Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00007/05.1BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/09/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:PAULO MOURA
Descritores:IVA;
FACTOS;
INDÍCIO DE FATURAÇÃO FALSA
Sumário:
A Administração Tributária deve recolher indícios sérios e suficientes da existência de faturação falsa e não limitar-se a emitir alegações genéricas e conclusivas sobre determinada transação, para concluir que essa transação não correspondia a um negócio real e verdadeiro.
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

A FAZENDA PÚBLICA, interpõe recurso da sentença que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por «AA», contra a liquidação adicional de IVA e juros compensatórios do ano 2000, no valor de € 14.042,01, por entender que a sentença não fez a devida avaliação da prova.

Formula nas respetivas alegações as seguintes conclusões que se reproduzem:
A. - A Fazenda Pública não se conforma com a douta sentença, que considera não ter a Administração Tributaria carreado indícios suficientes, sérios e objectivos de que as facturas não titulam operações efectuadas pela emitente das mesmas e que ocorreu simulação relativa subjectiva.
B. - Igualmente não se conforma que na douta se sentença se tenha concluído que "no que toca às provas produzidas designadamente a documental e testemunhal, .... que o impugnante logrou provar a factualidade alegada e infirmou as conclusões da Administração Tributária".
C. - A douta sentença de que se recorre não fez a devida análise dos documentos juntos ao relatório de inspecção, nem fez a devida subsunção dos factos ao direito.
D. Sob pena de violação de sigilo fiscal, a Administração Tributaria, não levou ao relatório a totalidade da informação que detinha sobre a emitente [SCom01...], mas detinha efectivamente, informação relevante, sobre esta empresa, e de que esta fazia parte de uma rede de fraude fiscal no sector automóvel.
E. Com efeito, nas averiguações a que procedeu, foram detectados diversos factos e situações, para além de incumprimento fiscal, tendo-se chegado à conclusão de que as facturas por ela emitidas não traduzem uma transacção efectiva de bens, antes uma simulação com o fim de iludir a arrecadação do IVA na importação de veículos automóveis.
F. Na contabilidade do impugnante constavam as facturas nº. 3 de 28/07/2000 no montante de 7.075.000$00 (35.289, 95€) e nº. A009, de 29/09/2000, no montante de 12.299.999$00 (61.352,14€), emitidas pela empresa [SCom01...], Ldª.
G. Dos documentos apresentados pelo Impugnante para sustentação dessas facturas, verificou-se a existência de sérios indícios de simulações.
H. Dos documentos juntos àquele relatório, consta um auto de declarações do impugnante, uma declaração passada pela [SCom02...] para compra do dístico e apresentação às autoridades, sobre o veículo ..-..-0B, requerimentos declaração para registo de propriedade, de ambos os veículos, e as facturas em causa, onde é possível verificar, que tais facturas não correspondem às operações que titulam.
I. Desses documentos, ressaltam claramente indícios sérios e suficientes, que em conjunto com a restante informação recolhida permitem concluir que tais facturas não traduzem as reais operações subjacentes.
J. Por outro lado, quer a prova documental junta pelo Impugnante aos autos, quer a prova testemunhal produzida, não infirmam as conclusões obtidas pela Administração Fiscal.
K. Na realidade, quer pela prova testemunhal produzida, quer pelo auto de declarações elaborado à data da inspecção, verifica-se que nunca existiu qualquer negociação para aquisição de veículos, entre o Impugnante e a [SCom01...].
L. Nem o Impugnante conheceu qualquer representante daquela empresa, nem as testemunhas inquiridas a conheciam.
M. O Impugnante sempre negociou para a compra de carros com o Stand [SCom02...], e foi a esta empresa que adquiriu as duas viaturas em causa, sendo este também que as testemunhas conheciam.
N. As facturas em nome da [SCom01...] para os veiculas que havia negociado com a [SCom02...], foram-lhe entregues pelo sócio-gerente desta e não lhe fez qualquer oposição, ou surgiu qualquer dúvida.
O. Em auto de declarações, referiu não conhecer a [SCom01...], nem nunca com ela ter contratado.
P. São apresentados dois cheques para pagamento das facturas, que porém não provam o verdadeiro beneficiário dos montantes inscritos, nem comprovam a totalidade do pagamento das facturas.
Q. Nos requerimentos para apresentação na respectiva Conservatória para registo de propriedade, verifica-se que para um dos carros aparece como vendedora a [SCom01...] e para outro a empresa [SCom03...].
R. Na realidade, a [SCom01...] servia para encobrir os verdadeiros contratantes, e que ao Impugnante não foi estranho o envolvimento, uma vez que negociou com a [SCom02...], mas aceitou a facturação pela [SCom01...].
S. A Administração recolheu sérios, reais e fortes indicias de que as facturas em causa não titulavam a real substancialidade do negócio, tanto quanto aos sujeitos como quanto ao preço.
T. O Impugnante não apresentou prova documental ou testemunhal que legitimasse o seu direito à dedução do IVA nelas inscrito.
U. Sendo certo que tal prova lhe cabia nos termos do artº. 19°. N°. 3 e 4 do CIVA.
V. A douta sentença de que se recorre não fez a devida subsunção do direito aos factos, pelo que não pode manter-se, encontrando-se violados os artº. 74°. N°.1 da LGT, artº. 19°. N°.3 e artº.35°. ambos do CIVA.

