Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00539/12.5BEAVR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/29/2025
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:VIRGÍNIA ANDRADE
Descritores:IVA;
REGULARIZAÇÕES;
BOA FÉ; RISCO;
Sumário:
I. Se, após o registo das operações efectuadas pelo sujeito passivo for reduzido o valor tributável das sobreditas operações, o fornecedor do bem ou prestador do serviço poderá efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável, preenchido que esteja o pressuposto de que detém prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do respectivo imposto - n.º 5 do artigo 78.º do CIVA.

II. Acresce que, a Jurisprudência comunitária tem vindo a entender que para garantir a aplicação do princípio da neutralidade do IVA, compete aos Estados-Membros prever a possibilidade de correcção de qualquer imposto indevidamente facturado, desde que quem emita a factura demonstre ter agido de boa fé.

III. Só assim não é, quando o risco de perda de receitas fiscais foi completamente eliminado, em tempo útil.

IV. No processo tributário são admitidos todos os meios gerais de prova, não se encontrando este limitado a um especifico modo de prova – cfr. artigo 115.º do CPPT.

V. Cabe ao Tribunal apurar a matéria de facto relevante com vista a integrar as várias soluções plausíveis da questão de direito suscitada, incumbindo-lhe realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados.

VI. Podendo a inquirição de testemunhas esclarecer o Tribunal sobre os factos alegados, o julgamento da matéria de facto mostra-se deficitário.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte

