Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUÍS TEIXEIRA | ||
Descritores: | PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO DESCONTO DA PENA ACESSÓRIA CUMPRIDA NO ÂMBITO DA SUSPENSÃO PROVISÓRIA ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA | ||
Data do Acordão: | 09/13/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 281.º, N.º 4, E 282.º, N.º 4, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
Sumário: | I – O objetivo da fixação de jurisprudência é evitar contradições, harmonizando a jurisprudência no sentido de obviar a que, perante a mesma lei, existam decisões opostas, que não só conduzam a diferentes soluções para diferentes destinatários, como criem a ideia de uma instabilidade e insegurança na comunidade sobre o funcionamento da justiça administrada pelos tribunais. II – A referência/exigência legais à fundamentação da divergência relativa a jurisprudência fixada, feitas no n.º 3 do artigo 445.º do C.P.P., deve consubstanciar-se numa fundamentação específica que traga algo de novo à fundamentação que esteve na base da jurisprudência do acórdão de uniformização, sob pena de se dever seguir aquela jurisprudência. III – Em caso de inexistência de tal fundamentação deve seguir-se a decisão tomada pelo S.T.J. no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 4/2017. | ||
Decisão Texto Integral: | *
I 1. … foi o arguido AA condenado pela prática em 15-04-2022, como autor material e na forma consumada, de 01 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), num total de € 385,00 (trezentos e oitenta e cinco euros). E ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 04 (quatro) meses, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
2. Não se conformando com esta decisão, dela recorre o arguido que formula as seguintes conclusões: … II - O Tribunal ad quo na sentença proferida não procedeu ao desconto do período de inibição de conduzir imposto no âmbito da suspensão provisória do processo, na pena acessória fixada por força do disposto no artigo 69.º do CP, por entender que tal não era possível. III - O arguido não pode concordar com tal entendimento. IV - Ora, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor imposta ao arguido na decisão condenatória, proferida nos autos, teve por objeto o mesmo facto que constituiu o objeto da injunção que lhe foi imposta na anteriormente determinada suspensão provisória do processo. … VII - A ausência do desconto em causa (do período de tempo que o arguido se absteve de conduzir, tendo entregue a sua licença de condução, injunção que lhe foi imposta, ainda que o arguido tivesse aceitado tal imposição para poder beneficiar da suspensão provisória do processo) levaria a sancionar duplamente a mesma conduta (mesmo que não se considere, rigorosamente, que estamos perante uma violação do princípio ne bis in idem). VIII - Há aqui uma relação de conteúdo entre injunção e pena, tendo por substrato uma sanção com o mesmo objeto, e ambas determinadas pelo fundamento da prevenção, além do artigo 281.º n.º 1, do CPP, e artºs 40.º n.º 1, 71.º n.º 1, do CP. … X - Assim, nas circunstâncias supra descritas pressupõe a violação dos princípios constitucionais da adequação e da proibição de excesso, agravando a responsabilidade do agente pelos mesmos factos dessa única conduta, no mesmo processo. … * 3. Respondeu o Ministério Público, dizendo em síntese: … Quanto a esta questão existe Jurisprudência obrigatória, contida no Ac. STJ de fixação de jurisprudência n.º 4/2017, de 16-06-2017: «Tendo sido acordada a suspensão provisória do processo, nos termos do art. 281.º do Código de Processo Penal, com a injunção da proibição da condução de veículo automóvel, prevista no n.º 3 do preceito, caso aquela suspensão termine, prosseguindo o processo, ao abrigo do n.º 4, do art. 282.º, do mesmo Código, o tempo em que o arguido esteve privado da carta de condução não deve ser descontado, no tempo da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, aplicada na sentença condenatória que venha a ter lugar.» … * 4. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer dizendo: … O Ac. STJ de fixação de jurisprudência n.º 4/2017, de 16-06-2017, fixou, porém, quanto a esta precisa questão, jurisprudência obrigatória no sentido de que: «Tendo sido acordada a suspensão provisória do processo, nos termos do art. 281.º do Código de Processo Penal, com a injunção da proibição da condução de veículo automóvel, prevista no n.º 3 do preceito, caso aquela suspensão termine, prosseguindo o processo, ao abrigo do n.º 4, do art. 282.