Termos em que
Deve ser revogada a sentença de que se recorre, e a presente impugnação ser julgada totalmente improcedente, mantendo-se a liquidação efectuada com as legais consequências.

O Impugnante apresentou contra-alegações, tendo concluído pela improcedência do recurso.

Dada vista ao Ministério Público, o mesmo apôs o seu visto.

As partes foram ouvidas para os termos do artigo 665.º do CPC, ou seja, para possível conhecimento em substituição, em caso de eventual provimento do recurso, tendo apenas a Recorrida se pronunciado, no sentido de a sentença ser mantida na ordem jurídica.

Foram dispensados os vistos legais, nos termos do n.º 4 do artigo 657.º do Código de Processo Civil, com a concordância das Exmas. Desembargadoras Adjuntas, atenta a disponibilidade do processo na plataforma SITAF (Sistema de Informação dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

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Delimitação do Objeto do Recurso – Questões a Decidir.

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respetivas conclusões [vide artigos 635.º, n.º 4 e 639.º CPC, ex vi alínea e) do artigo 2.º, e artigo 281.º do CPPT] são as de saber se estão verificados os indícios de que as operações tituladas por duas faturas, correspondem a uma efetiva transação de bens.
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Relativamente à matéria de facto, o tribunal, deu por assente o seguinte:
MATÉRIA DE FACTO PROVADA COM RELEVÂNCIA PARA A DECISÃO:
1 - O impugnante foi objecto de uma acção inspectiva por parte dos Serviços de Inspecção Tributária do ....
2 - Em consequência da mesma, foi o impugnante notificado do projecto de correcções no âmbito da referida inspecção, cfr. fls. 47 a 49 destes autos e que aqui se dão por reproduzidas, mas cujos extractos do mesmo a seguir se transcrevem: "O sujeito passivo deduziu IVA nos períodos de 0009T e 0012T nos montantes de (…) com base nas facturas nº 3, de 28.07.00 e nº A 9 de 29/09/00 emitidas pela empresa [SCom01...], Unipessoal, Lda. (…) havendo fortes indícios de que as operações tituladas pelas facturas emitidas pela [SCom01...] não traduzem uma transacção efectiva de bens, mas antes uma simulação, com o fim de iludir a arrecadação do IVA, na importação de veículos automóveis, considera-se que foi deduzido indevidamente, por «AA», o IVA constante das referidas facturas, conforme nº 3 do artº 19º do código do IVA."
3 - O impugnante exerceu o direito de audição e posteriormente foi notificado do relatório final nos termos constantes de fls. 50 a 53 e que aqui se dão por reproduzidas.
4 -O impugnante no âmbito da sua actividade de comerciante de veículos automóveis contactava a empresa [SCom02...], para com esta realizar negócios de compra e venda de veículos.
5 - Em Julho de 2000 o impugnante adquiriu o veículo BMW 320D de matrícula ..-..-QB.
6 - O referido negócio encontra-se titulado pela factura nº 3 e constante destes autos a fls. 57 e que aqui se dá por reproduzida.
7 - A factura identificada em 6) foi emitida pela empresa [SCom01...], Lda.
8 - Para pagamento da factura referida em 6), o impugnante emitiu o cheque no valor de esc: 7.075.000$00, cfr. fls. 58 e que aqui se dá por reproduzida.
9 - O cheque referido em 8), foi descontado no Banco 1..., cfr. fls. 60 e que aqui se dá por reproduzida.
10 - O veículo automóvel foi posteriormente facturado à empresa [SCom04...] (empresa de leasing), cfr. fls. 61 e 62 e que aqui se dão por reproduzidas.
11-Em 29.09.2000 o impugnante adquiriu o veículo automóvel de marca Toyota H 100 CH ...78.
12 - Na mesma data, foi emitida a factura nº A 9, onde consta como comprador o impugnante e como vendedora a empresa [SCom01...], cfr. fls. 64 e que aqui se dá por reproduzida
13 - A declaração de importação relativamente ao veículo referido em 11), foi emitida em nome da [SCom01...], cfr. fls. 63 e que aqui se dá por reproduzida.
14 - Para pagamento da factura referida em 12), o impugnante emitiu o cheque no valor de esc: 11.700.000$00, cfr. fls. 65 e que aqui se dá por reproduzida.