1 – RELATÓRIO
A Fazenda Pública, vem interpor recurso jurisdicional da sentença proferida em 5.08.2020 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, que julgou procedente a impugnação intentada contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado do período de 0906, no montante de €244.808,89, e respectiva liquidação referente a juros compensatórios, no montante total de €10.570,38.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
“I – O OBJECTO DO RECURSO
I. Visa o presente recurso reagir contra a sentença proferida nos autos em epígrafe, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por [SCom01...], Lda. contra o indeferimento do recurso hierárquico apresentado relativamente à liquidação adicional de IVA e respectivos juros compensatórios do período 2009/06.
II. A questão decidenda a submeter ao julgamento do Tribunal ad quem consiste em saber se a sentença padece de erro de julgamento, de facto e de direito, por nela se ter entendido que a impugnante poderia ter procedido à regularização do imposto através do mecanismo previsto no n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA sem que observasse os requisitos relativo à boa-fé do emitente da factura e à eliminação do risco de perda de receitas fiscais.
II – A FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
III. Se, quanto aos factos dados como provados, acompanhamos a formulação do Tribunal a quo, já deveria ter sido dado como não provado que «A liquidação de IVA nas facturas referidas no ponto E) e a não aplicação das regras da inversão do sujeito passivo apenas ocorreu por erro dos serviços contabilísticos da impugnante».
IV. Apesar de ter sido alegado pela recorrida que esta prática se tinha ficado a dever a um erro praticado pelo responsável da sua contabilidade, não foi apresentada qualquer prova documental ou testemunhal que corroborasse tal alegação, incorrendo o Tribunal em erro de julgamento de facto, violando o disposto no n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
III – OS PRESSUPOSTOS PARA A REGULARIZAÇÃO
V. Da factualidade dada como provada emerge que a impugnante, tendo emitido diversas facturas à [SCom02...] (que não procedeu ao seu pagamento) sem observar a regra do «reverse charge», procedeu à regularização a seu favor do IVA contido naquelas facturas.
VI. Assim, o thema decidendum cinge-se a saber se, além do requisito de ordem formal (a comunicação da regularização ao adquirente), era igualmente necessário que a impugnante tivesse dado cumprimento ao requisito da boa-fé e ao da eliminação do risco de perda de receitas fiscais.
VII. Tendo o Tribunal a quo considerado que a impugnante comunicou à adquirente a anulação das facturas, através da emissão de notas de crédito, e não rejeitando a AT a existência desta comunicação, o que se discute são as consequências que a impugnante pretende extrair da mesma, defendendo os SIT uma interpretação teleológica (e não literal) da norma, em conformidade com o Direito Comunitário.
VIII. Por conseguinte, nesta tarefa interpretativa há que fazer apelo aos princípios que o enformam (mormente o princípio da neutralidade do sistema do IVA e o princípio da uniformidade), com base nos quais se vêm estribando as decisões da jurisprudência comunitária nesta matéria.
IX. Assim, além dos requisitos formais para se proceder a uma regularização de IVA, tem vindo a ser exigido um requisito intencional (a boa-fé do emitente da factura) e, mesmo que este possa não ser observado, não pode deixar de se entender como necessária a eliminação do risco de perda de receitas fiscais.
X. O Tribunal – não se nos afigurando recusar este entendimento – considerou, no entanto, que além de estes requisitos “não constarem da fundamentação formal do acto impugnado”, a AT não demonstrou a sua não verificação no caso em apreço.
XI. Ao ter assim decidido, o Tribunal a quo laborou em erro de julgamento, violando o disposto no n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 77.º e no n.º 1 do artigo 74.º, ambos da LGT.
XII. Em primeiro lugar, porque não estamos perante um caso de fundamentação a posteriori, dado que os SIT fundaram as suas correcções na ausência de boa-fé da impugnante e na inexistência de eliminação do risco de perda de receitas fiscais, existindo no Relatório Final suficientes elementos integradores desses conceitos.
XIII. Porém, mesmo que assim não fosse, é inequívoco que, quer da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, quer da que recaiu sobre o recurso hierárquico, consta a menção expressa e inequívoca a tais requisitos, padecendo de erro de julgamento “a sentença que, ao fiscalizar o cumprimento do dever de fundamentação, atende exclusivamente aos elementos do acto reclamado e não aos que constam do acto que decidiu a reclamação graciosa das liquidações sindicadas, deduzida ao abrigo do artigo 102º, nº 2 do Código de Procedimento e Processo Tributário e que constitui o objecto de impugnação judicial”.
XIV. Em segundo lugar, porque constam nos autos elementos suficientes que permitem concluir no sentido do não cumprimento, por parte da impugnante, daqueles requisitos adicionais.
XV. No que respeita à boa-fé, a impugnante:
a) apesar de ter, desde 2007, pleno conhecimento “das novas regras aplicáveis em sede de IVA ao sector da construção civil e afins” procedeu à emissão intercalada de facturas com aplicação e sem aplicação da regra do «reverse charge» (não se encontrando provado que esta prática se ficou a dever a um “erro dos serviços” de contabilidade);
b) não emitiu notas de crédito para todas as facturas em que não aplicou o «reverse charge»;
c) quanto à emissão e comunicação dos documentos em causa, geriu o decurso do tempo em função dos seus exclusivos interesses financeiros, descurando a componente tributária inerente a todo este procedimento.
XVI. Relativamente à eliminação do risco de perda de receitas fiscais:
a) a resposta da [SCom02...] à impugnante evidenciava claramente que não iria realizar a correspondente regularização do imposto a favor do Estado, tanto mais que esta última confessou não ter conseguido entregar em mão as notas de crédito;
b) não se revela necessário demonstrar que tal perda “se tornou efectiva”, sob pena de assistirmos a uma completa inversão do mecanismo de regularização;
c) não é exigível alegar e provar que “os meios coercitivos de cobrança ao dispor da Autoridade Tributária não seriam eficazes”, atendendo a que o legislador não estabeleceu como requisito inicial do direito à regularização a cobrança ou a não cobrança do imposto junto do adquirente.
XVII. Em suma, não tendo a impugnante dado pleno cumprimento ao previsto no n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA, se devidamente interpretado em conformidade com o direito comunitário aplicável, não lhe assistiria o direito de regularização de imposto que lhe foi reconhecido pelo Tribunal a quo, incorrendo este em erro de julgamento, de facto e de direito, por violação do disposto naquele mesmo normativo, bem como nos n.ºs 1 e 2 do artigo 77.º e no n.º 1 do artigo 74.º, ambos da LGT e no n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a decisão ora posta em crise, considerando-se a impugnação totalmente improcedente, assim se fazendo
JUSTIÇA.”
*
A Recorrida apresentou contra-alegações, sustentando que a sentença alvo de recurso não merece a censura que lhe é assacada, deduzindo as seguintes conclusões:
“1. O recurso da matéria de facto deve ser rejeitado pois a boa fé do contribuinte presume-se e o ónus da prova da existência de um comportamento de má-fé estaria imposto sobre a AT;
2. Mesmo que não se considere provado um determinado facto, tal não implica que passe a considerar-se provado o seu contrário.
3. A inobservância do regime da inversão do sujeito passivo (“reverse charge”) por erro dos serviços da Recorrida não coloca em causa a aferição da sua boa-fé.
4. Os requisitos respeitantes à boa-fé do emitente da fatura e à eliminação do risco de perda de receitas fiscais não constam da fundamentação formal do ato de liquidação impugnado.
5. A validade substancial do ato afere-se pela sua fundamentação formal.
6. A Recorrida apenas procedeu à regularização do IVA após ter na sua posse prova de que a adquirente [SCom02...] tomou conhecimento da retificação, tendo cumprido as formalidades legalmente exigidas pelo artigo 78.º, n.º 5 do Código do IVA.
7. A retificação do IVA a favor da Recorrida é justa e legal, e cumpriu as formalidades legalmente exigidas, quer do ponto de vista dos seus requisitos documentais, quer do ponto de vista da sua tempestividade.
8. Sem conceder, o facto de, em datas intercaladas, a Recorrida ter observado o regime do “reverse charge” numas faturas e de noutras ter liquidado indevidamente o IVA, não demonstra que o seu comportamento não integra o conceito de boa-fé, bem pelo contrário, é mais um indício no sentido da qualificação do ocorrido como um erro.
9. O mero decurso do tempo não configura argumento suficiente para eliminar o direito à regularização do IVA.
10. A lei fiscal considera justo, razoável e adequado o prazo de dois anos para que seja garantida a reposição da verdade tributária.
11. A Recorrida encontra-se de boa-fé, em virtude de o exercício do direito à regularização do IVA estar limitado apenas aos impostos devidos.
12. O requisito da eliminação do risco de perda de receitas fiscais só deve ser analisado e tido em consideração quando não for possível constatar a boa-fé do emitente da fatura, in casu, a Recorrida.
13. A posse da prova de que a adquirente tomou conhecimento da retificação do IVA é suficiente para demonstrar que o Contribuinte eliminou o risco de perda de receitas fiscais – tal como sucedeu.
14. Sem prescindir, a Recorrida adotou todos os comportamentos que estavam ao seu alcance para acautelar a eliminação do risco de perda de receitas fiscais, tendo-o eliminado antes de proceder à regularização do imposto.
15. Não há qualquer facto provado que indicie a existência de risco para a cobrabilidade do IVA à [SCom02...] ou aos seus gerentes em sede de reversão
16. A Administração Tributária deve exigir o pagamento do IVA devido à adquirente [SCom02...], ao invés de o exigir à Recorrida.
17. A douta sentença julgou correctamente os factos e aplicou o direito de modo irrepreensível. Por isso, deve ser mantida e confirmada.
Nestes termos e nos demais de Direito que VV. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado não provado e improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.”

