Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
430/20.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: CASO JULGADO
DECLARAÇÃO DE PRESCRIÇÃO DO DIREITO
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 174º C. SOCIEDADES COMERCIAIS; 605º C. CIVIL; 580º E 581º NCPC.
Sumário: O caso julgado formado pela declaração de prescrição do direito, por aplicação do prazo de prescrição de 5 anos previsto no artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais, impede que numa segunda ação o Autor invoque o mesmo direito, agora com fundamento na norma do artigo 605.º do Código Civil, nos termos da qual os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, mesmo que nessa primeira ação não tenha sido apreciada a factualidade relativa ao mérito da causa, de novo invocada na segunda ação.
Decisão Texto Integral:






Sumário:

O caso julgado formado pela declaração de prescrição do direito, por aplicação do prazo de prescrição de 5 anos previsto no artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais, impede que numa segunda ação o Autor invoque o mesmo direito, agora com fundamento na norma do artigo 605.º do Código Civil, nos termos da qual os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, mesmo que nessa primeira ação não tenha sido apreciada a factualidade relativa ao mérito da causa, de novo invocada na segunda ação.


*

Recorrente/Autor …………...M...

Recorridas/Rés………………G..., Lda.

………………………………….M...

Melhor identificados nos autos.

I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto da decisão, proferida em sede de despacho saneador, que julgou procedente a exceção dilatória de caso julgado invocada pelos Réus e que, em consequência, absolveu da instância as Rés G..., Lda., e M...

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte do autor M..., cujas conclusões são as seguintes:

...

c) As Ré não contra-alegram.

II. Objeto do recurso.

O âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

O recurso coloca apenas uma questão que consiste em verificar se, ao invés do decidido na decisão sob recurso, não ocorre o caso julgado que fundamentou a absolvição das Rés da instância, mais especificamente, se o caso julgado formado na ação nº ... pela declaração de prescrição do direito, com base no disposto no artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais, impede que na presente ação se façam valer os fundamentos de facto e de direito que constituem o mérito comum a ambas as ações, apesar desse mérito não ter sido objeto de julgamento na primeira ação.

III. Fundamentação

1. Matéria de facto – Factos provados

A matéria a apreciar é a que resulta do relatório que antecede.

2-  Apreciação da questão objeto do recurso

Antes de prosseguir cumpre expor brevemente o enquadramento jurídico da questão colocada, ou seja, os princípios básicos da figura processual do caso julgado.

1 – Como é sabido –  n.º 1 do artigo 580.º e 581.º, n.ºs 1 e 4, do CPC –, a exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e existe repetição da causa quando a segunda ação é idêntica à primeira quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, havendo identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

Como refere Lebre de Freitas, cumpre distinguir entre a exceção de caso julgado e a autoridade de caso julgado.

Diz o autor que «…pela exceção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…). Mas o efeito negativo do caso julgado nem sempre assenta na identidade do objecto da primeira e da segunda acções: se o objecto desta tiver constituído questão prejudicial da primeira (e a decisão sobre ela proferida deva, excepcionalmente, ser invocável) ou se a primeira acção, cujo objecto seja prejudicial em face da segunda, tiver sido julgada improcedente, o caso julgado será feito valer por excepção» - Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Ed., pág. 354 (nota 6. ao art. 498º do anterior CPC).

Como se disse supra, coloca-se a questão de saber se a declaração de prescrição do direito de ação, com base no disposto no artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais, proferida na ação n.º ..., transitada em julgado, impede que na presente ação se façam valer os fundamentos de facto e de direito que constituem o mérito comum a ambas as ações, apesar desse mérito não ter sido objeto de julgamento na primeira ação, devido à mencionada declaração de prescrição do direito de ação.

Na decisão sob recurso considerou-se que o «…instituto da prescrição diz respeito ao mérito da causa e não à “forma”, pois trata-se de um facto impeditivo do direito do Autor, por isso a lei configura-a como uma excepção peremptória e não uma excepção dilatória (cfr. artigos 576.º e 577.º, do CPC)» e «Por isso, existe caso julgado relativamente à verificação da prescrição do direito do Autor, já apreciado na outra acção.»

O n.º 1 do artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais (DL n.º 262/86, de 02 de setembro) dispõe que «Os direitos da sociedade contra os fundadores, os sócios, os gerentes, os administradores, os membros do conselho fiscal e do conselho geral e de supervisão, os revisores oficiais de contas e os liquidatários, bem como os direitos destes contra a sociedade, prescrevem no prazo de cinco anos, contados a partir da verificação do s seguintes factos: (…).»

Vejamos o quadro comparativo de ambas as ações.

                 

                     Esta ação                                          Ação n.º 1048/14.3TBPBL

PartesAutor – M...

Réus – G..., Lda.; e

M...

Autor – G..., Lda. (representada por M..., ao abrigo do disposto no art. 77º do CSC); e

M..., enquanto sócio da G..., Lda., ao abrigo do disposto no art. 79º do CSC;

Réus – M..., como sócia e gerente da G..., Lda.; e

M... (filha da 1.ª Ré).

Causa de pedirVenda simulada do único imóvel propriedade da G...., Lda., feita pela gerente M... a M..., (filha da 1.ª ré M...) que impede os credores da G..., Lda., entre os quais o Autor, de penhor bens para satisfação dos seus créditos sobre a

G..., Lda.

1.Venda simulada do único imóvel propriedade da G...,Lda., feita pela gerente M... a M..., (filha da 1.ª ré M...) com vista a obter o retorno do bem ao património da sociedade.