15 - O cheque referido em 14), foi descontado no Banco 1..., cfr. fls. 66/67 e que aqui se dá por reproduzida.
16 - Dá-se aqui por reproduzido o documento nº 17 junto com a petição inicial.
17 - O veículo automóvel foi posteriormente facturado à empresa [SCom05...], Sa. (empresa de leasing), cfr. fls. 69 a 73 e que aqui se dão por reproduzidas.
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Alicerçou-se a convicção do Tribunal na consideração da matéria de facto dada como assente, nos factos alegados e não impugnados, no teor dos documentos identificados e não impugnados e no depoimento das testemunhas.

FACTOS NÃO PROVADOS:
Inexistem com interesse para a presente decisão.

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Aditamento à matéria de facto

Atento o teor do recurso, ao abrigo do artigo 712.º do anterior Código de Processo Civil (considerando o facto de a sentença e o recurso terem sido realizados ao abrigo do anterior CPC), por se considerar pertinente e por ser de conhecimento oficioso o que consta do Relatório de Inspeção, adita-se ao probatório o teor integral do Relatório de Inspeção:
18 – O Relatório de Inspeção apresenta o seguinte conteúdo integral:
«1 - DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORRECÇÕES PROPOSTAS
O sujeito passivo deduziu IVA, nos períodos de 00 09T e 00 12T, nos montantes de, respectivamente, 5.127,60€ e 8.914,41€ com base nas facturas n° 3, de 28/07/00, e nº A 9, de 29/09/00, emitidas pela empresa [SCom01...], Unipessoal, Lda., NIPC ...93.
Havendo fortes indícios de que as operações tituladas pelas facturas emitidas pela [SCom01...] não traduzem uma transacção efectiva de bens, mas antes uma simulação, com o fim de iludir a arrecadação do IVA, na importação de veículos automóveis, considera-se que foi deduzido indevidamente, por «AA», o IVA constante das referidas facturas, conforme nº 3 do art° 19° do código do IVA.
2 - INFRACÇÕES
Dedução indevida de IVA, infracção ao artº 19°, nº 3 do código do IVA, punida pelo artº 23° do RJIFNA.
O auto de notícia vai ser levantado em sede do emitente das facturas.
3 - DIREITO DE AUDIÇÃO, FUNDAMENTAÇÃO
O sujeito passivo foi notificado, nos termos dos art°s 60° da L.G.T. e 60° do RCPIT, de que poderia exercer o direito de audição sobre o projecto de correcções. No seguimento da referida notificação, o mesmo compareceu neste Serviço, a fim exercer o seu direito de audição, tendo sido lavrado termo de declarações, sendo de salientar o seguinte:
"Que adquiriu as viaturas em causa (Toyota, ..-..-QJ, e BMW, ..-..-QB) à empresa [SCom02...], Lda., sediada em ..., representada pelo Sr. «BB», residente na rua ..., ... ..., com os telefones ...91 e ...45, sendo este Sr. que recepcionou a encomenda e entregou as viaturas em causa, cf. documento por ele assinado.
Quando efectuou a compra estava convencido que o vendedor era a firma [SCom02...], posteriormente foram-lhe entregues, pelo já referido representante da [SCom02...], as facturas em nome da [SCom01...], continuando até hoje convencido que tal firma pertence ao "grupo" [SCom06...]. Esta pessoa é pai do representante da [SCom02...], «BB», sendo também sócio.
Das declarações do sujeito passivo, bem como pela declaração, em papel timbrado da [SCom02...], que foi entregue pelo vendedor ao sujeito passivo para compra do dístico e apresentação às autoridades, depreende-se que: o negócio foi efectuado entre o sujeito passivo e o Sr. «BB» (representante da [SCom02...]); a empresa [SCom01...] não realizou qualquer negócio com o sujeito passivo, e terá, apenas, sido utilizada pelo verdadeiro vendedor, para efeitos de facturação (visando a não entrega nos cofres do Estado do IVA liquidado).
Atento o exposto, é nossa convicção que os elementos carreados para o processo pelo sujeito passivo no exercício do seu direito de audição, vêm corroborar a posição aventada no projecto de relatório de que as facturas emitidas pela [SCom01...] não traduzem um negócio realizado entre as partes delas constantes ([SCom01...] e «AA»).»

