Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
Hospital ..., S.A. instaurou acção administrativa contra a Entidade Reguladora da Saúde, ambas melhor identificados nos autos, com vista à impugnação da Deliberação do seu Conselho Directivo, no qual foi emitida uma instrução no âmbito do processo de inquérito n.º ERS/05....
Por sentença proferida pelo TAF de Penafiel foi julgada improcedente a acção.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, a Autora formulou as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo TAF de Penafiel em 15/02/2024, notificada à Autora/Recorrente em 19/02/2024, que, entre o mais, julgou “totalmente improcedente” a acção administrativa para impugnação de acto administrativo intentada pela aqui Recorrente em 01/09/2023, e que enferma de diversas nulidades e erros de direito e julgamento.
B. A Recorrente intentou os presentes autos para impugnação da instrução constante dos pontos (iv) a (vii) da decisão da ERS de 19/05/2023, a qual, entre outras obrigações, impõe à Autora a obrigação de “(iv) Registar e fundamentar no processo clínico dos utentes o processo de informação e de obtenção de consentimento”.
C. A Decisão Recorrida contém duas secções: uma designada “Saneador-Sentença” que constitui uma decisão de mérito sobre o fundo da causa, e uma decisão introdutória, que ocupa apenas metade da página inicial do despacho de 15/02/2024, e na qual o Tribunal (i) julgou “desnecessária a abertura de instrução e indeferiu a produção de prova testemunhal requerida pelas partes” e (ii) dispensou a realização de audiência prévia.
D. A decisão proferida quanto à dispensa da abertura de instrução constitui uma decisão-surpresa e foi adoptada em violação do princípio do contraditório, na medida em que o Tribunal a quo não concedeu às Partes a possibilidade de se pronunciarem sobre ela.
E. A Autora alegou nos artigos 1.º a 34.º e 132.º a 155.º da PI diversos factos relevantes para a decisão da causa, tendo também arrolado na sua PI testemunhas para prestarem depoimento sobre os actos por si alegados.
F. Se o Tribunal a quo entendia que a produção de prova é desnecessária, deveria ter sinalizado esse facto às Partes, dando-lhes a possibilidade de se pronunciarem sobre a eventual necessidade de produção de prova. Não o tendo feito, proferiu uma decisão-surpresa, que é legalmente inadmissível ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 3.º/3 do CPC e 1.º do CPTA.
G. Acresce que a decisão de dispensar a fase de instrução constitui uma decisão referente à “simplificação e agilização processual”, que tem obrigatoriamente que ser sujeita ao contraditório das partes, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 7.º-A do CPTA.
H. Ao decidir suprimir a instrução sem sequer permitir às Partes pronunciarem-se sobre tal possibilidade, o Tribunal incorreu na prática de uma nulidade processual (cfr. artigos 7.º-A do CPTA e 3.º/3 e 195.º do CPC) susceptível de influenciar a decisão da causa, o que deverá ser declarado por este douto Tribunal que deverá igualmente anular todo o processado subsequente, incluindo o Saneador-Sentença.
I. A produção de prova – aliás requerida pela Autora na PI, mediante o arrolamento de testemunhas – teria sido imprescindível para permitir ao Tribunal a quo produzir um juízo fundado sobre a matéria alegada nos artigos 133.º a 145.º, 148.º, 150.º a 152.º da PI, que por sua vez poderiam influenciar o juízo a formular pelo Tribunal a respeito do vício de violação do princípio da proporcionalidade que a Autora imputou à Decisão Impugnada.
J. Ao, simultaneamente, (i) dispensar a realização de actos instrutórios e (ii) dispensar a audiência prévia, o Tribunal a quo impediu as Partes – e, em especial, a Autora – de se pronunciar sobre as questões de facto e de direito relevantes para a decisão da causa, na medida em que esta nem sequer pode apresentar alegações.
K. Ainda que eventualmente este douto Tribunal pudesse entender que a decisão de dispensar a realização de quaisquer diligências de prova sem prévia audição das Partes não constitui uma nulidade – hipótese que apenas se coloca por dever de patrocínio – a verdade é que na secção introdutória da Decisão Recorrida o Tribunal a quo decidiu também dispensar a realização de audiência prévia, e também essa decisão constitui uma nulidade processual.
L. O Tribunal a quo dispensou a realização de audiência prévia e proferiu um Saneador-Sentença sem ter previamente permitido às Partes pronunciarem-se sobre a possibilidade de tomar de imediato tais decisões, de forma que também nestes casos estamos perante decisões-surpresa proibidas pelo disposto no artigo 3.º/3 do CPC, aplicável ex-vi do disposto no artigo 1.º do CPTA.
M. O facto de o legislador prever a possibilidade de o Tribunal dispensar a realização da audiência prévia não afasta a obrigação de assegurar o respeito pelo contraditório ao longo de todo o processo que decorre do já citado artigo 3.º do CPC, aplicável ex-vi do disposto no artigo 1.º do CPTA.
N. No caso específico das decisões referentes à dispensa (eventual) de determinados actos processuais, o n.º 1 do artigo 7.º-A do CPTA estabelece que a adopção de decisões referentes a simplificação ou agilização processual dependem sempre da prévia audição das Partes.
O. Ao dispensar a realização da audiência prévia sem previamente ter permitido às Partes o exercício do contraditório o Tribunal a quo cometeu uma nulidade processual (cfr. artigos 7.º-A, 87.º do CPTA e 195.º do CPC), nulidade essa que aqui se invoca e que determina a nulidade de todo o processado subsequente, incluindo o Saneador-Sentença.
P. Na parte em que julga improcedente o vício de incompetência invocado pela Autora nos artigos 35.º a 56.º da PI, a Decisão Recorrida incorre num manifesto erro de julgamento quanto ao âmbito competencial da ERS e, em especial, quanto à interpretação do disposto no artigo 19.º dos Estatutos da ERS.