º, do mesmo Código, o tempo em que o arguido esteve privado da carta de condução não deve ser descontado, no tempo da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, aplicada na sentença condenatória que venha a ter lugar.» … * 5. O recorrente respondeu a este parecer do Ministério Público … 6. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência. II 1. São os seguintes os factos dados como provados na sentença: … III Apreciando: Questão prévia: Resulta quer das conclusões (v. pedido formulado a final[1]) quer da respetiva motivação, que a questão (única) efetivamente suscitada pelo recorrente arguido se traduz em decidir se deve ou não ser descontada à pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 4 meses em que foi condenado, o período de inibição de conduzir já efetivamente cumprido no âmbito da suspensão provisória do processo, de 3 meses e 15 dias. …
*** Passemos, pois, a apreciar a verdadeira questão suscitada pelo recorrente:
Conforme resulta dos autos, por despacho de 28/04/22, notificado ao recorrente em 2/05/2022, o inquérito foi suspenso provisoriamente pelo período de 4 meses, mediante o cumprimento, pelo recorrente, das seguintes injunções: 1) Não conduzir veículos motorizados durante 3 (três) meses e 15 (quinze) dias, entregando a sua carta de condução na Esquadra da PSP, no prazo de 10 dias após a notificação da suspensão provisória do processo; b) Entregar 275,00€ (duzentos e setenta e cinco euros) ao Estado no decurso do período da suspensão; c) Entregar 275,00€ (duzentos e setenta e cinco euros) à CIJE no decurso do período de suspensão; e d) Comprovar nos autos a entrega das quantias mencionadas.
O recorrente cumpriu a primeira das injunções, entregando para o efeito a carta de condução no dia 13/05/2022, sendo devolvida em 29/08/2022. No entanto, com o fundamento no incumprimento das demais injunções, por despacho de 20/10/2022 foi determinada a revogação da suspensão provisória do processo e o prosseguimento dos autos, nos termos do artigo 282.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal, com dedução da acusação. E realizou-se a audiência de discussão e julgamento na sequência da qual foi o arguido condenado nas referidas penas: 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 e proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 04 (quatro) meses. O objecto do recurso reconduz-se, pois, ao pretendido desconto na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses, do período de 3 meses e 15 dias de inibição que o arguido já efetivamente cumpriu, a título de injunção, no âmbito da suspensão provisória do processo. Como bem refere o Ministério Público nesta instância no seu parecer, exemplificando com vários acórdãos publicados, existia uma corrente jurisprudencial no sentido de que em situações como esta que se coloca nestes autos, não havia que proceder ao desconto em causa. Mas existia uma outra em sentido contrário, ou seja, de que o período de inibição cumprido deveria ser descontado.
Esta divergência na jurisprudência veio a ser objecto de apreciação pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2017 (AUJ), publicado no Diário da República n.º 115/2017, Série I de 2017-06-1616-06-2017, fixando a seguinte jurisprudência: “Tendo sido acordada a suspensão provisória do processo, nos termos do art. 281.º do Código de Processo Penal, com a injunção da proibição da condução de veículo automóvel, prevista no n.º 3 do preceito, caso aquela suspensão termine, prosseguindo o processo, ao abrigo do n.º 4, do art. 282.º, do mesmo Código, o tempo em que o arguido esteve privado da carta de condução não deve ser descontado, no tempo da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, aplicada na sentença condenatória que venha a ter lugar”. ** O objetivo ou fim primeiro da fixação desta jurisprudência é evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores, harmonizar a jurisprudência no sentido de, perante a mesma lei, existirem decisões opostas que não só conduzem a diferentes soluções para diferentes destinatários, como se cria a ideia de uma instabilidade e insegurança na comunidade sobre o funcionamento da Justiça enquanto administrada pelos tribunais. Se é certo que, como a prática judiciária o tem demonstrado, a interpretação e aplicação da mesma norma nem sempre é pacífica e uniforme, também é certo que se deve visar uma uniformidade de tratamento quantos aos visados pela aplicação das regras jurídicas, desde logo para não criar desigualdades no tratamento, não raras vezes diametralmente opostas em decisões do mesmo tribunal ou comarca.
