Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00664/18.9BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/19/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:ANA PAULA ADÃO MARTINS
Descritores:EMPRESA MUNICIPAL; ENTIDADE PRIVADA;
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO SOCIAL;
AUTO-TUTELA EXECUTIVA;
Sumário:
No contexto de um contrato de arrendamento destinado a habitação social, não carece a Autora/Recorrente, entidade administrativa de natureza privada, de tutela judicial para a obtenção de título executivo que permita a cobrança das rendas em dívida, dispondo dos poderes de autotutela executiva.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência, na Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I – RELATÓRIO

[SCom01...]., melhor identificada nos autos, intentou acção administrativa contra «AA», igualmente melhor identificado nos autos e residente em parte incerta, pedindo a condenação deste no pagamento à Autora da quantia de € 2.553,99, a título de dívidas de rendas vencidas e não pagas, bem como da quantia de € 35,00, a título de indemnização, quantias estas acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
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Por sentença de 21.11.2023 – rectificada, no seu segmento decisório, por despacho de 29.11.2023 -, o TAF do Porto julgou procedente a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir e, em consequência, absolveu o Réu da instância.
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A Autora, inconformada, vem interpor recurso da sentença, concluindo assim as suas alegações:
I. Andou mal o tribunal a quo ao indeferir liminarmente a petição inicial apresentada pela Recorrente por entender que existe falta de interesse em agir desta ao recorrer à ação administrativa comum, sob o argumento de que a Recorrente disporia de um mecanismo de autotutela declarativa e executiva, previsto na Lei 81/2014, de 19 de dezembro e no artigo 179º do CPA que lhe permite declarar o seu direito a receber rendas e, em falta de cumprimento voluntário, proceder à sua cobrança coerciva.
II. Decorre do artigo 179.º nº1 do CPA que a cobrança coerciva de obrigações pecuniárias mediante processo de execução fiscal será possível quando se verifiquem cumulativamente os seguintes pressupostos: i) as prestações pecuniárias sejam devidas por força de um ato administrativo; e ii) estas devam ser pagas a uma pessoa coletiva pública, ou por ordem desta.
III. Conforme decorre claramente do artigo 1º dos respetivos Estatutos, bem como do artigo 19º n.º 4 do RJAEL, a [SCom01...] é uma pessoa coletiva de direito privado, possuindo autonomia patrimonial, financeira e administrativa.
IV. O facto de uma entidade privada estar habilitada por um ato jurídico público a exercer poderes públicos de autoridade não a transforma numa pessoa coletiva pública.
V. A distinção entre pessoa coletiva de direito público e pessoa coletiva de direito privado é relevante na medida em que o próprio Código de Procedimento Administrativa continua, em certos casos e disposições legais específicas (como é o caso do artigo 179º CPA), a referir-se expressamente a pessoas coletivas de direito público, mesmo que tal norma se integre numa parte do Código que à partida será aplicável a entes públicos e entes privados, sendo certo que a referida distinção é essencial na definição da titularidade da capacidade de direito público em sentido formal, isto é, a aptidão de uma pessoa para praticar atos administrativos e para celebrar contratos administrativos.
VI. As empresas locais apenas podem ser admitidas a exercer poderes públicos de autoridade mediante habilitação legal expressa (diploma legal, estatutos ou contrato de concessão), nos termos do disposto no artigo 22º do Regime Jurídico do Sector Público Empresarial (DL n.º 133/2013, de 03 de outubro), que elenca taxativamente quis os poderes que as empresas públicas podem exercer, referindo no seu n.º 2 refere que os poderes especiais são atribuídos por diploma legal, em situações excecionais e na medida do estritamente necessário à prossecução do interesse público, ou constam do contrato de concessão.
VII. A [SCom01...] está legal e expressamente habilitada a celebrar contratos de arrendamento sob o regime de renda apoiada, a receber as respetivas rendas, bem como a proceder ao despejo administrativo em caso de incumprimento da obrigação de desocupação e entrega da habitação à entidade detentora da mesma.
VIII. A [SCom01...] não está expressamente habilitada a recorrer à execução fiscal para cobrança de valores em dívida, uma vez que inexiste norma legal ou estatutária que a invista nesse poder, que o legislador reservou para as entidades públicas.
IX. O artigo 28º da Lei 32/2016 de 24 de agosto, apenas determina genericamente que “a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo” sem se referir, em parte alguma, à possibilidade de execução coerciva – a qual sempre estaria afastada em concreto, face ao teor do artigo 179º do CPA.
X. A interpretação extensiva não pode ser utilizada para sustentar interpretações que não tenham um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, conforme decorre do artigo 9º n.º 2 do Código Civil e, muito menos, para sustentar interpretações contra legem, como é o caso da propalada pelo tribunal a quo, que contraria totalmente a letra do artigo 179º CPA.
