Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
261/13.5GAMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: DANO
PREENCHIMENTO
TIPO LEGAL DE CRIME
Data do Acordão: 09/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE MONTEMOR-O-VELHO.
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 212.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I-Para o preenchimento do tipo legal que prevê o crime de dano basta que o agente destrua, no todo ou em parte, danifique, desfigure ou torne não utilizável coisa alheia.
II- A lei prescinde da necessidade que a destruição, danificação, desfiguração ou inutilização da coisa, causada pelo comportamento, atinja um determinado valor patrimonial para ter a conduta como ilícita.
Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

Nos presentes autos foi o arguido A... condenado na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 9 €, pela prática de um crime de dano, do art. 212º, nº 1, do Código Penal.

2.

Inconformado, o arguido recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«1º Nos presentes autos o tribunal de primeira instância realizou audiência de julgamento apurando factualmente que o senhor arguido conduzindo um tractor agrícola passou por cima de uma ceara de milho, sita nos campos do Mondego estragando milho em fase de crescimento que aí se encontrava semeado numa extensão não concretamente apurado, causando prejuízos de valor também não concretamente apurado, cfr. 1, 2 e 3 do probatório.

2º Na sequência de tal o tribunal de primeira instância proferiu sentença decidindo condenar o senhor arguido pela prática como autor material e na forma consumada de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, nº 1, do Cód. Penal, na pena de €100 (cem) dias de multa à taxa diária de €9,00 (nove) euros o que perfaz a multa de €900,00 (novecentos euros).

3º Tendo presente a factualidade assente nos autos, salvo melhor e mais sábio entendimento, a conduta do senhor arguido traduz-se num comportamento de importância mínima, nem sequer se tendo provado qualquer valor económico do milho calcado pelo tractor do arguido, designadamente o diminuto valor económico de 110,00€ que se apontava na acusação, nem qualquer prejuízo daí decorrente, para o denunciante porque o pedido de indemnização foi julgado totalmente improcedente.

4º Pelo que, salvo o devido respeito pelo julgamento efectuado e pela decisão proferida, tendo por referência os ensinamentos doutrinários do professor Costa Andrade, entende o arguido que a conduta que a douta sentença lhe imputa não assume a dignidade bastante ou suficiente para configurar o crime de dano pelo qual foi condenado em primeira instância, porque a coisa alheia destruída (milho em crescimento calcado) não tem expressão económica nem valor algum e por isso a sua conduta não reveste relevo, sendo insignificante.

5º E assim considera que o presente processo é um flagrante caso para aplicação da regra “de minimus non curat praetor” e que nessa medida e pelas razões supra aduzidas deveria ter sido julgado extinto o procedimento criminal e determinado o arquivamento dos autos e consequentemente decidido a não condenação do senhor arguido».         

3.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do decidido, pois que se provou que a conduta ao arguido causou prejuízo ao ofendido, que teve que voltar a semear, de novo, o campo, na totalidade.

A srª P.G.A. nesta relação aderiu a esta posição defendendo, igualmente, a improcedência do recurso.

E o mesmo defendeu o ofendido, que realçou o facto de o crime de dano ser punido independentemente do valor da lesão patrimonial causada com o comportamento ilícito.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

4.

Recebido o processo foi proferida decisão sumária, rejeitando o recurso por ele carecer de suporte legal.

O arguido reclamou da decisão para a conferência.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.

 


*

*


FACTOS PROVADOS

5.

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

«1. No dia 13 de Maio de 2013, pela manhã, o arguido conduzindo um trator agrícola com um escarificador acoplado, entrou no lote de terreno n.º 95 do bloco de Tentúgal do Aproveitamento Hidroagrícola do Baixo Mondego, constituídos pelos prédios rústicos inscritos na matriz predial sob os números (...) e (...), da freguesia de Tentúgal, propriedade de B....

2. No interior daqueles prédios o arguido, conduzindo o trator com o escarificador acoplado, passou por cima de milho que ali estava semeado e que se encontrava em fase de crescimento, numa área não concretamente apurada, pertencente a C...., arrendatário daquele lote de terreno supra identificado em 1.

3. Com a sua conduta o arguido estragou milho em fase de crescimento que se encontrava semeado numa extensão não concretamente apurada, causando prejuízos a C..., em valor não concretamente apurado.

4. O arguido sabia que o seu comportamento era adequado a estragar o referido milho, no entanto, apesar de saber que causava prejuízo patrimonial ao seu dono, quis fazê-lo.

5. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

6. O arguido é oriundo de uma família de condição social humilde e de precária situação económica, que se agravou quando seu pai, trabalhador rural, faleceu, quando o arguido tinha quatro anos de idade, passando sua mãe a ser a sua figura de referência.

7. O percurso de escolarização do arguido iniciou-se em idade normal, revelando facilidade na aquisição de conhecimentos, tendo abandonado a escola após conclusão do 4º ano de escolaridade por dificuldades económicas.

8. Recentemente, o arguido concluiu o 9º ano de escolaridade, no âmbito do programa “Novas Oportunidades”.

9. Desde idade precoce o arguido começou a ajudar os pais, ambos trabalhadores rurais, na agricultura, vindo a permanecer até então ligado a essa actividade, sendo actualmente produtor de cereais na região do Baixo Mondego, apresentando um percurso laboral estruturado, continuado e estável.

10. O arguido casou com vinte e um anos de idade, não tendo tido filhos desse casamento, que terminou por divórcio ao fim de treze anos de casamento.

11. O arguido ficou a viver sozinho na casa de morada de família, não tendo voltado a casar.

12. Tem um filho com três anos de idade, fruto de um relacionamento transitório.

13. Correu termos processo de regulação das responsabilidades parentais referente ao filho menor do arguido, tendo o menor sido confiado à guarda da mãe, fixado regime de visitas a favor do arguido, que este cumpre, e fixada a seu cargo uma pensão de alimentos no montante mensal de € 200,00.

14. O desempenho do arguido como pai é reconhecido como sendo muito positivo, mantendo o arguido uma relação de grande proximidade emocional com o filho, e denotando o mesmo preocupação em contribuir economicamente para a educação do menor, não só com a pensão judicialmente estabelecida, mas também com a aquisição de bens que considera adequados para a sua educação.

15. O arguido reside sozinho, em casa própria, constituída por rés-do-chão e 1º andar, com boas condições de habitabilidade.

16. O arguido trabalha por conta própria, sendo proprietário de uma exploração agrícola de milho e arroz, cuja produção destina à venda, com cerca de 30 hectares, sendo os terrenos que semeia essencialmente de renda, contratando sazonalmente um/dois trabalhadores, a quem paga € 8,00/10,00 por dia.

17. O arguido produz cerca de 20/30 toneladas de milho por ano, e cerca de 70 toneladas de arroz por ano, auferindo lucros em montante não concretamente apurado.

18. Na declaração de rendimentos referente ao ano de 2012, o arguido declarou rendimentos da sua actividade de € 22.320,20 relativos a vendas de produtos e € 46.769,98 relativos a subsídios à exploração.

19. O arguido paga a quantia de cerca de € 40.000,00 por ano a título de empréstimo por despesas de campanha.

20. O arguido é caracterizado como uma pessoa activa no exercício da sua actividade profissional, e com um papel positivo no desenvolvimento da zona agrícola de referência.

21. Em termos comportamentais, e sempre que estão em causa situações avaliadas pelo arguido como abusivas por parte de terceiros, o mesmo é tido como pessoa impulsiva e por vezes agressiva a nível verbal, comportamentos e personalidade essa que terão contribuído para a existência de alguns problemas que terão estado na origem de processos judiciais associados com a sua actividade laboral.

22. No demais, as referências sobre o arguido são positivas, sendo o mesmo considerado pessoa trabalhadora e sociável, detendo uma imagem positiva pelo seu papel proactivo no desenvolvimento da sua actividade profissional e dinamização da zona agrícola onde se insere.

23. No confronto com o presente processo o arguido mostra-se apreensivo, traduzindo no entanto um discurso de isenção de responsabilidade individual relativamente aos factos em apreciação, que contextualiza no âmbito de questões laborais e de alegado aproveitamento por parte dos ofendidos.

24. A questão ora em apreciação parece ser do conhecimento da generalidade das pessoas do meio de residência do arguido, não comprometendo, contudo, a imagem social do arguido e de família, não apresentado o mesmo necessidades especiais ao nível da reinserção social.

25. O arguido já foi condenado pela prática dos seguintes crimes:

- Crime de dano, cometido em 26.04.2006, em pena de multa, por sentença transitada em julgado em 23.01.2008, e já declarada extinta;

- Crime de denúncia caluniosa, cometido em 01.08.2005, em pena de multa, por sentença transitada em julgado em 19.02.2009, e já declarada extinta».

6.