A decisão sobre o recurso de fixação da jurisprudência é tomada em conferência, pelo pleno das secções criminais – nº 1, do art.443.º do C.P.P. – sendo publicada na I Série do Diário da República - art.444.º, n.º1 do C.P.P.. Por sua vez, o acórdão tem eficácia no processo em que o recurso é interposto e nos processos cuja tramitação tiver sido suspensa nos termos do art.441.º, n.º 2 - art.445.º, n.º1, do Código de Processo Penal. Todavia, por força do nº 3 deste mesmo preceito (art.445.º), “ «A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão».
Esta disposição e fundamentação aqui referenciada merece uma leitura e atenção específica, sob pena de a jurisprudência fixada no acórdão do STJ não ter a eficácia pretendida e, sobretudo, de ser torneada a sua finalidade. Ou seja, se o objetivo é convergir ou uniformizar decisões contraditórias, mantendo-se a possibilidade para os tribunais judiciais de continuarem a divergir da jurisprudência fixada, significaria que a oposição de julgados, logo, as divergências de interpretação e decisão, manter-se-iam. Não sendo esta a ratio desta disposição legal, significa que a referência/exigência legais à fundamentação da divergência relativa à jurisprudência fixada deve consubstanciar-se numa fundamentação específica, que traga algo de novo, um acréscimo à fundamentação que esteve na base da jurisprudência do acórdão de uniformização. Isso mesmo se decide no ac. do STJ de 5-11-2009, Proc. n.º418/07.8PSBCL-A.S1, in www.dgsi.pt: “A lei indica com suficiente clareza, assim, que os Acórdãos para fixação de jurisprudência têm um peso próprio, que lhes é dado pelo facto de provirem do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça. Há, pois, que lhes conceder o benefício, para não dizer a presunção, de que foram lavrados após ponderação exaustiva, face à legislação, à doutrina e à jurisprudência existentes sobre o assunto. Deste modo, embora os tribunais sejam livres de seguirem a jurisprudência que julgam mais adequada, já que o STJ não “faz lei”, parece estultice tomar outro caminho que não o acolhido no Pleno do STJ, a não ser que se invoquem argumentos novos, não considerados na decisão que fixa a jurisprudência, ou que, considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostre já ultrapassada.».
No mesmo sentido se pronuncia o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque[2], seguindo o teor do acórdão do STJ de 13 -11-2003 (in SASTJ, n.º 75, 100), referindo que “Os tribunais só devem divergir da jurisprudência uniformizada quando haja razões para crer que ela está ultrapassada, isto é, quando a) o tribunal tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador, suscetível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada; b) se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na atualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou finalmente c) a alteração da composição do STJ torne claro que a maioria dos juízes das secções criminais deixou de partilhar fundadamente da posição fixada.”
Igualmente se pronunciou o ac. desta Relação de Coimbra de 14-01-2015[3]: III. Quando a lei, no nº 3 do art. 445º do C.P.P., determina que os tribunais que divirjam da jurisprudência fixada pelo S.T.J. devem fundamentar as divergências certamente quererá um mais em relação ao dever geral de fundamentação da decisão, que estando já previsto noutras normas não careceria de específica consagração caso o objectivo fosse o mesmo. IV. Quando a lei diz que as divergências com a decisão do S.T.J. que fixa jurisprudência têm que ser fundamentadas quer dizer que terão que ser usados argumentos novos, relevantes, nunca anteriormente ponderados. Donde resulta que não cumpre as exigências legais da fundamentação da divergência a invocação de argumentos já anteriormente usados e que nunca mereceram acolhimento.