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A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, por acompanhar o entendimento vertido na decisão recorrida, por se afigurar que interpreta de forma adequada a realidade factual e procede a um correto enquadramento jurídico.
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Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos ao abrigo do disposto no artigo 657.º n.º 4 do Código de Processo Civil, submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.

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Objecto do recurso

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta do disposto no artigo 608.º n.º 2, artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir do erro de julgamento de facto e de direito.


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2 - Fundamentação
2.1. Matéria de Facto
O Tribunal a quo decidiu a matéria de facto da seguinte forma, que aqui se reproduz:
“ A) A sociedade [SCom01...], Lda., aqui impugnante, dedica-se à atividade de fabricação de estruturas e construções metálicas – cfr. fls. 3 do processo administrativo apenso aos autos.
B) No exercício da sua atividade a impugnante presta serviços e fornece bens a outros empreiteiros, no âmbito de obras por estes adjudicadas – acordo (cfr. artigo 11.º, b da petição inicial e artigo 1.º da contestação).
C) No âmbito da obra do “... Park de ...”, a impugnante forneceu à sociedade “[SCom02...], Lda.” um conjunto de serviços e bens da sua indústria - acordo (cfr. artigo 11.º, b da petição inicial e artigo 1.º da contestação).
D) A sociedade “[SCom02...], Lda.” está enquadrada para efeitos de IVA no regime normal - acordo (cfr. artigo 11.º, b da petição inicial e artigo 1.º da contestação).
E) A impugnante emitiu e entregou à sociedade “[SCom02...], Lda.” as seguintes faturas:
Número Data Valor IVA Total
1973 30/10/2007 39.000,00 € 8.190,00 € 47.190,00 €
1976 30/10/2007 60.000,00 € 12.600,00 € 72.600,00 €
1989 30/11/2007 39.000,00 € 8.190,00 € 47.190,00 €
1998 28/12/2007 533.714,90 € 112.080,13 € 645.795,13 €
2028 28/01/2008 371.967,63 € 78.113,20 € 450.080,83 €
2029 28/01/2008 12.937,00 € 2.716,77 € 15.653,77 €
2041 28/03/2008 37.325,00 € 7.819,35 € 45.054,35 €
2042 28/03/2008 49.587,81 € 10.413,44 € 60.001,25 €
2078 31/07/2008 23.430,00 € 4.686,00 € 28.116,00 €
Total 244.808,89 €
F) A sociedade “[SCom02...], Lda.” não procedeu ao pagamento das faturas mencionadas na alínea anterior - acordo (cfr. artigo 11.º da petição inicial e artigo 1.º da contestação).
G) Os fornecimentos relativos a essas faturas consistiram no fornecimento, montagem e instalação de estruturas metálicas a incluir em obra de construção civil desenvolvida pela “[SCom02...], Lda.” para o referido “... Park” – acordo (cfr. artigo 11.º da petição inicial e artigo 1.º da contestação).
H) Considerando que não deveria ter procedido à liquidação de IVA nas faturas mencionadas na alínea F), na medida em que deveria ter sido aplicada a regra da inversão do sujeito passivo, em 19/12/2008 a impugnante emitiu as notas de crédito n.ºs 79 a 88, pelas faturas mencionadas na alínea E) supra, creditando à “[SCom02...], Lda.” o valor do IVA que indevidamente tinha sido liquidado em tais faturas – cfr. fls. 54, verso a 58, verso do processo administrativo apenso aos autos; acordo (cfr. artigo 11.º da petição inicial e artigo 1.º da contestação).
I) As notas de crédito a que se alude na alínea que antecede foram remetidas à “[SCom02...], Lda.”, por carta registada com aviso de receção assinado em 18/01/2009 – cfr. fls. 54 a 58, verso do processo administrativo apenso aos autos.
J) Da notificação referida na alínea anterior consta o seguinte:
“(…)
Consultada a Direcção de Finanças, confirmámos que a facturação emitida para V/obra do ... Park de ... está sujeita, quanto ao enquadramento em IVA, à regra da inversão do sujeito passivo.
Assim, somos a enviar as Notas de Crédito correspondentes a essa facturação, solicitando que, nos termos da lei, nos devolvam os duplicados devidamente honrados com os V/carimbo e assinatura comprovando terem recebido os originais.
Informamos que na ausência de resposta por período superior a quinze dias, não restará outra via senão a de comunicarmos formalmente os factos à DGCI, sob pena de sermos considerados coniventes com uma situação irregular.
Permitimo-nos alertar para o ponto 2.4 do Ofício n.º ...01, de 2007-05-24 e para as consequências legais de que nos queremos distanciar.
(…)” – cfr. fls. 54 a 58, verso do processo administrativo apenso aos autos.
K) Por carta expedida em 16/04/2009 a “[SCom02...], Lda.” devolveu à impugnante as notas de crédito n.ºs 79 a 88, referindo que “as mesmas não têm suporte em sede de IVA” – cfr. fls. 59 do processo administrativo apenso aos autos.
L) Em 07/08/2009 a impugnante entregou a declaração periódica de IVA referente ao período 2009/06, onde menciona, no campo 40, atinente a “regularizações do sujeito passivo”, o valor de 244.808,89 € e solicita um reembolso no valor de 248.619,72 € - cfr. fls. 9 do processo administrativo apenso aos autos; acordo (cfr. artigo 11.º da petição inicial e artigo 1.º da contestação).
M) Em 31/08/2009 a impugnante remeteu novamente à “[SCom02...], Lda.”, por correio registado com aviso de receção, as notas de crédito n.ºs 79 a 88, constando da notificação o seguinte:
“Na sequência da N/ carta de 13/Janeiro/2009, informamos que incluímos na Declaração Periódica de IVA, período de Junho, a regularização de IVA relativa às N/ facturas da V/ obra do ... Park de ... de acordo com o preceituado no Ofício ...01 de 2007-05-24.
Para que a situação fique regularizada de modo a evitar problemas para ambas as partes com a administração fiscal, tomamos a liberdade de reenviar as notas de crédito correspondentes a essa facturação solicitando que, nos termos da lei, nos devolvam os duplicados devidamente honrados com os V/ carimbo e assinatura” – cfr. fls. 60 do processo administrativo apenso aos autos.
N) O expediente a que se alude na alínea anterior veio devolvido ao remetente, em 16/09/2009, com a anotação “objecto não reclamado” – cfr. fls. 60, verso do processo administrativo apenso aos autos.
O) Na sequência da regularização do IVA e pedido de reembolso efetuados na declaração periódica de IVA relativa ao período 2009/06, a impugnante foi objeto de uma ação de inspeção, levada a cabo pelos serviços de inspeção tributária da Direção de Finanças ..., a coberto da ordem de serviço n.º ...29, de âmbito parcial (IVA), referente ao aludido período – cfr. fls. 3 do processo administrativo apenso aos autos.
P) Em 02/09/2010, no âmbito da referida ação inspetiva, foi elaborado o relatório de inspeção tributária constante de fls. 1/8 do processo administrativo apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, destacando-se o seguinte:
“(…)
DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS II.5.2 DAS CORRECÇÕES
MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIBUTÁVEL
III.1. – EM SEDE DE IVA – EXERCÍCIO DE 2009
(…)
Em conclusão: torna-se evidente que a visitada só optou por emitir as notas de crédito a partir do momento em que se apercebeu que dificilmente iria receber os valores dos crédito que tinha sobre a [SCom02...]. Pela análise da conta corrente retira-se que os últimos pagamentos efectuados pelo cliente se reportam a Abril de 2008 com a identificação dos recibos respectivos. Depois dessa data, a crédito, só aparecem movimentos de letras ou operações relacionadas com Diversos”, não identificadas como respeitando a pagamentos. Ou seja, apesar de ter plena noção de que a [SCom02...] não iria registar esse imposto a favor do Estado, optou por fazer essa regularização do imposto a seu favor, diminuindo desse modo a divida do seu cliente e endossando essa divida para os cofres do Estado”, pois sabe que dificilmente virá a receber tal importância mesmo que consiga localizar a empresa.
Por outro lado, não se pode descurar o facto de a [SCom02...], no seu ofício de 16 de Abril de 2009, não só devolver as notas de crédito que lhe tinham sido enviadas, mas também negar a sua aceitação, por, no seu entender, não terem suporte em sede de IVA. Ou seja, há aqui, por parte da [SCom02...], uma negação completa da proposta de regularização de IVA feita pela [SCom01...]. Logo, o entendimento simplista de que a
[SCom02...] “tomou conhecimento da rectificação” não pode ser aceite como válido. Bem pelo contrário, deverá ser entendido como a negação da aprovação da correcção levada a efeito pela visitada.
Nestes termos, entendemos não poderem ser aceites os argumentos apresentados pela visitada para proceder à emissão das Notas de Crédito, e, concomitantemente, não será de aceitar a dedução do IVA concretizada no campo 40 da declaração periódica do mês de Junho de 2009, no valor de 244 808,89 €, pelo que aqui se propõe a sua correcção.
(…)”.
Q) A correções propostas no relatório de inspeção tributária foram sancionadas superiormente – cfr. fls. 1 do processo administrativo apenso aos autos.
R) Na sequência da ação inspetiva, foram emitidos os seguintes atos de liquidação:
a. Liquidação adicional n.º ...92, referente a IVA do período 0906, no montante de 244.808,89 €;
b. Liquidação n.º ...93, referente a juros compensatórios, no montante de 10.570,38 €.
S) Em 04/01/2011 a impugnante apresentou reclamação graciosa contra os atos de liquidação mencionados na alínea anterior nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 111/120 do processo administrativo apenso aos autos.
T) Em 28/04/2011, com base na informação emitida pela Divisão de Justiça Tributária – Contencioso, o Diretor de Finanças ..., por delegação, indeferiu a reclamação graciosa – cfr. fls. 201/207 do processo administrativo apenso aos autos.
U) Em 27/05/2011 a impugnante interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa – cfr. fls. 213/235 do processo administrativo apenso aos autos.
V) Em 15/02/2012 o Subdiretor Geral dos Impostos, com base na informação emitida pela Divisão de Administração II da Direção de Serviços do IVA, indeferiu o recurso hierárquico – cfr. fls. 324/333 do processo administrativo apenso aos autos.
W) Para além das faturas a que se alude na alínea E) supra, a impugnante emitiu e entregou à sociedade “[SCom02...], Lda.” as seguintes faturas:

