Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1501/04.7TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: MAUS-TRATOS A MENORES
PODER DE CORRECÇÃO
DOLO
Data do Acordão: 01/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 13°, 14°, 152.º, N.º 2, ALÍNEA A) DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I. – Se é certo que a finalidade educativa abrange o poder de correcção, que se revela (deve revelar) essencialmente no exemplo e na palavra já é claramente discutível se esse poder de correcção pode abranger castigos corporais.
II. – Não pode ter-se como propósito educativo, o comportamento de uma auxiliar de educação que, em relação a menores de cerca de um/dois anos de idade: a) – os obriga a engolir a comida à força, batendo ou dando palmadas na boca, mantendo a boca aberta e metendo uma colher com comida; b) - os obriga a comer o que sai fora da boca, mesmo que caia no chão, mesmo que a criança tenha vómitos ou chore convulsivamente e expulse comida pelo nariz; c) – os agride com estalos por deitar a comida para o chão; d) - o chama "porco" e "badalhoco" a criança que vai ao quarto de banho e se descuida.
III. - Sabendo a arguida que estava a lidar com crianças de um/dois anos de idade, completamente indefesas e incapazes de se defender e queixarem, e que a sua actuação lhes causaria, necessariamente, perturbações que se traduziriam em alterações comportamentais graves, capazes de pôr em causa o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso e efectivamente provocando sofrimentos que se traduziram em alterações comportamentais graves, susceptíveis de condicionarem o seu desenvolvimento não pode deixar de se considerar como maus tratos para efeitos da materialidade descrita no artigo 152.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
A arguida …, desempregada, residente em Coimbra, foi condenada pela prática, como autora de três crimes de maus tratos a menor, p. e p. pelo art. 152º nº 1 al. a) do Código Penal, nas penas parcelares de 12 meses, 14 meses e 18 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de dois anos de prisão cuja execução se suspendeu pelo período de dois anos. Na mesma decisão foram julgados totalmente procedentes os pedidos de indemnização formulados e, em consequência condenada a arguida-demandada a pagar a título de indemnização pelos danos não patrimoniais à …, ao … e ao …, a indemnização de, respectivamente, 2.500 €, 2.000 € e 1.500 €, acrescidos de juros de mora vincendos.
Inconformada, a arguida interpôs o presente recurso, limitado à apreciação da matéria de direito, formulando as seguintes conclusões:
1. A recorrente discorda da decisão, porque não existem razões de direito que fundamentem a sua condenação.
2. O crime de maus tratos é um crime em que o tipo subjectivo integra o tipo doloso, admitindo qualquer das suas modalidades (art. 14° C.P.).
3. O dolo integra dois elementos, o intelectual e o volitivo ou emocional.
4. O elemento intelectual do dolo exige que o agente conheça o tipo legal de crime que a sua vontade visa realizar.
5. O desconhecimento de uma das circunstâncias de facto do tipo legal exclui o dolo.
6. O elemento volitivo traduz-se na especial direcção de vontade de cometer o facto criminoso.
7. Para a verificação do dolo ou intenção criminosa é necessário, por parte do agente, a prática voluntária dos factos e o conhecimento do carácter ilícito ou imoral da sua conduta, ou que tudo se passe como se ele tivesse tal conhecimento.
8. Para o tipo subjectivo estar preenchido é necessário que a conduta seja intencional e dirigida à lesão do corpo ou saúde de outrem.
9. Os factos praticados pela arguida que resultaram provados no processo não consubstanciam o tipo legal de crime, pois apesar de poderem ser considerados excessivos, não atingem gravidade bastante para integrar a fatio punitiva de "maus tratos" ou "tratamento cruel".
10.0s actos imputados à recorrente devem ser tidos como lícitos, já que na educação do ser humano se justifica uma correcção moderada que poderá incluir castigos corporais ou outros.
11.A finalidade educativa pode justificar uma ou outra leve ofensa corporal simples.
12.A ofensa da integridade física será justificada quando seja adequada a atingir um fim educativo e seja aplicada com essa intenção.
13.O exercício do direito de castigo pode ser transmitido dos pais para pessoas que gozem da confiança pessoal dos encarregados de educação.
14. Para aferir da adequação do castigo e indagar se está em consonância com as finalidades educativas utilizamos a figura do "bom pai de família".
15. Não houve por parte da arguida intenção de lesar a integridade física e a saúde dos menores, nem de prejudicar o seu desenvolvimento físico, psíquico e mental, nem este se encontra demonstrado nos autos.
16.A recorrente actuou com finalidades educativas.
17.A actuação da arguida não se traduz numa atitude pessoal de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal.
18.A recorrente não quis praticar o ilícito, faltando, por isso o elemento emocional que caracteriza a atitude pessoal específica exigida pelo tipo de culpa dolosa.
19.Torna-se necessário atentar nas diferenças dos meios sociais de que provêm a arguida e os menores.
20.A recorrente não tem formação no âmbito da educação de infância, reflectindo nos educandos a educação que recebeu.
21.A atitude da arguida não representa para ela qualquer acto ilícito, por isso afirma que faria o mesmo a um filho seu.
22.As vicissitudes da vida actual impedem os pais de passarem tempo com os seus filhos, pelo que as instituições são forçadas a assumir a educação destes.
23.A matéria provada não é enquadrável no âmbito do tratamento cruel.
24.A recorrente actuou no âmbito do direito de educação-correcção.
25.A decisão recorrida violou, por erro de aplicação, o disposto nos arts. 13°, 14°, 152° e 152°-A, todos do Código Penal.
26.A obrigação de indemnizar surge quando alguém viola, com dolo ou mera culpa, o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (artigo 483° Código Civil).
27.In casu, não há obrigação de indemnizar, visto que a arguida não agiu com dolo, e tratando-se este de um crime cujo tipo subjectivo de ilícito integra o tipo doloso, não há qualquer facto que fundamente o pedido cível.
28.Sempre se dirá que na eventualidade de se manter a decisão recorrida, o montante arbitrado a título de danos não patrimoniais é excessivo e desadequado, pelo que, deve este ser reduzido substancialmente.
TERMOS EM QUE, deve o recurso proceder, por provado, revogando-se a decisão condenatória e, em consequência, decretar-se a absolvição da arguida, quanto aos ilícitos que lhe são imputados, bem como dos pedidos cíveis formulados.
Vossas Excelências, porém, farão a costumada e esperada JUSTIÇA
Notificado, respondeu o Ministério Público, terminando com a seguinte síntese conclusiva:
1- Bater na boca, obrigar uma criança a ingerir comida que havida deitado fora, ou deixar nódoas negras são elementos bastantes que permitem subsumir a conduta da arguida ao ilícito tipificado no artigo 152° nº 1 a), do Código Penal.
2- Tal comportamento é censurável sob o ponto de vista social e criminal.
3- Não pode considerar-se tal comportamento como adequado a corrigir condutas de crianças de tenra idade - de 1 e 2 anos.
