Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45/13.0TBOFR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: TRANSACÇÃO
RATIFICAÇÃO
SOCIEDADE
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
ADMINISTRADOR
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 03/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - INST. LOCAL/VISEU - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 217º, 268º, 334º E 1250º DO CC E 290º DO CPC
Sumário: I – A transacção por via da qual se reconhece uma obrigação pecuniária e se assume a obrigação do respectivo pagamento está sujeita a forma escrita e, como tal, também ficará sujeita a forma escrita a ratificação dessa transacção por parte da pessoa em nome de quem foi celebrada mas por quem não detinha os necessários poderes de representação.

II – O carácter formal da declaração de ratificação não obsta a que ela possa ser emitida tacitamente, desde que a forma exigida seja observada relativamente aos factos dos quais se deduz a declaração, pelo que, tendo sido celebrada uma transacção em nome de determinada sociedade e por um dos administradores (apesar de o pacto social exigir a intervenção de dois), tal transacção deve considerar-se regular e tacitamente ratificada pela sociedade, se esta, através de dois dos seus administradores, reconheceu a transacção e procedeu ao cumprimento parcial das obrigações ali assumidas mediante a entrega ao credor de cheques que eram, regular e devidamente, assinados por dois administradores.

III – De qualquer forma, tendo a sociedade – através da actuação de dois administradores com poderes para a representar e vincular – reconhecido a transacção, tendo assumido as obrigações dela decorrentes e tendo procedido, durante algum tempo, ao regular cumprimento das obrigações ali assumidas, através de cheques assinados por dois dos seus administradores, não seria legítimo – por configurar abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium – que se viesse invocar, em momento posterior, a ineficácia daquele negócio por falta de poderes de representação de quem nele interveio em nome da sociedade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , residente na Rua (...) , Gafanha da Encarnação, veio intentar a presente acção contra B... , S.A., com sede na (...) Oliveira de Frades e contra C... , residente na Urbanização (...) , Águeda, alegando, em suma, que: sendo accionista da 1ª Ré e fazendo parte do respectivo Conselho de Administração, tomou conhecimento que o 2º Réu, também accionista da 1ª Ré, havia intentado contra esta dois processos onde pedia a fixação judicial de prazo para pagamento dos suprimentos e a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 128.381,26€ e no âmbito dos quais veio a ser celebrada transacção; constata-se, porém, que, nessa transacção, a Ré apenas foi representada por um administrador, quando é certo que, nos termos do pacto social, apenas se obriga com a assinatura de dois; além do mais, essa matéria sempre estaria sujeita a deliberação do Conselho de Administração, que não existiu e tão pouco foi dado conhecimento dessa situação aos demais administradores; tal transacção, efectuada unilateralmente por um único administrador, é nula e corresponde a um favorecimento de um accionista em relação aos demais que também têm suprimentos e empréstimos feitos à sociedade por receber, além de que visou conduzir a sociedade a uma situação de insolvência, dada a sua falta de liquidez, com prejuízo para os demais accionistas, também credores.

Com estes fundamentos, pede:

a) Que se declare nula a transacção efectuada no âmbito do processo nº 322/10.2TBOFR;

b) Que se ordene a devolução à Ré, B... , S.A., de todos os valores que foram entregues e recebidos pelo 2º Réu no âmbito da transacção efectuada;

c) Que se ordene o levantamento da penhora de todos os bens que constam do auto junto com a Execução nº 321/10.4TBOFR-B, pertencentes à Ré.

O 2º Réu contestou, invocando a ilegitimidade do Autor, já que, não tendo tido intervenção na transacção, não tem legitimidade para vir invocar a sua ineficácia e sendo certo que a falta de poderes de representação não conduziria à nulidade da transacção, mas apenas à sua ineficácia. Mais alega que a cláusula do pacto social que exige a assinatura de dois administradores não é oponível a terceiros e, apesar de accionista, o Réu é terceiro de boa fé face à sociedade; ainda que assim não seja, a invocação de falta de poderes de representação corresponde a abuso de direito, porquanto o Autor sempre teve conhecimento da transacção e a sociedade, através dos seus três administradores, sempre a assumiu como válida, tendo procedido ao pagamento das primeiras oito prestações, mediante cheques que foram assinados por dois administradores, sendo que um desses cheques também foi assinado pelo Autor; além do mais, quando citada para a execução, a sociedade não deduziu qualquer oposição.

Conclui pedindo a sua absolvição da instância ou a sua absolvição do pedido, mais pedindo que o Autor seja condenado, como litigante de má fé, em multa e indemnização de valor não inferior a 5.000,00€.

O Autor replicou, sustentando a improcedência da excepção invocada e a improcedência do pedido referente à sua condenação por litigância de má fé.

Foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a invocada excepção de ilegitimidade.

Foi fixado o objecto do litigio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu os Réus do pedido.