Número Data Valor IVA Total
2033 29/02/2008 109.110,00 € 22.913,10 € 132.023,10 €
2058 31/05/2008 250.000,00 € “IVA devido pelo adquirente” 250.000,00 €
2082 31/08/2008 101.750,00 € “IVA devido pelo adquirente” 101.750,00 €
- cfr. fls. 44/46 do suporte físico dos autos.

Factos não provados
Para além dos acima elencados, não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa.
Motivação da matéria de facto
A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto provada resultou da análise crítica dos documentos e informações constantes dos autos e do processo administrativo apenso, os quais não foram impugnados, bem como da posição assumida pelas partes nos respetivos articulados, tudo conforme se encontra especificado em cada um dos pontos do probatório.”

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2.2 – O direito
Constitui objecto do presente recurso a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal e Fiscal de Aveiro, que julgou procedente a impugnação intentada contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado do período de 0906, no montante de €244.808,89, e respectiva liquidação referente a juros compensatórios, no montante de €10.570,38.
Os Serviços da Inspecção Tributária consideraram que a Recorrida não podia regularizar o IVA contido nas facturas emitidas em nome da [SCom02...], LDA. no período de 0906, face a quando o fez e porque o fez.

O Tribunal a quo considerou que a Recorrida cumpriu os pressupostos para proceder às regularizações em questão nos presentes autos.
Discordando do assim decidido, a Recorrente invoca o erro do julgamento de facto e o erro de julgamento de direito.