XI. Se o legislador pretendesse conceder às empresas locais a possibilidade de execução coerciva de obrigações pecuniárias, tê-lo-ia feito, retirando a expressão “pessoa coletiva pública” da norma inserta no artigo 179.º do CPA, o que não fez porque quis intencionalmente reservar a possibilidade de recurso à execução fiscal às pessoas coletivas públicas.
XII. O artigo 179.º do CPA configura uma norma geral e abstrata, não se tratando de um diploma legal ou contrato de concessão e jamais poderia ser esta norma a atribuir um novo poder público (o da remessa para processo de execução fiscal): o exercício do poder público é o pressuposto e não o resultado da aplicação do Código.
XIII. O Acórdão do STA citado não vincula os demais tribunais, encontrando-se pendendes outros recursos que poderão vir a merecer decisão diversa.
Sem prescindir,
XIV. O artigo 17º n.º 2 da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, com as alterações introduzidas pela Lei no 32/2016 (regime do arrendamento apoiado para habitação) determina que o contrato de arrendamento apoiado tem a natureza de contrato administrativo (e não ato administrativo).
XV. O artigo 179.º nº1 do CPA, quando consagra o recurso ao processo de execução fiscal, tal como regulado na legislação do processo tributário, faz depender tal possibilidade de as prestações pecuniárias devidas a uma pessoa coletiva pública o serem “por força de um ato administrativo”.
XVI. As prestações pecuniárias em dívida não são devidas em função de um ato administrativo, mas sim em virtude de um contrato, (o contrato de arrendamento celebrado entre a Recorrente e o respetivo inquilino, onde as partes convencionaram direitos e obrigações reciporcas), mais concretamente, do incumprimento do contrato (pagamento das rendas) por parte do inquilino.
XVII. Sendo que parte do valor em dívida é referente a um acordo de pagamento em prestações incumprido pelo recorrido e não a rendas.
XVIII. Deixando uma das partes de cumprir os deveres a que contratualmente se obrigou, in casu o dever de pagar pontualmente a renda, verifica-se uma situação de incumprimento contratual que carece de tutela jurisdicional.
XIX. O legislador consagrou expressamente na lei determinadas prorrogativas da entidade – como modelar o conteúdo do contrato, resolvê-lo, proceder ao despejo administrativo, – e se esse fosse o seu intento, teria também consagrado expressamente a possibilidade de recorrer à execução fiscal para a cobrança dos valores em dívida, o que não sucedeu.
XX. Decorrendo a obrigação do pagamento das rendas da celebração do contrato de arrendamento e não de um ato administrativo e não sendo a Empresa Municipal em causa uma pessoa coletiva pública nem estando a agir por ordem de uma, não estão – duplamente – preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 179.º do CPA, que não atribuiu às empresas locais o poder de emitir certidões com o valor de título executivo, com vista instauração dos processos de cobrança coerciva das dívidas.
XXI. De acordo com as regras de interpretação estabelecidas pelo artigo 9º do Código Civil, na fixação do alcance do artigo 179.º do CPA, presume-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, pelo que ao usar as expressões “pessoa coletiva pública” e “ato administrativo”, pretendeu restringir o âmbito de aplicação do artigo 179.º do CPA àquelas específicas circunstâncias.
XXII. Sendo a entidade demandante uma Empresa Municipal, é inequívoco o seu interesse em agir, sendo a ação nos Tribunais Administrativos o meio idóneo para tal fim;
XXIII. A procedência da exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir determina que a Recorrente veja ser-lhe absolutamente negada a possibilidade de cobrar os valores em dívida!
XXIV. A decisão ora em crise que julgou verificada a exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir, indeferindo liminarmente a petição inicial, viola o disposto no artigo 179º do CPA, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que a admita, com todas as legais consequências.
XXV. O tribunal alude à propositura da ação contra herdeiros incertos, embora sem nada decidir a este respeito, pelo que se deixa dito que foram alegadas pelo Recorrente as razões pelas quais não tinha a possibilidade de identificar os herdeiros sem o auxílio do tribunal, sendo certo que a lei não exige a prova de tais tentativas e que sempre poderia ser produzida prova testemunhal a esse respeito.
XXVI. Nos termos do n.º 4 do artigo 7º e n.º 2 do artigo 6º do CPC, o Tribunal deve providenciar pela remoção do obstáculo invocado pela parte ou, assim não entendendo, dirigir-lhe um convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, nos termos do artigo 590º n.º 2 al. a) do CPC.
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O Ministério Público, em representação do Réu ausente, contra-alegou, tendo concluído o seguinte:
1. A Recorrente A. veio interpor recurso da douta sentença proferida nos autos em 23-11-2023, a qual julgou verificada a exceção dilatória de falta de interesse em agir e, em consequência, absolveu o Réu da Instância.
2. Pretende a recorrente, em suma, que a decisão recorrida seja substituída por outra “que admita a petição inicial, seguido os autos a sua subsequente tramitação”.