Inconformado com essa decisão, o Autor veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

 1. O objecto do presente recurso consiste na discordância com a matéria de direito, bem como com a matéria de facto dada como provada e como não provada, nos termos infra descritos;

2. Foram dados como não provados factos que deveriam ter sido dados como provados;

3. O que, salvo o devido respeito por opinião diversa, resulta de uma errónea valoração da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento;

4. E que, por conseguinte, acarreta uma subsunção jurídica diversa da acolhida na douta sentença;

5. A juíza a quo veio dar como não provado o facto 4) “que só em Março de 2014 é que o A teve conhecimento que o R. tinha intentado contra a R. a acção 322/10.2TBOFR, que tinha como pedido a fixação de prazo para pagamento de suprimentos e que só na ultima semana do mesmo mês é que teve conhecimento que nessa acção tinha sido efectuada uma transacção”;

6. Isto, devido ao depoimento da testemunha D... , quando este referiu que não podia garantir que o Autor apenas descobriu a existência de uma penhora e por conseguinte de um processo executivo intentado pelo accionista C... , no momento em que preparavam o Requerimento SIREVE;

7. Salvo o devido respeito, é evidente que a testemunha não pode dar a certeza, precisamente porque não está 24 horas por dia com o Autor ora Recorrente;

8. Ademais, a juíza a quo só se pode ter olvidado de que este mesmo individuo testemunhou nessa altura uma enorme indignação por parte do accionista A... , reafirmando posteriormente que o Recorrente “tomou conhecimento em relação à execução e mostrou indignação, a minha interpretação é de que ele desconhecia o processo”;

9. A juíza a quo também veio dar como não provado o facto em apreço devido ao depoimento das testemunhas E... e F... , visto que referiram que os cheques que ficam em branco, assinados, são apenas para uma urgência e que só utilizam cheques em branco quando surge um imprevisto;

10. Por essa razão, a meritíssima juíza a quo concluiu que “aquela ideia que os cheques já estariam assinados antes de preenchidos e que o A. não sabia o seu destino não colheu, não sendo corroborada pelos depoimentos das testemunhas, antes pelo contrário foi infirmada quando as mesmas afirmam que tais cheques em branco são apenas para um imprevisto ou uma urgência”;

11. Sucede, porém, que salvo o depoimento da testemunha F... foi mal valorado, uma vez que a testemunha veio garantir que é norma os accionistas da empresa assinarem cheques em branco e os deixarem na empresa para efectuar pagamentos quando tal se revele necessário;

12. Por conseguinte, veio referir que era normal o Sr. H... e o Sr. G... assinarem todos os cheque;

13. A testemunha revelou ainda que tem à sua guarda cheques assinados em branco, para fazer face a um imprevisto, designadamente “pode acontecer nós estarmos à espera de um administrador, o Sr. está la, nós sabemos que tem que passar o cheque, mas nós por hábito não o fazemos com antecedência, estamos ali aquela manhã para o fazer e pode acontecer, e que poderá mesmo ter acontecido, é nenhum dos administradores ter chegado atempadamente, antes das três da tarde”;

14. Ora, resulta destas declarações que um imprevisto não é o mesmo que uma urgência;

15. A testemunha referiu que era perfeitamente possível e que poderia ter acontecido ter de preencher um dos cheques assinados em branco que tem em sua posse, precisamente porque no momento em que o credor se deslocou às instalações da empresa a fim de receber o cheque, não se encontrava presente nenhum dos administradores para o assinar;

16. Do exposto, resulta que a meritíssima juíza a quo devia ter dado tal facto como provado;

17. A tudo isto, acresce que o facto descrito no artigo 5.º da Petição Inicial não foi impugnado na Contestação pelos Requeridos;

18. Assim, conforme o disposto no artigo 574.º, n.º 2 do CPC, provou-se que o Recorrente desempenhava “as funções de responsável pela produção da Ré”, o que, por conseguinte, constitui mais um indício de que este passava muito mais tempo no departamento de produção do que no da administração;

19. E, por via disso, é perfeitamente plausível que só nos preparativos do SIREVE teve conhecimento da execução e da penhora;

20. Assim sendo, deveria ter sido dado como provado o seguinte facto “3)

Que na R. o A. desempenhava funções de responsável de produção”;

21. No que concerne à alegada ratificação da transacção sustentada na douta sentença pelo tribunal a quo, cumpre referir que o artigo 268.º do CC dispõe que o negócio que uma pessoa celebre em nome de outrem sem poderes de representação é ineficaz em relação a este, caso não seja ratificado;

22. De referir que “A ratificação está sujeita ao formalismo da procuração”, R. Alarcão, Confirmação, 1.º-120 e s., apud Abílio Neto, Código Civil Anotado, 17.ª Edição Revista e Actualizada, Abril, 2010, p.184;

23. Assim sendo, “II – A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração, a qual, por seu turno, deve revestir a forma estabelecida para o negócio em causa” (cfr. Acórdão STJ, 17-1-1995: BMJ, 443.º - 353);

24. Acresce que, nos termos do artigo 287.º do CPC, Os representantes das pessoas coletivas, sociedades, incapazes ou ausentes só podem desistir, confessar ou transigir nos precisos limites das suas atribuições ou precedendo autorização especial;

25. Resulta de documento junto aos autos com a Petição Inicial, que a transacção foi efectuada em acta, tendo sido homologada pela meritíssima juíza por sentença ditada para acta, nos termos do n.º 4 do artigo 290.º do CPC;

26. Assim sendo, a “alegada” ratificação da falta de poderes, que apenas por mera hipótese académica se admite, deveria ter sido celebrada nos exactos termos e formalismos usados para a transacção;

27. Deste modo, mesmo que existisse ratificação, a mesma careceria de forma, o que, nos termos do artigo 220.º do CC, faz com que a mesma fosse nula, na medida em que “A inobservância da forma legal de uma declaração negocial faz com que esta seja nula”;

28. Ademais, não constitui abuso de direito invocar a nulidade decorrente da inobservância da forma legalmente prescrita, conforme resulta dos Acórdãos RP – 21-6-1971: BMJ, 209.º - 195; STJ, 20-3-1973: BMJ, 225.º - 196; RP, 29-6-1973: BMJ, 228.º - 273; RL, 22-2-1974 : BMJ, 234.º - 324; RC, 22-5-1974: BMJ, 237.º - 307; RP, 3-7-1974: BMJ, 239.º-266; STJ, 17-12-1974: BMJ, 242.º-257);