Q. A Autora havia invocado expressamente a nulidade do acto constante do ponto (iv) da Decisão Impugnada por constituir um acto estranho às atribuições da pessoa colectiva que o emitiu (ERS), nos termos e para os efeitos previstos no artigo 161.º/2/b) do CPA. A Autora alegou ainda que, mesmo que assim não se entendesse, esse acto sempre deveria ser anulado por violação do disposto nos artigos 5.º dos Estatutos da ERS, 12.º/1 da Lei Orgânica do Ministério da Saúde, 2.º/a) do Decreto Regulamentar n.º 14/2012, de 26 de Janeiro, 266.º/2 da CRP e 3.º/1 do CPA.
R. O Tribunal decidiu que a ERS poderia adoptar a decisão impugnada ao abrigo da sua competência para agir em defesa dos direitos dos utentes, o que não tem enquadramento no conteúdo da Decisão Impugnada, na medida em que esta versa sobre uma obrigação burocrática, a cargo do prestador, de registar no processo clínico do utente a obtenção do consentimento informado, e não sobre a obrigação de obter esse consentimento, que não está em discussão nestes autos.
S. A própria ERS reconhece que a competência para estabelecer regras quanto ao consentimento informado é da DGS, entidade que emitiu a Norma 015/2013 que a própria ERS refere (e interpreta incorrectamente) na Decisão Impugnada.
T. O Tribunal a quo parece entender que os temas referentes à obtenção do consentimento informado se colocam a montante da prática de actos médicos, o que é uma leitura relevadora de uma total incompreensão da forma como um acto médico tipicamente decorre, e que negligencia que, por exemplo, durante uma consulta ou um exame pode ser necessário obter o consentimento do utente para a prática de um acto inicialmente não previsto.
U. A prova de que as matérias referentes ao consentimento devem ser tratadas no âmbito das condições aplicáveis aos actos médicos decorre, desde logo, do facto de a DGS, no exercício das suas funções de entidade reguladora das condições aplicáveis ao exercício de actos médicos, ter emitido a Norma 015/2013 que versa especificamente sobre tal matéria. A existência da Norma 015/2013 – cuja validade a própria ERS reconhece – é incompatível com o entendimento sustentado pelo Tribunal a quo na Decisão Recorrida.
V. A Decisão Recorrida assentou assim num claro erro de julgamento ao considerar que a ERS é competente para a prática dos actos contidos na Decisão Impugnada, na medida em que tal competência não resulta dos Estatutos da ERS e, pelo contrário, foi expressamente atribuída pelo legislador à DGS, de forma que a Decisão Recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue procedente o vício de incompetência invocado pela Autora.
W. Na PI, a Autora imputou ao acto impugnado um vício de violação de lei por violação do disposto na Norma 015/2013 e, consequentemente, do disposto nos artigos 266.º/2 da CRP e 3.º/1 do CPA que consagram a vinculação administrativa à lei, o qual foi julgado improcedente pelo Tribunal a quo, que sustenta que a Norma 015/2013 não integra o bloco de juridicidade a cujo respeito a ERS está adstrita.
X. Nessa parte, a Decisão Recorrida assenta num claro erro de julgamento, na medida em que a Norma 015/2013 constitui um acto com natureza normativa emanado pela DGS no exercício das suas competências legais, que produz efeitos externos e cujo conteúdo se aplica a um conjunto geral e abstracto de destinatários, de forma que a Norma 015/2013 integra, evidentemente, o bloco de juridicidade que se impõe à actuação da ERS.
Y. Ao julgar improcedente o vício de violação de lei decorrente da violação do disposto na Norma 015/2013 e artigos 266.º/2 da CRP e 3.º/1 do CPA, o Tribunal a quo incorreu num manifesto erro de julgamento, que deve determinar a revogação da Decisão Recorrida, que deverá ser substituída por outra que julgue procedente o vício invocado pela Autora.
Z. Por ter impedido a Autora de produzir prova sobre os factos alegados nos artigos 133.º a 145.º, 148.º, 150.º a 152.º da PI, o Tribunal a quo acabou por incorrer num erro de julgamento, na parte em que decidiu que a Decisão Impugnada não padece do vício de violação de lei por violação do princípio da proporcionalidade que a Autora lhe imputou na PI.
AA. A Decisão Recorrida assenta numa incorrecta interpretação dos bens jurídicos em presença no que se refere ao vício de violação do princípio da proporcionalidade, na medida em que ao contrário do que o Tribunal a quo parece entender, o ponto (iv) da Decisão Impugnada não visa proteger o direito dos utentes ao consentimento informado, mas apenas assegurar que a obtenção desse consentimento é reduzida a escrito no processo clínico do utente, pelo que não se pode afirmar, como faz o Tribunal a quo na Decisão Recorrida, que o contraponto do excesso burocrático originado pelo acto constante do ponto (iv) da Decisão Impugnada é um direito fundamental dos utentes.
BB. A Decisão Recorrida assenta, assim, num claro erro de julgamento e deve ser revogada e substituída por outra que julgue procedente o vício de violação de lei por violação do princípio da proporcionalidade que a Autora imputa à Decisão Impugnada (cfr. artigos 266.º/2 da CRP e artigos 3.º/1 e 7.º do CPA).
TERMOS EM QUE,
Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em
consequência:
(i) Ser declarada nula a decisão recorrida na parte em que dispensou a prática de qualquer diligência de prova sem prévia audição das Partes, devendo, em consequência, ser anulado todo o processado subsequente, incluindo o Saneador-Sentença; ou, caso assim não se entenda,
(ii) Ser declarada nula a decisão recorrida por ter dispensado a realização da audiência prévia sem que as Partes tenham sido previamente notificadas sobre tal possibilidade e sobre a possibilidade de ser imediatamente conhecido o mérito da causa, devendo, em consequência, ser anulado todo o processado subsequente, incluindo o Saneador-Sentença;
(iii) Ser a sentença revogada por assentar em erro de julgamento e substituída por outra que julgue a acção procedente por provada e, em consequência, declare nulo ou anulado o acto impugnado;
Assim se fazendo a sempre tão desejada JUSTIÇA!
