 1, alínea), porquanto resulta que ele não se mantive totalmente indiferentes às determinações do tribunal.

V – O pagamento à lesada do valor total da indemnização ainda no prazo da suspensão, mesmo que feito depois do conhecimento da decisão de revogação da suspensão da execução da pena, obsta a que se julgue como demonstrado que as finalidades da suspensão não foram alcançadas.

Decisão Texto Integral:

Acórdão da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


       I - Relatório

       AA e BB, vieram interpor recurso do despacho proferido pelo Juízo Central Criminal de Leiria (J2), do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, o qual revogou a suspensão da execução das penas de prisão em que cada um dos recorrentes tinha sido condenado, …

       1.2. O arguido AA apresentou as seguintes conclusões:

1- O recorrente foi condenado por decisão transitada em julgado em 09-06-2020 na pena única de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sob a condição de no período da suspensão comprovar nos autos o pagamento à demandante da quantia de 1500€.

3- Durante o decurso da suspensão não foi possível ao recorrente pagar o valor de 500€, mais 500€, alegando junto do Tribunal as parcas condições económicas, em virtude de apenas receber um subsídio social de reduzido valor que representava unicamente o seu meio de subsistência.

4- Informando por várias vezes o Tribunal que era sua intenção ressarcir quanto antes à demandante o montante em dívida, mas devido à sua fragilidade socioeconómica, não conseguiu até então tal fim desejado.

5- Assim, tendo sido notificado para prestar declarações em fase de audição de condenado, quanto à sua situação de incumprimento, o mesmo justificou a sua falta, alegando que se encontrava inesperadamente fora do Território Nacional, por ter surgido uma oportunidade profissional.

6- Com a não comparência por parte do recorrente e considerando que as finalidades que estavam na base da suspensão da execução da pena de prisão não foram alcançadas e que a mera censura do facto e da ameaça da pena de prisão não foram suficientes a satisfazer as exigências de prevenção geral e especial positivas foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão ao recorrente determinando o cumprimento da pena de 1 ano e 1 mês através de despacho de 06/12/2022.

7- Sendo o prazo da suspensão de 3 anos após o trânsito em julgado, os referidos 3 anos terminarão a 09/06/2023, e nesse sentido veio o recorrente proceder ao pagamento da totalidade de 1500€, a 06/01/2023.

8- Tal pagamento só foi possível devido à inserção no mercado de trabalho por parte do recorrente.

11-Na realidade não existe um incumprimento de um pagamento por parte do recorrente, uma vez que o mesmo tenha sido facilitado prestacionalmente, não foi referido no Acórdão condenatório, que a falta de pagamento de “uma prestação” inviabilizava a suspensão do período de suspensão dos 3 anos.

12-Sucede que já nesta sede, de prorrogação da suspensão, era obrigatória a audição presencial do arguido, o que não sucedeu, não tendo o condenado sido ouvido, depois de ter justificado a sua falta.

13-Pelo que, ficaram por apurar, in casu, as circunstâncias que permitiam aferir pela culpabilidade do arguido na óptica do estipulado no corpo do artigo 55° do CP quando aí se refere: “se o condenado deixar de cumprir culposamente”.

14-Não existiam nos autos nessa data, elementos que permitissem conhecer a situação económica do condenado na actualidade, nada se averiguando sobre a sua realidade social e económica.

15-Apenas havendo uma diligência para audição do condenado, o mesmo não foi ouvido presencialmente e justificou a sua falta.

16-Esta audição do condenado, para além de obrigatória, tem de ser presencial, tratando-se de acto para o qual a lei exige a presença do arguido.

17-Pelo que a sua omissão implica a existência da nulidade insanável prevista no art. 119 al. c) do CPP.

18-A decisão recorrida, o despacho judicial de 06/12/2022, violou, fazendo errada interpretação, os artigos : art. 56° do CP , art. 495º nº 2, 119º al. c) do CPP e art. 32°, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, nulidade que se argui.

       

        1.3. O arguido BB apresentou as seguintes conclusões:

        1 - O recorrente foi condenado por decisão transitada em julgado em 09-06-2020 na pena única de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sob a condição de no período da suspensão comprovar nos autos o pagamento à demandante da quantia de 1500€.