29. Na douta sentença, a meritíssima juíza a quo decidiu que “também pela figura do abuso de direito deve a presente acção improceder”, na modalidade venire contra factum proprium;

30. Porém, resulta do exposto que só em Março de 2014 é que o Recorrente teve conhecimento que o Réu C... tinha intentado contra a Ré B... a acção 322/10.2TBOFR, que tinha como pedido a fixação de prazo para pagamento de suprimentos e que só na última semana do mês é que teve conhecimento que nessa acção tinha sido efectuada uma transacção;

31. Assim, só a partir dessa data é que o Recorrente tomou conhecimento da transacção, tendo de imediato tomado posição em relação a esta, mediante a propositura de acção judicial;

32. Sendo que o facto de existir um cheque por este assinado, não significa que este conhecia a situação, precisamente porque resulta do depoimento da testemunha F... que os administradores assinavam cheques em branco que esta usava numa situação de imprevisto;

33. Dando como exemplo de uma situação de imprevisto o facto de o credor se deslocar à sociedade para receber um pagamento e os administradores não se encontrarem na empresa para assinar o cheque;

34. Ao dar-se o facto 4), supra descrito, como provado, prova-se que o ora Recorrente, em momento algum adoptou uma conduta que seja susceptível de criar uma situação de confiança objectiva;

35. E, por via disso, não adoptou actos idóneos a investir confiança no Recorrido C... ;

36. Na nossa opinião, deveria ter sido esta a tomada de posição do tribunal a quo, tendo em conta a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento;

37. O que, por conseguinte, inviabiliza a procedência do instituto do abuso de direito no caso sub judice;

38. Ademais, cumpre referir que o Recorrido não constitui terceiro de boa fé.

39. Como se sabe, se um accionista tem direito a receber os seus suprimentos, aos outros accionistas assiste o mesmo direito;

40. Mas é extremamente abusivo o uso desse direito numa altura em que a Ré B... , S.A. atravessava e atravessa sérias dificuldades financeiras, encontrando-se à beira da insolvência, com salários e subsídios em atraso e dívidas à Banca, EDP e ex-trabalhadores;

41. Tal resulta do depoimento da testemunha economista D... e F... ;

42. Por tudo o quanto referido, a conduta do Autor ora Recorrente não constitui abuso de direito, devendo, por isso, ser declarada ineficaz a transacção efectuada e nula a alegada ratificação, a existir, o que só por mera cautela de patrocínio se faz menção;

43. Deste modo, foram violadas as seguintes normas: artigo 574.º, n.º 2 do CPC, artigo 268.º do CC, artigo 287.º do CPC, artigos 220.º e 334.º do CC.

Termos em que,

Deve o presente Recurso ser julgado procedente, devendo a sentença ora recorrida ser revogada na parte em que se recorre e, por via disso, serem julgados procedentes os pedidos de declaração de nulidade da transacção efectuada no âmbito do processo n.º 322/10.2TBOFR, de devolução à Ré B... , S.A. de todos os valores recebidos pelo Ré C... e de levantamento da penhora de todos os bens constantes do auto de penhora junto com a execução n.º 321/10.4TBOFR-B, condenado os Réus nos pedidos formulados pelo Recorrente.

O Réu, C... , apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1. Entende o Recorrente que os factos dados como não provados nos pontos 3 e 4 referidos na sentença recorrida, devem ser, atenta dados como provados, atenta a prova produzida.

2. Na sentença recorrida, fundamentou-se a decisão de dar o facto em questão como não provado, por ter sido manifestamente insuficiente a prova produzida, uma vez que as testemunhas se limitaram, de forma conclusiva, a afirmar tal factualidade.

3. Na verdade, tratando-se de facto cuja prova competia ao Autor (nº1 do art.º 342º do Código Civil), a dúvida sobre esse facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (art.º 414º do CPC, que corresponde ao antigo art.º 516º do CPC).

4. A parte que suporta o ónus da prova tem que afastar o risco da falta de prova que sobre ela recai.

5. Ora, dúvidas não podem existir de que não foi feita prova suficientemente convincente sobre o facto em análise.

6. O depoimento de parte do administrador da B... que interveio na transação, G... , é elucidativo sobre a falta de convicção sobre a data em que o Autor possa ter tomado conhecimento da mesma.

7. A testemunha D... apenas sabia alguma coisa e pouca, sobre a existência de penhoras, no âmbito da execução da sentença homologatória e nada sobre a própria transação e o conhecimento que dela teve o Autor, sendo irrelevante a interpretação que o mesmo afirmou, ter feito, até porque contraria o desconhecimento que anteriormente referiu.

8. Não se pode ignorar o facto de o Autor ter tido intervenção no cumprimento das transação efectuada, nomeadamente através da assinatura de um cheque para pagamento de uma prestação em 20.02.2012 – facto provado no ponto 11 (6º).

9. O depoimento das testemunhas E... e F... não lograram demonstrar a data do conhecimento da transação por parte do Autor, pois a primeira limitou-se a referir que existia a prática de haver na empresa cheques assinados em branco, para serem usados em casos de urgência e a segunda foi peremptória ao afirmar que desconhecia se os cheques em causa neste processo estavam ou não previamente assinados.

10. Relativamente ao facto 3 – Funções desempenhadas pelo Autor – nenhuma prova foi feita sobre essa matéria, sendo certo que tal facto sempre se tem de ter como irrelevante para a decisão da causa.

