Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00032/25.6BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/23/2025
Tribunal:TAF de Braga
Relator:MARIA FERNANDA ANTUNES APARÍCIO DUARTE BRANDÃO
Descritores:PROCESSO CAUTELAR DE SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DO ACTO ADMINISTRATIVO PRATICADO PELO INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP QUE DETERMINOU À REQUERENTE A DEVOLUÇÃO DE QUANTIAS;
PERICULUM IN MORA;
NECESSIDADE DE OBSERVAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO, QUE AQUI FOI POSTERGADO;
NECESSIDADE DE SEGUIMENTO DOS ULTERIORES PASSOS PROCESSUAIS COM VISTA À DEMONSTRAÇÃO DO REQUISITO DO PERICULUM IN MORA, PREVISTO NO N° 1 DO ARTIGO 120° DO CPTA, QUE TEM DE SE VERIFICAR CUMULATIVAMENTE COM O FUMUS BONI IURIS;
ATENDIBILIDADE DA PRETENSÃO DEDUZIDA.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
«AA» deduziu contra o Instituto da Segurança Social, I.P., ambos melhor identificados, processo cautelar de suspensão da eficácia do acto administrativo que determinou a obrigação de devolução do montante de € 37.540,00.
Por sentença proferida pelo TAF de Braga foi julgado improcedente o processo cautelar e, em consequência, recusada a concessão da providência solicitada.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, a Requerente formulou as seguintes conclusões:
1. Estatui o artigo 3°, n.° 3, do C. Processo Civil ex vi art.° 1° do C.P.T.A., que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”;
2. A Requerente foi notificada da Oposição e da junção do Processo Administrativo Instrutor em 18/02/2025, mediante notificação electrónica remetida pela Ilustre Mandatária da Entidade Requerida, sem qualquer intervenção do Tribunal;
3. Decorridos apenas três (!) dias, ou seja, em 21/02/2025, o Tribunal proferiu sentença sem que a Requerente tivesse a oportunidade de, sequer no prazo mínimo de cinco dias, se poder pronunciar sobre a Oposição deduzida ou sem que pudesse analisar o Processo Administrativo no referido prazo e se pronunciar sobre o mesmo, ao arrepio do princípio do contraditório;
4. Quanto às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respetiva admissão, como da sua força probatória (cfr. art.° 415° n.° 2, in fine do C.P.C.).
5. O que não sucedeu, in casu, em clara violação do princípio do contraditório, não tendo, de igual modo, sido invocada na sentença a quo a manifesta desnecessidade em dar cumprimento ao mesmo;
6. A falta de cumprimento do contraditório (ínsito no art.° 3° n.° 3 do C.P.C) por parte do Tribunal a quo, consubstanciada na impossibilidade da Requerente se pronunciar quer sobre a Oposição apresentada, quer sobre o teor do Processo Administrativo Instrutor antes de ser proferida a sentença, reconduz-se à omissão de um acto exigido por lei, por um lado e, por outro, porque aquilo que a Requerente ainda viesse a dizer poderia ser susceptível de influir no exame ou decisão da causa, constitui nulidade processual, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 195° n.° 1 do Código de Processo Civil, que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no art.° 199° do Código de Processo Civil,
7. Tem sido pacificamente aceite pela jurisprudência que a arguição de nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório e da prolação de decisão desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso.
8. Consequentemente, a sentença a quo deverá ser anulada, decorrente da nulidade processual por preterição do princípio do contraditório (cfr. art.° 195° n.° 2 do C.P.C) e ordenada a baixa dos autos, a fim de ser dado integral cumprimento ao princípio do contraditório;
9. A Requerente alegou e concretizou os factos integradores do requisito do periculum in mora (que se encontram vertidos nos art.°s 33°, 36°, 37°, 39°, 40°, 41°, 42°, 43° e 44° do seu requerimento inicial), pretendendo prová-los, designadamente, também através da produção de prova testemunhal, visando demonstrar que a imediata execução do acto suspendendo é susceptível de produzir na sua esfera jurídica prejuízos de difícil, senão impossível reparação, na medida em que ficará impossibilitada de prover ao seu sustento;
10. A prova desses prejuízos era, como é, imprescindível para se proceder à análise do requisito do "periculum in mora", traduzido no fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação previsto no n° 1 do artigo 120° do CPTA, que tem de se verificar cumulativamente com o "fumus boni iuris".