A Ré juntou contra-alegações, concluindo:
A - A lei processual não prevê a necessidade de audição das partes para a emissão de despacho de indeferimento de diligências de prova, o que, desde logo, conduz à conclusão pela não verificação da nulidade processual invocada;
B - O contraditório previsto no art. 3.º, n.º 3 do CPC não é ilimitado, apenas impondo ao juiz que o promova previamente à decisão de questões de direito ou de facto, que incidam ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo, excetuando-se casos de manifesta desnecessidade.
C - Tendo sido notificada da junção do processo instrutor (e estando o mesmo disponível para consulta no SITAF), cabia à Recorrente exercer o contraditório sobre o mesmo, sem dependência de despacho prévio para o efeito.
D - A alteração ao artigo 87º-A do CPTA introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17/09 veio permitir a dispensa de audiência prévia nos casos em que a mesma se destine apenas a facultar às partes a discussão de facto e de direito;
E - Conforme já decidiu o TCAN através do Acórdão de 02-07-2021, no processo 00263/19.8BEPNF, disponível em www.dgsi.pt, em situação absolutamente similar à dos presente autos,
“Por força dessa alteração ao n.° 2 do artigo 87.°-B do CPTA, passou a prever-se a possibilidade de o juiz do processo dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas a facultar às partes a discussão de facto, nas situações em que tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.
3.2.9. No caso, o senhor juiz a quo proferiu despacho a dispensar a realização da audiência prévia, assente na asserção de que “Considerando que a prova documental oferecida é suficiente para a apreciação do pedido, sem necessidade de mais indagações, que as questões que as partes submeteram à apreciação do tribunal foram objecto de suficiente discussão de facto e de direito nos articulados, dispensa-se a realização da audiência prévia (n.º 1 do art.º 7.º-A, alínea d) do n.º 1 do art.º 87.º-A, alínea b) do n.º 1 do art.º 88.º e n.º 3 do art.º 90.º, todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e art.º 547.º do Código de Processo Civil)”, o que fez sem prévia auscultação das partes. E nessa sequência, proferiu decisão de mérito, conhecendo de facto e de direito.
3.10. A não realização da audiência previa nestas concretas circunstâncias não constitui nulidade processual, não implicando como consequência a revogação do saneador-sentença. Em face da nova redação do n.º 2 do artigo 87.º-B do CPTA, o Tribunal a quo, ao não convocar as partes para a realização da audiência prévia, quando pretendia conhecer do mérito da causa, não incumpriu com nenhuma formalidade obrigatória na tramitação da ação, ao invés do que sucedia se igual despacho tivesse sido proferido no domínio da anterior redação desse preceito.
Assim a não realização de audiência prévia quando a mesma podia ser dispensada não constitui naturalmente uma nulidade processual, não se impondo igualmente ao juiz qualquer obrigação de notificar previamente as partes de que pretende dispensar a audiência prévia.
Em face do exposto, sem necessidade de outros considerandos, resulta manifesta a improcedência do invocado fundamento de recurso.”.
F - Em concretização dos seus poderes de supervisão, o artigo 19.º dos referidos Estatutos identifica como incumbências da ERS, entre outras, a de “[z]elar pela aplicação das leis e regulamentos e demais normas aplicáveis às atividades sujeitas à sua regulação, no âmbito das suas atribuições” (alínea a)) e “[e]mitir ordens e instruções, bem como recomendações ou advertências individuais, sempre que tal seja necessário, sobre quaisquer matérias relacionadas com os objetivos da sua atividade reguladora, incluindo a imposição de medidas de conduta e a adoção das providências necessárias à reparação dos direitos e interesses legítimos dos utentes” (alínea b));
G – A sentença recorrida ajuizou corretamente ao entender que “o respeito pela inviolabilidade da integridade moral e física das pessoas – direito de primeiríssimo plano (cfr. artigo 25.º, n.º 1 da CRP) – tem refracções notórias no âmbito de actuação da ERS, já que, como vimos, nos termos do artigo 19.º dos seus Estatutos, cabe-lhe emitir instruções sobre quaisquer matérias relacionadas com os objectivos da sua actividade reguladora, incluindo a imposição de medidas de conduta e a adopção das providências necessárias à reparação dos direitos e interesses legítimos dos utentes.”;
H – O Tribunal a quo qualificou a “Norma 015/2013 como um instrumento não jurídico, isto é, que não se reveste de conteúdo jurídico propriamente dito, na medida em que a mesma não é – ou não poderá ser – qualificada como regulamento administrativo, uma vez que consubstancia, unicamente, um instrumento técnico e científico pautada por critérios de optimização, eficiência e boa gestão dos recursos, que fruto de uma avaliação de tipo cientifico, tende a disciplinar a conduta humana visando determinados fins”;
I - A sentença recorrida entendeu que “(...) mesmo partindo do pressuposto que a Norma 015/2013 constituiria um instrumento vinculativa, a verdade é que, laborando-se num campo de discricionariedade técnica, a utilização de tais critérios não excluiria, necessariamente, a existência de juízos de valoração próprios da ERS face à questão decidenda e, portanto, a sua ponderação e decisão seria também ela dotada de certa flexibilidade interpretativa no que concerne aos actos médicos integrantes das “situações em que o consentimento informado não tem que ser prestado por escrito”.
J - Ou seja, as atribuições da ERS permitem-lhe essa intervenção e os poderes de regulação legalmente reconhecidos permitem que o faça por via de ato administrativo, ou seja, através de uma instrução dirigida a um prestador de cuidados de saúde.
K - Desde logo porque a Norma 015/2013, ao delimitar o seu âmbito de aplicabilidade da forma que o fez, não circunscreveu negativamente qualquer possibilidade de intervenção quanto ao consentimento informado não escrito.
L - O interesse público subjacente à instrução emitida é claro e inequívoco: obrigação de informar o utente sobre os aspetos fundamentais para instruir o seu processo de decisão e escolha e dele obter um consentimento informado é uma manifestação dos direitos à informação e à liberdade de escolha – alíneas e) e f) do n.º 1 da Base 2 da LBS, artigos 3.º e 7.° da Lei n.° 15/2014, de 21 de março e artigo 5.° da “Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina”.