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Apreciação jurídica do recurso.

Alega a Recorrente que as liquidações adicionais, foram efetuadas, por correções meramente aritméticas, relativas ao ano de 2000, tendo por base duas faturas emitidas pela empresa «[SCom01...], Unipessoal, Lda.» e que, conforme consta do Relatório de Inspeção e documentos anexos, verificam-se situações que indiciam não corresponderem tais faturas a uma transação efetiva de bens, na medida em que não existe correspondência entre a identificação dos intervenientes na transação titulada pelas faturas, tanto os que efetivamente intervieram na transação, como os que constam como reais vendedor e comprador no requerimento para efeitos de registo da propriedade, pelo que não pode ser aceite a dedução do imposto delas constante, de acordo com o disposto no n.º 3 do art.º 19.º do CIVA.
Mais alega a Recorrente que a «[SCom01...]», fazia parte de uma rede de fraude fiscal no setor automóvel, tendo sido detetadas diversas situações de incumprimento fiscal e que tal situação não podia ser revelada ao Impugnante, nem plasmada no Relatório de Inspeção, sob pena de infração do dever de sigilo fiscal, pelo que apenas os factos detetados nos elementos da contabilidade da Impugnante, os detetados nas averiguações a que se procedeu, e a audição dos seus responsáveis podiam constar do referido relatório e dele fazendo parte integrante e fundamentam das correções efetuadas.
Alega, igualmente, a Recorrente, ainda que o Relatório seja exíguo de texto, os documentos a ele anexos, nomeadamente as faturas, as cartas, os títulos de registo de propriedade, e os requerimentos para registo de propriedade colhidos junto da respetiva Conservatória, falam por si, bem como o auto de declarações colhido do impugnante, sendo certo que da prova produzida pelo Impugnante nada resultou de concreto quanto à substancialidade das faturas.
Refere a Recorrente que entre a «[SCom01...]» e o Impugnante não existiu qualquer negócio, ou transação, já que este foi efetuado com o Sr. «BB» em representação da «[SCom02...]», e o Impugnante, tendo a «[SCom01...]» sido apenas utilizada pelo verdadeiro vendedor para efeitos de faturação, visando a não entrega nos cofres do Estado do IVA liquidado, já que esta empresa nunca entregou ao Estado o imposto liquidado. Dos depoimentos testemunhais, não resultou prova que permitisse aferir a substancialidade das faturas.
Refere, ainda, a Recorrente que não existe correspondência entre os intervenientes na transação titulada pelas faturas, e aqueles que efetivamente intervieram na transação, e constam como reais vendedor e comprador no requerimento para efeitos de registo da propriedade, não têm substancialidade tais faturas, não podendo ser aceite a dedução do imposto delas constante, de acordo com o disposto no n.º 3 do art.º 19.º do CIVA, sendo, devido o imposto ao Estado, pela importância indevidamente deduzida.
Alega, ainda, que quanto ao veiculo «..-..-OB», o Impugnante apresentou cópia de um cheque no montante de 35.289,95€ (7.075.000$00) correspondente ao valor da fatura, mas que só por si não prova o real pagamento, apenas que foi descontado, já que não ficou identificado o verdadeiro beneficiário.
No que concerne ao veiculo «..-..-0J», diz que o sujeito passivo, apresenta cópia de um cheque de 58.359,35€ para comprovar o pagamento da fatura de 61.352,14€, e não comprova o restante pagamento, mas a «[SCom01...]» emite recibo pelos mesmos 61.352,14€.
Refere a Recorrente que o Impugnante afirma que transmitiu os veículos a outras entidades, mas nos requerimentos para registo de propriedade, é a «[SCom01...]» e a «[SCom03...]» que aparecem como vendedoras dos respetivos veículos, e não o Impugnante.
Diz a Recorrente que a Impugnante não fez prova nem apresentou elementos que afastassem a dúvida fundada e razoável de que não existiu entendimento entre o Impugnante e a «[SCom01...]» de modo a simular aquisições que mediassem posteriores contratos de leasing, no intuito de apropriação ilícita do IVA incluído nas faturas relativas a essas operações.
Refere que, quanto à falta ou deficiente fundamentação da liquidação, cumpre dizer, que o Impugnante, percebeu e identificou as operações meramente aritméticas efetuadas que levaram ao Imposto liquidado e agora exigido, e isso é evidente tanto na petição da reclamação graciosa apresentada, como na petição de impugnação agora aqui a ser discutida.