11. No entanto, tal prova enunciada e a cargo da Requerente, foi inviabilizada pelo próprio Tribunal a quo ao proferir sentença nos termos e momento em que o fez, sem permitir a produção da prova testemunhal requerida ou, sequer, sem a emissão de despacho prévio fundamentando a recusa da utilização do visado meio de prova.
12. Em clara violação do disposto no art.° 118° n.° 5 do C.P.TA.
13. O Tribunal a quo não só errou ao inviabilizar a realização de diligências de prova (cfr. artigo 118° n° 5 do CPTA) através da prolação imediata de sentença, sem previamente fundamentar tal recusa,
14. Como incorreu em nulidade processual, decorrente da omissão de ato processual a que devesse haver lugar com influência sobre a decisão da causa (cfr. artigo 195° n° 1 do CPC, ex vi artigo 1° do CPTA), motivadora da anulação da sentença de que ora se recorre;
15. Deverá a sentença ora recorrida ser anulada, ordenar-se a baixa dos autos ao Tribunal a quo, para que aí sejam levadas a cabo as diligências de prova omitidas, com vista a possibilitar à Requerente a prova dos factos que concretamente alegou com vista à demonstração do requisito do periculum in mora;
16. A sentença de que ora se recorre padece de erro manifesto de julgamento quanto à não verificação do requisito do “periculum in mora” por considerar que a alegação que a Requerente apresenta dos factos integradores do mesmo “é uma alegação insuficiente, genérica e conclusiva, sem indicação de factos relevantes suficientes para preenchimento deste pressuposto, pois que não refere se vive sozinha, quem integra o seu agregado familiar, se suporta renda de casa ou vive em casa própria, e não especifica, de forma concreta e objectiva, em que medida a restituição do valor que a Entidade Demandada exige afectará a sua capacidade de suportar as despesas inerentes à sua sobrevivência.”
17. A Requerente invocou que é pobre, auferindo o valor de € 669,10 a título de pensão e não dispondo de qualquer outra fonte de rendimentos ou bens de que se possa fazer valer; que suporta mensalmente despesas com o consumo de água, electricidade, gás, telefone, comunicações, saúde, alimentação, vestuário e outras necessárias ao seu sustento; que o valor da sua pensão é manifestamente insuficiente para assegurar as suas necessidades mais básicas e, nessa medida, sobrevive com a ajuda de familiares e amigos.
18. Tudo isso são factos, não alegações genéricas ou juízos conclusivos, como decidido na sentença recorrida.
19. Factos que a Requerente demonstrou, através da prova documental carreada para os autos (v.g. os documentos 10 a 32, que atestam as invocadas despesas, bem como, extratos bancários, comprovativos da sua situação económico-financeira e da inexistência de outra fonte de rendimento para além da pensão de velhice) e que pretendia demonstrar, através da prova testemunhal, de que o Tribunal a quo fez tábua rasa.
20. O mero pagamento da quantia suspendenda, ainda que em prestações, num máximo legalmente permitido de 150, votará a Requerente a uma existência abaixo do limiar da pobreza, na medida em que à mesma restará apenas a quantia de cerca de € 444,86 (à data de hoje) para sobreviver e fazer face às suas necessidades mais básicas supra elencadas durante a pendência da acção principal.
21. Tal consubstancia um facto concretizador do fundado receio de uma situação de facto consumado ou de prejuízos de difícil reparação;
22. Decorre das regras da experiência comum que tal quantia é manifestamente insuficiente para prover as necessidades mais elementares de um ser humano em Portugal;
23. A sentença recorrida mostra-se, assim, desacertada, precipitada, imponderada e eivada de erro manifesto de julgamento, fruto, quiçá, da extrema celeridade com que foi proferida.
24. Se é certo que uma justiça lenta não é uma justiça justa, uma justiça de tal forma célere que não atente cuidadosamente no alegado pelas partes, nem pondere devidamente os argumentos e as provas trazidos a juízo, que acorra a proferir sentença sem atentar na concreta situação sub judice, mostra-se denegadora da tutela jurisdicional efectiva, ínsita nos art.° 20° e 268° da Constituição da República Portuguesa.
25. Pois que quantidade não se deverá sobrepor à qualidade!!
26. Ao decidir-se como se decidiu, a sentença recorrida padece de erro manifesto de julgamento e incorreu na violação da tutela jurisdicional efectiva, prevista nos art.°s 20° e 268° da C.R.P.