11. De acordo com o disposto no artigo 268º do Código Civil, o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.

12. A ratificação tanto pode ser expressa como tácita, como resulta do art.º 217º do Código Civil., sendo que a ratificação tácita resulta de factos que, com toda a probabilidade o revelam

13. A forma da ratificação terá de corresponder à forma do acto a ratificar, pelo que, bastando, numa transação, a presença da parte em juízo e a emissão oral da sua vontade, sem que a mesma tenha de assinar a acta ou qualquer outro documento.

14. Não faz, pois, sentido, a aplicação do nº2 do art.º 268º do Código Civil.

15. Ora, dos factos provados, resulta claríssimo que houve ratificação tácita da transação efectuada, que também foi reduzida a escrito através da assinatura dos cheques em cumprimento da transação.

16. Os factos provados são demonstradores de que a invocada invalidade da transação constitui um manifesto abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.

17. A invocação da invalidade da transacção, um ano e meio após a respectiva celebração e o cumprimento parcial da mesma, criou uma situação de confiança no ora Réu, que nunca poderá ser frustrada por contrariar a conduta anterior da Sociedade e do próprio Autor da presente acção e seria inconciliável com as expectativas legitimamente geradas.

18. As considerações de boa fé do ora Recorrido são absolutamente despropositadas, não têm fundamento e não podem ser conhecidas em sede de recurso.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, ser mantida a douta sentença recorrida.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se existiu erro na apreciação da prova e se, em função desse erro, importa ou não alterar – e em que termos – a decisão proferida sobre a matéria de facto relativamente aos pontos impugnados;

• Saber se a transacção realizada e na qual apenas teve intervenção um dos administradores da sociedade Ré (não obstante o pacto social exigir a intervenção de dois administradores) foi ratificada pela sociedade, determinando se esse ratificação estava sujeita a forma especial e apurando se essa forma foi ou não observada;

• Saber se a pretensão deduzida nos autos configura abuso de direito por ser contraditória com a posição anteriormente assumida.


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III.

Na 1ª instância, consideram-se provados os seguintes factos:

1) A R. é uma sociedade anónima, que tem por objecto a transformação de granitos, com o capital social de 2.2000.000,00€.

2) O Autor faz parte do Conselho de Administração da Ré, tendo tomado posse em 30.5.2011.

3) De acordo com o artigo 14 do Pacto Social da R. ao Conselho de Administração são conferidos poderes para: “Confessar, desistir e, ou transigir, nos termos e condições que melhor entender, em quaisquer processo e em quaisquer Tribunais”

4) E de acordo com o artigo 15º do mesmo documento a sociedade fica obrigada: “ Sem prejuízo das limitações previstas no presente contrato, todos os documentos que obriguem a sociedade terão validade quando assinadas por dois administradores”.

5) No âmbito da acção nº 322/10.2TBOFR, de fixação Judicial de Prazo, que correu termos neste Tribunal, em que era Requerente o 2º R. e Requerida a 1ª R. as partes chegaram acordam, conforme transacção de fls. 24 e seguintes dos autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, nomeadamente acordaram que: A ré/requerida confessa-se devedora ao autor/requerente do valor global de 159.995,42€ (…), que será pago em 40 (…) prestações iguais e sucessivas com início, a primeira, no dia 20 de Setembro de 2011 e as seguintes até ao dia 20 dos meses subsequentes”.

6) Nessa transacção por parte da 1ª R. interveio unicamente, como legal representante da mesma R., G... , que fazia parte do Conselho de Administração da R., não tendo junto no acto acta do conselho de administração onde tenha sido decidido transaccionar com o ora R., nem procuração de outro qualquer administrador.

7) Em Abril de 2014 a 2ª R. celebrou um acordo final em procedimento SIREVE, ao abrigo do DL nº 178/2012.

8) A 1ª R. aquando da acção mencionada em 5) apresentou contestação, tendo a procuração sido assinada pelo administrador mencionado em 6) e pelo administrador H... .

9) A 1ª R. foi notificada da conta das custas da acção mencionada em 5) por carta datada de 14.10.2011.

10) A R. B... procedeu ao pagamento, na sequência da transacção mencionada em 5) ao R. C... das primeiras oito prestações, no valor de €31.999,12;

11) Tais pagamentos foram efectuados da seguinte forma:

1ª - Cheque n.º 0555250717 sobre o Millennium BCP, datado de 20.09.2011, no valor de € 4.000,00, assinado por dois administradores: G... e H... ;

2ª- Cheque n.º 4328648665 sobre a Caixa Geral de Depósitos, datado de 20.10.2011, no valor de € 4.259,99, assinado por dois administradores: G... e H... ;

3ª Cheque n.º 9104127524 sobre o BBVA, datado de 21.11.2011, no valor de € 4.253,33, assinado por dois administradores: G... e H... ;

4ª - Cheque n.º 0500001405 sobre o Santander Totta, datado de 20.09.2011, no valor de € 4.246,66, assinado por dois administradores: G... e H... ;

5ª- Transferência bancária, efectuada em 23.01.2012, no valor de €4.239,99;

6ª- Cheque n.º 3055800513 sobre o Millennium BCP, datado de 20.02.2012, no valor de € 4.233,33, assinado por dois administradores: A... , ora Autor, e G... .

7ª Cheque n.º 0411435583 sobre o Banco BPI, datado de 22.03.2012 no valor de € 4.226,66, assinado por dois administradores: G... e H... .

8ª Cheque n.º 7455808661 sobre o Millennium BCP, datado de 10.04.2012, no valor de € 4.219,99, assinado por dois administradores: G... e H... .