4- Tal comportamento demonstra uma grande insensibilidade para lidar crianças daquelas idades.
5- A decisão recorrida fez, deste modo, uma correcta e acertada aplicação do direito.
Termos em que, confirmando-se a mesma, julgando improcedente o recurso Far-se-á JUSTIÇA!
O assistente … respondeu, formulando as seguintes conclusões:
A) A douta decisão recorrida não merece qualquer reparo. Dilucida as questões afloradas no presente recurso com tal clareza que não necessita qualquer adenda, pelo que se dá aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
B) O bem jurídico protegido pelo art. 152º do C. Penal "é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos" nomeadamente os que "afectem a dignidade pessoal do cônjuge". Trata-se de um crime específico, na medida em que pressupõe a existência de uma determinada relação entre o agente e o ofendido, que "será impróprio ou próprio, consoante as condutas em si mesmas consideradas já constituem crime, ou consoante as condutas não configurem em si mesmas qualquer crime", e que pressupõe, ao menos implicitamente, uma reiteração das respectivas condutas num determinado período de tempo.
C) Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma acção isolada do agente (tão-pouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), vem entendendo a generalidade da jurisprudência que existem casos em que uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.
D) No que respeita ao elemento subjectivo, trata-se de um crime doloso, podendo o dolo revestir qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal, resultando claro - afastada que foi a exigência de que o agente agisse por "malvadez ou egoísmo" que constava da redacção do art. 153º do C. Penal anterior às alterações introduzidas pelo DL nº 48/95 - que basta o dolo genérico[i].
F) A matéria dada como assente nos autos é plenamente demonstradora da prática por banda da arguida de vários comportamentos ilícitos, culposos e danosos, dirigidos a crianças entre os 12 e os 24 meses de idade.
G) Tratou-se da prática reiterada de factos que, pela sua gravidade integram a previsão de vários crimes de maus-tratos a menor.
H) Dizer-se que "os factos praticados pela arguida que resultaram provados no processo não consubstanciam o tipo legal de crime, pois apesar de poderem ser considerados excessivos, não atingem gravidade bastante para integrar a ratio punitiva de "maus tratos" ou "tratamento cruel", para além de alarmante revelador da total ausência de remorsos da arguida é altamente revelador do seu carácter anti-social.
I)Afirmar-se, reputando-se aos actos praticados pela arguida, que "Os actos imputados à recorrente devem ser tidos como lícitos, já que na educação do ser humano se justifica uma correcção moderada que poderá incluir castigos corporais ou outros" é ter, no mínimo, uma concepção da educação e desenvolvimento da criança que não corresponde ao mundo civilizado.
J) As bizarras afirmações de que: "A recorrente actuou com finalidades educativas." E "A recorrente não quis praticar o ilícito, faltando, por isso o elemento emocional que caracteriza a atitude pessoal específica exigida pelo tipo de culpa dolosa." Para além de não terem qualquer suporte factual nos autos, estão em contradição com toda a prova recolhida nos mesmos.
L) Aliás, cumpre frisar que em momento algum dos autos a arguida invocou que era a sua intenção aquando da prática dos factos se prendia com "finalidades educativas". Tendo sempre negado olimpicamente a prática de tais "actos educativos", os quais, foram praticados em momentos temporais e locais onde era previsível ela não ter testemunhas.
M) Igualmente não resulta da matéria provada nem foi em momento algum invocado pela arguida que a mesma tenha sido coagida a agir como agiu.
N) Os recorrentes concordam que a arguida não tem a formação mínima de um ser humano, parecendo-lhes que a mesma está mais qualificada para lidar com animais do que com seres humanos, mesmo os que sejam do seu meio social e intelectual. Porém, que os recorrentes tenham conhecimento, a ignorância ainda não configura causa de exclusão da ilicitude no nosso ordenamento jurídico-penal. Para além disso não resultou minimamente provado que essa tenha sido a "educação" por si recebida.
O) Pelo que a douta decisão recorrida não violou as normas invocadas nem quaisquer outras, devendo manter-se nos seus precisos termos.
P) Atenta toda a matéria constante dos autos, e o antecedentemente dito, deve igualmente manter-se a douta decisão recorrida na parte em que fixa os pedidos de indemnização cível.
Termos em que deve manter-se o acórdão recorrido conforme alegado e concluído supra, como é de direito e da melhor JUSTIÇA.
O assistente … respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
A assistente … apresentou contra-alegações concluindo que:
1 - Ascende à douta consideração deste Tribunal Superior o bem elaborado e fundamentado acórdão do Tribunal a quo, que entendeu condenar a arguida por um crime de maus-tratos a menor p.p. pelo art. 152º nº 1. al. a) do C.P. na pena única de dois anos de prisão, suspensa pelo mesmo período.
2 - O Tribunal fundou a sua convicção nas “declarações da arguida e das assistentes, devidamente conjugadas com os depoimentos das testemunhas, que depuseram de forma objectiva e esclarecedora quanto ao comportamento da arguida e sua forma de actuação, revelando-se idóneos e isentos”.
3 - A arguida refere que "para o tipo subjectivo estar preenchido é sempre necessário que a conduta seja intencional e dirigida à lesão do corpo ou da saúde de outrem" e adianta que "os factos praticados pela recorrente que resultaram provados no processo não consubstanciam o tipo legal de crime, pois apesar de poderem ser considerados excessivos, não atingem gravidade bastante para integrar a ratio punitiva de maus tratos ou tratamento cruel".
4 - Não resta margem para dúvidas que as condutas em causa integram o conceito de maus-tratos e de tratamento cruel, pois envolvem uma atitude censurável em situações educacionais de menores, especialmente vulneráveis, onde a sua dependência educativa e emocional é vincada.
5 - Na verdade, e ao contrário do entendimento da recorrente, o elemento subjectivo do tipo de ilícito está preenchido, nas suas duas vertentes - a arguida conhecia as circunstâncias de facto que pertencem ao tipo legal (a relação de protecção-subordinação e menoridade da criança); por outro lado, praticou as condutas referidas de forma voluntária e consciente.
6 - Em suma, a conduta foi intencional e dirigida à lesão do corpo ou da saúde de outrem.
7 - E nem se diga, como parece ser entendimento da recorrente, que os actos que lhe são imputados devem ser tidos como lícitos!
8 - Apelar à não condenação da arguida, sob a capa do invocado poder-dever e do fim educativo que, alegadamente, daria direito a todo o tipo de atrocidades que permitiriam fazer o que bem quisesse, e que tal facto não ultrapassaria o poder de correcção em relação aos menores, é ter uma concepção da correcção, educação e desenvolvimento da criança que não corresponde ao mundo civilizado.
9 - A linha de fronteira passa por dois pontos: um reportado à finalidade da correcção; outro à sua adequação à educação do menor.
10 - Por um lado, o bem do menor concretizado na sua educação terá de ser sempre a finalidade da correcção.