       2- Dos quais seriam pagos 500€, decorridos 1 ano após o trânsito do Acórdão, e pelo menos mais 500€ no ano seguinte.

       3- Durante o decurso da suspensão não foi possível ao recorrente pagar o valor de 500€, mais 500€, alegando junto do Tribunal as parcas condições económicas, em virtude de apenas receber um subsídio social de reduzido valor que representava unicamente o seu meio de subsistência.

       4- Informando por várias vezes o Tribunal que era sua intenção ressarcir quanto antes à demandante o montante em dívida, mas devido à sua fragilidade socioeconómica, não conseguiu até então tal fim desejado.

       5- Assim, tendo sido notificado para prestar declarações em fase de audição de condenado, quanto à sua situação de incumprimento, o mesmo justificou a sua falta, alegando que se encontrava inesperadamente fora do Território Nacional, por ter surgido uma oportunidade profissional.

       6- Com a não comparência por parte do recorrente e considerando que as finalidades que estavam na base da suspensão da execução da pena de prisão não foram alcançadas e que a mera censura do facto e da ameaça da pena de prisão não foram suficientes a satisfazer as exigências de prevenção geral e especial positivas foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão ao recorrente determinando o cumprimento da pena de 1 ano e 3 meses através de despacho de 06/12/2022.

       7- Sendo o prazo da suspensão de 3 anos após o trânsito em julgado, os referidos 3 anos terminarão a 09/06/2023, e nesse sentido veio o recorrente proceder ao pagamento da totalidade de 1500€, a 06/01/2023.

       8- Tal pagamento só foi possível devido à inserção no mercado de trabalho por parte do recorrente.

       10-Justificou uma falta de audição, com base em motivos profissionais, os quais lhe lograram pagar na totalidade o valor que servia de base à suspensão da pena no decorrer ainda do prazo dos 3 anos.

       11-Na realidade não existe um incumprimento de um pagamento por parte do recorrente, uma vez que o mesmo tenha sido facilitado prestacionalmente, não foi referido no Acórdão condenatório, que a falta de pagamento de “uma prestação” inviabilizava a suspensão do período de suspensão dos 3 anos.

       12-Sucede que já nesta sede, de prorrogação da suspensão, era obrigatória a audição presencial do arguido, o que não sucedeu, não tendo o condenado sido ouvido, depois de ter justificado a sua falta.

       13-Pelo que, ficaram por apurar, in casu, as circunstâncias que permitiam aferir pela culpabilidade do arguido na óptica do estipulado no corpo do artigo 55° do CP quando aí se refere: “se o condenado deixar de cumprir culposamente”.

       14-Não existiam nos autos nessa data, elementos que permitissem conhecer a situação económica do condenado na actualidade, nada se averiguando sobre a sua realidade social e económica.

       15-Apenas havendo uma diligência para audição do condenado, o mesmo não foi ouvido presencialmente e justificou a sua falta.

       16-Esta audição do condenado, para além de obrigatória, tem de ser presencial, tratando-se de acto para o qual a lei exige a presença do arguido.

       17-Pelo que a sua omissão implica a existência da nulidade insanável prevista no art. 119 al. c) do CPP.

       18-A decisão recorrida, o despacho judicial de 06/12/2022, violou, fazendo errada interpretação, os artigos : art. 56° do CP , art. 495º  nº 2, 119º al. c) do CPP e art. 32°, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, nulidade que se argui.

       …

      1.4. O Ministério Público Junto ao tribunal da 1ª instância respondeu ao recurso do arguido AA …

      1.5. O mesmo Ministério Público respondeu ao recurso do arguido BB …

 

       1.6. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto ao Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido da manutenção da decisão proferida pelo Tribunal recorrido, …


***

 II - Fundamentação de Facto

A – Despacho recorrido (…)

“Por acórdão transitado em julgado a 09-06-2020, foi BB condenado na pena única de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sob a condição de, no período da suspensão, comprovar nos autos o pagamento à demandante da quantia de € 1.500, dos quais € 500 decorrido 1 ano após o trânsito do acórdão, e pelo menos mais 500 € no ano seguinte.