M – Conclui-se como a douta sentença a quo quando afirma que “Analisando os termos da equação, parece-nos que perante o sacrifício aos direitos dos utentes em relação aos sacrifícios burocráticos impostos à actividade desenvolvida pela Autora, a decisão, como parâmetro substantivo das alternativas abstractas, fez um balanceamento equilibrado entre custos e benefícios, já que na ausência de medidas quantitativas ou aritméticas a avaliar, entendemos que se aplicou uma solução justa, uma vez que a medida já é aplicada em outros actos médicos sem que com isso a actividade da Autora fique comprometida, pelo que não vislumbramos em que circunstância é que a solução adoptada implique uma lesão tão grave dos seus interesses e sacrifique de tal modo os seus direitos – em face do direito fundamental dos utentes – que deva ser considerada desproporcional.”.
Nestes termos, e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, com as demais consequências legais.
A Senhora Procuradora Geral Adjunta notificada, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO
Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
1) A Autora explora um estabelecimento de prestação de cuidados de saúde, registado no Sistema de Registo de Estabelecimentos Regulados da ERS, sob o n.º ...26, com a denominação “Hospital ...” - facto não controvertido.
2) No dia 23.12.2021, um utente deslocou-se ao referido estabelecimento hospitalar, onde realizou um conjunto de actos médicos, que lhe tinham sido previamente prescritos - facto não controvertido (cfr. fls. 1 a 5 do processo administrativo apenso).
3) Além da realização dos actos médicos previamente prescritos, o utente foi submetido, por indicação médica, a uma ecografia prostática transrectal - facto não controvertido (cfr. fls. 1 a 5 do processo administrativo apenso.
4) Posteriormente, no dia 04.01.2022, o referido utente apresentou uma reclamação contra a Autora, nos seguintes termos:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
- facto não controvertido (cfr. fls. 5 e 6 do processo administrativo apenso).
5) Na sequência dessa reclamação, a Entidade Reguladora da Saúde procedeu à abertura do processo de inquérito n.º ERS/05..., notificando a Autora para a apresentação de elementos factuais e documentais relevantes - cfr. fls. 17 do processo administrativo apenso.
6) No dia 12.09.2022, a Autora remeteu à Entidade Reguladora da Saúde, além das prescrições médicas referentes à realização dos exames de diagnóstico efectuados, os seguintes esclarecimentos:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
- cfr. fls. 27 a 29 do processo administrativo apenso.
7) Na Reunião n.º 12/2023 do Conselho de Administração da Entidade Reguladora da Saúde, foi aprovada a proposta de projecto de deliberação, com emissão de uma instrução à Autora, nos seguintes termos:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
- cfr. fls. 35 a 47 do processo administrativo apenso.
8) Através do ofício n.º ...23 de 30.03.2023, foi a Autora notificada para se pronunciar sobre o projecto de decisão emitido no processo de inquérito n.º ERS/05... - cfr. fls. 49 do processo administrativo apenso.
9) Em 08.05.2023 a Autora apresentou a sua pronúncia, alegando, em suma, o seguinte:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
- cfr. fls. 53 a 55 do processo administrativo apenso.
10) Na Reunião n.º 19/2023 do Conselho de Administração da Entidade Reguladora da Saúde, de 19.05.2023, foi aprovada a Deliberação final no âmbito do processo de inquérito n.º ERS/05..., nos termos dos quais foi emitida uma instrução ao Hospital ..., S.A., no sentido de:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
- cfr. fls. 70 a 86 do processo administrativo apenso.
DE DIREITO
Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Sem embargo, por força do artigo 149.º do CPTA, o Tribunal, no âmbito do recurso de apelação, não se quedará por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decidirá “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
Assim,
A Recorrente insurge-se contra a sentença recorrida com os seguintes fundamentos:
a) Nulidade por omissão de ato que a lei prevê: dispensa de realização de diligências de prova;
b) Nulidade por omissão de ato que a lei prevê: realização da audiência prévia;
c) Erro de julgamento: incorreta interpretação do âmbito competencial da ERS;
d) Erro de julgamento: incorreta interpretação da vinculação da ERS à Norma 015/2013;
e) Erro de julgamento: incorreta interpretação do disposto no artigo 7º do CPA.
Cremos que carece de razão.
Vejamos,
Da alegada nulidade por omissão de ato que a lei prevê: dispensa de realização de diligências de prova -
Nos termos do artigo 90º, n.º 3 do CPTA, “No âmbito da instrução, o juiz ou relator ordena as diligências de prova que considere necessárias para o apuramento da verdade, podendo indeferir, por despacho fundamentado, requerimentos dirigidos à produção de prova sobre certos factos ou recusar a utilização de certos meios de prova, quando o considere claramente desnecessário.”. Isto é, a lei processual não prevê a necessidade de audição das partes para a emissão de despacho de indeferimento de diligências de prova, o que, desde logo, afasta a nulidade processual invocada.
Por outro lado, tal audição não é imposta pelo princípio do contraditório, à luz do artigo 3º do CPC, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA.
Com efeito, como refere o Acórdão do TCA Sul, de 19/03/2024, proc. 2170/23.0BELSB-S1, “o contraditório, tal como se encontra legalmente consagrado - art. 3.º, n.º 3 do CPC - não é ilimitado, apenas impondo ao juiz que o promova previamente à decisão de questões de direito ou de facto, que incidam ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo, excetuando-se caso de manifesta desnecessidade a qual “há de verificar-se quando os valores que o contraditório salvaguarda, possam ser assegurados sem a intervenção judicial autónoma destinada a possibilitar a pronúncia. Ou seja, a desnecessidade do contraditório verifica-se quando a equidade e igualdade das partes e o imperativo da sua participação efetiva no processo que leva a decisões que impactem os seus interesses, se mantêm respeitados sem aquela intervenção autónoma.”
Com efeito, a manifesta desnecessidade é vista à luz do princípio da proporcionalidade.
Segundo o princípio da proporcionalidade, tal pronúncia é dispensável, nos termos do nº 3 do art.º 3º do CPC, em caso de manifesta desnecessidade; vislumbrando-se como tal, designadamente, aquelas situações em que o efeito pretendido resulta automaticamente da lei, o enquadramento fáctico relevante se mostra insuscetível de controvérsia, ou dados os contornos da lide a decisão era expectável para os seus destinatários.»