3. Ora, nos presentes autos, não houve indeferimento liminar da petição inicial, a qual foi recebida e contestada, seguindo o processo os seus trâmites normais até à fase de julgamento. Assim, o objetivo pretendido com o presente recurso é impossível, pelo que o mesmo deverá ser rejeitado.
Sem prescindir:
4. Caso assim se não entenda, é a seguinte a questão central a decidir: saber se a autora, enquanto empresa municipal (pessoa coletiva de direito privado), poderá lançar mão do mecanismo de autotutela executiva, da mesma forma que as entidades públicas, para cobrança coerciva das rendas em dívida, no contexto de um contrato de arrendamento destinado a habitação social.
5. Tal questão já foi devidamente analisada e respondida nos recentes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 19-10-2023 (processo 2143/21.8BEPRT), de 16-11-2023 (processo 2953/17.0BEPRT), de 07-122023 (processo 2836/18.7BEPRT) e de 20-12-2023 (processo 2181/21.0BEPRT, no sentido de que a [SCom01...] não carece de tutela judicial para a obtenção de título executivo que permita a cobrança das rendas em dívida, dispondo dos poderes de autotutela executiva.
Na verdade:
6. A recorrente é uma pessoa coletiva de direito privado, com natureza municipal, nos termos previstos no artigo 19.º, n.º 4, do RJAEL (Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das participações locais - Lei n.º 50/2012, de 31-08).
7. Porém, nos termos do art.º 27.º, n.º 1, da referida Lei n.º 50/2012, “As entidades públicas participantes podem delegar poderes nas empresas locais, desde que esta faculdade conste expressamente na deliberação que determinou a sua constituição e nos respetivos estatutos”, sendo que o Município ... delegou na Autora os seus poderes de gestão do parque habitacional municipal, como expressamente decorre do Regulamento n.º 548/2018, de 01-08, do referido Município, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 156, de 14-08-2018.
8. O artigo 2.º do referido Regulamento prevê que o mesmo “estabelece o regime jurídico de atribuição das habitações sociais, na modalidade de concurso por inscrição, definindo as condições e critérios de seleção para o seu arrendamento, bem como, as regras e condições aplicáveis à gestão do parque habitacional de arrendamento social, propriedade do Município ... sob a exploração da [SCom01...]. ([SCom01...]).”.
9. Por sua vez, os Estatutos da [SCom01...], referem no seu art.º 3º, n.º 1, que “A [SCom01...] tem por objecto, por delegação do Município ..., nos termos do artigo 27º da Lei nº 50/2012, de 31 de Agosto, o ordenamento do território e gestão urbanística, a reabilitação urbana, o desenvolvimento da habitação e a promoção do desenvolvimento local no concelho ....”
10. Sendo que no n.º 2 do mesmo artigo se estipula que “Para a prossecução do seu objecto incumbe, designadamente, à [SCom01...]: al. v)- Promover o desenvolvimento da habitação social no Concelho e a gestão e exploração do parque habitacional da Câmara Municipal ....”.
11. Está em causa a aplicabilidade, em concreto, do regime do art.º 179.º, n.º 1, do CPA, que prevê que “quando, por força de um ato administrativo, devam ser pagas prestações pecuniárias a uma pessoa coletiva pública, ou por ordem desta, segue-se, na falta de pagamento voluntário no prazo fixado, o processo de execução fiscal, tal como regulado na legislação do processo tributário”, que a recorrente afasta.
12. Contudo, por força do artigo 2.º, n.º 1, do CPA, as disposições daquele código respeitantes à atividade administrativa “são aplicáveis à conduta de quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, adotada no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por disposições de direito administrativo.”
13. Acresce que, ao prever na norma do citado artigo 179.º do CPA a expressão “ou por ordem desta”, pretendeu claramente o legislador abranger os casos em que se verifica uma delegação de poderes da pessoa coletiva pública noutra entidade a quem são atribuídos tais poderes de natureza pública.
14. No caso da recorrente, tal delegação ocorreu com a previsão dos poderes de gestão do parque habitacional do Município expressamente conferidos no Regulamento supra citado e nos respetivos Estatutos.
15. Sendo ainda de salientar que foram conferidos poderes de autoridade administrativa aos trabalhadores da [SCom01...], nos termos do art.º 3.º, n.º 5, dos respetivos Estatutos.
16. De sublinhar, como vem lembrando a jurisprudência, que a [SCom01...] é uma empresa local criada e totalmente participada pelo Município ..., entidade que, por esse motivo, sobre aquela tem controle ou domínio com uma influência dominante (cfr. artigo 19.º, n.º 1, da Lei n.º 50/2012, de 31-08 - RJAEL).
17. Assim, os poderes conferidos à [SCom01...] de “gestão e exploração do parque habitacional da Câmara Municipal ...”, incluem a cobrança das rendas devidas e, em consequência, a prática de atos administrativos que determinem os quantitativos em dívida e fixem prazos de pagamento.