Também no âmbito do mesmo acórdão, igualmente transitado em julgado, foi AA condenado na pena única de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sob a condição de, no período da suspensão, comprovar nos autos o pagamento à demandante da quantia de € 1.500, dos quais € 500 decorrido 1 ano após o trânsito do presente acórdão, e pelo menos mais 500 € no ano seguinte.

Decorridos mais de 2 anos desde a data do respectivo trânsito em julgado, constata-se que não foi pago qualquer valor a M..., Lda.

Notificados para o efeito, os condenados vieram invocar, a 20-05-2022, as suas parcas condições económicas para sustentar a ausência de qualquer pagamento, invocando ser intenção de ambos ressarcir a demandante.

Notificados, a 30-05-2022 e na sequência do exposto, para virem juntar prova documental das alegadas dificuldades económicas, os condenados nada disseram ou juntaram.

Em cumprimento do disposto no artigo 495º, nº 2 do Código de Processo Penal, designada data para audição dos condenados BB e AA estes, ainda que regularmente notificados, não lograram justificar as respectivas faltas, não tendo comparecido no dia designado.

Tendo vista nos autos, a Digna Magistrada do Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada a cada um dos arguidos.

Notificada a defesa para se pronunciar acerca do promovido, nada veio dizer, justificar, nem comprovou qualquer pagamento à ofendida, por parcial ou ínfimo que seja.

Apreciando e decidindo:

Dispõe o n.º1 do artigo 56.º do Código Penal, no que para os presentes autos releva, que: “[A] suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:

a) Infringir grosseira e repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social;

b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

Do julgamento realizado nos autos resultou provado que o condenado «BB trabalhou pontualmente no ramo da construção civil, e de forma mais permanente na venda ambulante, actividade da qual alega provirem os seus proveitos, na ordem dos 400/500 euros mensais, a que acrescem os montantes auferidos a título de abono de família dos descendentes, na ordem dos 200 euros mensais. A companheira do arguido é doméstica. (…) No campo profissional, AA dedicou-se de forma inconsistente e instável à venda ambulante de roupas, encontrando-se o seu agregado familiar, desde há vários anos, dependente do rendimento social de inserção auferindo, no presente momento, de 600 €. Acresce a este montante 150 € de abono dos filhos menores».

Assim, se é certo que a situação económico financeira dos condenados não é largamente excedentária, o certo é que os arguidos não manifestaram o mais pequeno cuidado ou preocupação em cumprir com a obrigação de pagamento judicialmente imposta, em pequena parte que fosse, antes se alhearam e desinteressaram flagrantemente pelo cumprimento do julgado.

Ora, por força do disposto no artigo 50.º, n.º1 do Código Penal, o pressuposto material da suspensão da execução da pena é o da adequação e suficiência da mera censura do facto e da ameaça da prisão às finalidades da punição, isto é, às necessidades preventivas do caso, sejam as de prevenção geral (como meio de protecção de bens jurídicos), sejam as de prevenção especial (como meio de reintegração do agente na sociedade).

… Subjacente à decisão de suspensão da pena de prisão nos presentes autos esteve o juízo de que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão bastariam para afastar o arguido da criminalidade e desde que os arguidos ressarcissem a lesada dos prejuízos sofridos.

Tal não sucedeu, nem sequer parcialmente; e nada justificaram, comprovadamente, perante este Tribunal quanto ao (eventual) motivo do incumprimento.

Tendo por base este critério material, e face a todo o exposto, forçoso é concluir, deferindo o doutamente promovido pelo MºPº, que as finalidades que estavam na base da suspensão da execução da pena de prisão que foi aplicada ao arguido, nos presentes autos, não puderam, por meio dela, ser alcançadas e que a mera censura do facto e a ameaça da pena de prisão não foram suficientes a satisfazer as exigências de prevenção geral e especial positivas.

Em face de todo o exposto, e nos termos das disposições conjugadas dos artigos 56.º, n.º 1, alínea a), e nº 2 do Código Penal, revogo a suspensão da execução das penas de prisão em que cada um dos arguidos foi condenado e, consequentemente: 

- determino que o arguido BB cumpra a pena de 1 ano e 3 meses de prisão em que foi condenado nos presentes autos;

- determino que o arguido AA cumpra a pena de 1 ano e 1 mês de prisão em que foi condenado nos autos (…)”.