11 - Por outro lado, para aferir da adequação do comportamento para com os menores, ousamos chamar a figura do "bom pai de família ", investido das funções que directamente resultam da consagrada expressão. Indagamos, então, se o bom pai de família agiria como agiu a arguida.
12 - Estamos perante uma criança de um ano, por natureza meiga e dócil, cujo único senão se prendia com a dificuldade demonstrada nas horas das refeições, questão facilmente ultrapassável com alguma paciência e atenção.
13 - Qual é o bom pai de família que obriga uma criança, que normalmente se recusa a comer, a engolir a comida, batendo-lhe na boca, mantendo-lhe a boca aberta e metendo-lhe uma colher com comida, obrigando-a a engolir à força, o que por vezes faz com que a criança expulse os alimentos e a obrigue, de seguida, a comer o que lançara fora da boca?
14 - Qual é o bom pai de família que agride com um estalo uma menor, que deitou a comida para o chão, obrigando-a a comer o que expulsara, enquanto a criança chora convulsivamente, de tal forma que também expulsa comida pelo nariz?
15 - Qual é o bom pai de família que, porque a criança normalmente se recusa a comer, necessitando para tal de alguma persuasão e paciência, através da força física, tenta meter-lhe a comida na boca para a obrigar a engolir, provocando-lhe vómitos?
16 - Justificar, como parece ser o intuito, que se pode fazer o que bem se entende e que tal conduta não ultrapassa o poder de correcção é, seguindo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/04/2001, "ter uma concepção da educação e desenvolvimento da criança e do exercício do poder paternal" – ou, no caso, educacional – "que não corresponde ao mundo civilizado".
17 - Na verdade, o desígnio da recorrente é minimizar a sua actuação, só por si censurável e criticável, desviando-se da questão fulcral, como se de um tratamento normal, aplicado à luz de um qualquer fim educativo, se tratasse.
18 - A conduta da recorrente não pode ser considerada normal, e muito menos ser-lhe atribuído um qualquer intuito educativo. Pelo contrário, foi desajustada, desproporcionada, antipedagógica, agressiva e merecedora de censura.
19 - Para isto, basta atentar nos depoimentos das testemunhas, em sede de audiência de discussão e julgamento e que, no entendimento do Tribunal a quo, "depuseram de forma objectiva e esclarecedora ".
20 - Será utópico considerar que os comportamentos atribuídos à arguida se podem confundir com "castigos moderados ", com "finalidades educativas ", semelhantes a uma qualquer "leve ofensa corporal simples".
21 - Tentando aligeirar a gravidade da situação, a recorrente refere que "não representou nem quis praticar o ilícito ", escusando-se, em seguida, na "dicotomia existente entre os meios sociais da arguida e dos menores". Mais refere que "a recorrente não possui qualquer formação no âmbito da educação de infância, pelo que reflecte nos educandos a educação que recebeu" e que "a evolução pedagógica levou a uma alteração dos padrões educativos, censurando algumas atitudes que até há bem pouco tempo eram não só lícitas, como comuns ".
22 - Só um espírito menos atento não percebe o argumento engenhoso da recorrente, que sempre soube o que fazia.
23 - Atribuir os comportamentos da arguida à diferença de meios sociais é, com o devido respeito, caricato. Isto porque, em todos os meios sociais, quer sejam mais ou menos desfavorecidos, há crianças. E todas devem ser tratadas do mesmo modo.
24 - A crise de afectos não é problema do meio social em que as pessoas se inserem.
25 - Por outro lado, apelar à "evolução pedagógica" que levou a uma "alteração dos padrões educativos" censuráveis de "algumas atitudes que até há bem pouco tempo eram não só lícitas, como comuns", mais não demonstra do que a perfeita contradição de argumentos.
26 - Na verdade, as testemunhas abonatórias arroladas pela arguida, e que referiram conhecê-la há anos, foram defensoras acérrimas da sua conduta exemplar, aludindo repetidamente à conduta intocável da arguida, como mãe exemplar, num quadro pintado com cores de carinho, felicidade e afectos constantes!
27 - Pasma a recorrida quando constata que, afinal, apesar da imagem de mãe extremosa que pretendeu passar, em sede de audiência de discussão e julgamento, à margem de qualquer censura, a recorrente venha invocar e justificar as atrocidades cometidas no facto de ter sido "assim que foi ensinada "e apoiando-se agora na bengala da "evolução pedagógica ".
28 - Uma palavra ainda para referir mais um equívoco em que assentam os fundamentos da recorrente, quando refere que "nada no douto acórdão indica que as palmadas tenham sido desferidas de forma violenta e desproporcionada", limitando-se a transcrever a parte que (lhe) interessa - "viu a arguida bater na boca da .... ".
29 - Atentando nos factos provados pelo Tribunal a quo, facilmente concluímos pela violência e desajuste do comportamento da arguida - "actuações que, pelo carácter agressivo, desajustado e antipedagógico, punham em causa o equilíbrio emocional e afectivo daquelas crianças"; obrigava-a a engolir à força, o que por vezes fazia com que a criança expulsasse os alimentos e obrigava-a de seguida a comer o que lançara fora da boca"; "a arguida, através da força física tentava meter-lhe a comida na boca para a obrigar a engolir, provocando-lhe vómitos, o que aconteceu por diversas vezes ".
30 - Como se pode concluir, as palmadas desferidas, tal como toda a atitude da arguida, globalmente considerada, foi violenta e desproporcionada.
31 - Conforme referiu o Dr..............., pediatra, esclarecendo o Tribunal sobre as consequências de maus tratos, "a criança que é punida por qualquer coisa que não consegue perceber, perde a confiança nos adultos, o que afecta necessariamente a auto-estima e gera incompreensão ao que deles espera".
32 - A função do artigo 152º do C.P. é, como se refere Taipa de Carvalho "prevenir as frequentes e, por vezes, tão "subtis" quão perniciosas formas de violência no âmbito da família e da educação".
33 - Os maus-tratos a crianças começam a ser reconhecidos como um dos maiores problemas sociais dos dias de hoje, pelo que uma prevenção que se pretende eficaz implica a implementação de medidas específicas.
34 - Quanto ao pedido de indemnização deduzido, a obrigação de indemnizar é devida, em virtude do preenchimento dos elementos do tipo legal, e a condenação, nos termos fixados pelo Tribunal a quo não merece qualquer reparo, pelo que estamos certos que o Tribunal ad quem terá o mesmo entendimento.
Termos em que o douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo não merece qualquer reparo, devendo manter-se, nos termos proferidos, quer quanto à condenação da arguida pelo crime de maus-tratos, quer quanto ao pedido de indemnização civil deduzido, assim se fazendo Justiça.
O recurso foi admitido e, nesta instância, o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer de manutenção do decidido.
Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (arts. 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal na versão introduzida pela Lei 48/07 de 29.8).
II – FUNDAMENTAÇÃO
É jurisprudência constante e pacífica (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação [[ii]] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Ac do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série-A, de 28.12.95).