2.2.1 - Do erro de julgamento de direito

A Recorrente vem sustentar o erro do julgamento de facto e o erro de julgamento de direito.
Ora, não obstante, vir invocado o erro sobre o julgamento de facto, atendendo a que se mostra necessário apreciar e decidir sobre o enquadramento jurídico e factual aplicável ao caso sob apreciação, por forma a ferir do eventual erro de julgamento da matéria de facto, começaremos a nossa análise pela apreciação do erro sobre o julgamento de direito.
A Recorrente vem alegar que o Tribunal a quo errou por considerar reunidos os requisitos para a Recorrida proceder à regularização do IVA, pois era igualmente necessário que esta tivesse dado cumprimento ao requisito da boa-fé e ao da eliminação do risco de perda de receitas fiscais, ficando o ónus da prova a cargo da Recorrida.
A Recorrida, por sua vez, vem sustentar que “os requisitos respeitantes à boa-fé do emitente da fatura e à eliminação do risco de perda de receitas fiscais não constam da fundamentação formal do ato de liquidação impugnado”.
Vejamos.
O Imposto Sobre o Valor Acrescentado é um imposto geral que, incidindo sobre todas as despesas, é aplicado a todas as fases do circuito económico (plurifásico), como tal, é pago por todos os operadores que intervêm no circuito de produção, transformação e comercialização, incidindo sobre o valor acrescentado em cada fase, não produzindo assim, em regra, qualquer efeito cumulativo.
Trata-se de um regime baseado no método de crédito de imposto, em que o valor a entregar ao Estado resulta da diferença entre o imposto liquidado e o imposto dedutível em determinado período.
A faculdade do contribuinte poder deduzir o imposto que suportou nas aquisições, cujo princípio se encontra consagrado nos artigos 19.º e seguintes do Código do IVA, constitui o chamado direito à dedução, elemento nuclear à volta do qual gravita todo o funcionamento do IVA.
Este direito consubstancia-se no direito atribuído a cada sujeito passivo de, no momento em que apure o imposto por si devido, relativo às suas vendas e prestações de serviços, poder deduzir o imposto que suportou nas aquisições de bens e serviços necessários à sua actividade, entregando apenas a diferença entre os dois montantes considerados.
A Sexta Diretiva IVA (Diretiva do Conselho 77/388/CEE de 17.05.1977), no seu artigo 20.º sob a epígrafe “Ajustamento de deduções”, previa a possibilidade de ajustamento às deduções inicialmente operadas, designadamente quando a dedução fosse superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo tinha direito ou quando, posteriormente à declaração, se verificassem alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do montante das deduções (v.g. no caso de anulação de compras ou de obtenção de redução nos preços), relegando para os Estados-membros a determinação dos termos em que tais ajustamentos eram efectuados (Cfr. Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia de 19.09.2000 (Schmeink & Cofreth e Strobel – C-454/98), n.ºs 48, 49, 65 e 66, de 06.11.2003 (Karageorgou e processos apensos C-78/02 a C-80/02), n.º 49 e de 18.06.2009 (C 566/07), n.º 35).
Da mesma forma, após a alteração prosseguida pela Directiva 2006/112/CE do Conselho de 28.11.2006, passou a constar do artigo 184.º sob a epígrafe “Regularização das deduções” que “A dedução inicialmente efectuada é objecto de regularização quando for superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo tinha direito” e do artigo 185.o que “1. A regularização é efectuada nomeadamente quando se verificarem, após a declaração de IVA, alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do montante das deduções, por exemplo no caso de anulação de compras ou de obtenção de abatimentos nos preços.
2. Em derrogação do disposto no n.o 1, não é efectuada qualquer regularização no caso de operações total ou parcialmente por pagar, no caso de destruição, perda ou roubo devidamente comprovados ou justificados, bem como no caso das afectações de bens a ofertas de pequeno valor e a amostras referidas no artigo 16.o.
No caso de operações total ou parcialmente por pagar e nos casos de roubo, os Estados-Membros podem, todavia, exigir a regularização.”
Por sua vez, o artigo 186.o passou também a prever que “Os Estados-Membros determinam as normas de aplicação dos artigos 184.o e 185.o
Nessa senda, dispunha à data o n.º 5 do artigo 78.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado que “Quando o valor tributável de uma operação ou o respectivo imposto sofrerem rectificação para menos, a regularização a favor do sujeito passivo só pode ser efectuada quando este tiver na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto, sem o que se considera indevida a respectiva dedução”
Dispondo ainda o n.º 7 do artigo 29.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado que “Deve ainda ser emitida factura ou documento equivalente quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexactidão”
Assim, e no que respeita a rectificações/regularizações, o Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado estabelece procedimentos e prazos face à situação em concreto, evidenciando o carácter formalista do IVA, com vista a evitar a fuga e a evasão fiscal, pelo que as respectivas formalidades o são ad substanciam, que não meramente ad probationem.
Assim, do quadro legal que aqui demos conta, resulta que, se após o registo das operações efectuadas pelo sujeito passivo for reduzido o valor tributável das sobreditas operações, o fornecedor do bem ou prestador do serviço poderá efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável, preenchido que esteja o pressuposto de que detém prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do respectivo imposto.
Isto para impedir que um sujeito passivo regularize a seu favor imposto inicialmente deduzido pelo seu cliente, sem que este fique obrigado a regularizar a favor do Estado o mesmo montante, o que só se assegura se este acusar a recepção da comunicação que evidencie o montante de IVA rectificado.
Neste sentido vide o Acórdão do STA de 18.01.2006, rec. 0899/05 e Acórdão do TCA Sul em Aresto de 13.03.2012, rec. 05275/12.
Acresce que, “Nas palavras de XAVIER DE BASTO (Cfr. “A harmonização Fiscal na CEE”, Ciência e Técnica Fiscal, nº 362, p. 44), cada fatura com menção de imposto, constitui “um cheque sobre o tesouro, pois atribui ao destinatário que seja sujeito passivo o direito de deduzir o IVA nela contido. Por isso, (...) a simples menção do IVA em fatura (mesmo que porventura descabida, por não haver lugar a imposto naquele caso, por qualquer razão) origine obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, isto é, seja ele ou não um sujeito passivo. Tornar-se-á, pelo simples facto da menção, um “devedor de imposto”. Só assim se consegue que ao direito à dedução, que a fatura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda sempre uma obrigação de pagar. Assim se assegura o funcionamento regular do sistema de pagamentos fracionados.»