Como referido no acórdão, a expressão «salvo caso de manifesta desnecessidade», utilizada no nº 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, deve ser interpretada e densificada, tendo presente o princípio geral da economia processual.
Conforme refere Lebre de Freitas, o resultado processual deve ser atingido com a maior economia de meios e, assim sendo, cada processo deve comportar só os atos e as formalidades indispensáveis ou úteis.” (Ac. do Tribunal da Relação de Évora, P. 4476/21.4T8STB.E1, de 9 de fevereiro de 2023)”.
Ora, o despacho mostra-se perfeitamente fundamentado quanto à desnecessidade de produção de prova:
Compulsados os autos, e tendo em conta a posição que as partes assumiram nos respectivos articulados e a prova documental produzida - cfr. documentos juntos pelas partes nos respectivos articulados -, constata-se que o estado actual do processo contém já todos os elementos necessários para conhecer dos pedidos formulados, inexistindo matéria de facto controvertida com relevo para a decisão da causa, pelo que não se afigura útil realizar qualquer outra diligência de prova, por manifesta desnecessidade, para o apuramento da verdade material e para a boa decisão do pleito.
Estando em causa matéria exclusivamente de direito, julga-se desnecessária a abertura da instrução e indefere-se a produção de prova testemunhal requerida pelas partes.
Por outro lado, não cabia ao tribunal dar à Recorrente qualquer possibilidade de se pronunciar sobre o conteúdo do processo instrutor, ao contrário do que alega.
Com efeito, tendo sido notificada da junção do processo instrutor (e estando o mesmo disponível para consulta no SITAF), cabia-lhe exercer o contraditório sobre o mesmo, sem dependência de despacho prévio para o efeito.
Improcede, assim, a nulidade invocada.
Da nulidade por omissão de ato que a lei prevê: realização da audiência prévia -
Sustenta ainda a Recorrente que se verifica uma nulidade processual por ter dispensado a realização da audiência prévia sem ter ouvido as partes sobre tal dispensa.
Não secundamos esta leitura.
Dispõe-se no artº 195.º, n.º 1 do CPC que “[…] a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Como se infere deste dispositivo a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, recordando-se que “ [o]legislador em parte alguma esclarece quando é que se deve entender que a irregularidade cometida influiu no exame ou na decisão da causa, pelo que “só caso por caso a prudência e a ponderação dos juízes poderão resolver”- vide Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, Almedina, 1982, pág. 109”.
Resulta, ainda, do n.º 3 do artigo 3,º do CPC, que tem por objetivo banir as decisões surpresa, que o Juiz não pode decidir questões de facto ou de direito, ainda que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, não podendo igualmente decidir com base em qualificação substancialmente inovadora que as partes não hajam considerado, sem antes lhes ter dado a possibilidade de produzirem as suas alegações, perspetivando o enquadramento jurídico vislumbrado pelo tribunal.
Ora, a alteração ao artigo 87º-A do CPTA introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17/09 veio permitir a dispensa de audiência prévia nos casos em que a mesma se destine apenas a facultar às partes a discussão de facto e de direito - cfr. artigo 87º-B, n.º 2 do CPTA.
Conforme decidido por este TCAN no Acórdão de 02/07/2021, proc. 00263/19.8BEPNF, “Por força dessa alteração ao n.º 2 do artigo 87.º-B do CPTA, passou a prever-se a possibilidade de o juiz do processo dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas a facultar às partes a discussão de facto, nas situações em que tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.
No caso, o senhor juiz proferiu despacho a dispensar a realização da audiência prévia, assente na asserção de que:
Impondo-se o prosseguimento da presente acção e dado que, no caso, a realização da audiência prévia se destinaria apenas ao fim previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 87.º-A do CPTA [proferir despacho saneador destinado a conhecer do mérito da causa, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 88.º], dispensa-se a realização da audiência prévia, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 87.º-B.
Temos, pois, que a não realização da audiência prévia nestas concretas circunstâncias não constitui nulidade processual, não implicando como consequência a revogação do saneador-sentença.
Dito de outro jeito, em face da nova redação do n.º 2 do artigo 87.º-B do CPTA, o Tribunal a quo, ao não convocar as partes para a realização da audiência prévia, quando pretendia conhecer do mérito da causa, não incumpriu com nenhuma formalidade obrigatória na tramitação da ação, ao invés do que sucedia se igual despacho tivesse sido proferido no domínio da anterior redação desse preceito.
A não realização de audiência prévia quando a mesma podia ser dispensada não constitui naturalmente uma nulidade processual, não se impondo igualmente ao juiz qualquer obrigação de notificar previamente as partes de que pretende dispensar a audiência prévia.
Em face do exposto, resulta manifesta a improcedência do invocado fundamento de recurso.
Do erro de julgamento: incorreta interpretação do âmbito competencial da ERS -
O ato administrativo impugnado pela ora recorrente aprovou a emissão de uma instrução, a saber:
“(i) Garantir, em permanência e em todo o processo de prestação de cuidados de saúde, os direitos dos utentes à informação e ao consentimento ou recusa informado, em conformidade com o disposto nas alíneas e) e f) do n.º 1 da Base 2 da LBS, artigos 3.º e 7.º da Lei n.º 15/2014, de 21 de março e artigo 5.º da “Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina”;
(ii) Respeitar os direitos e interesses legítimos dos utentes, no âmbito da realização de exames imagiológicos, em especial o direito de acesso a todo e qualquer exame prescrito inicialmente pelo médico assistente;
(iii) Assegurar, sempre que necessário, a articulação e coordenação entre o médico radiologista e o médico prescritor, para garantia e salvaguarda do direito de acesso a uma prestação de cuidados de saúde com qualidade e com prontidão, de acordo com a melhor evidência científica disponível;
(iv) Registar e fundamentar no processo clínico dos utentes o processo de informação e de obtenção de consentimento informado;
(v) Garantir a adoção de procedimentos e/ou normas internas adequadas ao cumprimento do disposto nas alíneas (i) a (iv);
(vi) Assegurar, em permanência, que os procedimentos descritos na alínea anterior são do conhecimento dos seus profissionais e por eles, efetivamente, adotados, logrando assim a divulgação de padrões de qualidade dos cuidados, de recomendações e boas práticas, com vista à formação e informação dos profissionais de saúde intervenientes;
(vii) Dar cumprimento imediato à presente instrução, bem como dar conhecimento à ERS, no prazo máximo de 30 (trinta) dias úteis, após a notificação da presente deliberação, dos procedimentos adotados para o efeito.”