A sentença recorrida julgou a impugnação procedente, com o seguinte discurso fundamentador:
«Da matéria de facto dada como assente, verificamos que os factos apurados em sede de inspecção tributária, são apenas e só, os que constam do relatório e que são os seguintes: "O sujeito passivo deduziu IVA nos períodos de 0009T e 0012T nos montantes de (…) com base nas facturas nº 3, de 28.07.00 e nº A 9 de 29/09/00 emitidas pela empresa [SCom01...], Unipessoal, Lda. (…) havendo fortes indícios de que as operações tituladas pelas facturas emitidas pela [SCom01...] não traduzem uma transacção efectiva de bens, mas antes uma simulação, com o fim de iludir a arrecadação do IV A, na importação de veículos automóveis, considera-se que foi deduzido indevidamente, por «AA», o IVA constante das referidas facturas, conforme nº 3 do artº 19º do código do IVA."
No entanto, estas conclusões não são suportadas por um único facto que respeite ao impugnante e que permita, ainda que indiciariamente, dizer que entre o impugnante e a [SCom01...] foi feito um acordo simulatório com vista a enganar terceiro, artº 240º do C.C.
Por outro lado, o impugnante fez prova de que pagou o valor das facturas à "[SCom01...]", e que as mesmas consubstanciam um negócio de compra e venda de veículos automóveis.
Para além disso, extrai-se do depoimento prestado pela Exma. Inspectora das Finanças, que as operações subjacentes às facturas em causa ocorreram.
Conclui-se assim, que a administração tributária não conseguiu minimamente provar os pressupostos de facto que a legitimaram a corrigir as liquidações de IV A, ou seja, não carreou para os autos indícios suficientes, sérios e objectivos de que as facturas não titulam operações efectuadas pela emitente das mesmas e que ocorreu simulação relativa subjectiva.
E por outro lado, e no que toca às provas produzidas, designadamente a documental e testemunhal, temos de concluir que o impugnante logrou provar a factualidade alegada e infirmou as conclusões da Administração Fiscal.
Face ao acima descrito, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.».