12) Pelo facto da 1ª R. ter deixado de efectuar os pagamentos referidos em 5) o R. instaurou uma execução, não tendo a R. deduzido oposição à penhora.

13) O administrador da R. H... , teve conhecimento da transacção mencionada em 5) pelo menos duas horas depois da mesma ter sido celebrada.

E foram considerados como não provados os seguintes factos:

1) Que o R. C... possui cem mil acções da R.

2) Que o A. possui 113.333 acções da R.

3) Que na R. o A desempenhasse funções de responsável de produção.

4) Que só em Março de 2014 é que o A teve conhecimento que o R. tinha intentado contra a R. a acção 322/10.2TBOFR, que tinha como pedido a fixação de prazo para pagamento de suprimentos e que só na ultima semana do mesmo mês é que teve conhecimento que nessa acção tinha sido efectuada uma transacção.

5) Que caso tivesse sido alvo de discussão e votação pelo Conselho de Administração o pedido pelo 2º R. na acção nº 322/10.2TBOFR, nunca teria sido deliberado no sentido da Sociedade se considerar devedora.

6) Que o A. tenha a receber da 1ª R. em suprimentos e empréstimos a quantia de 193.791,00€.

7) Que a acção intentada pelo 2º R. contra a 1ª R., na acção nº 322/10.2TBOFR tenha visado salvaguardar este accionista dos outros accionistas e visou directamente conduzir a R. a uma situação de Insolvência

8) Que K... seja filho do A.

9) Que o R. C... soubesse que eram necessários dois administradores para obrigar a R.


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IV.

Impugnação da matéria de facto

O Apelante começa por impugnar a decisão proferida relativamente ao facto que foi enunciado como não provado sob o nº 4, sustentando que esse facto deverá ser considerado provado.

Pretende, portanto, o Apelante que se considere provado “que só em Março de 2014 é que o A teve conhecimento que o R. tinha intentado contra a R. a acção 322/10.2TBOFR, que tinha como pedido a fixação de prazo para pagamento de suprimentos e que só na ultima semana do mesmo mês é que teve conhecimento que nessa acção tinha sido efectuada uma transacção”, invocando, para o efeito, os depoimentos prestados pelas testemunhas D... , E... e F... e manifestando a sua discordância relativamente às ilações que a decisão recorrida retirou desses depoimentos.

Importa esclarecer, antes de mais, que a data indicada nem sequer estará correcta, porquanto aquilo que foi alegado é que esse conhecimento teria ocorrido no mês anterior à propositura da acção, ou seja, em Janeiro de 2013.

Mas, seja como for e salvo o devido respeito, os aludidos depoimentos são claramente insuficientes para a prova desse facto.

As testemunhas E... e F... não manifestaram possuir qualquer conhecimento acerca da data em que o Autor teria tido conhecimento da propositura daquela acção e da aludida transacção. Tais testemunhas limitam-se a relatar que era normal que os administradores da B... – designadamente o Autor – assinassem cheques em branco para fazer face a eventuais situações urgentes ou imprevistas em que fosse necessário efectuar pagamentos num momento em que não fosse possível colher a assinatura de dois administradores. Estes depoimentos teriam, portanto, a única virtualidade de pôr em causa a afirmação de que o Autor tinha conhecimento daquela acção e transacção em virtude de ter assinado um cheque destinado ao cumprimento das obrigações dela emergentes (como resulta do ponto 11) da matéria de facto) e, ainda assim, não terão total idoneidade para esse efeito, porquanto nenhuma das testemunhas declarou que o Autor tivesse assinado o concreto cheque aqui em causa em momento prévio e sem que soubesse a que se destinava. Mas tais depoimentos são totalmente irrelevantes para que, com base neles, se possa concluir que o Autor apenas tomou conhecimento daquela acção e transacção em Março de 2014 (como se diz no ponto em questão) ou em Janeiro de 2013 (como foi alegado), porquanto, reafirma-se, as testemunhas nada sabem sobre essa matéria.

 A testemunha, D... , limitou-se a declarar que, em determinada reunião, quando preparavam o SIREVE, assistiu a uma grande indignação do Autor quando foi confrontado com a existência de penhoras a favor do aqui Réu, mais referindo que, pelo que lhe pareceu, ele tomou conhecimento daquela execução naquela data, embora não possa garantir que não tivesse conhecimento anterior. Ora, na nossa perspectiva, este depoimento também não será suficiente para alicerçar a convicção de que foi nesse momento (momento que a testemunha nem sequer situa no tempo com a devida precisão) que o Autor tomou conhecimento da acção e da transacção. Refira-se que a aludida testemunha apenas relaciona a indignação do Autor com o desconhecimento da execução e da penhora, o que não significa que também desconhecesse a acção e a transacção que nela havia sido celebrada.