A Recorrente restringiu a sua intenção impugnatória ao ponto iv) da instrução e aos pontos v), vi) e vii) na medida do que sejam instrumentais ao ponto iv).
A Recorrente defende que a ERS não é competente para emitir uma instrução com o conteúdo da decisão impugnada e que ao fazê-lo praticou um ato ferido do vício de incompetência, por violação do artigo 5º dos Estatutos da ERS e artigo 2º do Decreto-regulamentar n.º 14/2012, de 26 de janeiro.
Todavia, sem razão.
A Recorrente assenta a sua tese na premissa de que a competência para regulamentar a forma como devem ser praticados os atos médicos cabe à DGS e não à ERS.
No entanto, como bem referiu a sentença, não se trata de intervir na forma como são praticados os atos médicos, no sentido técnico, mas sim de proteger os direitos dos utentes.
Ora, nos termos do n.º 1 artigo 5º da Estatutos, a ERS tem por missão “a regulação, nos termos previstos nos presentes estatutos, da atividade dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde”.
Nas atribuições da ERS cabem a supervisão da atividade e funcionamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde no que respeita, entre outras e para o que aqui interessa, “À garantia dos direitos relativos ao acesso aos cuidados de saúde, à prestação de cuidados de saúde de qualidade, bem como dos demais direitos dos utentes;” - cfr. al. b) do n.º2 do artigo 5º do Estatutos.
Por outro lado, no “mandato regulatório” da ERS o legislador fixou os seguintes objetivos da regulação, entre outros, no artigo 10º dos Estatutos:
“b) Assegurar o cumprimento dos critérios de acesso aos cuidados de saúde, nos termos da Constituição e da lei;
c) Garantir os direitos e interesses legítimos dos utentes;
d) Zelar pela prestação de cuidados de saúde de qualidade;”
A densificação dos objetivos enunciados nas três alíneas supramencionadas é concretizada nos artigos seguintes dos Estatutos da ERS.
A alínea a) do artigo 12.° dos referidos estatutos estabelece que “[p]ara efeitos do disposto na alínea b) do artigo 10.º incumbe à ERS [a]ssegurar o direito de acesso universal e equitativo à prestação de cuidados de saúde nos serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), nos estabelecimentos publicamente financiados, bem como nos estabelecimentos contratados para a prestação de cuidados no âmbito de sistemas ou subsistemas públicos de saúde ou equiparados”.
O artigo 13.º estabelece, quanto ao objetivo enunciado na alínea c) do artigo 10.º dos seus Estatutos, que incumbe à ERS, “[a]preciar as queixas e reclamações dos utentes e monitorizar o seguimento dado pelos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde às mesmas, nos termos do artigo 30.º, garantindo o direito de acesso pela Direção-Geral da Saúde e pela Direção-Geral do Consumidor à informação quanto à natureza, tipologia e volume das causas mais prevalentes de reclamações, bem como proceder ao envio de relatórios periódicos às mesmas entidades” (alínea a)) e “[v]erificar o cumprimento da «Carta dos Direitos de Acesso aos Cuidados de Saúde pelos utentes do Serviço Nacional de Saúde», designada por «Carta dos Direitos de Acesso» por todos os prestadores de cuidados de saúde, nela se incluindo os direitos e deveres inerentes” (alínea b)).
O objetivo traçado na alínea d) do artigo 10.º dos mencionados Estatutos é densificado no artigo 14.° daquele diploma legal, atribuindo à ERS a incumbência de “[g]arantir o direito dos utentes à prestação de cuidados de saúde de qualidade (...)” (alínea c)) e de “[p]ropor e homologar códigos de conduta e manuais de boas práticas dos destinatários atividade objeto de regulação pela ERS” (alínea d)).
Ademais, em concretização dos seus poderes de supervisão, o artigo 19.º dos referidos Estatutos identifica como incumbências da ERS, entre outras, a de “[z]elar pela aplicação das leis e regulamentos e demais normas aplicáveis às atividades sujeitas à sua regulação, no âmbito das suas atribuições” (alínea a)) e “[e]mitir ordens e instruções, bem como recomendações ou advertências individuais, sempre que tal seja necessário, sobre quaisquer matérias relacionadas com os objetivos da sua atividade reguladora, incluindo a imposição de medidas de conduta e a adoção das providências necessárias à reparação dos direitos e interesses legítimos dos utentes” (alínea b)).
Nessa medida, nenhuma censura merece a sentença recorrida quando considera que “face à particularidade da relação jurídica de prestação de cuidados de saúde - condensada pelas circunstâncias concretas do caso que temos entre mãos - entendemos que o respeito pela inviolabilidade da integridade moral e física das pessoas - direito de primeiríssimo plano (cfr. artigo 25.º, n.º 1 da CRP) - tem refracções notórias no âmbito de actuação da ERS, já que, como vimos, nos termos do artigo 19.º dos seus Estatutos, cabe-lhe emitir instruções sobre quaisquer matérias relacionadas com os objectivos da sua actividade reguladora, incluindo a imposição de medidas de conduta e a adopção das providências necessárias à reparação dos direitos e interesses legítimos dos utentes.”.
(...)
Assim, entendemos que a reflexão da Autora não merece acolhimento, já que a questão não se conecta com a latitude das opções quanto à terapêutica a adoptar para cada caso clínico. A protecção dos direitos dos utentes não se insere, naturalmente, no exercício da determinação do objecto de cada acto médico. A forma como devem ser praticados os actos médicos não é jurídica, ao passo que a protecção dos direitos dos utentes é, pelo que a efectivação destes actos materiais não se confunde - ou não se deverá confundir - com a questão da protecção dos direitos dos utentes - matéria que se lhe impõe a montante, como seja o direito ao consentimento livre e esclarecido. A instrução agora sindicada tem como desiderato regular, num plano situacional, o momento a montante da prática do acto médico.”.