18. Tais atos cabem nos poderes de gestão e exploração do parque habitacional, tanto mais que, nos termos do art.º 17.º, n.º 3, da Lei nº 81/2014, de 19-12 (Novo Regime do Arrendamento Apoiado para Habitação) apenas se prevê a necessidade de intervenção judicial para matérias relativas à invalidade ou cessação dos contratos de arrendamento.
19. Nessa linha, o poder de autotutela executiva do despejo consagrado no art.º 28.º, nº 1, da Lei nº 81/2014 (NRAAH), tem de ser conjugado com o disposto no n.º 3 do mesmo artigo, na parte em que alude à cobrança da dívida por falta de pagamento de rendas que fundamenta o despejo.
20. Com efeito, atenta a redação da norma deste n.º 3 – “quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo” – as decisões simultâneas de ordenar o despejo e de promover a execução da dívida de rendas pressupõem a prática de um único ato administrativo, não se afigurando que ocorra qualquer justificação para que os poderes de execução abranjam apenas a decisão de despejo e não a execução da dívida.
21. Assim, a “promoção da correspondente execução”, referida no art.º 28.º, n.º 3, da Lei nº 81/2014 (NRAAH), não impõe necessidade de recurso a ação judicial para obtenção de título executivo, antes deve ser efetuada nos termos do referido art.º 179.º, nº 1, do CPA, por meio da execução fiscal aí prevista.
22. Dispondo de tais poderes, a recorrente não necessita de tutela judicial para a obtenção de título executivo que permita a cobrança das rendas em dívida nos presentes autos.
23. Defende ainda a recorrente que obsta à aplicação do disposto no art.º 179.º do CPA o facto de a obrigação do pagamento das rendas decorrer da celebração de um contrato de arrendamento, e não de um ato administrativo, como exigido em tal norma.
24. Porém, como resulta claro do citado art.º 28.º, n.º 3, do NRAAH, deve entender-se, conforme jurisprudência recente do STA nesta matéria, que a obrigação de pagamento das rendas, apesar de ter por fundamento mediato o respetivo contrato de arrendamento, tem a sua fixação concreta plasmada numa decisão que determina a promoção da correspondente execução – decisão esta que constitui um ato administrativo para os efeitos previstos no art.º 179.º do CPA.
25. Refere ainda a recorrente que parte do valor em dívida é referente a um acordo de pagamento em prestações incumprido pelo Réu “e não a rendas”.
26. Ora, a A. reconhece que a dívida teve origem na falta de pagamento de rendas, pelo que um eventual acordo quanto à forma de pagamento da dívida não altera a natureza e origem da mesma. Assim, e face ao supra demonstrado, tendo a A. legitimidade para executar o eventual montante devido pelo R. a título de rendas, não carece de recorrer ao tribunal para que o mesmo seja condenado no seu pagamento. Ou seja, sempre se verificaria a falta de interesse em agir da A. na presente ação.
27. Cumpre ainda dar nota de que a conclusão XXV das alegações de recurso, referindo a “propositura da ação contra herdeiros incertos”, não tem qualquer correspondência com a presente ação, pelo que não deverá ser atendida.
28. Face a tudo o exposto, impõe-se concluir que os poderes de autotutela executiva legalmente conferidos à Recorrente [SCom01...], EM, excluem a necessidade de tutela judiciária, o que determina a falta de interesse em agir da recorrente na presente ação, como se decidiu na douta sentença recorrida.
29. Tal entendimento, no sentido claro da previsão de poderes de autotutela executiva da empresa municipal/local, embora de natureza privada, alicerça-se no regime legal resultante das disposições conjugadas dos art.ºs 19.º e 27.º da Lei nº 50/2012 (RJAEL), do art.º 3.º dos Estatutos da [SCom01...], do art.º 2.º do Regulamento Municipal nº 548/18, do Município ..., dos art.ºs 17.º e 28.º da Lei nº 81/2014 (NRAAH) e dos art.ºs 2.º, n.º 1, 176.º, n.º 2, e 179.º, n.º 1, do CPA.
30. A douta sentença recorrida fez uma correta análise de direito, tendo decidido de acordo com as normas legais e estatutárias aplicáveis, não incorrendo em violação do regime previsto no artigo 179.º do CPA, pelo que improcedem as alegações da Recorrente.
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Com dispensa de vistos, mas com prévia divulgação do projecto de acórdão pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos, o processo vem submetido à Conferência.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Atentas as conclusões das alegações do recurso interposto, que delimitam o seu objecto, nos termos dos arts 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2 do CPC, ex vi art 140º, nº 3 do CPTA, a questão decidenda reside em saber se o Tribunal a quo errou ao decidir que a autora carece de interesse em agir na interposição da presente acção, por dispor de mecanismo de autotutela.
Previamente, importa saber se o recurso é admissível.