Apreciando.
Em primeiro lugar, compete referir que a Recorrente em relação à prova testemunhal, não cumpre o ónus de indicar as passagens da gravação que eventualmente permitam infirmar os juízos realizados na sentença, com base nos depoimentos, conforme impunha o artigo 685.º-B, n.º 1, alínea b) do anterior Código de Processo Civil (que é o aplicável, na medida em que o recurso foi interposto antes da vigência do novo CPC). Assim, no que concerne à prova testemunhal, o recurso não pode ser apreciado, pelo que nessa parte vai rejeitado, nos termos do disposto no artigo 685.º-B, n.º 2 do anterior CPC.
No que concerne à prova documental, diz a Fazenda Pública que do Relatório e dos seus anexos, nomeadamente as faturas, as cartas, os títulos de registo de propriedade e os requerimentos de registo de propriedade, bem como o auto de declarações do Impugnante, constam sérios indícios de simulação que estiveram na base na desconsideração das faturas e das correções efetuadas pela Administração Fiscal.
Relativamente a este aspeto, compete referir que a Recorrida não indica os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, conforme impunha a alínea b) do n.º 1 do artigo 685.º-B do anterior Código de Processo Civil. Portanto, a Recorrente faz um recurso genérico sobre a factualidade, não indicando quais os pontos do probatório que pretende que sejam eliminados ou alterados. O que significa que, em princípio, se deve considerar estabilizada a matéria de facto, tal como foi vertida na sentença recorrida.
Apenas assim não o será, na medida em que sendo o Relatório de Inspeção e documentos que o acompanham (anexos) são elementos de conhecimento oficioso, pelo que sempre poderão ser analisados pelo Tribunal, mesmo que a Recorrente não indique as concretas páginas em que se encontram os documentos a que alude nas suas alegações e se conclua pelo desacerto do julgado, em algum ponto concreto em que se detete esse desacerto.
Está em apreço saber se a Administração Tributária demonstrou a existência de indícios suficientes de que as duas faturas em apreço, não titulavam verdadeiras transações.
Com efeito tem a jurisprudência do STA, nomeadamente, no acórdão n.º 0591/15 de 17.02.2016, do Pleno da Secção de Contencioso Tributário, entendido que:
“(…) I - Para que a AT, ao abrigo do disposto no nº 3 do art. 19º do CIVA, obste à dedução do IVA mencionado em facturas existentes na escrita do contribuinte e relativamente às quais considera não se terem efectivamente realizado as operações nelas consubstanciadas, não tem de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros – cfr. art. 240º do CCivil) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende.
III - Basta à AT provar a factualidade que a levou a não aceitar a respectiva dedução de imposto, factualidade essa que tem de ser susceptível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respectivos documentos de suporte, só então passando a competir ao contribuinte o ónus de prova do direito de que se arroga (o de exercer o direito à dedução do IVA) e que não é reconhecido pela AT, ou seja, o ónus de prova de que as operações se realizaram efectivamente e ocorrem os pressupostos de que depende o seu direito àquela dedução.