Nos autos, o recurso limita-se às questões de direito
Sintetizando, são as seguintes as questões a decidir:
1. Subjectivamente, se a actuação da arguida foi dolosa;
2. Objectivamente, se os actos praticados têm gravidade bastante para serem considerados maus-tratos ou tratamento cruel.
3. Inexistência de obrigação de indemnizar por inexistência de dolo; caso assim não se entenda, montante excessivo arbitrado a título de danos não patrimoniais.
Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada e não provada:
Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:
A arguida exerceu as funções de auxiliar de educação no estabelecimento instalado na R. Manuel Silva Gaio, à Arregaça, nesta cidade de Coimbra e onde funciona o infantário conhecido por "Casa d 'Avó", onde foi admitida em 19 de Abril de 2004, na sequência de anúncio publicado num jornal local e de uma entrevista, pelo que ficou a prestar serviço de apoio, na qualidade de auxiliar, na sala dos meninos de um ano de idade, entre os quais …, … e …, na qual era educadora ….
Até final do ano escolar de 2003-2004 a arguida deu apoio à sala das crianças de um ano de idade, passando a acompanhar as crianças de dois anos de idade no início do ano lectivo 2004-2005 e, mais concretamente, a partir de Setembro e até à sua suspensão, ocorrida em 20 de Outubro de 2004.
Para além do apoio à educadora …, cabia à arguida cuidar das crianças à hora do almoço, apoiando-as na toma das refeições, mudando fraldas quando necessário, zelando pelas mesmas durante a sesta, acompanhando-as nas brincadeiras e nas tarefas didácticas próprias da idade.
Geralmente à hora das refeições e da sesta, a arguida ficava sozinha com um grupo de crianças enquanto a educadora cuidava do outro grupo, o que também acontecia enquanto a educadora almoçava ou depois de esta terminar o seu dia de trabalho.
A partir de Julho de 2004, o menor …, nascido a 14 de Julho de 2002, começou a revelar alterações comportamentais e a ostentar marcas negras nas costas e nas pernas, que levaram a sua mãe a suspeitar de que algo de grave se passaria.
Com efeito, o … começou a recusar-se a mudar a fralda, a ir para o infantário de manhã e a auto-agredir-se, referindo com alguma insistência a palavra "tau-tau" e o nome da A.......... - diminutivo mais utilizado pelas crianças no tratamento da arguida – como perpetradora de agressões. Passou a ter um comportamento muito agressivo para com os adultos, fazendo birras constantes, batendo nas paredes, cadeiras e mesas, repetindo "tau-tau" insistentemente e à pergunta sobre quem batia, respondia invariavelmente, "a A..........".
Este comportamento não correspondia ao que era habitual na criança, até aí dócil e cordata, o que determinou a sua mãe a dar conhecimento às responsáveis pelo infantário, da situação e das suas preocupações, a fim de que actuassem.
Os pais dos menores …, … e …, da sala frequentada pelo …, aperceberam-se também de bruscas alterações comportamentais dos seus filhos e de marcas de lesões, que na altura não valoraram devidamente, entendendo-as como próprias da idade, por nada haver que justificasse estas ou aquelas.
O …, durante todo o mês de Agosto manteve um comportamento agressivo e completamente contrário ao que nele era habitual, e quando em 8 de Setembro foi confrontado com a perspectiva do regresso ao infantário, ficou muito aflito, dizendo não querer ir. Quando no dia 9 foi levado para a escola iniciou um choro em silêncio e, ao aperceber-se da A.......... começou a dizer que tinha medo, mostrando-se muito aflito. Começou de novo a acordar de noite com pesadelos, aos gritos, ficava várias horas acordado e em grande alvoroço, regrediu no controlo dos esfíncteres, e ficava muito aflito e amedrontado quando sujava a fralda.
Continuou a aparecer com marcas nas pernas - nódoas negras - e quando lhe perguntavam quem foi, continuava a dizer "A.......... deu tau-tau", sendo certo que a arguida lhe dava palmadas.
Como o ................ continuava a manter os mesmos comportamentos agressivos e a recusar-se a ir à escola, face às contínuas preocupações e suspeitas da mãe do …, a 27 de Setembro as directoras do infantário, decidiram transferir o …, durante uma semana, para a sala das crianças de três anos de idade, à experiência e para ver como se comportava. Em 4 de Outubro quando a mãe do … o levou novamente para a sala dos dois anos, o mesmo, mal chegou à porta, recusou-se a entrar dizendo "essa porta não, por favor", pelo que permaneceu mais uma semana na sala dos três anos.
Por conselho do pediatra que observou o … os pais retiraram-no do infantário, o que aconteceu em 18 de Outubro - testemunha 7.
Durante o período de permanência da arguida no infantário e mais concretamente como auxiliar da sala dos meninos de um ano de idade, a arguida, quando sozinha com as crianças, o que acontecia geralmente à hora das refeições e da sesta, tinha para algumas delas e mais concretamente para o …, …, e …, actuações que, pelo seu carácter agressivo, desajustado e antipedagógico, punham em causa o equilíbrio emocional e afectivo daquelas crianças.
De facto, a arguida por várias vezes obrigou a …, - criança que normalmente se recusava a comer -, a engolir a comida batendo-lhe na boca, mantendo-lhe a boca aberta e metendo-lhe uma colher com comida, obrigava-a a engolir à força, o que por vezes fazia com que a criança expulsasse os alimentos e obrigava-a de seguida a comer o que lançara fora da boca.
Em Julho, numa ida da criança ao quarto de banho acompanhada pela arguida, esta agrediu com um estalo a …, que deitou a comida para o chão, tendo-a a arguida obrigado a comer o que expulsara, enquanto a criança chorava convulsivamente, de tal forma que também expulsou comida pelo nariz.
Foi então a arguida alertada por uma colega que se deparou com a cena, tendo-lhe respondido "o que não mata engorda" e, em jeito de justificação, acrescentou que faria o mesmo a um filho seu.
Porque esta criança normalmente se recusava a comer, necessitando para tal de alguma persuasão e paciência, a arguida, através da força física tentava meter-lhe a comida na boca para a obrigar a engolir, provocando lhe vómitos, o que aconteceu por diversas vezes.
De igual modo o menor … foi alvo da agressividade da arguida que o apelidava de "porco" e "badalhoco" quando o mesmo ia ao quarto de banho e se descuidava, o que criava uma grande ansiedade na criança, sempre receosa que lhe batesse.
Porque o menor … se recusava a comer, a arguida desferiu-lhe, pelo menos uma vez, uma palmada na boca.
Era também frequente o menor aparecer com nódoas negras no corpo, e perguntado sobre a razão das mesmas dizia "A.......... tau-tau". Frequentemente também era esta criança posta de castigo pela …, de forma brusca e agressiva.
O … é uma criança sobredotada.