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III – QUESTÃO PRÉVIA

Nas suas contra-alegações, o Ministério Público, em representação do Réu, veio suscitar a inadmissibilidade do recurso interposto.
Sustenta que a Recorrente veio interpor recurso da sentença proferida nos autos, a qual julgou verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir e, em consequência, absolveu o réu da instância; pretende a recorrente que a decisão recorrida seja substituída por outra “que admita a petição inicial, seguido os autos a sua subsequente tramitação”; nos presentes autos, não houve indeferimento liminar da petição inicial, a qual foi recebida e contestada, seguindo o processo os seus trâmites normais até à fase de julgamento; assim, o objectivo pretendido com o presente recurso é impossível, pelo que o mesmo deverá ser rejeitado.
Vejamos.
A questão suscitada pelo Recorrido tem por base o alegado na parte final das alegações de recurso e respectivas conclusões, onde se alude, de facto, a um indeferimento da petição inicial e se pugna pela substituição da decisão recorrida por outra que admita a petição inicial, seguindo os autos a sua subsequente tramitação.
Sucede que, como bem refere o Recorrido, nos presentes autos, não houve indeferimento liminar da petição inicial, a qual foi recebida e contestada, seguindo o processo os seus trâmites normais, recaindo o recurso sobre a sentença proferida nos autos, em 23.11.2023, a qual julgou verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir e, em consequência, absolveu o Réu da instância.
Donde, a referência ao indeferimento da petição inicial e bem assim a pretensão de admissão da petição inicial trata-se - como resulta evidente do contexto do recurso apresentado -, não de um objectivo impossível, mas de um mero lapso de escrita, que deve ser relevado e se releva.
Certamente, constitui também lapso de escrita a alusão que é feita, nas conclusões XXV e XXVI das alegações de recurso, à “propositura da ação contra herdeiros incertos”, a qual não tem qualquer correspondência com a presente acção, pelo que não será considerada.
Nestes termos, admite-se o recurso interposto.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO

A Autora demandou o Réu com vista a obter a sua condenação no pagamento da quantia de 2.553,99 euros, a título de dívidas de rendas vencidas e não pagas e ainda da quantia de 35,00 euros, a título de indemnização, ambas acrescidas dos respectivos juros de mora.
Alegou, para tanto e em síntese, que:
- É uma pessoa colectiva de direito privado, de natureza municipal, dotada de personalidade jurídica e de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, que está sujeita à tutela e superintendência da Câmara Municipal ... e tem por objeto, por delegação do Município ..., nos termos do n.º 1 do artigo 17.° da Lei n.º 53- F/2006, de 29.12, o ordenamento do território e gestão urbanística, a reabilitação urbana, o desenvolvimento da habitação e a promoção do desenvolvimento local no concelho ...;
- Desde 29.05.2003 a 28.03.2014, a Autora celebrou com o Réu quatros contrato de arrendamento, sob o regime de renda apoiada;
- O Réu incumpriu sucessivamente o seu dever de pagamento de rendas, tendo ficado em dívida um montante total de 2.518,99 euros, referentes a rendas vencidas; sendo o Autor ainda responsável pelo pagamento de uma indemnização no montante de 35,00 euros, correspondente ao custo da reparação da fechadura da entrada do prédio onde residia.
O Tribunal a quo absolveu o Réu da instância com fundamento na falta de interesse em agir da Autora, por falta de necessidade e utilidade da demanda, à luz do sistema jurídico aplicável ao pedido formulado na petição inicial.
Decidiu, aderindo integralmente à fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido a 19.10.2023, no processo n.º 2143/21.8BEPRT, que a Autora não tinha necessidade de intentar a presente acção por dispor do mecanismo de autotutela declarativa e executiva, previsto na Lei nº81/2014, de 19.12, e no artigo 179º do CPA, que lhe permite declarar o seu direito às rendas e, na falta de cumprimento voluntário, proceder à sua cobrança coerciva. A Recorrente não se conforma com o decidido, argumentando, em síntese, que:
- Sendo uma pessoa colectiva de direito privado, não está expressamente habilitada a recorrer à execução fiscal para cobrança de valores em dívida, uma vez que inexiste norma legal ou estatutária que a invista nesse poder, que o legislador reservou para as entidades públicas;
- A obrigação do pagamento das rendas decorre da celebração do contrato de arrendamento e não de um acto administrativo.
Vejamos.
No âmbito do processo nº 2143/21.8.BEPRT, que correu termos no TAF do Porto, a autora [SCom01...]., interpôs recurso de revista do acórdão do TCAN, de 23.06.2022, que, negando provimento à sua apelação, confirmou o decidido na 1ª instância, por sentença de 04.11.2021, no sentido da procedência da excepção dilatória da “falta de interesse em agir”.