27. O Tribunal a quo incorreu ainda em erro grosseiro de julgamento ao decidir que a Requerente não ofereceu “(...) prova que suporte a sua parca, ou até inexistente, alegação da matéria de facto relevante”, quando, na verdade foi o Tribunal que, com a prolação da sentença ora recorrida no momento e termos em que o fez, impediu que a Requerente produzisse integralmente a sua prova, nomeadamente, a testemunhal;
28. A prova documental carreada para os autos não foi criticamente valorada pelo Tribunal a quo;
29. De uma leitura atenta dos extratos bancários, concatenada com os documentos comprovativos das despesas incorridas com o consumo de água, electricidade, gás, telefone, comunicações, saúde, alimentação, vestuário, etc, facilmente se constata que a Requerente não tem qualquer outra fonte de rendimento que não seja a sua pensão de velhice e que é a mesma quem suporta tais despesas, sendo, assim, o seu agregado familiar composto por si mesma.
30. Ainda que o Tribunal a quo considerasse que a prova documental não era suficiente para provar que a pensão de velhice auferida pela Requerente constitui a sua única fonte de rendimento, ao abrigo do princípio pro actione, ínsito no art.º 7º do C.P.T.A., competia-lhe possibilitar à Requerente a produção de prova testemunhal ou, no mínimo, proferir despacho, convidando a Requerente a apresentar a sua declaração de IRS.
31. Ao proferir sentença sem cuidar de convidar a Requerente a juntar a sua declaração de IRS, o Tribunal a quo errou, incorrendo, assim, na violação do citado princípio pro actione.
32. Resultando verificado o pressuposto do periculum in mora, mostra-se ainda preenchido o do fumus boni iuris, decorrente da probabilidade da sua pretensão formulada na acção principal, em face da caducidade do procedimento administrativo, da omissão de pronúncia e irregularidade de notificação, da falta de fundamentação, do vício de violação de lei, da ofensa ao conteúdo essencial de direitos fundamentais da Requerente e da prescrição da dívida, vícios imputados ao acto suspendendo no requerimento inicial, bem como, na ação principal;
33. Quanto ao critério da ponderação de interesses, verificando-se o confronto entre valores da dignidade da pessoa humana -da Requerente-, enquanto sujeito de benefícios sociais, com direito a uma adequada alimentação, saúde, vestuário, iluminação, aquecimento, comunicação, etc., face ao interesse público da gestão do erário em matéria de providência social, o prejuízo imposto à Requerente é profundamente superior a este último, na medida em que está em causa a sua sobrevivência condigna.
34. Em suma, mostram-se verificados todos os critérios para a adopção da providência cautelar requerida, ínsitos no art.° 120° n.°s 1 e 2 do C.P.T.A.

TERMOS EM QUE,
Sem prejuízo do suprimento, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:

i) ser a douta decisão recorrida revogada, dando-se provimento ao pedido formulado na providência cautelar, ou, subsidiariamente;
ii) ser a mesma anulada, ordenando-se a baixa dos autos ao Tribunal a quo, para que aí seja cumprido o princípio do contraditório, para que o mesmo convide a Requerente a juntar aos autos a sua declaração de IRS e para que sejam levadas a cabo as diligências de prova omitidas, com vista a possibilitar à Requerente da providência a prova dos factos que alegou com vista à demonstração do requisito do periculum in mora.

ASSIM SE FAZENDO A TÃO COSTUMADA
JUSTIÇA!
Não foram juntas contra-alegações.
O Senhor Procurador Geral Adjunto não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.