É certo que os demais administradores da B... , H... e G... , também declararam ter sido nessa reunião – cuja data não precisaram – que o Autor terá tomado conhecimento da situação. Importa notar, no entanto, que tais administradores, não obstante terem aceite oportunamente aquela transacção (um deles porque a celebrou e o outro porque dela teve conhecimento poucas horas depois de ter sido celebrada e nada fez ou disse), manifestaram agora (talvez por força da situação económica da sociedade) evidente interesse em que a pretensão do Autor seja satisfeita, por entenderem (agora e ao invés do que haviam entendido em momento anterior) que a transacção é lesiva dos interesses da sociedade e dos seus próprios interesses enquanto accionistas. E, em face dessa postura, é evidente que os seus depoimentos não revestem a imparcialidade e credibilidade que seriam necessárias para alicerçar a convicção do Tribunal. Além do mais, resultando desses depoimentos que o administrador, G... , antes de celebrar a transacção, tentou contactar o administrador, H... , e que, não o tendo conseguido, teve a preocupação de o informar logo de seguida, não poderemos deixar de estranhar que nenhum desses administradores tenha tido o cuidado ou a preocupação de prestar qualquer informação ou esclarecimento ao outro administrador (o ora Autor), que, além do mais, é irmão do referido H... . Note-se que a transacção envolvia um valor bastante elevado e, ainda que não seja impossível, não poderemos admitir como provável – por estar em desacordo com o padrão de comportamento que temos como normal – que aqueles dois administradores tenham actuado “pelas costas” do Autor sem lhe dar qualquer conhecimento da obrigação que haviam assumido e que até estavam a cumprir. Note-se que nenhuma explicação foi adiantada que pudesse justificar um tal comportamento, até porque a propositura daquela acção e a subsequente transacção vinham, ao que tudo indica, na sequência da proposta de pagamento do crédito que os administradores (incluindo o Autor) haviam feito ao Réu – conforme documento junto aos autos a fls. 80 – e que, como declararam os administradores ouvidos em declarações, não havia sido aceite pelo Réu. Ora, sabendo o Autor daquela proposta (porque a subscreveu) e sabendo, naturalmente, que o Réu não a havia aceite, não será de admitir, com grande probabilidade, que o Autor desconhecesse os desenvolvimentos ulteriores desse assunto, designadamente a propositura da acção.

Parece-nos, portanto, em face do exposto, não ser possível formar uma convicção segura acerca da efectiva verificação do facto que o Apelante pretende ver considerado provado, mantendo-se a decisão que o considerou não provado.

Sustenta ainda o Apelante dever ser considerado provado o facto enunciado sob o nº 3 como não provado – que o Autor desempenhava as funções de responsável pela produção da Ré – porquanto esse facto não foi impugnado na contestação.

É verdade que esse facto – alegado no art. 5º da petição inicial – não foi impugnado e, como tal, estando admitido por acordo das partes, não poderá ser incluído no elenco dos factos não provados.

Mas, ainda que assim seja, não nos parece necessária a inclusão desse facto na matéria de facto provada, na medida em que o mesmo é totalmente irrelevante para a decisão da causa, não possuindo sequer qualquer idoneidade – ao contrário do que sustenta o Apelante – para indiciar que o Apelante não tivesse tido conhecimento oportuno da acção e da transacção nela realizada.

Elimina-se, portanto, o apontado facto do elenco dos factos não provados.

Direito

Conforme decorre da matéria de facto provada, no âmbito de uma acção que correu seus termos entre a 1ª e o 2º Réus, veio a ser celebrada uma transacção, nos termos da qual a primeira se obrigou a pagar ao segundo uma determinada quantia, sucedendo, porém, que a Ré B... foi aí representada por um dos seus administradores, quando é certo que, nos termos do respectivo pacto social, apenas se vinculava com a intervenção de dois administradores.

É certo, portanto, que o aludido administrador celebrou aquela transacção em nome da referida sociedade sem que tivesse (só por si) os necessários poderes de representação, pelo que, de acordo com o disposto no art. 268º do Código Civil[1], tal negócio apenas poderia ser eficaz relativamente à sociedade representada se esta viesse a ratificá-lo.

Considerou, porém, a sentença recorrida – e aqui reside a discordância do Apelante que motiva o presente recurso – que o negócio foi regularmente ratificado e que, de qualquer forma, sempre existiria abuso do direito na invocação daquela ineficácia.

O Apelante começa por sustentar que a ratificação estava sujeita aos mesmos formalismos que haviam sido usados para o negócio, pelo que, ao contrário do que se considerou na sentença recorrida, a ratificação que aqui pudesse ter existido sempre seria nula por inobservância da forma legal.

Dispõe, efectivamente, o art. 268º, nº 2, que a ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e, como determina o art. 262º, nº 2, a procuração, salvo disposição legal em contrário, está sujeita à forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar. Significa isto, portanto, que a ratificação do negócio está sujeita à forma exigida para o negócio que se visa ratificar.

É certo, por outro lado, que nada na lei impõe a necessidade de declaração expressa de ratificação e, portanto, tal como acontece com a generalidade das declarações negociais, também a declaração de ratificação pode ser expressa ou tácita (art. 217º, nº 1). E, como determina o nº 2 desta disposição legal, “o carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz”.

No caso sub judice, não se demonstrou ter existido qualquer ratificação expressa do negócio (transacção), porquanto não se provou ter sido emitida uma qualquer declaração expressa nesse sentido.

Parece claro, no entanto, ter existido uma ratificação tácita que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam (cfr. art. 217º, nº 1). Com efeito, a circunstância de a transacção ter chegado ao conhecimento de um segundo administrador duas horas depois da sua celebração e a circunstância de as obrigações dela decorrentes terem sido cumpridas durante algum tempo mediante a entrega de cheques que eram assinados por dois administradores, revelam, com toda a probabilidade, que a sociedade – através de dois dos seus administradores, que, em conjunto, tinham poderes para a vincular – aceitou aquela transacção e os efeitos e obrigações dela decorrentes, assumindo como suas tais obrigações e procedendo ao respectivo cumprimento, assim evidenciando e manifestando (através de dois administradores) a sua vontade de ratificar o negócio que, em seu nome (ainda que sem os necessários poderes de representação), havia sido celebrado por um dos seus administradores.

Resta saber se essa ratificação (tácita) é válida e regular.