***

     III – Fundamentação de Direito

     Apreciando e decidindo

   …

     

   b) Lidos os recursos apresentados pelos arguidos, e as respostas do Ministério Público aos mesmos recursos, constata-se que tanto aqueles como estas são em tudo semelhantes, sendo certo que também a decisão recorrida avalia conjuntamente a questão da revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

   Assim sendo, constatando-se ainda que a factualidade a considerar é a mesma relativamente aos 2 arguidos, iremos apreciar cumulativamente os 2 recursos.

   A principal questão a apreciar, prende-se em saber se é justificada a revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

    c) Iniciando então a apreciação dos 2 recursos, recorde-se que dispõe o artigo 55.º do Código Penal, a propósito da falta de cumprimento das condições da suspensão, que “Se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de reinserção, pode o tribunal:
a) Fazer uma solene advertência;

b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão;
c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção;
d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50.º

       Já no artigo 56.º do Código Penal regula-se a revogação da suspensão da execução da pena de prisão nos seguintes termos:
«
1 -A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efetuado

      d) Da conjugação entre os citados arts. 55º e 56º do Cód. Penal, resulta que perante o incumprimento das condições da suspensão da pena, a lei prevê duas situações:

      - a primeira, quando no decurso do período de suspensão, o condenado, com culpa, deixa de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta, podendo o tribunal optar pela aplicação de uma das medidas previstas no artigo 55.º do Cód. Penal;

      - e a segunda, com previsão no art 56º n.º 1 al. a) do Cód. Penal, quando no decurso da mesma suspensão o condenado, de forma grosseira ou repetida, viola os deveres ou regras de conduta impostos, assim revelando que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam ser alcançadas, com a suspensão é revogada.

      A nossa jurisprudência (por exemplo, o Ac. TRP de 5-5-2010, processo n.º 259/06.0GBMTS.P1) tem  defendido que, para que se possa revogar a suspensão, torna-se necessário não só o incumprimento culposo da condição da suspensão, como ainda a demonstração inequívoca de que o incumprimento da obrigação condicionante evidencia a frustração da finalidade prosseguida pela suspensão da execução da pena. Isto porque não faria sentido que esta última exigência valesse apenas para a prática de novo crime no decurso do período de suspensão (al. b) do citado art 56º), e já não para a falta de cumprimento de deveres que condicionaram a suspensão, uma vez que o cometimento de um crime no período da suspensão evidencia de forma muito mais gritante o fracasso da prevenção da reincidência que justifica o instituto da suspensão da execução da pena.

       e) E também (Ac. TRP de 14-3-2012, processo n.º 35/08.5IDAVR.P1) que “A revogação da suspensão da pena por incumprimento do dever de entrega de contribuição monetária a uma instituição humanitária não prescinde de prova fáctica que justifique, de forma bastante, a convicção de que um tal incumprimento infirmou definitivamente o juízo de prognose favorável que esteve subjacente à decisão da suspensão”. Ou ainda (Ac. TRE de 5-3-2013, processo n.º 1144/05.8TASTB.E1 ) “Se o incumprimento culposo de deveres e regras de conduta, impostos na sentença como condição da suspensão da prisão, consentir ainda as consequências previstas nalguma das alíneas do artigo 55º do Código Penal, a decisão que trata desse incumprimento deve revelar tê-las ponderado, não avançando logo para o efeito mais gravoso previsto no artigo 56º do Código Penal sem pronúncia prévia sobre a viabilidade de ressocialização do condenado em liberdade.

            f) E também que  (Ac. TRL de 25-5- 2017, processo n.º 317/14.7PBPDL-A-L1-9) “Da conjugação dos artigos 55.º e 56.º do Código Penal resulta claro, que o simples incumprimento, ainda que com culpa, dos deveres impostos como condição da suspensão, pode não justificar a revogação, sendo que a suspensão da pena radica e tem como finalidade principal, o afastamento do arguido, no futuro, da prática de novos crimes; A revogação da suspensão só se impõe, nos termos da al. a) do nº 1 do artigo 56º do Código Penal quando o condenado infrinja grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos, ou o plano individual de reinserção e cumulativamente revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, assim a infração grosseira será só a que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade, aqui se incluindo a colocação intencional do condenado em situação de incapacidade de cumprir os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de reinserção”.
        g) Fixado o contexto legal, e recordada a orientação que a este propósito tem sido adoptada, sem grandes sobressaltos, pela nossa jurisprudência, voltemos então ao caso concreto.