Fundamentos
De Facto -
Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
a) A Requerente foi casada com «BB», NISS ...07/00 (cfr. PA junto a fls. 277 dos autos);
b) Em 05/01/2008, «BB» faleceu (cfr. PA junto a fls. 277 dos autos);
c) Em 01.02.2008, pela Segurança Social, foi atribuída à Requerente pensão de sobrevivência por morte de «BB» (cfr. PA junto a fls. 277 dos autos);
d) No período decorrido entre o ano de 2011 e 11 de Setembro de 2023, a Autora viveu em união de facto com «CC» (cfr. doc.s nºs 1 e 2 juntos com o r.i.);
e) Em 8/11/2023, a Requerente apresentou junto da Segurança Social, I.P., Distrito de Viana do Castelo, S. A. ..., um pedido de pagamento de prestações por morte, a instituição estrangeira competente, por óbito de «CC» (cfr. doc n.º 3 junto com o r.i. e PA junto a fls. 277 dos autos));
f) Pelo Centro nacional de Pensões, relativamente à Autora, foi proferida a seguinte informação “Verificou-se que a beneficiária (...) se encontrava a viver em união de facto e em simultâneo a receber pensão de sobrevivência por óbito do beneficiário, «BB» (...07/00) (cfr, PA junto a fls. 221 dos autos);
g) Sobre a Informação referida em f) foi proferido o seguinte despacho “Concordo” (cfr. PA junto a fls. 221 dos autos);
h) Por ofício, com data de 26.02.2024, com a ref. ...64, foi a Requerente informada do recebimento indevido da quantia de €16.953,56 e, relativa a pensões pagas no período de Fevereiro de 2011 a Fevereiro de 2024 e para proceder à devolução desta quantia (cfr. doc. 5 junto com r r.i.-que se dá aqui por reproduzido),
i) Em 19/03/2024, a Requerente solicitou à Entidade Requerida que lhe autorizasse a restituição parcelada da quantia de €16.953,56 em prestações mensais não superiores a € 40,00 (cfr. doc. n.º 6 junto com o r.i.);
j) Por Ofício, do Núcleo de Apoio Jurídico - equipa de débitos, com registo de 25.06.2024, a Requerente foi informada que “por ter cessado o direito à pensão de sobrevivência por se encontrar e situação de união de facto o Centro Nacional de Pensões pagou indevidamente o valor de €37.540,05 referentes a pensões de sobrevivência indevidas (...)
tem Vª Exª o prazo de 10 dias para se pronunciar (...)” (cfr. PA junto a fls. 221 dos autos);
k) Em 09.07.2024, a Autora pronunciou-se em sede de audiência prévia (cfr. PA junto de fls. 221 dos autos);
l) Por Ofício, do NAJ-Equipa Débitos nº ...24, com registo em 18.11.2024, a requerente foi informada da manutenção do despacho referido em g) (cfr. fls. 53 a 55 do PA junto a fls. 221 dos autos-que se dá aqui por inteiramente reproduzido);
m) A Requerente aufere pensão de velhice, desde 10 de Novembro de 2023, actualmente com o valor de € 669,10 (cfr. PA junto a fls. 221 dos autos e doc. nº 10 junto com o r.i.);
n) Em Novembro de 2023, o salário mínimo nacional era de €820,00 (não impugnado);
o) Em 22 de Novembro de 2024, a Requerente solicitou à Segurança Social proteção Jurídica nas modalidades de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo (Cfr. fls. 138 a 143 dos autos);
p) Em 10 de Dezembro de 2024, foi proferida decisão que atribuiu à Requerente proteção jurídica na modalidade referida em o) (Cfr.) fls. 138 a 143 dos autos);
q) A Requerente paga mensalmente água, electricidade, telecomunicações e saúde (cfr. doc. juntos com o r.i.);
r) Em 7 de Janeiro de 2025, a Requerente instaurou neste TAF o presente processo cautelar (Cfr. fls. 1 destes autos).
De Direito -
É objecto de recurso a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou o processo cautelar improcedente e indeferiu o decretamento da providência solicitada.
É pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso.
Assim,
A sentença recorrida julgou que a alegação que a Requerente apresenta dos factos integradores do requisito do periculum in mora “é uma alegação insuficiente, genérica e conclusiva, sem indicação de factos relevantes suficientes para preenchimento deste pressuposto, pois que não refere se vive sozinha, quem integra o seu agregado familiar, se suporta renda de casa ou vive em casa própria, e não especifica, de forma concreta e objectiva, em que medida a restituição do valor que a Entidade Demandada exige afectará a sua capacidade de suportar as despesas inerentes à sua sobrevivência. Assim, não alega a Requerente, in casu, factualidade que permita ao Tribunal concluir pela verificação de prejuízos de difícil reparação na sua esfera ou situação de facto consumado, não oferecendo igualmente prova que suporte a sua parca, ou até inexistente, alegação da matéria de facto relevante.”
Mais acrescentando que “a Requerente apesar de indiciar que a pensão de velhice será o único rendimento que detém não junta qualquer documento que o prove, nomeadamente declaração de IRS”.
E, nessa medida, concluiu que “não logrou a mesma demonstrar que apenas detém como rendimento mensal a pensão de velhice que lhe foi atribuída, qual a composição do seu agregado familiar, qual o seu património, etc.. e, assim, não logrou provar a constituição de uma situação de facto consumado com o não decretamento da providência, ou mesmo, a produção de efeitos de difícil reparação.”
Entendeu, desta forma, o Tribunal a quo que “não se mostra provado nos autos a produção na esfera da Requerente de prejuízos de difícil reparação ou situação de facto consumado”, julgando, assim, improcedente a providência cautelar.