Considerou-se, na sentença recorrida, que a ratificação não estava sujeita a qualquer forma em especial, porquanto para vincular a sociedade bastava que estivessem presentes dois administradores aquando da transacção.

Mas, salvo o devido respeito, não será bem assim.

É certo que, estando em causa uma transacção judicial, não era necessária a assinatura dos administradores da Ré e não era necessária porque a natureza do acto dispensa tal assinatura, já que a acta da diligência e a intervenção do juiz são bastantes para certificar a presença dos sujeitos do negócio e a declaração de vontade por eles emitida com vista à celebração da transacção. Mas a dispensa dessa assinatura, não equivale a dizer que o acto em causa não está sujeito a forma especial. De facto, a transacção, se realizada extrajudicialmente, estaria sempre sujeita a forma escrita (art. 1250º) e, sendo realizada judicialmente, é efectuada mediante a junção de documento autêntico ou particular, mediante a elaboração de termo no processo ou em acta (cfr. art. 290º do CPC).

É certo, portanto, que a transacção estava sujeita a forma escrita e, como tal, a ratificação terá que observar a mesma formalidade.

Refira-se, no entanto, que, ao contrário do que parece sustentar o Apelante, a circunstância de a transacção aqui em causa ter sido celebrada em acta no âmbito de uma diligência judicial não impunha que a ratificação desse negócio também tivesse que ser efectuada nesses mesmos termos. De facto, o que releva para apurar a forma exigida para a ratificação é a forma legalmente exigida para o negócio que se pretende ratificar. O negócio aqui em causa é uma transacção para a qual a lei não exige escritura pública ou documento autenticado (cfr. art. 1250º), exigindo apenas documento escrito e, como tal, é esta forma que a respectiva ratificação há-de observar.

E, estando em causa – como se referiu – uma ratificação tácita, a forma legalmente exigida (forma escrita) há-de ter sido observada quando aos factos de que essa declaração de ratificação se deduz. Ora, sendo certo que um dos factos do qual se deduz essa ratificação corresponde ao cumprimento das obrigações decorrentes da transacção (cumprimento que foi efectuado e assumido por dois administradores que, em conjunto, tinham poderes para obrigar e vincular a sociedade), a verdade é que esse cumprimento foi realizado através de cheques assinados por dois administradores, legitimando a conclusão de que a ratificação tácita assim revelada foi efectuada por escrito e, portanto, com observância da forma legalmente exigida.

Mas, ainda que assim não fosse, sempre se deveria considerar – como se considerou na sentença recorrida – que a invocação da ineficácia do negócio relativamente à sociedade constituiria abuso de direito.

Diz o Apelante, no sentido de justificar a inexistência de abuso de direito, que, só em Março de 2014[2], tomou conhecimento da transacção e que o facto de existir um cheque por si assinado não significa que conhecesse a situação e que, em momento algum, adoptou uma qualquer conduta que fosse susceptível de criar no Réu uma situação de confiança objectiva.

Afigura-se-nos, porém, que esse alegado desconhecimento – que, aliás, não ficou demonstrado – não será muito relevante.

Não iremos aqui debater a questão de saber se o Autor teria ou não legitimidade para vir invocar a ineficácia do negócio relativamente à sociedade da qual é accionista e administrador, já que tal questão nem sequer foi suscitada. Mas, sendo certo que o negócio não está ferido de nulidade (ao contrário do que sustentava o Autor), a decisão a proferir nesta acção apenas poderia declarar tal ineficácia relativamente à sociedade.

Sucede que, como referimos supra, a sociedade – ainda que irregularmente representada na transacção celebrada – aceitou e assumiu o negócio aí celebrado e as respectivas obrigações, procedendo ao respectivo cumprimento e fê-lo através de dois dos seus administradores que, em conjunto e independentemente da intervenção do Autor/Apelante, tinham poderes para a representar e para a vincular. Note-se que, ainda que a transacção tenha sido celebrada apenas por um administrador, duas horas depois ela já havia chegado ao conhecimento de um segundo administrador e, portanto, a partir desse momento, o negócio passou a ser conhecido de dois administradores. Esses dois administradores sempre actuaram, relativamente ao Réu, com pleno conhecimento da transacção e no pressuposto de que a mesma era válida, assumindo e cumprindo (pelo menos durante algum tempo) as obrigações dela emergentes, assinando e entregando ao Réu os cheques – devidamente assinados por dois administradores – destinados a satisfazer as prestações que lhe eram devidas.

Ao actuar dessa forma, a sociedade – através daqueles dois administradores que, em conjunto, tinham os poderes de representação necessários para a vincular – criou no Réu a confiança legítima de que ratificava aquele negócio e assumia as obrigações nele estabelecidas e, como tal, não poderia agora a sociedade vir invocar a ineficácia daquele negócio para se eximir ao cumprimento que ela própria havia assumido e já havia concretizado em parte.

Tal configuraria nitidamente uma situação de abuso de direito por venire contra factum proprium.

Com efeito, a boa fé, enquanto princípio normativo e enquanto princípio geral de direito – subjacente ao conceito de abuso de direito consagrado no art. 334º do CC –, significa que “…as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros[3], não se enquadrando nesses parâmetros a conduta ou comportamento daquele que, tendo actuado de determinada forma e tendo criado nos outros uma determinada expectativa que estava razoavelmente fundada nessa actuação, vem depois exercer um direito ou pretensão que, sendo incompatível ou contraditória com a sua anterior actuação, vem defraudar as expectativas legítimas de quem nesta havia confiado.