Imputou ao acórdão erro de julgamento de direito, por fazer uma interpretação e aplicação errada - mormente - do artigo 179º do CPA pois, pela sua natureza e forma social, não é uma pessoa colectiva pública, nem praticou - ou poderá praticar - qualquer acto administrativo impositivo do dever de pagamento das quantias em dívida. Ademais, alegou que o artigo 28º da Lei 81/2014, de 19.12, não atribui às empresas locais poderes de autotutela executiva, e do mesmo não é possível - de acordo com o artigo 9º, nº2, do CC - fazer uma interpretação extensiva de forma a abrangê-las.
Por acórdão de 15.12.2022, foi a revista admitida nos seguintes termos: “Efectivamente, a questão nuclear submetida à apreciação do tribunal de revista é a de saber se a recorrente - como pessoa colectiva de direito privado - poderá recorrer à execução fiscal para a cobrança coerciva das rendas em dívida, no contexto de um contrato de arrendamento destinado a habitação social. Ou seja, se a recorrente - enquanto empresa municipal - poderá lançar mão do mecanismo de autotutela executiva da mesma forma que as entidades públicas.
Ora, atentas as divergências constatáveis na jurisprudência sobretudo da 2ª instância - para a qual a recorrente chama a atenção nas suas alegações - patenteiam-se não só «dúvidas sérias» sobre o acerto das decisão - embora unânime - dos tribunais de instância, como ainda a «importância fundamental» da submissão da questão ao tribunal de revista, já que o seu veredicto servirá de exemplo jurisprudencial para decisões futuras.”
A 19.10.2023, o Supremo Tribunal Administrativo proferiu acórdão – no qual assentou a decisão recorrida -, publicado em www.dgsi.pt e assim sumariado:
“I - A A., ora Recorrente, é, nos termos do artigo 1.º dos seus Estatutos, uma empresa local, «constituída sob a forma de pessoa coletiva de direito privado, de natureza municipal, dotada de personalidade jurídica e de autonomia administrativa, financeira e patrimonial» (n.º 1);
II - A A., ora Recorrente, foi criada e é totalmente participada pelo Município ..., entidade que, por esse motivo, sobre aquela tem controle ou domínio com uma influência dominante – cfr. artigo 19.º. n.º 1, da Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto (Regime Jurídico do Setor Empresarial Local e das Participações Locais);
III - As vestes privadas da A., ora Recorrente, adquirem, neste contexto, um relevo exclusivamente formal, que não impede nem colide com o exercício das competências jurídico-públicas que lhe foram atribuídas, enquanto entidade administrativa privada.
IV - E nem colide, face ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, no CPA, com a aplicação, das disposições do CPA respeitantes aos princípios gerais, ao procedimento e à atividade administrativa, às condutas dotadas por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, «no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por disposições de direito administrativo».
V - A decisão de exigir o pagamento de rendas em atraso, no âmbito de um contrato de arrendamento apoiado, ao qual é aplicável o NRAAH é, sem dúvida, uma conduta regulada de modo específico por disposições de direito administrativo, praticada que foi no âmbito dos poderes que lhe foram transferidos pelo Município ... e ao abrigo do NRAAH.
VI - Os contratos de arrendamento apoiado regem-se pelo disposto no NRAAH, pelos regulamentos nele previstos e pelo Código Civil – cf. n.º 1 do artigo 17.º do NRAAH – sem prejuízo de se tratar de um contrato administrativo por força de lei - cf. n.º 2 do artigo 17.º do NRAAH.
VII - No âmbito dos poderes que lhe são conferidos no artigo 28.º, n.º 3, do NRAAH, as entidades referidas no seu artigo 2.º e nas quais se inclui a A., ora Recorrente, estão habilitadas a, por força de lei, praticar um ato administrativo que determine o despejo, este, com poderes de autotutela declarativa e executiva e um outro, que determine a promoção da execução por rendas em atraso, este, apenas com autotutela declarativa, pois que, nos termos dos artigo 179.º, do CPA, a execução para pagamento de quantia certa a corre termos nos tribunais tributários - cf. artigo 28.º, n.º 1, do NRAAH e regime previsto no Código Civil, ex vi artigo 17.º n.º 1.
VIII - Na situação em apreço, não está em causa qualquer decisão relativa ao despejo do R., pois que resulta dos autos que este procedeu à entrega da habitação de livre vontade e por sua iniciativa.
IX - Não havendo dúvidas que a A., ora Recorrente, pode promover a execução para pagamento das rendas em atraso, quando estas são a causa da decisão de despejo e resolução do contrato, também é certo que não deixa de o poder fazer quando o não são.

X - O artigo 28.º, n.º 3, do NRAAH pressupõe essa autotutela declarativa referente ao pagamento de rendas em atraso, impondo apenas, nos casos em que seja este o fundamento do despejo, que as duas decisões sejam proferidas em simultâneo.
XI - A decisão de promoção da execução por rendas em atraso, enquadrada como está no NRAAH, de entre os demais poderes de autotutela declarativa, consubstancia, assim, um título executivo complexo, à semelhança do que hoje sucede no regime do contrato de arrendamento civil, ex vi artigos 25.º, n.º 1 e 17.º n.º 1, do NRAAH.