Ao actuar da forma como o fez, sabia a arguida que estava a lidar com crianças de um ano de idade, completamente indefesas e incapazes de se defender e queixarem, e que a sua actuação lhes causaria, necessariamente, perturbações que se traduziriam em alterações comportamentais graves, capazes de pôr em causa o seu harmonioso desenvolvimento físico e psíquico.
Fez uso do seu ascendente sobre os menores, da tenra idade destes, do facto de terem sido entregues à instituição para deles cuidar pelos seus pais e em sua substituição, numa relação de confiança que nunca estes poriam em causa.
Esta circunstância, aliada à tenra idade das crianças, à sua fragilidade e incapacidade para se queixarem, a boa imagem que tinha no seio da hierarquia, bem como o facto de ter o cuidado de actuar fora do olhar de terceiros e salvaguardando sempre esse aspecto, garantia-lhe uma impunidade quase certa.
Cabia à arguida, na sua qualidade de auxiliar, cuidar e zelar pelo bem-estar das crianças, contribuir para o seu são desenvolvimento psico-afectivo, num ambiente harmonioso e sadio.
Ao contrário, e durante a sua estadia no infantário, a arguida pelo modo supra descrito, provocou, pelo menos nas crianças acima identificadas, sofrimentos que se traduziram em alterações comportamentais graves, susceptíveis de condicionarem o seu desenvolvimento. Atenta a sua idade, incapazes de por outro modo se expressarem, traduziram em comportamentos desviantes e agressivos o seu mal-estar, regredindo na sua evolução.
A arguida, que actuou de forma livre e deliberada, perfeitamente consciente do ilícito da sua actuação, bem sabia que com a mesma causava mal-estar físico e psíquico aos menores. A arguida não tem antecedentes criminais. Está desempregada.
Vive com o marido e filhas, em casa construída com empréstimo bancário. O marido é mecânico de automóveis e as filhas estudantes. É uma família honesta, trabalhadora e bem integrada no seu meio social.
NÃO SE PROVARAM OS SEGUINTES FACTOS:
- Para que o … se calasse deu-lhe a arguida outra bofetada.
- Porque o menor … se recusava a comer levou uma palmada na boca que fez com que ficasse a sangrar.
E foi o seguinte o enquadramento jurídico-penal:
À arguida foram imputados três crimes de maus-tratos a menor p.p. pelo artº 152º nº 1 al. a) do Cod. Penal. (Vigência: 7 Setembro 1998)
À data da prática dos factos dispunha o artigo 152º do CP: alterado pelo artigo 2.º da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro:
1. Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente;
é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144.º
Com a nova redacção introduzida pela Lei nº 59/2007, de 04/09, a situação em apreço mostra-se plasmada no artigo 152º A, al. a), que dispõe o seguinte:
1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;
b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O crime de maus tratos visa prevenir formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho, pelo que abrange no seu âmbito, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos, humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou saúde física, psíquica ou mental do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas - cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, PE, Tomo I, Artigos 131º a 201º, dirigido por Figueiredo Dias, Coimbra Editora – 1999, p. 332 e seguintes.
O bem protegido por este tipo de crime é a saúde – física, psíquica e mental, que pode ser afectada por vários comportamentos e que pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos.
O âmbito de protecção desta norma abrange os comportamentos que, de modo reiterado, lesam a dignidade do ser humano. O bem jurídico protegido é, pois, a saúde (a saúde física, psíquica e mental).
O crime de maus-tratos pressupõe um agente que se encontre em determinada relação para com o sujeito passivo desses comportamentos. Este crime é, portanto, um crime específico. É um crime próprio ou impróprio consoante a natureza das condutas em si mesmas consideradas já constituam ou não crime
Actualmente, contrariamente, ao que resultava do citado artigo 152º, em vigor à data dos factos, este tipo de crime não pressupõe a reiteração das condutas em causa, já que prevê expressamente a conduta não reiterada, mostrando-se, por isso, o regime em vigor à data dos factos mais favorável à arguida, sendo este o aplicável.
Relativamente ao elemento subjectivo do tipo, este é um crime fundamentalmente doloso em uma qualquer das suas formas: directo, necessário e eventual.
Da factualidade provada, resultou demonstrado que a arguida, ignorando a fragilidade de crianças com apenas um e dois anos de idade, absolutamente indefesas, que dela esperavam protecção, amparo e carinho, as tratou de forma violenta, quer insultando reiteradamente o … de “porco e badalhoco”, quer torturando sistematicamente a … forçando-a a comer, para o que lhe dava palmadas na boca e empurrava os alimentos com a colher pela boca abaixo, o que necessariamente causa vómitos seguido de expulsão de alimentos, que de forma insensível e agressiva, tornava a introduzir na boca da criança. De igual modo, agredia o ............. com palmadas, de que a criança, sobredotada, se queixava à mãe, revelando fortes sinais de que estava a ser vítima de maus tratos, o que foi considerado pelo seu pediatra que até aconselhou os pais a retirá-lo do infantário Casa da Avó.
Da análise da matéria de facto dada como provada, conclui-se assim que a conduta da arguida preenche a tipicidade exigida no preceito legal em análise.
Com efeito, de tal factualidade dada como assente resulta que a arguida violou, reiteradamente a integridade física da …, do … e do …, e que as agressões perpetradas assumem a gravidade suficiente para ser enquadrada no tipo legal de maus tratos.
Nos termos do disposto no artigo 31º, nºs 1 e 2, al. b), o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, nomeadamente, no exercício de um direito, que contempla o "direito de correcção".
A este propósito, tal como se salienta in "Comentário Conimbricense ao Código Penal - parte Especial", Tomo I, pág. 214 e segs., assume-se como discutível a natureza do direito ao castigo dos pais e educadores quando se traduza, em concreto, em lesões da integridade física do educando, como é o caso. Tratando-se de direito de correcção, assumem-se como controvertidos não só a sua admissibilidade como os seus limites. Tem-se entendido que a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção. Colocam-se a este nível dúvidas sobre a proporcionalidade pedagógica dos castigos físicos e da sua compatibilidade com a dignidade humana do ser humano em desenvolvimento. Faz-se normalmente uma distinção dentro do direito de castigo consoante este seja exercido sobre crianças próprias ou de outrem. Os pais estarão em princípio legitimados ao castigo por força do poder paternal. Dado que o direito de correcção resulta da relação familiar entre pais e filhos, a transferência desse direito apenas poderá ocorrer relativamente a pessoas próximas da criança ou que gozem da confiança pessoal dos encarregados de educação. Considera-se, ainda, que o direito ao castigo nunca será exercido na presença dos verdadeiros encarregados de educação, uma vez que o direito destes últimos prevalece.” – Ac R Porto de 2-7-2008 Rec. Penal nº 2772/08 - 4ª Sec.