Daí que, como vem sendo considerado pela doutrina e jurisprudência, o exercício de um direito nessas condições seja considerado abusivo, face ao disposto no citado art. 334º por violar as regras da boa fé.

Mas, se a sociedade não poderia invocar a ineficácia do negócio – por se dever considerar que o exercício dessa pretensão correspondia a um abuso de direito – parece claro que também não poderá obter a satisfação dessa pretensão por via de uma acção intentada por um dos seus accionistas.

Refira-se que, se o negócio (no caso, a transacção) tivesse sido celebrado por dois administradores da sociedade (como exigia o pacto social), o Autor, enquanto accionista e administrador e ainda que desconhecesse o negócio, não teria como reagir à efectiva vinculação da sociedade que resultava da actuação daqueles dois administradores e, portanto, também não fará sentido que possa vir invocar a ineficácia do negócio relativamente à sociedade, quando é certo que, apesar de o mesmo não ter sido inicialmente celebrado por dois administradores, tudo se passou como se o tivesse sido, na medida em que estes, detendo poderes para representar e vincular a sociedade, actuaram no pressuposto de que o negócio era válido, aceitando e assumindo, em nome da sociedade, os seus termos e cumprindo as obrigações dele emergentes.

Importa notar que o Autor, enquanto administrador da sociedade, assinou um dos cheques que se destinou a pagar ao Réu C... uma das prestações fixadas na transacção, o que, em princípio, nos habilita a presumir que o próprio Autor aceitou, reconheceu e cumpriu aquele negócio. Mas, ainda que assim não seja – e ainda que o Autor, como alega, não tivesse tido a percepção de que aquele cheque se destinava a cumprir a obrigação em causa – sempre seria abusiva a pretensão que agora vem exercer, na medida em que a sociedade, actuando através de dois dos seus administradores com poderes para a representar a vincular, aceitou e ratificou aquele negócio, cumprindo, até determinado momento, as obrigações dele decorrentes e criando no Réu, C... , a convicção e a expectativa de que o mesmo era considerado válido e eficaz e que, como tal, iria ser cumprido.

 Diz o Apelante que, se um accionista tem direito a receber os seus suprimentos, aos outros accionistas assiste o mesmo direito. É verdade que sim e, como é evidente, não se nega aqui o direito que ao Autor/Apelante também possa assistir relativamente a suprimentos que tenha feito à sociedade. Mas não é esse direito do Autor que está aqui em causa; o direito aqui em causa é o direito do Réu, C... , direito esse que lhe foi reconhecido na transacção em causa e pela actuação posterior dos administradores da sociedade e que o Autor também havia reconhecido em momento anterior, como decorre da proposta de satisfação desse direito que havia sido feita ao Réu e que o Autor também havia subscrito (cfr. fls. 80).

Mais sustenta o Apelante que é abusivo o uso do direito do Réu, C... , numa altura em que a Ré, B... , atravessa sérias dificuldades financeiras, encontrando-se à beira da insolvência, com salários em atraso e com dívidas à Banca, EDP e ex-trabalhadores. Mas, salvo o devido respeito, este não é o momento e o local próprio para a invocação desse alegado abuso. O Réu intentou acção contra a sociedade Ré tendo em vista a satisfação do seu direito; a sociedade foi citada para essa acção e aí apresentou contestação e procuração assinada por dois administradores, sem que tenha invocado – pelo menos de forma procedente – o abuso de direito no exercício daquela pretensão do Réu; tendo sido aí celebrada transacção e na sequência do incumprimento das obrigações aí assumidas, o Réu instaurou execução e a sociedade Ré também não invocou aí qualquer abuso de direito no exercício dessa pretensão. E, se a sociedade Ré não o fez, em momento e tempo oportuno, não poderá vir agora o Autor, na qualidade de accionista e administrador (mas sem poderes para, só por si, representar e vincular a sociedade) substituir-se à Ré para invocar nestes autos o abuso de direito relativamente ao exercício de uma pretensão que não foi deduzida contra si, mas sim contra a sociedade.

Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A transacção por via da qual se reconhece uma obrigação pecuniária e se assume a obrigação do respectivo pagamento está sujeita a forma escrita e, como tal, também ficará sujeita a forma escrita a ratificação dessa transacção por parte da pessoa em nome de quem foi celebrada mas por quem não detinha os necessários poderes de representação.

II – O carácter formal da declaração de ratificação não obsta a que ela possa ser emitida tacitamente, desde que a forma exigida seja observada relativamente aos factos dos quais se deduz a declaração, pelo que, tendo sido celebrada uma transacção em nome de determinada sociedade e por um dos administradores (apesar de o pacto social exigir a intervenção de dois), tal transacção deve considerar-se regular e tacitamente ratificada pela sociedade, se esta, através de dois dos seus administradores, reconheceu a transacção e procedeu ao cumprimento parcial das obrigações ali assumidas mediante a entrega ao credor de cheques que eram, regular e devidamente, assinados por dois administradores.

III – De qualquer forma, tendo a sociedade – através da actuação de dois administradores com poderes para a representar e vincular – reconhecido a transacção, tendo assumido as obrigações dela decorrentes e tendo procedido, durante algum tempo, ao regular cumprimento das obrigações ali assumidas, através de cheques assinados por dois dos seus administradores, não seria legítimo – por configurar abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium – que se viesse invocar, em momento posterior, a ineficácia daquele negócio por falta de poderes de representação de quem nele interveio em nome da sociedade.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Tal como se referiu, a propósito da impugnação da matéria de facto, a alusão a esta data decorrerá de mero lapso, já que a data alegada na petição inicial era Janeiro de 2013.

[3] Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, 1983, pág. 55.