Por sua vez, a jurisprudência do TJUE vem afirmando que o direito à dedução de IVA apenas pode ser recusado depois de se apurar, através de elementos objetivos, que o sujeito passivo sabia ou podia saber que a operação em causa fazia parte de uma fraude cometida pelo vendedor (Cfr. processos apensos C-80/11 E C-142/11, de 21/06/2012 e 06/12/2012, respetivamente).
Assim, é jurisprudência uniforme e reiterada e espelhada no proc. C-285/11 – Bonik EOOD que: “(...) 37. Assim, compete às autoridades e aos órgãos jurisdicionais nacionais recusar o direito a dedução se se demonstrar, à luz de elementos objetivos, que este direito é invocado fraudulenta ou abusivamente (v. acórdãos, já referidos, Fini H, n.o 34; Kittel e Recolta Recycling, n.o 55; e Mahagében e Dávid, n.o 42).
38. É o que acontece quando o próprio sujeito passivo comete uma fraude fiscal. Com efeito, neste caso, os critérios objetivos nos quais se baseiam os conceitos de entregas de bens ou de prestações de serviços efetuadas por um sujeito passivo agindo nessa qualidade e de atividade económica não estão cumpridos (v. acórdãos, já referidos, Halifax e o., nºs 58 e 59, e Kittel e Recolta Recycling, n.o 53).
39. Do mesmo modo, um sujeito passivo que sabia ou deveria saber que, com a sua aquisição, participava numa operação que fazia parte de uma fraude ao IVA deve, para efeitos da Diretiva 2006/112, ser considerado participante nessa fraude, independentemente da questão de saber se retira ou não benefícios da revenda dos bens ou da utilização dos serviços no quadro das operações tributadas que efetuou a jusante (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Kittel e Recolta Recycling, n.o 56, e Mahagében e Dávid, n.º 46).
40. Daqui resulta que o direito a dedução só pode ser recusado a um sujeito passivo se, à luz de elementos objetivos, se demonstrar que este sujeito passivo, ao qual foram fornecidos os bens ou prestados os serviços que estão na base do direito a dedução, sabia ou deveria saber que, ao adquirir estes bens ou estes serviços, participava numa operação que fazia parte de uma fraude ao IVA cometida pelo fornecedor ou por outro operador a montante ou a jusante na cadeia destes fornecimentos ou destas prestações (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Kittel e Recolta Recycling, n.os 56 a 61, e Mahagében e Dávid, n.º 45)
41. Em contrapartida, não é compatível com o regime do direito a dedução previsto na referida diretiva recusar esse direito a um sujeito passivo que não sabia nem poderia saber que a operação em causa fazia parte de uma fraude cometida pelo fornecedor ou que outra operação incluída na cadeia de fornecimento, anterior ou posterior à realizada pelo referido sujeito passivo, era constitutiva de uma fraude ao IVA (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Optigen e o., n.os 52 e 55; Kittel e Recolta Recycling, n.os 45, 46 e 60; e Mahagében e Dávid, n.º 47).
42. Com efeito, a instituição de um sistema de responsabilidade objetiva ultrapassaria aquilo que é necessário para preservar os direitos da Administração Fiscal (v. acórdão Mahagében e Dávid, já referido, n.o 48).
43. Consequentemente, uma vez que a recusa do direito a dedução é uma exceção à aplicação do princípio fundamental que constitui este direito, incumbe às autoridades fiscais competentes fazer prova bastante dos elementos objetivos que permitam concluir que o sujeito passivo sabia ou deveria saber que a operação invocada para fundamentar o direito a dedução fazia parte de uma fraude cometida pelo fornecedor ou por outro operador interveniente a montante ou a jusante da cadeia de fornecimento (v. acórdão Mahagében e Dávid, já referido, n.º 49). (…)”