Também o Conselheiro Maia Gonçalves[4] entende que o segundo período do n.º3 do art.445.º do C.P.P., ao conter uma particular chamada de atenção para o dever de fundamentar as divergências relativamente à jurisprudência que se encontra fixada, impõe “… que os argumentos invocados para o efeito, além de ponderosos, sejam novos, no sentido de não terem sido considerados no acórdão uniformizador, e suscetíveis de criar algum desequilíbrio na avaliação do peso de argumentos a favor do reexame e alteração da doutrina fixada no acórdão uniformizador”.
Em síntese, o tribunal judicial divergente não pode limitar-se ao mero desacato da jurisprudência entretanto uniformizada apoiando-se apenas no que é a sua efetiva e até a melhor solução – v. Cons. Pereira Madeira , in “Código de Processo Penal Comentado”, obra coletiva dos Srs. Conselheiros do STJ, Almedina , 2014, fls. 1591. E não se argumente que, ao não se admitir aos tribunais judiciais a liberdade de decidirem de modo diferente, se está a perpetuar uma jurisprudência que pode, entretanto, ficar desatualizada e já não fazer, a partir de determinado momento, qualquer sentido.
Com efeito, a lei processual tem mecanismos para obviar a este eventual efeito perverso: - Desde logo, com a não obrigatoriedade para os tribunais judiciais, ao abrigo da disposição que vimos analisando (nº 3 do art. 445º do C.P.P), da dita jurisprudência como obrigatória, desde que a fundamentação divergente tenha como suporte os tais argumentos novos, ponderosos, que não foram considerados na decisão que fixa a jurisprudência, e suscetíveis de criar algum desequilíbrio na avaliação do peso de argumentos a favor do reexame e alteração da doutrina fixada no acórdão uniformizador ou se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na atualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou ainda, que a alteração da composição do STJ torne claro que a maioria dos juízes das secções criminais deixou de partilhar fundadamente da posição fixada; e finalmente, que considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostre já ultrapassada – v. acs. e doutrina supra citados.
- Por outro, pela faculdade consagrada no nº 2 do artigo 447º do Código de Processo Penal, ao preceituar o seguinte: “Sempre que tiver razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada, o Procurador-Geral da República pode interpor recurso do acórdão que firmou essa jurisprudência no sentido do seu reexame. Nas alegações o Procurador-Geral da República indica logo as razões e o sentido em que jurisprudência anteriormente fixada deve ser modificada”.
- Por último, com a eventual ou mera alteração legislativa sobre a questão que, de per si, desatualize ou derrogue a jurisprudência anteriormente fixada. ** Na motivação de recurso o recorrente chama à colação jurisprudência vária no sentido da posição que defende, de que deve ser feito o desconto do tempo de inibição já cumprido pela injunção. No entanto, toda a jurisprudência citada é anterior ao AUJ n.º 4/2017. Na decisão recorrida o tribunal a quo não efetuou qualquer desconto na pena acessória tendo em consideração o período já cumprido pela injunção da suspensão provisória do processo. Mas também não analisou expressamente tal questão ou possibilidade. Pelo que o recorrente coloca a questão sob apreciação, pela primeira vez nos autos, através do presente recurso.
Ora, a prolação deste acórdão n.º 4/2017 veio efetivamente dirimir e harmonizar a jurisprudência sobre a questão, pondo fim às divergências que até então existiam. Os fundamentos do acórdão de fixação de jurisprudência refletem uma apreciação recente da questão, não vislumbrando esta Relação a violação de qualquer princípio constitucional, nomeadamente o ne bis in idem. Isso mesmo foi apreciado e decidido no ac. n.º 4/2017: “O primeiro ponto a abordar, será o de saber se a tese negativa viola o princípio "ne bis in idem", como se disse no acórdão recorrido (supra, 2.1.), depois de considerar que a injunção da proibição de conduzir veículos com motor é inequivocamente uma verdadeira pena, de execução efetiva, de tal modo que até nos casos de suspensão provisória do processo a mesma terá quer ser imposta.