Em nosso entender, a violência e a agressividade revelada na actuação da arguida, de que foram vitimas crianças vulneráveis, de apenas UM ANO de idade, exclui claramente a sua actuação do âmbito do poder-dever ou direito de correcção, por não ser adequada a atingir um fim educativo, sendo a conduta da arguida intencionalmente dirigida à lesão do corpo ou da saúde dos ofendidos, o que de imediato é apreendido por quem tenha um mínimo de sensibilidade e atente em que, devendo o infantário ser o colo na primeira etapa educativa que se pretende desenvolva em firme harmonia, qualquer atitude agressiva, física ou moral, é deveras traumatizante e pode comprometer seriamente um processo de crescimento saudável.
Concluímos, assim, que inexistem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, nomeadamente, a prevista no artigo 31º, nºs 1, 2, al. b) do Código Penal.".
Regista-se, por fim, que, como lembra o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto, o acórdão proferido em primeira instância teve um voto de vencido com o seguinte teor:
Vencido por ter considerado que os factos provados que resultam ter sido praticados pela arguida, apesar de censuráveis em termos educativos, não atingem gravidade bastante para integrarem a ratio punitiva “maus tratos” ou “tratamento cruel”.
Verificação da existência dos vícios do art. 410º do Código de Processo Penal
Estabelece o art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento [[iii]].
Existe o vício previsto na alínea a) do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal quando a factualidade dada como provada na sentença não permite, por insuficiência, uma decisão de direito ou seja, quando dos factos provados não possam logicamente ser extraídas as ilações do tribunal recorrido. A insuficiência da matéria de facto determina a incorrecta formação de um juízo, porque a conclusão ultrapassa as respectivas premissas [[iv]]. Dito de outro modo: quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão [[v]].
Existe o vício previsto na alínea b), do n.º 2 do art. 410.º quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada, entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, entre a fundamentação probatória da matéria de facto, e ainda entre a fundamentação e a decisão [[vi]].
Finalmente, ocorre o vício previsto na alínea c), do nº 2 do art. 410º quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente [[vii]]. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
No caso vertente, não foi invocado nem se verifica qualquer dos vícios da sentença supra referidos.
Dolo
Invoca a Recorrente em síntese que actuou sem dolo, por ter actuado com finalidade educativa, sem querer praticar o ilícito, sustentando que essa finalidade educativa abrange um poder de correcção moderado que poderá incluir castigos corporais.
O acórdão proferido é claro ao afirmar que a arguida “actuou de forma livre e deliberada, perfeitamente consciente do ilícito da sua actuação, bem sabia que com a mesma causava mal-estar físico e psíquico aos menores”.
A possibilidade ora aventada pela Recorrente de ter actuado com um propósito educativo não foi acolhida pelo tribunal a quo. É certo que a finalidade educativa abrange o poder de correcção, que se revela (deve revelar) essencialmente no exemplo e na palavra. O que é claramente discutível é se esse poder de correcção pode abranger castigos corporais. No entanto, dir-se-á que, no caso em apreço é manifesto que a Recorrente não quis exercer qualquer poder de correcção ou atingir uma finalidade educativa. A evidência da inexistência dessas boas intenções resulta claramente da reiteração, da postura agressiva – por oposição a educativa – que transpira dos depoimentos resumidos no acórdão e do óbvio escamoteamento da sua conduta perante pais e responsáveis do infantário: resulta da análise dos depoimentos que apenas uma empregada de limpeza e uma funcionária da secretaria observaram directamente, e algumas colegas auxiliares de educação surpreenderam as condutas mais gravosas da arguida, enquanto nem educadoras, nem responsáveis do infantário souberam de nada, só sendo instaurado processo disciplinar devido às queixas dos pais que, como se depreende dos seus depoimentos, suspeitaram que algo de errado se passava pela alteração de comportamento dos filhos. Aliás, a matéria de facto provada afirma claramente que os factos ocorriam só nos períodos de ausência da educadora:
Geralmente à hora das refeições e da sesta, a arguida ficava sozinha com um grupo de crianças enquanto a educadora cuidava do outro grupo, o que também acontecia enquanto a educadora almoçava ou depois de esta terminar o seu dia de trabalho.  
(…)
… a arguida, quando sozinha com as crianças, o que acontecia geralmente à hora das refeições e da sesta, tinha para algumas delas e mais concretamente para o …, …, e …, actuações que, pelo seu carácter agressivo, desajustado e antipedagógico, punham em causa o equilíbrio emocional e afectivo daquelas crianças.
Esta actuação dissimulada é incompatível com qualquer inconsciência da ilicitude ou com a ausência do elemento volitivo do dolo.
Está assim afastada a tese ­de que, com um propósito educativo, se possa em quaisquer circunstâncias, em relação a menores de cerca de um/dois anos de idade:
- Obrigar a engolir a comida à força, batendo ou dando palmadas na boca, mantendo a boca aberta e metendo uma colher com comida
- Obrigar a comer o que sai fora da boca, mesmo que caia no chão, mesmo que a criança tenha vómitos ou chore convulsivamente e expulse comida pelo nariz;
- Agredir com estalo por deitar a comida para o chão;
- Chamar "porco" e "badalhoco" a criança que vai ao quarto de banho e se descuida.
Salvo o devido respeito a tese em apreço ofende o espírito e a letra da Declaração Universal dos Direitos da Criança [[viii]], mormente o seu art. 19º e, hodiernamente, aparece como absolutamente descabida.
Invoca a Recorrente a necessidade de se ponderar a ausência de formação no âmbito da educação de infância, a diferença de meios sociais e a evolução pedagógica.
Não ficou demonstrado qualquer facto a partir do qual seja possível efectuar qualquer conjectura sobre a existência ou inexistência dessa formação específica, pelo que a aludida ponderação não pode efectuar-se.
Por outro lado embora seja uma realidade que a forma de educação e de exercício do poder de correcção sobre uma criança dependam de variáveis temporais, geográficas, sócio-económicas, culturais, não resulta daí nenhuma consequência ao nível da apreciação do dolo como resulta da apreciação supra efectuada.
Maus tratos/tratamento cruel
Invoca a Recorrente que os actos praticados serão excessivos mas sem gravidade bastante para serem considerados tratamento cruel. Sustenta, também que se trata de actos lícitos justificados por uma correcção moderada que pode incluir castigos corporais (porque a finalidade educativa pode justificar uma leve ofensa corporal simples). Invoca ainda, a este propósito, a possibilidade de transmissão do direito de castigo dos pais a pessoas da sua confiança.
Os argumentos invocados pela Recorrente encontram suporte aparente em doutrina e em jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.
Roxin afirmava que “y efetivamente hay que admitir dicha justificación: es cierto que la ley no dice expresamente que el derecho de edcación incluya el derecho a un castigo corporal moderado, y que seria pedagogicamente deseable que se renuncie al castigo corporal como médio de educación familiar; pêro seria desconocer la realidad de la vida suponer que en las condiciones sociales y psicológicas actualmente existentes todos los padres iban a poder arreglárselas prescindiendo completamente de acudir a las manos como método educativo. Si se quisiera movilizar aqui al Derecho penal por cada bofetada motivada por faltas graves, serían más las famílias destrozadas que las pacificadas” [[ix]].