          No caso, verifica-se que tendo sido a suspensão da execução das penas de prisão aplicadas aos 2 recorrentes condicionada ao pagamento ao lesado da quantia de € 1.500 (dos quais € 500 decorrido 1 ano após o trânsito do acórdão condenatório, e pelo menos mais 500 € no ano seguinte), decorridos 2 anos sobre a data do trânsito em julgado os arguidos não tinham pago qualquer quantia à sociedade lesada.

           Os arguidos não só não procederam naquele prazo ao pagamento das referidas quantias, como não juntaram algum documento no sentido de justificar as alegadas falta de condições económicas para as pagar. E convocados para a sua audição, não compareceram à mesma.

           h) Serão estes factos - invocados pela decisão recorrida - suficientes para que se possa concluir pelo incumprimento culposo da condição da suspensão, e ainda pela  demonstração inequívoca de que o incumprimento da obrigação condicionante evidencia a frustração da finalidade prosseguida pela suspensão da execução da pena como exigido pelo artigo 56º n.º 1  al. a) do Cód. Penal?

           Vejamos:

           Por um lado, não estamos perante uma daquelas situações em que o  condenado omite todo e qualquer dever de resposta ao tribunal, manifestando total desprezo pelo que possa ser decidido relativamente à execução da pena.

           Efectivamente, os recorrentes tentaram justificar a ausência de pagamento, invocando  a insuficiência das suas condições económicas, alegando que as mesmas não permitiam o pagamento das quantias em causa no momento defendido no acórdão; é certo que não justificaram documentalmente essa invocada falta de condições económicas (o que levou o tribunal a julgar injustificada tal alegação),  mas também devemos considerar que aquela  afirmação dos recorrentes  não surgiu como surpreendente ou despropositada. Isto porque resultou do julgamento que a situação económica dos arguidos é frágil e precária.

             Assim, resultou provado no acórdão condenatório, o recorrente BB trabalhou pontualmente na construção civil, e de forma mais permanente na venda ambulante, actividade da qual resultarão proveitos na ordem dos 400/500 € mensais, acrescendo a quantia aproximada de 200 € mensais (abonos de família relativos aos descendentes). E o recorrente AA, dedica-se de forma inconsistente e instável à venda ambulante de roupas, encontrando-se o seu agregado familiar, desde há vários anos, dependente do rendimento social de inserção auferindo cerca de 600 €, acrescendo 150 € de abono pago pelos seus filhos menores.

       Depois, sendo certo que os arguidos faltaram à audição presencial determinada pelo tribunal a quo nos termos do art 495º, nº 2 do C.P.P., também aqui não se mantiveram totalmente indiferentes; os recorrentes fizeram (algum) esforço no sentido de tentar justificar a ausência à referida diligência, alegando que se encontravam, na data da designada, fora de Portugal, por ter surgido uma oportunidade profissional no estrangeiro. É certo que também aqui não juntaram documentos que o comprovassem, o que determinou que o tribunal a quo julgasse injustificadas as suas faltas, mas temos que observar que se são efectivamente vendedores ambulantes (como se deu como provado no acórdão condenatório), o exercício dessa actividade não costuma normalmente ser documentado.