Na óptica da Recorrente a sentença padece de nulidades que a invalidam, incorrendo ainda em manifesto erro de julgamento.
Detenhamo-nos, pois, em cada um dos motivos invocados:
DA MOTIVAÇÃO (ALEGAÇÕES):
A - DAS NULIDADES PROCESSUAIS
A.1 - DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Estatui o artigo 3º, n.º 3, do C. Processo Civil ex vi art.º 1º do CPTA, que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
O referido n° 3, do artigo 3°do CPC, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, trazendo para o nosso direito processual uma conceção mais alargada, visando-se prevenir as “decisões surpresa”.
Como invocado, o tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório - que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito - já há muito vinha sendo afirmado pela jurisprudência constitucional, especialmente no processo penal, devido às garantias de defesa do arguido.
A referida conceção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida pelo Professor Lebre de Freitas [in, Freitas, Lebre de (1992). “Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil”, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, pp. 35 a 38] para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[ in, Freitas, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui (1999), Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, pág. 8].
Esta vertente do contraditório revela grandes potencialidades práticas em termos de cooperação, de lealdade recíproca dos vários intervenientes processuais e de eficácia das decisões judiciais que passam, sempre, a ser previstas pelas partes.
E, na medida em que garante a igualdade das partes - pela possibilidade de pronúncia e resposta - leva a que, mais fácil e frequentemente, se obtenha a verdade material e que a solução do litígio seja a mais adequada e justa, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.
Como refere o professor Lebre de Freitas, o princípio do contraditório materializa-se em todas as fases do processo - quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e ativo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.
Ao nível do direito, o princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa.
Assim, com o nº 3, do art. 3º do CPC, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.
A citada norma, introduzida pela Reforma de 1995/1996, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, consagrando mais uma garantia de discussão dialética entre as partes no desenvolvimento de todo o processo, consagrando de forma ampla o direito a exprimir posição para influenciar a decisão.
Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influir ativamente na decisão. A imposição de audição das partes em momento anterior à decisão é determinada por um objetivo concreto - o de permitir às partes intervirem ativamente na construção da decisão, chamando-as a trazerem aos autos a solução para que apontam.
O exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende - permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.
Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração.
Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.
Tal solução legal, como bem aponta a Parte, confere ao juiz possibilidade de uma maior ponderação e contribui para uma maior eficácia e satisfação das partes ao verem, com o seu contributo, mais rapidamente resolvidos os seus interesses em litígio.
Conforme também alegado, no caso posto, constata-se que a sentença recorrida incorreu na violação do invocado princípio do contraditório.
Com efeito, a Requerente foi notificada da Oposição e da junção do Processo Administrativo Instrutor em 18/02/2025, mediante notificação eletrónica remetida pela Exma. Mandatária da Entidade Requerida, sem qualquer intervenção do Tribunal.
Sucede, porém, que, em 21/02/2025, o Tribunal proferiu sentença sem que a Requerente tivesse tido a oportunidade de, sequer no prazo mínimo de cinco dias, se poder pronunciar sobre a Oposição deduzida ou sem que pudesse analisar o Processo Administrativo no referido prazo e se pronunciar sobre o mesmo, sendo certo que, quanto às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respetiva admissão, como da sua força probatória (art.° 415° n.° 2, in fine do CPC).
O que não sucedeu, repete-se, em violação do princípio do contraditório, não tendo, de igual modo, sido invocada na sentença a manifesta desnecessidade em dar cumprimento ao mesmo.
A falta de cumprimento do contraditório (ínsito no art.° 3°/3 do CPC) consubstanciada na impossibilidade de a Requerente se pronunciar quer sobre a Oposição apresentada, quer sobre o teor do Processo Administrativo Instrutor, reconduz-se à omissão de um acto exigido por lei, por um lado e, por outro, porque aquilo que ainda viesse a dizer poderia ser susceptível de influir no exame ou decisão da causa, o que constitui nulidade processual, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 195° n.° 1 do CPC.
A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem quando a lei assim o exige, bem como, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do apontado art.° 195° do CPC, que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no art.° 199° do Código de Processo Civil, o que ora foi feito.
Com efeito, no caso vertente, a violação do princípio do contraditório, operada mediante a impossibilidade da Requerente se pronunciar quer sobre a Oposição apresentada, quer sobre o teor do Processo Administrativo Instrutor antes de ser proferida a sentença, constitui nulidade processual, prevista no n°1, do art.° 195° do CPC, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Dada a relevância e primordial importância do contraditório, é indiscutível que a sua inobservância não só consubstancia a omissão de um acto que a lei prescreve, como é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa).