Na verdade, esta disposição constante da al. c) do nº 1 do art. 2º do CIVA, «visa garantir que existe uma correspondência entre a obrigação de pagamento do imposto e o direito à dedução, que resulta da condição de sujeito passivo», sendo que em matéria de imposto indevidamente mencionado e repercutido também a jurisprudência comunitária tem acentuado que «a pessoa que mencione indevidamente IVA numa fatura converte-se em sujeito passivo de imposto [artigo 2°, n.º 1, alínea c)] e consequentemente em devedor do montante em causa. Se tiver atuado de boa fé, deve poder regularizar o montante de imposto indevidamente faturado, procedendo à devolução do montante de imposto em causa. Aquele que suporte um IVA indevido não pode, em qualquer caso, exercer o direito à dedução.» (Patrícia Noiret Cunha, Imposto sobre o Valor Acrescentado: Anotações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ao Regime do IVA nas Transações Intracomunitária, Lisboa, ISG, 2004, pp. 458-459, nota 3 ao artigo 71º.) Trata-se, portanto, de cautelas assumidas pelo legislador, decorrentes da circunstância de nesses casos se estar «a dar início à cadeia da liquidação e dedução do imposto, com os efeitos daí subjacentes». (Clotilde Celorico Palma, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, 2005, p. 66.) (…)” - cfr. Acórdão do STA de 11.01.2023, proc. 0538/14.2BECBR.
Com efeito, a Jurisprudência comunitária tem vindo a entender que para garantir a aplicação do princípio da neutralidade do IVA, compete aos Estados-Membros prever a possibilidade de correcção de qualquer imposto indevidamente facturado, desde que quem emita a factura demonstre ter agido de boa fé – cfr. Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 13 de Dezembro de 1989, Genius Holding (C-342/87, Colect., p. 4227, n.º 18.
Só assim não é, quando o risco de perda de receitas fiscais foi completamente eliminado, em tempo útil.
Neste sentido vide Acórdão do TJUE de 19.09.2000 - Schmeink & Cofreth AG & Co. KG contra Finanzamt Borken e Manfred Strobel contra Finanzamt Esslingen, processo C-454/98, quando decidiu que “57 Deve salientar-se que, nos litígios no processo principal e ao contrário do que se verificava no processo Genius Holding, já referido, o risco de perda de receitas fiscais foi completamente eliminado, em tempo útil, quer porque o emitente da factura a recuperou e destruiu antes da sua utilização pelo destinatário quer porque, tendo a factura sido utilizada, o seu emitente pagou o montante indicado separadamente na mesma factura.
58 Em tais circunstâncias, em que o emitente, em tempo útil, eliminou completamente o risco de perda de receitas fiscais, o princípio da neutralidade do IVA exige que este imposto indevidamente facturado possa ser regularizado, sem que esta regularização possa ser sujeita, pelos Estados-Membros, à existência de boa fé do emitente da factura.
59 Deve lembrar-se, a propósito, que as medidas que os Estados-Membros têm a possibilidade de tomar, nos termos do n._ 8 do artigo 22._ da Sexta Directiva, para garantir o exacto recebimento do imposto e evitar a fraude não devem exceder o necessário para atingir aqueles objectivos (acórdão de 21 de Março de 2000, Gabalfrisa e o., C-110/98 a C-147/98, Colect., p. I-1577, n._ 52). Não poderão por isso ser utilizados de forma que ponham em causa a neutralidade do IVA, que constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA instituído pela legislação comunitária na matéria.
60 Ora, forçoso é constatar que a exigência de que o emitente da factura demonstre boa fé quando, em tempo útil, eliminou por completo o risco de diminuição das receitas fiscais não é necessário para garantir o recebimento do IVA e prevenir a fraude fiscal (v., neste sentido, acórdão de 11 de Junho de 1998, Grandes sources d'eaux minérales françaises, C-361/96, Colect., p. I-3495, n.os 29 e 30).
61 Ao invés, quando, como no processo Genius Holding, já referido, o risco de perda de receitas fiscais não foi completamente eliminado, os Estados-Membros podem sujeitar a possibilidade de regularização do IVA indevidamente facturado à condição de o emitente da factura demonstrar a sua boa fé. Com efeito, como indicou o juiz de reenvio, se se demonstrar que já não é possível anular junto do destinatário da factura a dedução que lhe foi concedida, o emitente desta que não esteja de boa fé pode ser considerado responsável pela diminuição das receitas fiscais para garantir a neutralidade fiscal.
62 Por fim, deve sublinhar-se que, como a justo título sustenta a Comissão, o direito comunitário não impede os Estados-Membros de considerarem a emissão de facturas fictícias contendo indevidamente um imposto como uma tentativa de fraude fiscal e aplicar, em tal caso, as multas e sanções pecuniárias previstas no direito respectivo.
63 Há, assim, que responder à segunda questão que, quando o emitente da factura eliminou completamente, em tempo útil, o risco de perda de receitas fiscais, o princípio da neutralidade do IVA exige que o imposto indevidamente facturado possa ser regularizado, sem que esta regularização possa ser subordinada à boa fé do emitente da referida factura.” – fim de citação.
Nesta senda, quando o risco de perda de receitas fiscais não foi completamente eliminado, o emitente das facturas objecto de regularização tem o ónus de comprovar que agiu de boa fé.
Por outro lado, “Para evitar que a “regularização” do IVA constante de notas de crédito emitidas cause “prejuízo” do erário público exige-se que o cliente, que já deduziu IVA constante da factura agora anulada, reponha o montante proporcional ao valor da nota de crédito. Ou seja, a nota de crédito origina o direito a uma “regularização de imposto a favor do sujeito passivo” que a emitiu de valor igual à obrigação de “regularização a favor do Estado” que impende sobre o cliente.
Por isso, “de acordo com o nº 5 do art. 71º do mesmo diploma, “Quando o valor tributável de uma operação ou o respectivo imposto sofrerem rectificação para menos, a regularização a favor do sujeito passivo só poderá ser efectuada quando este tiver na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto, sem o que se considera indevida a respectiva dedução” - cfr. Ac. do STA de 10.09.2014, proc. n.º 01226/13.
A primeira questão que cumpre dilucidar é se da fundamentação da Autoridade Tributária e Aduaneira decorre a inexistência do requisito intencional – a boa fé, ao contrário do que, aos olhos da Recorrente, decidiu o Tribunal a quo.
Ora, quanto a esta questão, decidiu o Tribunal a quo que “(…) De facto, considera a Fazenda Pública que o comportamento da impugnante não se integra no conceito de boa fé, exigível como elemento intencional para o direito à regularização e que tal comportamento não se mostrou adequado à eliminação completa e em tempo útil do risco de perda de receitas fiscais por parte do Estado credor.
O Tribunal não ignora a Doutrina e a Jurisprudência Comunitária invocadas pela Fazenda Pública na sua contestação. No entanto, para além de tais argumentos não constarem da fundamentação formal do ato impugnado – sendo certo que a validade substancial do ato de afere pela sua fundamentação formal -, a Fazenda Pública não demonstra o alegado.” – fim de citação.