E foram julgados não provados quaisquer outros factos com relevância para a causa, nomeadamente:

«1.1. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas em 1. e 2. dos factos provados, o arguido passou com o trator com o escarificador acoplado por cima do milho que ali estava semeado em fase de crescimento, numa área de cerca de 75 metro de largura e cerca de trinta metros de comprimento, destruindo todo o milho que se encontrava semeado nessa área, causando estragos a C... num valor não concretamente apurado, mas superior a € 110,00.

2.2. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas em 1. e 2. dos factos provados, o arguido passou com o trator com o escarificador acoplado por cima do milho que ali estava semeado em fase de crescimento, numa área de cerca de 75 cm a um metro de largura, ao longo de todo o comprimento do prédio, mais ou menos trinta metros.

3.3. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas em 1. e 2. dos factos provados, o arguido também passou por cima do marco que delimitava aquele lote de terreno, com outro lote de terreno do mesmo Bloco, partindo o marco divisório que existia naquele lote de terreno, em vários bocados, causando estragos a B..., em valor não concretamente apurado.

4.4. O arguido sabia que o seu comportamento era adequado a destruir o referido marco divisório, no entanto, apesar de saber que causava prejuízo patrimonial à sua dona, quis fazê-lo, agindo livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal.

5.5. Em consequência da actuação do arguido, o demandante, C..., viu-se impossibilitado de colher o fruto do seu trabalho, de vender os frutos que semeara, e de ver ingressar no seu património o produto desse trabalho.

6.6. Em consequência da conduta do arguido, o demandante, C..., teve de despender do seu tempo para efectuar nova sementeira.

7.7. Em consequência da conduta do arguido, o demandante, C..., viu-se obrigado a contratar pessoal para realizar nova cultura.

8.8. Em consequência da conduta do arguido o demandante, C..., teve prejuízos monetários no montante de € 410,00 (quatrocentos e dez euros).

9.9. Em consequência da conduta do arguido, o demandante, C..., por várias semanas andou nervoso e receoso de que o arguido voltasse a estragar as suas sementeiras e, até, que atentasse contra a sua pessoa, sofrendo desgaste emocional».


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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir consiste em saber se o comportamento do arguido integra, ou não, um ilícito penal.


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            O arguido invoca a inexistência de crime de dano por o valor do dano ser irrelevante, uma vez que não se conseguiu quantificar o prejuízo patrimonial sofrido pelo ofendido. E de tal forma que o pedido de indemnização civil foi, mesmo, julgado improcedente.

            Assim sendo, conclui, a sua conduta não assume relevo penal suficiente que permita a sua condenação.

            Dispõe o art. 212º do Código Penal, relativo ao crime de dano:

«1 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.
4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206º e 207º».

            Decorre da lei que o preenchimento do tipo legal que prevê o crime de dano é necessário, e além da verificação dos demais pressupostos, que o agente destrua, no todo ou em parte, danifique, desfigure ou torne não utilizável coisa alheia.

            Como se vê, a lei prescinde da necessidade que a destruição, danificação, desfiguração ou inutilização da coisa causada pelo comportamento atinja um determinado valor patrimonial para ter a conduta como ilícita.

            Especificamente sobre esta questão – da necessidade de o dano provocar um prejuízo patrimonial -, podemos ler no Comentário Conimbricense do Código Penal [1]: «Embora o prejuízo patrimonial configure uma consequência ou efeito normal do dano, tal não é inevitável nem necessário. Pode consumar-se o crime de dano sem que tenha como reflexo um prejuízo patrimonial … “a lesão da coisa é diferente do prejuízo patrimonial, uma vez que aquela não implica necessariamente este último …”».

            Isto por um lado.

            Por outro, a inexistência de quantificação do prejuízo causado com uma conduta não significa, ipso factu, que esta seja insignificante e, consequentemente, indigna para justificar a atuação do direito penal.

            Conforme se provou, com a sua atuação o arguido atingiu a integridade da coisa e o facto de não se ter conseguido quantificar a lesão causada não releva para a decisão de integrar, ou não, a conduta no tipo legal de crime de dano por cuja prática foi condenado.

            Assim, e tal como antes foi dito, a defesa do arguido não encontra eco no direito positivo.


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, e na improcedência do recurso, confirma-se a decisão recorrida.

Fixa-se no mínimo a taxa de justiça devida.

Coimbra, 17 de Setembro de 2014

(Olga Maurício - relatora)

(Luis Teixeira - adjunto)


[1] Tomo II, 1999, pág. 207, na anotação do art. 212º do Código Penal da autoria de Costa Andrade.