Esta doutrina conforma-se com a existência de um direito de correcção, desde que exercido com moderação, adequação à falta e finalidade educativa [[x]].
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.4.06 [[xi]] afirmou-se que (sumário) “para a caracterização do crime de maus tratos, previsto no artigo 152.º, n.º1 do Código Penal, importa a aferir a gravidade da conduta traduzida por crueldade, insensibilidade ou até vingança.
A reiteração é, na maior parte das vezes, elemento integrante destes requisitos mas, excepcionalmente, o crime pode verificar-se sem ela [[xii]].
Castigos moderados aplicados a menor por quem de direito, com fim exclusivamente educacional e adequados à situação, não são ilícitos.
Devendo, no entanto, ter-se consciência de que estamos numa relação extremamente vulnerável e perigosa quanto a abusos”.
Esta posição é desenvolvida no acórdão: “Na educação do ser humano justifica-se uma correcção moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros. Será utópico pensar o contrário e cremos bem que estão postas de parte, no plano científico, as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de castigos moderados.
Taipa de Carvalho, no artigo citado, refere que a " finalidade educativa pode justificar uma ou outra leve ofensa corporal simples " e Paula Ribeiro de Faria (também no Comentário Conimbricense do Código Penal, a páginas 214 do Tomo I) afirma que " de acordo com o ponto de vista maioritário a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção ". Do mesmo modo, este Tribunal no seu Acórdão de 10.10.95 (que se pode ver sumariado em www.dgsi.pt) entendeu que "os pais detêm o poder-dever de corrigir moderadamente os filhos.
Toda esta doutrina e jurisprudência têm de ser analisadas tendo em atenção que a área dos maus tratos é uma área em constante e rápida evolução, em que a doutrina e a jurisprudência não sedimentam com facilidade, obrigadas a seguir novos caminhos, resultado de tomadas de consciência colectivas, de compromissos internacionais e de constantes alterações legislativas.
Por isso, importa chamar a atenção em primeiro lugar para a constante evolução normativa na área do poder paternal. Efectivamente, “o poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas” antes previsto no art. 1884º nº 1 do Código Civil na sua versão original, deixou de ter consagração legal autónoma em Portugal, com a redacção dada a esse diploma pelo Decreto-Lei 496/77 de 25.11. Só será compreensível actualmente, como parte do poder-dever de educar consagrado no art. 1878º do Código Civil [[xiii]] e, consequentemente, só se assim o impuser o superior interesse da criança.
Além disso, veja-se, também a rápida evolução do crime de maus-tratos na nossa lei, “resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados” [[xiv]]:
A Reforma de 1995 aboliu a referência à exigência de malvadez e crueldade provinda do Anteprojecto e que a versão original do Código Penal de 1982 consagrava, passou a prever os maus-tratos psíquicos, a par dos maus-tratos físicos e agravou substancialmente as penas. Recentemente, a Lei 59/07 de 4.9 veio a dar à al. a) do nº 1 do art. 152º-A do Código Penal uma redacção que tornou inequívoca a possibilidade de existência de maus-tratos resultantes de conduta não reiterada, assim tomando posição na querela doutrinária e jurisprudencial pré-existentes [[xv]].
A lei aponta, por isso, um caminho de ampliação das condutas que podem configurar o crime de maus-tratos.
Actualmente, urge [[xvi]] pôr o acento tónico no poder correctivo da persuasão, do exemplo e da palavra e na desnecessidade de causar dor física para corrigir [[xvii]], de forma a poder dar uma resposta satisfatória a este problema social tão disseminado [[xviii]]. Também, especificamente, na escola (ou infantário) os castigos corporais são, actualmente, considerados reprováveis [[xix]]. Essa urgência também é sentida pela doutrina que salienta que é questionável a admissibilidade desse direito ao castigo e nega que a escola ainda detenha esse poder [[xx]].
Como se procurará demonstrar, no caso dos autos não ocorreu apenas um episódio de ofensa à integridade física que possa integrar uma “leve ofensa à integridade física”, ao contrário do caso retratado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.4.06.
É elementar reconhecer que a gravidade de uma ofensa depende da idade e do desenvolvimento do menor vitimado. Bem assim a dimensão das consequências físicas e psíquicas também releva para a apreciação da relevância jurídico-penal da conduta. Ou seja, não pode deixar de se apreciar a gravidade concreta do comportamento tendo em atenção a fragilidade das vítimas resultante da idade e, num juízo de prognose póstumo, a gravidade das consequências.
Recordando que em causa estão crianças com cerca de um/dois anos de idade, actuações agressivas repetidas contra três crianças, que puseram em causa o seu equilíbrio emocional e afectivo (obrigar a engolir a comida à força, batendo ou dando palmadas na boca, mantendo a boca aberta e metendo uma colher com comida; obrigar a comer o que sai fora da boca, mesmo que caia no chão, mesmo que a criança tenha vómitos ou chore convulsivamente e expulse comida pelo nariz; agredir com estalo por deitar a comida para o chão; chamar "porco" e "badalhoco" a criança que vai ao quarto de banho e se descuida) sabendo a arguida que estava a lidar com crianças dessa idade, completamente indefesas e incapazes de se defender e queixarem, e que a sua actuação lhes causaria, necessariamente, perturbações que se traduziriam em alterações comportamentais graves, capazes de pôr em causa o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso e efectivamente provocando sofrimentos que se traduziram em alterações comportamentais graves, susceptíveis de condicionarem o seu desenvolvimento não pode deixar de se considerar como maus tratos.
As consequências que da conduta da arguida resultaram para os menores e a sua reacção perante a hipótese de terem de ficar na sala da arguida que os factos espelham permitem compreender que durante um período prolongado para o desenvolvimento da criança com aquela idade, para além das agressões físicas a que foram sujeitos, estes viveram um período de intensa violência psicológica por todos vivenciada e que a todos vitimava.
Consequentemente, a conduta da arguida consubstancia a prática de actos de maus-tratos físicos e psíquicos jurídico-penalmente relevantes.
*
Invoca ainda a Recorrente a transmissão do direito de castigo dos pais a pessoas da sua confiança.
Roxin [[xxi]] aceita possibilidades limitadas de transmissão desse direito, de qualquer forma, sempre de forma expressa.
Como se disse supra, o Código Civil não consagra já qualquer direito de correcção moderada. Assim, a admitir-se o direito ao castigo, este inclui-se sempre no âmbito do poder paternal e é uma sub-espécie do poder-dever de educar. A doutrina vem admitindo a transferência desse direito mas apenas para pessoas próximas da criança e que gozem da confiança pessoal dos pais o que torna discutível a transmissão desse direito para a escola ou infantário, sendo certo que é de afastar a existência de um direito de castigo pessoal por parte dos professores [[xxii]] e, ainda menos por parte de auxiliares de educação.  