Aqui, são convocadas as seguintes questões: a da natureza da injunção, assimilável ou não a uma pena, qual a relevância do facto de ser imposta, e por fim a da violação do princípio "ne bis in idem".
a) Começando por este último ponto, diremos que o art. 29.º, n.º 5 da CR, atrás transcrito (supra 3.1.1.), proíbe o duplo julgamento pelo mesmo crime, o que implica que, pelo mesmo crime não possa haver absolvições e condenações ou só condenações que se sucedam.
Mas o princípio apenas proíbe a dupla condenação penal, sendo compatível com a condenação simultânea numa pena criminal e numa contraordenação ou sanção disciplinar, pelos mesmos factos. Estranho seria que já não fosse compatível com uma medida processual como é, adiante se verá melhor, a injunção.
Depois, só haveria duplo julgamento se a suspensão provisória do processo correspondesse a um julgamento e a injunção a uma pena. Ora, não só as fases preliminares do processo, em que se inclui o inquérito, não se confundem com a de julgamento, na sua conformação e razão de ser, como o despacho de suspensão, enquanto encerramento do inquérito, não tem que ver com a sentença, seja ela condenatória ou absolutória. Tudo isto se nos afigura claro.
b) Sabe-se que a reforma do nosso processo penal introduzida com o Código de 1987, inovou, entre outros aspetos, inscrevendo "todo o universo processual num sistema de coordenadas definido por um eixo horizontal e outro vertical" (8). E, quanto ao primeiro, deu-se especial relevância à distinção entre criminalidade grave e pequena criminalidade, reservando para esta reações que se valem da "oportunidade, diversão, informalidade, consenso, celeridade". O legislador fez questão de dizer que, em termos de política criminal, se identifica como resposta relevante, a este desiderato, para além do processo sumaríssimo, a possibilidade de suspensão provisória do processo com injunções e regras de conduta.
Quanto ao segundo eixo, estabeleceu-se uma fronteira entre o que o Preâmbulo do Código chama "espaços de consenso" e "espaços de conflito", no processo penal. Quanto àqueles, passaram a poder ver-se, no processo, "situações em que a busca de consenso, da pacificação e da reafirmação estabilizadora da norma assente na reconciliação, vale como um imperativo ético-jurídico". Ora, a seguir, exemplifica-se com "o acordo de vários sujeitos processuais como pressuposto de institutos como o da suspensão provisória do processo", enquanto concretização daquele espaço de consenso.
A imposição, com o correlativo acatamento, de injunções e regras de conduta, surge pois como manifestação de anuência, sendo indiferente, na perspetiva do arguido, que a fonte da injunção seja uma escolha do MP ou a lei. Em qualquer dos casos estamos perante condições "sine qua non" da suspensão, que podem ou não ser aceites pelo arguido e, naquele caso, se lhe impõem.
Diferentemente se passam as coisas com a condenação surgida na sequência de um julgamento, porque ser algo a que o arguido não pode fugir. Tal como, já não tinha dependido de si, a detenção ou a escolha da medida de coação privativa de liberdade antes aplicada.
Quanto à confluência do acordo do juiz de instrução, para ser possível a suspensão, por certo que não é tal confluência que faz da suspensão um ato de julgamento, quer em sentido material quer formal. Surge, simplesmente, pelo facto de as injunções e regras de conduta poderem contender com os direitos fundamentais do arguido, e por, na perspetiva do Tribunal Constitucional (TC), dever o juiz fiscalizar a legalidade da opção do MP encerrar o inquérito por essa via (9).