XII - O que é exemplo e se mostra coerente, aliás, em ambos os regimes, com a ambiência de desjudicialização dos litígios e cobranças inerentes a assuntos de arrendamento.
XIII - E justifica que o sentido da expressão usada no n.º 3 do artigo 28.º, do NRAAH, de «decisão de promoção da correspondente execução», seja atributivo de uma autotutela declarativa, por maioria de razão, quando esta decisão seja desacompanhada de uma decisão de despejo.
XIV - Nestes termos e por todos os fundamentos expostos, considera-se que a A., ora Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 28.º, n.º 3 do NRAAH, beneficia de poderes de autotutela administrativa declarativa que lhe permitem o recurso imediato ao regime para execução do pagamento de quantias pecuniárias, por força de ato administrativo, junto dos tribunais tributários, tal como previsto no artigo 179.º do CPA.
XV - Sem necessidade de recorrer previamente aos tribunais administrativos para obter uma sentença declarativa que possa valer, em caso de incumprimento voluntário desta, como título executivo.
XVI - Pois que, também à luz do princípio da irrenunciabilidade da competência, não pode a A. deixar de exercer os seus poderes de autotutela declarativa, sempre que os respetivos pressupostos estejam definidos na lei, tal como se demonstra estarem no caso em apreço – cf. artigo 36.º, n.º 1, do CPA.
Situações idênticas conduziram à apresentação e admissão de revistas, no âmbito dos processos n.ºs 2386/18.7BEPRT (15.12.2022), 2181/21.0BEPRT (12.01.2023) e 2953/17.0BEBRT (28.09.2023) - todos publicados em www.dgsi.pt -, vindo todos os recursos a ser julgados improcedentes.
No processo 2953/17.0BEPRT, a 16.11.2023, foi proferido acórdão, pela mesma relatora do tirado no processo n.º 2143/21.8BEPRT, que aplicou inteiramente a fundamentação ali exarada (ac. publicado em www.dgsi., com idêntico sumário).
Seguiram-se, pela mão da uma mesma relatora, os acórdãos de 07.12.2023 e 20.12.2023, respectivamente proferidos nos processos nºs 2386/18.7BEPRT e 2181/21.0BEPRT, ambos publicados em www.dgsi.pt e assim sumariados:
“I - A Autora, criada e totalmente participada pelo Município ..., entidade que, por esse motivo, sobre aquela tem controle ou domínio com uma influência dominante, nos termos do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 50/2012, de 31/08 (Regime Jurídico do Setor Empresarial Local e das Participações Locais) e "constituída sob a forma de pessoa coletiva de direito privado, de natureza municipal, dotada de personalidade jurídica e de autonomia administrativa, financeira e patrimonial" (n.º 1 do artigo 1.º dos Estatutos), é uma empresa local, pertencente à Administração Pública Local Autárquica, enquanto fenómeno da Administração Pública sob forma privada.
II - A Autora, sendo uma entidade administrativa de natureza privada, tem participação exclusivamente pública, integrando a Administração Pública, não sendo a sua natureza jurídica formalmente privada obstáculo a prosseguir o exercício das competências jurídico-públicas atribuídas pelo Município ....
III - Prosseguindo e realizando competências jurídico-públicas, a natureza jurídica privada da Autora não afasta a aplicação das normas previstas no Código do Procedimento Administrativo (CPA), antes convoca a sua aplicação nos termos do n.º 1, do seu artigo 2.º.
IV - Têm aplicação à atividade administrativa desenvolvida pela Autora, de exigir o pagamento de rendas em atraso, no âmbito de um contrato de arrendamento apoiado, nos termos dos artigos 38.º e 39.º, n.º 2, alínea a), do Novo Regime do Arrendamento Apoiado para a Habitação, aprovado pela Lei n.º 81/2014, de 19/12, enquanto conduta adotada no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por disposições de direito administrativo, em consequência dos poderes transferidos pelo Município ..., as disposições do CPA respeitantes aos princípios gerais, ao procedimento e à atividade administrativa.
V - As normas referentes à “Execução do ato”, previstas no artigo 175.º e 183.º do CPA, a que se refere a Secção V, integram o Capítulo II, “Do ato administrativo”, pertencem à Parte IV, “Da atividade administrativa”, do CPA.
VI - O que traduz que sejam aplicáveis à Autora as normas dos artigos 175.º e seguintes do CPA, em especial, o disposto no n.º 2, do artigo 176.º do CPA, que permite a execução coerciva de obrigações pecuniárias, nos termos do artigo 179.º do CPA.
VII - O artigo 179.º do CPA remete a falta de pagamento voluntário de prestações pecuniárias para o processo de execução fiscal, tal como regulado na legislação do processo tributário, a saber, o Código do Procedimento e Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo D.L. n.º 433/99, de 26/10.