Desatende-se esta argumentação atinente ao erro de julgamento quanto à improcedência do vício de incompetência alegado pela Recorrente.
Do erro de julgamento: incorreta interpretação da vinculação da ERS à Norma 015/2013 -
Discorda a Recorrente do entendimento subscrito pela sentença recorrida, segundo o qual a Norma 015/2013 não constitui um regulamento administrativo e, nessa medida, não vincula a ERS na decisão impugnada.
Com efeito, entendeu o Tribunal qualificar a “Norma 015/2013 como um instrumento não jurídico, isto é, que não se reveste de conteúdo jurídico propriamente dito, na medida em que a mesma não é - ou não poderá ser - qualificada como regulamento administrativo, uma vez que consubstancia, unicamente, um instrumento técnico e científico pautado por critérios de optimização, eficiência e boa gestão dos recursos, que fruto de uma avaliação de tipo científico, tende a disciplinar a conduta humana visando determinados fins.”.
Por essa razão, entendeu ainda que a “vinculação da ERS à Norma 015/2013 está dependente de norma legal para o efeito. Por outras palavras, a actividade desenvolvida pelos seus órgãos apenas pode tomar por referencial vinculativo as normas de natureza extrajurídica caso haja uma previsão inserida em preceitos jurídicos que imponham nesse sentido. No fundo, apenas por remissão da lei para normas extrajurídicas é que estas passam a gozar de obrigatoriedade jurídica, traduzindo-se a sua violação numa violação da própria lei remissiva. Ora, nesta medida, não se vislumbra habilitação legal neste sentido, pelo que os critérios de actuação da ERS não estão, naturalmente, definidos pelas pautas estabelecidas na Norma 015/2013, pelo que os pressupostos da sua decisão opera-se em contexto externo aos fixados naquele instrumento”.
Cremos que os fundamentos de discordância da Recorrente não são suficientes para abalar a fundamentação da sentença recorrida.
Tanto mais que a sentença decidiu a questão ainda sob outro prisma.
Com efeito, para além da desqualificação da Norma 015/2013 como regulamento administrativo, a sentença recorrida entendeu que (...) mesmo partindo do pressuposto que a Norma 015/2013 constituiria um instrumento vinculativo, a verdade é que, laborando-se num campo de discricionariedade técnica, a utilização de tais critérios não excluiria, necessariamente, a existência de juízos de valoração próprios da ERS face à questão decidenda e, portanto, a sua ponderação e decisão seria também ela dotada de certa flexibilidade interpretativa no que concerne aos actos médicos integrantes das “situações em que o consentimento informado não tem que ser prestado por escrito”. Isto é, as atribuições da ERS permitem-lhe essa intervenção e os poderes de regulação legalmente reconhecidos permitem que o faça por via de ato administrativo, ou seja, através de uma instrução dirigida a um prestador de cuidados de saúde.
Desde logo porque a Norma 015/2013, ao delimitar o seu âmbito de aplicabilidade da forma que o fez, não circunscreveu negativamente qualquer possibilidade de intervenção quanto ao consentimento informado não escrito.
Daí que o Tribunal a quo tenha julgado, e bem, quando refere que
“não significa isto que outros actos médicos estejam isentos do consentimento informado escrito. E aqui reside, verdadeiramente, um outro plus à ideia que temos vindo a exprimir. É que, não nos esqueçamos que o que está em causa nestes autos é, fundamentalmente, a protecção de direitos individuais de primeiríssimo plano, pelo que a Administração Pública, na interpretação da “lei”, deve escolher aquela que melhor salvaguarda os direitos e interesses fundamentais do cidadão.
Portanto, não obstante a Norma emitida pela DGS compilar uma série de actos médicos sujeitos à obrigatoriedade de consentimento escrito, tal circunstância não invalida ou impede que se possam erigir outros actos médicos sujeitos a essa obrigatoriedade. Veja-se, por exemplo, que na referida Norma é estabelecido como obrigatoriedade de consentimento escrito a “realização de atos diagnósticos ou terapêuticos invasivos majores”, o que pressupõe o reconhecimento de um espaço de verdadeira discricionariedade técnica, cujo critério objectivo é suplantado por critérios subjectivos. Queremos com isto dizer que não podemos olhar para o parágrafo 6 da Norma 015/20213 como um elenco taxativo e fechado de actos médicos que unicamente comportam a obrigatoriedade do consentimento escrito.”.
Revemo-nos nesta posição; consequentemente, não existe qualquer vício de violação de lei, concretamente, de qualquer disposição da Norma 015/2013, ou mesmo da Norma como fazendo parte do “bloco de legalidade” a que a ERS estaria alegadamente adstrita.
Do erro de julgamento: incorreta interpretação do disposto no artigo 7º do CPA -
Neste patamar alega a Autora que o ato administrativo impugnado é ilegal, uma vez que se afigura desproporcionado, por implicar uma elevada carga burocrática.
No que concerne à violação do princípio da proporcionalidade, dir-se-á que este comete à Administração a obrigação de adequar os seus atos aos fins concretos que se visam atingir, ajustando ao necessário e razoável as limitações impostas aos direitos e interesses de outras entidades.
Assim, este princípio tem subjacente a ideia de limitação do excesso, para que o exercício dos poderes não ultrapasse o indispensável à realização dos objetivos públicos. O que vale por dizer que as decisões da Administração que interfiram com direitos dos particulares devem ser adequadas e proporcionadas aos objetivos a realizar, de harmonia com o consagrado nos artigos 266.º, nºs 1 e 2, da CRP, 4.º e 5.º do CPA.
Conforme é, pacífica e univocamente, aceite pela doutrina e pela jurisprudência, o princípio da proporcionalidade assume três vertentes essenciais: (i) a adequação, que estabelece a conexão entre os meios e as medidas e os fins e os objetivos; (ii) a necessidade, que se traduz na opção pela ação menos gravosa para os interesses dos particulares, ou seja, a menos lesiva dos seus direitos e interesses; e (iii) o equilíbrio, ou proporcionalidade em sentido estrito, que estabelece a relação entre a ação e o resultado.