Serve para dizer que o curso do processo antes considerado padrão (instrução, acusação, julgamento), pode ser alterado, evitando-se a fase de julgamento, típica dos espaços de conflito. Exatamente nos casos em que, pese embora estarem reunidas provas da responsabilidade do arguido (10), as finalidades que a justiça penal se propõe alcançar não se mostrem prejudicadas pela falta da condenação. Tudo com as vantagens de se subtrair o arguido ao estigma do julgamento, de se obter maior celeridade na solução do caso e se lograr uma pacificação social, fruto do acordo, não só do arguido e do juiz de instrução, como também do assistente.
c) A suspensão do processo resulta de critérios que são de "legalidade aberta" ou de "oportunidade regrada", a que o MP lança mão, sendo ele, e não o juiz, que decide da sua utilização. Ora, o facto de a opção pela suspensão do processo ser do MP e a escolha das injunções e regras de conduta serem do mesmo MP, só por si, impede que se esteja qui a falar de sanções penais, designadamente de penas. Não fora assim, cair-se-ia em grosseira inconstitucionalidade, tendo em conta o que dispõe o art. 202.º, n.º 1 da CR (11).
No dizer de Maia Costa "Trata-se de medidas que impõem deveres (positivos ou negativos) ao arguido como condição da suspensão, sendo a sua aceitação por parte deste necessário para a suspensão" (12).
Para Anabela Rodrigues, as injunções e regras de conduta, sem terem a natureza de pena ou sanção penal, inscrevem-se "na linha de medidas que visam alertar o arguido para a validade da ordem jurídica e despertar nele o sentimento de fidelidade ao direito" (13).
Também Germano Marques da Silva e Paulo Pinto de Albuquerque afastam a natureza de sanção penal das injunções aqui em apreço (14).
O facto de se tratar de medidas processuais que impõem atos ou condutas, ativos ou passivos e não de penas (nem sequer "encapotadas") (15), não obsta a que condicionem a normal atividade do arguido ou representem para ele um sacrifício. A suspensão é, apesar de tudo, uma reação ao crime cometido, integrada no sistema repressivo penal. Numa linha de "diversão" (16), têm que se ter no horizonte, sempre, a prevenção geral e especial.
Porque a injunção ou regra de conduta não são penas, é que o arguido continuará a presumir-se inocente, e nunca se poderá considerar a aceitação da suspensão, como uma confissão sua.
d) A utilidade que o disposto no art. 282.º, n.º 4, do CPP (vide supra 3.1.3.), pode ter para a discussão em curso, nunca abonaria a tese afirmativa, mas também se não mostra indiferente para a questão. Pelo contrário, aponta claramente para a tese negativa. Vejamos porquê.
A opção pela suspensão do processo e sua aceitação é uma aposta no consenso entre os sujeitos do processo, uma pacificação entre arguido e assistente, que tem o sentido da reconciliação do agente do crime com a ordem jurídico-penal. Ora, o não cumprimento das injunções ou regras de conduta que o arguido aceitou, ou o cometimento de crime da mesma natureza no período da suspensão, pelo qual venha a ser condenado, são a revelação de que a aludida aposta falhou. Afinal, o arguido revela-se ainda, indireta ou diretamente, desrespeitador dos bens jurídico-penais e, nessa medida, um cidadão que continua a incidir negativamente na ordem social.
Ora, porque o falhanço referido se deve só ao arguido, entendeu a lei que "as prestações feitas não podem ser repetidas". ** E também não vislumbra esta Relação qualquer fundamento que, conforme permitido pelo nº 3 do artigo 445.º do Código de Processo Penal, justifique não seguir a jurisprudência fixada pelo ac. nº 4/2017. IV Dispositivo Por todo o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso do recorrente AA e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 5 (cinco) UCs. * Baixados os autos à primeira instância e uma vez que se mantém a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, deverá o arguido ser notificado para que proceda à entrega, no prazo de 10 dias, da carta de condução de que é titular, na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de ser determinada a sua apreensão (art.º 500º nº3 do CPP), com a advertência de que, não o fazendo, poderá incorrer no crime de desobediência (art.º 348º nº1 alínea b) do C. Penal - cfr. AUJ do STJ n.º 2/2013, DR n.º 5, I-S, de 08.01.2013); e poderá incorrer no crime de violação de proibições ou interdições caso infrinja a ordem de proibição de conduzir durante o período determinado (art.º 353º C. Penal);
Coimbra, 13.9.2013. Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários
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