VIII - Não tem acolhimento a interpretação estritamente literal do n.º 1 do artigo 179.º do CPA, ao referir-se a “pessoa coletiva pública”, pois além do que decorre do regime normativo aplicável, em especial, quanto à natureza jurídica, atividade prosseguida e poderes conferidos à Recorrente, que determinam que apenas formalmente seja uma pessoa coletiva privada, afigura-se também relevante o segmento da norma do n.º 1, do artigo 179.º do CPA, “ou por ordem desta”, que prevê que outra entidade, agindo por conta da pessoa coletiva pública, possa lançar mão da execução de obrigações pecuniárias.
IX - Assim, em face do disposto no n.º 1 do artigo 179.º do CPA, não é forçoso que o ente jurídico em causa tenha de ser uma pessoa coletiva pública, admitindo-se que possa ser uma outra entidade, agindo sob ordem da pessoa coletiva pública, o que se configura ser o caso.
X - Quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada, em simultâneo, com a decisão do despejo, conferindo-se a competência legal administrativa para determinar o despejo e a sua execução a um órgão administrativo.
XI - Quanto à cobrança da dívida por falta de pagamento de rendas que fundamenta o despejo, no âmbito dos poderes que conferidos pelo n.º 3, do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12, sendo a Recorrente uma das entidades referidas no artigo 2.º da referida lei, está legalmente habilitada a praticar um ato administrativo que determine o despejo, no exercício de poderes de autotutela declarativa, assim como, a promoção da execução por rendas em atraso, com base no título executivo que constitui a certidão de dívida, nos termos do artigo 179.º, do CPA, seguindo o processo de execução.
XII - Quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas a Recorrente não dispõe apenas da competência legal para tomar a decisão de ordenar o despejo, pois segundo o n.º 3 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12, deve, em simultâneo, promover a execução da dívida por falta de pagamento das rendas, não necessitando de recorrer a tribunal para obter o título executivo, podendo lançar mão dos seus poderes de autotutela declarativa e também executiva, para cobrar coercivamente as dívidas provenientes de falta de pagamento das rendas devidas ao abrigo do contrato administrativo de renda apoiada para habitação, nos termos da Lei n.º 81/2014, de 19/12 e do regime previsto para a execução de obrigações pecuniárias, dos artigos 176.º, n.º 2 e 179.º, do CPA.
XIII - Para a execução de obrigações pecuniárias basta à Recorrente promover a emissão da certidão de dívida, com valor de título executivo e remetê-la ao competente serviço da Administração Tributária para o respetivo procedimento de cobrança coerciva.

XIV - Não carece a Recorrente de tutela judicial para a obtenção de título executivo que permita a cobrança das rendas em dívida, dispondo dos poderes de autotutela executiva.
Aqui chegados, é forçoso concluir que o Supremo Tribunal Administrativo, em arestos muitos recentes, se pronunciou já sobre a mesmíssima questão aqui em causa, em recursos interpostos pela aqui Autora/recorrente, tendo decidido, de forma uniforme, que a recorrente [SCom01...] não carece de tutela judicial para a obtenção de título executivo que permita a cobrança das rendas em dívida, dispondo dos poderes de autotutela executiva.
Esta posição firmada no STA serviu, ao menos em parte, para este Tribunal Superior negar as revistas interpostas no âmbito dos processos n.ºs 214/23.5BEPRT e 216/23.1BEPRT, com contornos fácticos e jurídicos similares ao presente, em que é Autor/Recorrente o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IP (cfr. acórdãos de 14.03.2024, publicados em www.dgsi.pt).
Seguindo a jurisprudência reiterada vinda de referir, quer porque a Recorrente nada traz de novo quer porque não se vislumbram razões para dela divergir, impõe-se concluir que a sentença recorrida andou bem ao decidir que a Autora não tem necessidade da tutela judicial que requer nos presentes autos, por dispor de meios legais de autotutela para a devida actuação, tendo em vista os contratos de arrendamento por si outorgados.
Aduz ainda a Recorrente, na conclusão XVII, que “parte do valor em dívida é referente a um acordo de pagamento em prestações incumprido pelo recorrido e não a rendas”.
Ora, sendo certo que a petição inicial apresentada (e bem assim a réplica) não faz referência a um qualquer acordo de pagamento em prestações, sempre importaria sublinhar, como faz o Recorrido, que “a A. reconhece que a dívida teve origem na falta de pagamento de rendas, pelo que um eventual acordo quanto à forma de pagamento da dívida não altera a natureza e origem da mesma”.
Termos em que improcede o recurso interposto, devendo manter-se a sentença recorrida na ordem jurídica.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
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Custas a cago da Recorrente.

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Registe e notifique.
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Porto, 19 de Abril de 2024


Ana Paula Martins
Conceição Silvestre
Celestina Caeiro Castanheira