         E já após terem conhecimento da decisão da revogação da suspensão da execução da pena, procederam ao pagamento à sociedade lesada (ainda dentro do período de suspensão da execução a pena) da totalidade do montante do qual dependia a suspensão da pena.

          i) Com este excurso não se pretende defender que seja completamente inaceitável ou incompreensível que o tribunal a quo tenha considerado injustificadas tanto a falta atempada de pagamento da indemnização, como a ausência dos arguidos à diligência (ainda que, em ambos os casos, tenha ocorrido algum esforço no sentido de responder ao solicitado pelo tribunal, e que as condições económicas dos arguidos apuradas em julgamento fossem compatíveis com a alegada dificuldade para proceder ao pagamento da indemnização); o que se pretende é assinalar que as assinaladas faltas ou omissões surgem, neste contexto, como excessivas para efeitos da imediata revogação da suspensão da execução d apena de prisão.

       j) Assim, verificou-se a falta de cumprimento da condição à qual se submeteu a suspensão da execução da pena, isto é, o não pagamento das 2 primeiras tranches definidas no acórdão condenatório (500,00 € no 1º ano e outros 500,00 € no 2º ano). A omissão simples do pagamento parcial da indemnização naqueles momentos justificava - ao menos num primeiro momento   - não a imediata revogação da suspensão da pena, mas a aplicação pelo tribunal a quo de alguma das alternativas previstas no art 55º do Cód. Penal; por exemplo, fazendo a solene advertência de que o não pagamento num novo prazo implicaria a revogação da suspensão, ou exigindo garantias de que o mesmo pagamento sucederia, ou até prorrogando o período de suspensão. No caso, admite-se até como provável que caso tivesse sido reforçada a ameaça da execução da revogação da suspensão mediante a aplicação e algum daqueles mecanismos, os recorrentes tivesse pago a indemnização, como veio a suceder.

          k) Os condenados, ora recorrentes, incumpriram a condição de suspensão ao não procederem ao pagamento das 2 primeiras prestações da indemnização, admitindo-se que se possa ter avaliado esse incumprimento como culposo. Mas a culpa requerida pelo art 56º n.º 1 al. a) – contrariamente à pressuposta no art. 55º do C. Penal – exige um grau qualificado: a mesma tem que ser grosseira  (ou seja, um conceito próximo da culpa grave), ou repetida (isto é, quando mediante condutas de descuido, incúria ou imprevidência, o condenado revela uma atitude de indiferença pelas limitações decorrentes da sentença e/ou do plano de reinserção social) -   cfr. Ac. do TRC de 30-01-2019, Processo n.º 127/17.0GAMGR-A.C1O.

       l) No caso, resultando da decisão condenatória que os arguidos têm uma condição económica muito pouco favorável (vendedores ambulantes, com rendimentos inferiores ao salário mínimo, beneficiando os seus filhos de apoios sociais), e tendo os mesmos feito algum esforço no sentido de ir tentando justificar o não cumprimento da condição, não se pode dizer que no momento em que foi determinada a revogação a suspensão da pena estivéssemos já perante um incumprimento grosseiro ou reiterado das condições da suspensão.

       E ainda menos que estivesse demonstrado, de forma inequívoca, que o incumprimento da mesma obrigação condicionante já evidenciasse a frustração da finalidade prosseguida pela suspensão da execução da pena (essencialmente que se evite a reiteração da prática de crimes, ou que não seja conseguida a reinserção social do condenado). Tanto que o prazo para o pagamento do valor total da indemnização ainda não tinha terminado, e os arguidos mantiveram-se aparentemente inseridos socialmente, não sendo por isso evidente que fosse já inviável a ressocialização dos condenados em liberdade.

         Repete-se; o que se justificava naquele contexto, era o recurso preliminar a algum dos mecanismos previstos no art 55º do Cód. Penal, e não a revogação da suspensão por aplicação do art 56º n.º 1 al. a) do Cód. Penal.

         m) Os recursos devem assim proceder, revogando-se a decisão recorrida, mantendo-se a suspensão da pena, findo o qual deverá ser avaliado de forma definitiva se a suspensão da execução da pena de prisão cumpriu o seu propósito.

  


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IV – Dispositivo

      Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedentes os recursos interpostos por AA e BB, derrogando o despacho proferido nestes autos que revogou a suspensão da execução das penas de prisão em que cada um dos arguidos foi condenado.

      Sem custas, atenta a procedência dos recursos.

                     

                               Coimbra, 12 de Julho de 2023


João Novais

                         

Rui Pedro Lima

Jorge Jacob