Na perspectiva da nossa lei penal, importa afastar também a hipótese de consentimento como causa de exclusão da ilicitude, já que no caso dos autos não houve nem ficou demonstrado qualquer consentimento expresso ou tácito dos pais dos menores a que a arguida os castigasse (art. 38º nº 1 do Código Penal).
Face ao supra exposto não se vislumbra que o acórdão recorrido tenha violado o disposto nos art.s 13º, 14º, 152º e 152º-A do Código Penal.
Obrigação de indemnizar; montante arbitrado
A Recorrente questionava a existência da obrigação de indemnizar por considerar que a sua conduta não era dolosa. Visto que este Tribunal considera, tal como o tribunal a quo que a conduta da arguida foi dolosa, é patente que a sua tese não procede.
De igual forma, o valor de cada uma das indemnizações foi fixado ponderando que “as acções agressivas da arguida prolongaram-se durante cerca de 4 meses e de forma repetida. Acções que deixaram um lamentável rasto de sequelas psíquicas e psicológicas nos ofendidos; em suma, acções que, pela sua natureza e reiteração, foram evidentemente traumáticas do ponto de vista físico e psicológico. Atentos os factores acima referidos, considera-se equitativo arbitrar aos menores .........., ........... e ............ a indemnização de, respectivamente, 2.500, 2.000 e 1.500 euros, acrescidos de juros de mora vincendos à taxa legal.
O art. 496º do CC prevê que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Tal gravidade deve medir-se por um padrão objectivo e não à luz dos factores subjectivos (uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada na expressão do Professor Antunes Varela).
Essa operação foi efectuada de forma equilibrada e ponderada pelo tribunal a quo, mostrando-se adequadas as indemnizações arbitradas, que tiveram em conta a gravidade das imputações e a perturbação e transtornos sofridos.
III – DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação, em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a decisão recor

[i] Não existe alínea E) nas conclusões apresentadas.
[ii] Com algumas especificidades no que respeita à impugnação da matéria de facto, como afirma o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005 “a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões. Perante esta margem de indefinição legal, e tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou a Relação conhecia da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convidava o recorrente a corrigir aquelas conclusões” (proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577, no mesmo site). Esta posição mantém a sua actualidade com a versão introduzida pela Lei 48/07 de 29.8 ao Código de Processo Penal que manteve a divergência entre a redacção dos nºs 2 e 3 do art. 412º do Código de Processo Penal.
[iii] Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., pg. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pg. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pg. 77 e ss.
[iv] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.05.1998, Proc. nº 98P212, em www.dgsi.pt.
[v] Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pg. 69.
[vi] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2.ª ed., pg. 340 e ss.
[vii] Germano Marques da Silva, ob. cit., pg. 341 e ss. e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.10.96, Proc. nº 045267, www.dgsi.pt.
[viii] Assinada por Portugal a 26 de Janeiro de 1990 e aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12 de Setembro. Ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, da mesma data. Ambos os documentos se encontram publicados no Diário da República, I Série A, n.º 211/90. O instrumento de ratificação foi depositado junto do Secretário-Geral das Nações Unidas a 21 de Setembro de 1990.
[ix] Roxin, Derecho Penal – Parte General, T. I, 2ª ed. Editorial Civitas, 1997, pg. 752.
[x] Neste sentido, também, Jakobs, Derecho Penal – Parte General, Madrid, Marcial Pons, Ediciones Juridicas, 1997, pg. 562
[xi] Proc. 06P468, disponível em www.dgsi.pt. Este acórdão foi, aliás, alvo de alguns órgãos de comunicação social. 
[xii] Como se afirma no acórdão em apreço, “um só acto pode, efectivamente, implicar para a pessoa visada (e pensamos em especial nos menores) violação intensa e perene da sua integridade psíquica. Todos sabemos, p. ex., de gaguezes que ficam após um único acto atingidor da pessoa”.
[xiii] Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, T I, pg. 214.
[xiv] Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, T I, pg. 330.
[xv] Sustenta a necessidade de reiteração, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, T I, pg. 334, defende que há condutas tão graves que mesmo sem reiteração podem significar a existência de maus-tratos; no sentido de que não basta uma acção isolada mas também não se exige a habitualidade, Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 1996, 2º vol., pg. 182; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.7.08, no proc. 07P3861 resenha as posições em confronto e a corrente jurisprudencial cuja interpretação veio a ser acolhida pela lei, que foi sustentando que em casos de especial violência, uma única agressão seria bastante para preencher o tipo legal: acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.11.1997, Proc. n.º 1225/97 - 3.ª (CJSTJ, 1997, tomo 3, pág. 235 e ss.), de 17.10.1996 (CJSTJ, 1996, tomo 3, pág. 170), de 4.2.2004, Proc. n.º 2857/03 - 3.ª, de 5.4.2006, Proc. n.º 468/06 - 3.ª, e de 6.4.2006, Proc. n.º 1167/06 - 5.ª (CJSTJ, 2006, tomo 2, pág. 166 e ss.),  ,    
[xvi] No relatório “Report Card 5” do Centro de Investigação Innocenti da UNICEF, de Setembro de 2003, que faz a análise comparativa dos maus-tratos infantis nos países ricos, Portugal surge no topo da tabela, com uma taxa de incidência de mortes de crianças devidas a maus tratos trinta e sete vezes maior do que o país com menor incidência.  
[xvii] Para mudar este estado de coisas urge criar uma cultura de não violência para com as crianças, de construção de uma barreira de consciencialização social e individual que afirme ser totalmente inaceitável em qualquer circunstância os adultos expressarem a sua vontade ou as suas frustrações na linguagem da violência, como se pode ler naquele Report Card, pg. 22 (em tradução livre da responsabilidade do Relator). Alguns Estados têm, aliás, leis que proíbem expressamente a agressão a crianças.
[xviii] Essa disseminação resulta da transmissão geracional desses comportamentos – criança maltratada tende a, como adulto, infligir maus-tratos – e da facilidade com que se vulgariza – a palmada que pontua um comportamento desadequado até como forma de o parar passa a ser a forma mais habitual de relacionamento com a criança (a propósito, “Direitos das Crianças e Jovens – Actas do Colóquio”, ISPA/CEJ, pg.s 228 a 233)  
[xix] Durkheim, Sociologia, Educação e Moral, Porto, Rés Editora, 1984, pg. 303, é contra os castigos corporais na escola. Para ele, como os objetivos da educação moral consistem em transmitir à criança o sentimento de sua dignidade de homem, as penas corporais se tornam perpétuas ofensas a esse sentimento e têm um efeito desmoralizador. “Não só não se deve bater, como também se deve proibir qualquer castigo susceptível de prejudicar a saúde da criança”.
[xx] Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, T I, pg.s 214 e 216 e Teresa Quintela de Brito citada por Sá Pereira e A. Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, pg. 380
[xxi] Ob. cit., pg. 752
[xxii] Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, T I, pg. 216