Consequentemente, a sentença tem de ser anulada, por preterição do princípio do contraditório (cfr. art.° 195°/2 do CPC).
E, carecendo a nulidade de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (art. 197°/1 do CPC), no prazo de dez dias, após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo (art.° 199°/1 do CPC), sob pena de ficar sanada, - no caso em apreço, estando verificada a violação do princípio do contraditório -, nada obstava a que a mesma viesse invocada em sede de recurso, o que sucedeu.
Em suma,
A decisão em causa, proferida em violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3°/3 do CPC, configura uma decisão surpresa;
Este é um princípio basilar do processo, que hoje ultrapassou a concepção clássica, que estava associada ao exercício do direito de resposta, assumindo-se como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o processo, conferindo às partes a possibilidade de influírem em todos os elementos que se liguem ao objeto da causa;
Como ensina Lebre de Freitas em Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 1996, pág. 96: “a esta concepção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção
mais lata de contraditoriedade, entendida como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo”;
Segundo este princípio, o juiz não deve decidir qualquer questão, de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre ela se pronunciarem, pois só assim se assegura a participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e na busca da justiça da decisão;
Como se sumariou no Acórdão do STA de 13/11/2007, proc. 0679/07
I-O princípio do contraditório é um dos direitos fundamentais das partes no desenvolvimento do processo já que, garantindo-lhes a possibilidade de intervir em todos os seus actos, permite-lhes defender os seus interesses e influenciar a decisão do Tribunal.
II-E, porque assim, tal princípio só pode ser postergado nos casos de manifesta desnecessidade ou nos casos em que o seu cumprimento poderia pôr em causa, injustificadamente, os direitos de uma das partes ou poderia comprometer seriamente a finalidade que determinou a instauração do processo.
III-O cumprimento do princípio do contraditório é essencial na marcha do processo e que, por isso, a sua violação constitui nulidade uma vez que pode influir no exame ou na decisão da causa a qual, por via de regra, determinará a nulidade de todo o processado que lhe é posterior. - nºs 1 e 2 do art. 201º do CPC;

Este princípio foi aqui postergado;
A “decisão surpresa” tem um alcance objetivo: a decisão é desse tipo - e, então, surpreende - quando o tribunal, desviando-se do que seria expectável em face do anteriormente discutido, resolve uma questão sem antes ouvir as partes a seu propósito; por outro lado, a “decisão surpresa” tem a ver com a novidade das questões - e não com a novidade dos argumentos utilizados na resolução delas;
Ademais, conforme também invocado, de forma clara, nos artigos 9 a 12 das conclusões das alegações, a Requerente alegou e concretizou os factos integradores do requisito do periculum in mora (que se encontram vertidos nos art.°s 33°, 36°, 37°, 39°, 40°, 41°, 42°, 43° e 44° do seu requerimento inicial), declarando pretender prová-los, designadamente, através da produção de prova testemunhal, visando demonstrar que a imediata execução do acto suspendendo é susceptível de produzir na sua esfera jurídica prejuízos de difícil, senão impossível reparação, na medida em que ficará impossibilitada de prover ao seu sustento;
A prova desses prejuízos é imprescindível para se proceder à análise do requisito do periculum in mora, traduzido no fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação, previsto no n° 1 do artigo 120° do CPTA, que tem de se verificar cumulativamente com o fumus boni iuris;
No entanto, tal prova foi inviabilizada pelo Tribunal a quo ao proferir sentença nos termos e no momento em que o fez, sem permitir a produção da prova testemunhal requerida ou, sequer, sem a emissão de despacho prévio fundamentando a recusa da utilização do visado meio de prova;
Tal consubstancia, como afirmado, violação do disposto no art.° 118°/5 do CPTA.
Procedem as Conclusões da Apelante.

DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, anula-se a sentença e determina-se que, baixando o processo ao TAF a quo, seja dado integral cumprimento ao princípio do contraditório, seguindo-se os ulteriores passos processuais, mormente para que se convide a Requerente a juntar aos autos a sua declaração de IRS e para que sejam levadas a cabo as demais diligências de prova omitidas, com vista a possibilitar à mesma a prova dos factos que alegou com vista à demonstração do requisito do periculum in mora, ficando, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
Sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.

Notifique e DN.

Porto, 23/5/2025

Fernanda Brandão
Isabel Jovita
Rogério Martins