No seguimento destes ensinamentos, verifiquemos, então, se estão preenchidos os pressupostos para que a Administração Tributária tenha logrado carrear para o procedimento de inspeção os indícios suficientes, para se poder concluir pela falta de veracidade das faturas em apreço.
Conforme se pode ver pela matéria de facto acima aditada, ou seja, a transcrição da integralidade do Relatório de Inspeção Tributária, consideramos que se deve manter o julgamento efetuado em primeira instância.
Assim, o Relatório de Inspeção, transcreve as declarações do sujeito passivo e logo de seguida conclui que este não realizou nenhum negócio com a empresa «[SCom01...]», sem indicar qualquer factualidade que considere indiciar não ter existido um verdadeiro negócio de compra e venda de duas viaturas.
Remete a Fazenda Pública para os documentos anexos ao Relatório de Inspeção, pretendendo com isso afirmar que estão demonstrados os indícios de que não se trataram de verdadeiras transações comerciais.
Ora, os documentos em anexo ao Relatório de Inspeção Tributária, constam de fls. 63 a 83 dos Autos de Reclamação Graciosa e correspondem a cartas, títulos de registo de propriedade, recibos e aos requerimentos de registo de propriedade, bem como o auto de declarações do Impugnante.
Não obstante aquele acervo de documentos, nunca o Relatório de Inspeção explicou a importância de cada um deles para a formação da convicção de que estavam em causa duas transações fictícias. Ou melhor, referiu-se apenas a um papel timbrado da empresa «[SCom02...]», para depreender que o negócio não foi efetuado com a «[SCom01...]». Mas mesmo assim, somos do entendimento que se trata de uma afirmação sem maior suporte, dado tratar-se apenas de um elemento formal e não indica exatamente com quem afinal foi, em concreto, realizado o negócio.
Por sua vez, não pode ser agora a Fazenda Pública a pretender explicar a importância de tais documentos, para a formação da convicção da existência de indícios de que não existe um negócio subjacente às faturas em crise.
Em todo o caso, sempre podemos dizer algo sobre o assunto, como por exemplo, o facto de o Impugnante exercer a atividade de comércio de automóveis, conforme dado por assente no ponto 4. da matéria de facto. Sendo assim, não se afigura de estranhar, que os veículos em apreço não tenham sido registados em nome do Impugnante, pois seriam para vender de imediato (como foram), pelo que mais um registo de propriedade, só por si, desvaloriza o veículo.
Diz, agora, a Fazenda Pública que não se sabe se o cheque foi descontado, mas também nada consta do Relatório de Inspeção, que tenha havido qualquer diligência junto do Banco para apurar quem descontou o cheque ou quem afinal recebeu o valor titulado pelo cheque. A inspeção não cuidou de saber se tinha havido ou não efetivo pagamento das faturas, nem consta que isso tenha sido perguntado ao sujeito passivo. Sendo que, segundo a Impugnante os cheques foram descontados; o que, aliás, foi dado por assente na matéria de facto – factos 9 e 15 do probatório.
No que concerne, à agora alegada diferença de valores entre um cheque e uma fatura, também não consta que tenha sido perguntado ao sujeito passivo (aquando da sua prestação de declarações junto da Inspeção Tributária), o motivo da discrepância, pelo que não se sabe ao certo o que se passou, como por exemplo se eventual diferença foi paga em numerário.
Relativamente à invocação agora efetuada pela Fazenda Pública de que a empresa «[SCom01...]» fazia parte de uma rede de fraude no setor automóvel, também não consta que o sujeito passivo tivesse sido confrontado com essa afirmação, de modo a poder dizer o que tivesse por conveniente, designadamente se sabia ou não de tal alegada situação. Para além disso, não resulta, de forma alguma, do Relatório de Inspeção, que haja algum indício de que o Impugnante tivesse conhecimento de que o emitente das faturas estivesse envolvido num esquema de emissão de faturas falsas. Muito menos existem indícios, de que o Impugnante estivesse envolvido em algum sistema de fraude com a emissão de faturas, designadamente, em relação às duas faturas que aqui estão em causa.
Por sua vez, o sujeito passivo, conforme declarações que constam do Relatório de Inspeção, estava convencido que a pessoa que contactou para a compra dos automóveis tinha uma ligação familiar e profissional àquela que lhe emitiu as faturas.
Em face do exposto, verifica-se que os indícios de que a Administração Tributária pretende fazer valer, são deveras débeis, limitando-se a fazer alegações genéricas e conclusivas, sustentadas em raciocínios e suposições, sem serem suportadas em factos concretos e objetivos suficientemente densificados, para que se possa considerar que existam factos índice da existência de faturação falsa, conforme se pode ver pelo teor integral do Relatório de Inspeção acima transcrito na íntegra.
Complete, ainda, referir que a sentença deu como provado (vide pontos 10 e 17 do probatório) que a Impugnante vendeu as viaturas em apreço a duas empresas de Leasing, pelo que, se efetivamente as não tivesse comprado, nunca as poderia ter transmitido àquelas empresas, sobre as quais não foram levantadas dúvidas sobre a aquisição destas viaturas.
Em face do exposto, o recurso não merece provimento.
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No concerne a custas, atenta a improcedência total do recurso, é a Recorrente a responsável pelas custas do recurso – vide artigo 527.º, nos. 1 e 2 do e 529.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
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Nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte sumário:
A Administração Tributária deve recolher indícios sérios e suficientes da existência de faturação falsa e não limitar-se a emitir alegações genéricas e conclusivas sobre determinada transação, para concluir que essa transação não correspondia a um negócio real e verdadeiro.
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Decisão
Termos em que, acordam em conferência, os juízes da Subsecção Tributária Comum da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
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Custas a cargo da Recorrente.
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Porto, 09 de maio de 2024.

Paulo Moura
Paula Moura Teixeira
Isabel Ramalho dos Santos