Assim, para além do Tribunal ter considerado que o acto impugnado não se fundamente na má fé da Recorrida, também considera que mesmo que assim seja, o ónus de tal prova recaia sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira.
Ora, como decorre do relatório do procedimento inspectivo, coligido no ponto P) da matéria de facto assente, os Serviços da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças ..., consideraram que “Em conclusão: torna-se evidente que a visitada só optou por emitir as notas de crédito a partir do momento em que se apercebeu que dificilmente iria receber os valores dos crédito que tinha sobre a [SCom02...]. Pela análise da conta corrente retira-se que os últimos pagamentos efectuados pelo cliente se reportam a Abril de 2008 com a identificação dos recibos respectivos. Depois dessa data, a crédito, só aparecem movimentos de letras ou operações relacionadas com Diversos”, não identificadas como respeitando a pagamentos. Ou seja, apesar de ter plena noção de que a [SCom02...] não iria registar esse imposto a favor do Estado, optou por fazer essa regularização do imposto a seu favor, diminuindo desse modo a divida do seu cliente e endossando essa divida para os cofres do Estado”, pois sabe que dificilmente virá a receber tal importância mesmo que consiga localizar a empresa. Por outro lado, não se pode descurar o facto de a [SCom02...], no seu ofício de 16 de Abril de 2009, não só devolver as notas de crédito que lhe tinham sido enviadas, mas também negar a sua aceitação, por, no seu entender, não terem suporte em sede de IVA. Ou seja, há aqui, por parte da [SCom02...], uma negação completa da proposta de regularização de IVA feita pela [SCom01...]. Logo, o entendimento simplista de que a [SCom02...] “tomou conhecimento da rectificação” não pode ser aceite como válido. Bem pelo contrário, deverá ser entendido como a negação da aprovação da correcção levada a efeito pela visitada Nestes termos, entendemos não poderem ser aceites os argumentos apresentados pela visitada para proceder à emissão das Notas de Crédito, e, concomitantemente, não será de aceitar a dedução do IVA concretizada no campo 40 da declaração periódica do mês de Junho de 2009, no valor de 244 808,89 €, pelo que aqui se propõe a sua correcção. (…)
IX – Direito de Audição/Fundamentação
(…)
E também não é aceitável dizer-se que que esta regularização de imposto não traz prejuízos para o estado, porque a situação que se verificaria, a ser aceite a pretensão da empresa, seria exatamente a contrária. (…)” – fim de citação.
Acresce que, as facturas em questão têm subjacente o fornecimento, montagem e instalação de estruturas metálicas a incluir em obra de construção civil, desenvolvida pela [SCom02...] e sujeitas a regra da inversão do sujeito passivo como decorre dos ponte G) e H) da factualidade assente.
Assim, percebe-se do discurso argumentativo que a Autoridade Tributária e Aduaneira, questionando o momento e o porquê das regularizações controvertidas, considerou que a Recorrida não agiu de boa fé, não estando salvaguardado sequer o risco da perda de receitas fiscais.
Pelo que, o Tribunal a quo errou na interpretação da fundamentação do acto.
Acresce que, como aqui já demos conta, invocando a doutrina e jurisprudência nacional e comunitária aplicável ao caso sob apreciação, sobre a emitente das facturas objecto de regularização recai o ónus de demonstrar ter agido de boa fé.
Pelo que, recaía sobre a Recorrida alegar e comprovar que agiu de boa fé.
No entanto, o Tribunal a quo, tendo considerado que, para além de não resultar da fundamentação do acto a questão da boa fé, recaia sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira o ónus de comprovar tal, dispensou a produção de prova testemunhal, tendo inclusive feito constar da factualidade que “Para além dos acima elencados, não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa”
Ora, como decorre do artigo 26.º da petição inicial, a Recorrida invocou que “A liquidação de IVA nas facturas referidas no ponto E) e a não aplicação das regras da inversão do sujeito passivo apenas ocorreu por erro dos serviços contabilísticos da impugnante”, facto que se mostrava essencial apurar por forma a aferir da boa fé da Recorrida.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 99.º da Lei Geral Tributária, sob a epigrafe “Princípio do inquisitório e direitos e deveres de colaboração processual”, “O tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente pode conhecer”
De igual forma, dispõe o n.º 1 artigo 13.º Código de Procedimento e de Processo Tributário ao estatuir que “aos juízes dos tribunais tributários incumbe a direção e julgamento dos processos da sua jurisdição, devendo realizar ou ordenar todas as diligências que considerem úteis ao apuramento da verdade relativamente aos factos que lhes seja lícito conhecer”
A par, o artigo 411.º do Código do Processo Civil também dispõe que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”, consagrando-se assim o princípio do inquisitório, que no seu sentido restrito, que é o rigoroso, “opera no domínio da instrução do processo tendo o juiz aí poderes mais amplos do que no domínio da investigação dos factos, na medida em que pode determinar quaisquer diligências probatórias que não hajam sido solicitadas pelas partes” – cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição, Almedina, pág 207.
Por fim, o artigo 114.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, prevê que “não conhecendo logo do pedido, o juiz ordena as diligências de produção de prova necessárias (…)”
Com efeito, “cabe ao tribunal apurar a matéria de facto relevante com vista a integrar as várias soluções plausíveis da questão de direito suscitada. Para além das diligências requeridas, o tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados” – cfr. Acórdão do TCA Sul de 10.11.2022, proc. 2222/15.0BESNT.
Na verdade, tendo em consideração a causa de pedir e os factos alegados, conclui-se que os mesmos carecem de prova por forma a ser complementada a prova existente nos autos de modo a ser esclarecido se a Recorrida agiu de boa fé, pressuposto de que depende as regularizações controvertidas.
Nesta senda, o Tribunal a quo, ao não ter procedido à referida diligência de prova, incorreu em défice instrutório, determinante da anulação oficiosa da sentença recorrida ao abrigo do disposto no artigo 662.º n.º 2 alínea c) do Código do Processo Civil, impondo-se a devolução dos autos ao Tribunal a quo, para que este proceda às diligências pertinentes, ampliando a matéria de facto, se for caso disso, e subsequente prolacção de nova decisão.
Atenta a necessidade de ampliação da prova, queda-se prejudicado o conhecimento, das demais questões suscitadas no presente recurso, ficando, no entanto, aqui firmado que a fundamentação das correcções prosseguidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira respeitam à boa fé da Recorrida e que o ónus de comprovar essa boa fé recai sobre a mesma.