 2. Danos gerados ao autor e sócio M... pela atuação da ré M... porquanto a alienação do imóvel gerou a impossibilidade de obter da G..., Lda., o pagamento dos suprimentos que efectuou a favor desta empresa.

3. Apropriação indevida por parte da sócia gerente M... de dinheiro pertencente à empresa G..., Lda.

PedidoDeclaração da nulidade (art. 605º/1 e 2 do CC) da venda efectuada da G..., Lda. para a M..., e o regresso do bem ao património daquela empresa, para satisfação dos seus credores, incluindo o M...;

1. Declaração da nulidade da venda do imóvel da G..., Lda., firmada entre a sócia gerente M..., e enquanto tal, e a filha, M..., e consequente regresso do bem ao património da G..., Lda.;

2. Indemnização a favor do autor e sócio M..., a pagar pela sócia e gerente M...

3. Restituição ao património da G..., Lda., por parte da M..., das quantias de que se apropriou sem causa.

O Autor sustenta que a presente ação é uma ação de declaração de nulidade de um contrato de compra e venda, proposta ao abrigo do disposto no artigo 605º, n.º 1 do Código Civil, visando conservar incólume a garantia patrimonial de todos os credores da Ré sociedade, e não apenas do Autor, pretendendo apenas o regresso do imóvel aqui em causa ao património da Ré sociedade.

Afigura-se que efetivamente a decisão da ação n.º ... forma caso julgado em relação à presente ação, pelas seguintes razões:

1 - As partes são as mesmas porque em ambas as ações o ora Autor atua em nome próprio, além de na ação n.º ... ter agido também em representação da sociedade G..., Lda.

Como causa de pedir invocam-se factos com o fim de mostrar que existiu simulação no negócio de compra e venda do único imóvel pertencente ao património da sociedade G..., Lda., em que interveio esta sociedade como vendedora, representada pela sócia gerente M... e a filha desta, M..., como compradora.

Em ambas as ações pede a declaração de nulidade do negócio de compra e venda e consequente retorno do bem ao património da sociedade.

2 – E certo que na ação n.º ... não se conheceu o mérito da ação na parte relativa à simulação, por se ter concluído e declarado que havia prescrito o direito do Autor instaurar a ação.

Aplicou-se nessa decisão o disposto no n.º 1 do artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais (DL n.º 262/86, de 02 de setembro), onde se dispõe que «Os direitos da sociedade contra os fundadores, os sócios, os gerentes, os administradores, os membros do conselho fiscal e do conselho geral e de supervisão, os revisores oficiais de contas e os liquidatários, bem como os direitos destes contra a sociedade, prescrevem no prazo de cinco anos, contados a partir da verificação dos seguintes factos: (…).»

Prevê-se aqui um prazo de 5 anos para a prescrição dos direitos da sociedade contra as pessoas aí referidas e os direitos dos sócios contra a sociedade.

Como refere Carolina Cunha, «Afastando-se do regime geral e dos regimes especiais disciplinados nos arts. 309.º CCiv., o art. 174º disciplina os prazos de prescrição dos direitos subjectivos que o CSC confere à sociedade, aos sócios e a terceiros» - Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. II (Coord. Jorge M Coutinho de Abreu), 2.ª Edição, Almedina 2015, pág. 814.

Estamos, pois, perante um regime especial de prescrição que se aplica aos direitos subjetivos da sociedade, dos sócios e dos outros credores mencionados, emergentes da atividade da sociedade comercial.

Segundo a alegação do Autor, o direito que invoca é um direito que resulta do facto de ser credor da empresa G..., Lda., e de ter existido um negócio entre esta empresa e um terceiro, que reputa de simulado, que impede a satisfação do seu crédito, porquanto o objeto do negócio foi o único imóvel que a empresa possuía e por via desse negócio saiu do património da sociedade, não podendo ser penhorado.

Este direito do Autor está submetido, como se viu, a um prazo de prescrição de 5 anos.

Por conseguinte, se este direito, que é sempre o mesmo direito, já foi exercido numa primeira ação e nessa ação foi decidido que tinha prescrito, então não é possível voltar a acionar este mesmo direito, que é sempre o mesmo, numa segunda ação, agora sob a invocação de se estar a exercer o direito com fundamento na norma do artigo 605.º do Código Civil, nos termos da qual os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos atos praticados pelo devedor, mesmo que o mérito da causa não tenha sido objeto de julgamento na primeira ação.

Com efeito, ao mesmo direito, se porventura existirem duas normas que o tutelem, uma geral e outra especial, aplica-se a norma especial (De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil, «A lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador»).

No caso, a norma especial é a do artigo 174.º do CSC.

No caso dos autos, o direito afirmado em ambas as ações é o mesmo direito e já foi decidido que esse direito não pode ser exercido por ter decorrido o prazo dentro do qual podia ter sido exercido e não foi.

Uma vez aplicada a norma especial à situação carecida de tutela, a situação fica definida na ordem jurídica, não sendo suscetível de repetição, porque a isso se opõe o caso julgado formado pela primeira decisão.

Por conseguinte, a circunstância do mérito da causa não ter sido objeto de decisão por parte do tribunal nessa primeira ação não é relevante e não têm aplicação ao caso presente, por serem situações distintas, os fundamentos invocados no citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de junho de 2020, tirado no processo nº 531/18.6T8FND-C.C1.

Cumpre, pelo exposto, manter a decisão recorrida.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.


Coimbra, em 12/10/2021