Ademais, um tal princípio, verdadeiramente estruturante do princípio do Estado de Direito, constitui um postulado ou norma de atuação a ser observado no exercício da atividade discricionária da Administração, na qual esta detenha liberdade para escolha de alternativas comportamentais, funcionando, assim, como limite interno dessa atividade, não relevando, em consequência, no domínio da atividade vinculada, consistente na simples subsunção de um dado concreto à previsão normativa dos comandos legais vigentes (cfr., o Acórdão do STA, de 17/12/99, no âmbito do recurso n.º 40313).
De facto, o princípio da proporcionalidade constitui uma dimensão incontornável do princípio do Estado de direito, enquanto limite quer à restrição de direitos fundamentais, quer de qualquer medida de autoridade que afete as posições jurídicas ou os interesses juridicamente protegidos dos particulares.
Ele impõe uma ponderação entre o interesse público que justifica a medida de autoridade e a limitação ou restrição da esfera jurídica dos particulares, interditando intervenções excessivas (proibição do excesso).
Alega a Autora que, in casu, a instrução é desproporcionada porque se traduz na imposição de uma obrigação sem que daí decorra qualquer benefício para o interesse público.
Não vemos que assim seja.
Com efeito, o interesse público subjacente à instrução emitida é claro e inequívoco: obrigação de informar o utente sobre os aspetos fundamentais para instruir o seu processo de decisão e escolha e dele obter um consentimento informado é uma manifestação dos direitos à informação e à liberdade de escolha - alíneas e) e f) do n.º 1 da Base 2 da LBS, artigos 3.º e 7.° da Lei n.° 15/2014, de 21 de março e artigo 5.° da “Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina”.
Como assertivamente fez notar a sentença: “Analisando os termos da equação, parece-nos que perante o sacrifício aos direitos dos utentes em relação aos sacrifícios burocráticos impostos à actividade desenvolvida pela Autora, a decisão, como parâmetro substantivo das alternativas abstractas, fez um balanceamento equilibrado entre custos e benefícios, já que na ausência de medidas quantitativas ou aritméticas a avaliar, entendemos que se aplicou uma solução justa, uma vez que a medida já é aplicada em outros actos médicos sem que com isso a actividade da Autora fique comprometida, pelo que não vislumbramos em que circunstância é que a solução adoptada implique uma lesão tão grave dos seus interesses e sacrifique de tal modo os seus direitos - em face do direito fundamental dos utentes - que deva ser considerada desproporcional.”.
Logo, também este erro de julgamento alegado não tem sustentação.
Em suma,
Como decorre da sentença posta em crise:
Dissecando os termos da preposição a interpretar, verificamos que, num primeiro plano, incumbe à ERS emitir ordens e instruções sobre quaisquer matérias relacionadas com os objectivos da sua actividade reguladora. Portanto, é à semelhança da Lei-Quadro das Entidades Reguladoras, visa aqui o legislador conferir um amplo espectro de possibilidades, permitindo à ERS, dentro do seu âmbito de actuação, emitir instruções em razão da valoração que faça da situação concreta. Por outras palavras, confere aqui o legislador um claro poder de actuação discricionário no âmbito da emissão de instruções, no qual, e segundo valorações próprias do exercício da função administrativa, permitem determinar o conteúdo, oportunidade e mérito dos seus termos. Por outro lado, e num segundo momento, a norma acrescenta a emissão de instruções enquanto uma modalidade de imposição de medidas de conduta necessárias à reparação dos direitos e interesses legítimos dos utentes. Tanto assim é que o legislador teve o cuidado de utilizar o termo ou preposição “incluindo”, na 2.ª parte da norma, o que significa que decomposta a norma, o último inciso visa alargar o âmbito de aplicação da mesma e não, ao invés, restringir a sua aplicação, tal como defende a Autora.
E continua:
a protecção dos direitos fundamentais, num campo volátil e de cientificidade complexa como é a ciência médica, exige abertura normativa, e não uma indiscutibilidade dos actos médicos sujeitos à obrigatoriedade escrita do consentimento informado. Note-se que, e já o afirmámos antes, o consentimento informado é um direito fundamental - cfr. artigo 25.º, n.º 1 da CRP - e, nesta medida, reconhecido aos utentes pela Lei de Bases de Saúde e, bem assim, pela Convenção para a protecção dos direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às aplicações da Biologia e da Medicina. Assim sendo, a sua protecção depende mais de leituras “actualizadas” do que propriamente soluções tendencialmente unívocas e pré-estabelecidas, resumidas à mera verificação de um facto incontestável.
Um importantíssimo corolário do regime material dos direitos, liberdade e garantias é o modo como a actividade administrativa está a ele subordinado. Dentro deste campo, é geralmente aceite que a Administração não pode restringir, mas pode e deve, no âmbito das suas atribuições e competências, proteger, promover e concretizar, na falta de lei específica, as normas relativas aos direitos, liberdade é garantias. Não é, então, uma actividade de execução da lei, mas antes de execução vinculada da Constituição. Portanto, na medida em que for necessário e indispensável à realização de direitos fundamentais, a Administração pode, dentro do seu campo de actuação e na ausência de lei específica, proteger e promover normas relativas aos direitos fundamentais.
Deste modo, julgamos que a Decisão aqui sindicada mais não é do que a promoção e protecção de um direito fundamental, pelo que a ERS tem toda a legitimidade, face à ausência de Lei específica, de promover a obrigatoriedade do consentimento escrito em outros actos médicos, se assim o julgar conveniente e oportuno para a protecção dos direitos fundamentais dos utentes.
Improcedem as Conclusões das alegações.
DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
Notifique e DN.
Porto, 25/10/2024
Fernanda Brandão
Paulo Ferreira de Magalhães (Com a seguinte declaração:
"Voto de vencido: Porque entendo que esta Subsecção Administrativa Social não é competente, em razão da matéria, para o conhecimento do mérito do presente recurso de Apelação."
Rogério Martins |