***

Nos termos do disposto no artigo 663.º nº 7 do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte SUMÀRIO:

I. Se, após o registo das operações efectuadas pelo sujeito passivo for reduzido o valor tributável das sobreditas operações, o fornecedor do bem ou prestador do serviço poderá efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável, preenchido que esteja o pressuposto de que detém prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do respectivo imposto - n.º 5 do artigo 78.º do CIVA.
II. Acresce que, a Jurisprudência comunitária tem vindo a entender que para garantir a aplicação do princípio da neutralidade do IVA, compete aos Estados-Membros prever a possibilidade de correcção de qualquer imposto indevidamente facturado, desde que quem emita a factura demonstre ter agido de boa fé.
III. Só assim não é, quando o risco de perda de receitas fiscais foi completamente eliminado, em tempo útil.
IV. No processo tributário são admitidos todos os meios gerais de prova, não se encontrando este limitado a um especifico modo de prova – cfr. artigo 115.º do CPPT.
V. Cabe ao Tribunal apurar a matéria de facto relevante com vista a integrar as várias soluções plausíveis da questão de direito suscitada, incumbindo-lhe realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados.
VI. Podendo a inquirição de testemunhas esclarecer o Tribunal sobre os factos alegados, o julgamento da matéria de facto mostra-se deficitário.

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3 – Decisão

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, e, em consequência, revogar a sentença e ordenar a baixa dos autos ao TAF do Porto, para ampliação da matéria de facto, se assim for o caso, e subsequente prolação de nova decisão.


Custas pela Recorrida, nos termos do disposto no artigo 6.º n.º 2, artigo 7.º n.º 2 e artigo 12.º n.º 2, todos do Regulamento das Custas Processuais e tabela I-B.

Porto, 29 de Maio de 2025


Virgínia Andrade
Irene Isabel das Neves
Jorge Manuel Monteiro da Costa