Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 01967/07.3BEPRT |
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Secção: | 2ª Secção - Contencioso Tributário |
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Data do Acordão: | 11/30/2022 |
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Tribunal: | TAF do Porto |
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Relator: | Rosário Pais |
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Descritores: | IRS; NOTAS DE DÉBITO; ADIANTAMENTO POR CONTA DE LUCROS; ÓNUS DA PROVA; AUTORIDADE DE CASO JULGADO; RETIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS DA SENTENÇA: |
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Sumário: | I – A demonstração de resultados por natureza constitui um instrumento contabilístico de demonstração financeira, caracterizador da contabilidade organizada. II - A Nota de Débito é um documento retificativo que permite corrigir o valor de uma determinada fatura, v.g. quando o IVA não tiver sido aplicado ou tenha sido aplicada uma taxa de IVA inferior à devida, pelo que pressupõe a existência de uma fatura previamente emitida. III - Uma vez que o rendimento tributável dos Impugnantes foi determinado com base na contabilidade, as Notas de Débito deviam ser contabilizadas no ano da sua emissão, por representarem um crédito do Impugnante marido sobre a "X", independentemente do efetivo recebimento do seu valor, conforme resulta das disposições conjugadas do artigo 3º, nº 6 do CIRS e 18º, nº 1, do CIRC. IV – Neste caso, à AT apenas competia provar que os documentos (Notas de Débito) foram emitidos pelo Impugnante, o ano a que os mesmos respeitam e que não foram relevados contabilisticamente, para cumprir o ónus probatório a seu cargo e demonstrar a legitimidade da sua atuação. V - Se uma sociedade declara ter recebido determinada quantia, mas esta não está refletida no seu circuito financeiro nem nos seus proveitos, segundo as regras da experiência comum é de inferir que alguém a fez sua e esse alguém serão os sócios que, em representação da sociedade, deram quitação. VI - Existindo lucros da sociedade e tendo os Recorrentes feito suas quantias recebidas pela sociedade, mas que nunca entraram no circuito financeiro desta nem tiveram reflexos nos seus resultados, é de concluir pela existência uma distribuição de lucros ou por conta de lucros e, assim, de rendimentos tributáveis em sede de IRS, categoria E. VII – A autoridade de caso julgado formado por decisão proferida em processo anterior, cujo objeto se insere no objeto da segunda, obsta que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 581º do Código de Processo Civil. VIII - Os erros materiais da decisão, a que se alude no artigo 614º, nº 1 do CPC, têm lugar quando há divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, ou seja, no caso em que o juiz tenha escrito uma coisa diferente daquela que queria, de facto, escrever. IX - Tal divergência deve ressaltar, de forma clara e ostensiva, do teor da própria decisão, só desta, do seu contexto ou estrutura, sendo possível aferir se ocorreu ou não esse erro. Ou seja, é o próprio texto da decisão que há de permitir ver e perceber que a vontade declarada não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão. |
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Recorrente: | AA e BB / Fazenda Pública |
Recorrido 1: | Fazenda Pública / AA e BB |
Votação: | Unanimidade |
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Meio Processual: | Impugnação Judicial - Liquidação de tributos - 1ª espécie - Recursos jurisdicionais [Del. 2186/2015] |
Decisão: | Conceder provimento ao recurso da Fazenda pública; Negar provimento ao recurso da impugnante. |
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Aditamento: | ![]() |
Parecer Ministério Publico: | Foi emitido o parecer que segue: O recurso interposto pela recorrente AT: a) - merece ser considerado improcedente, na parte, em que invocou a nulidade de sentença (por omissão de pronúncia); e b) - procedente, na questão de mérito, pois que a sentença a quo enferma, nesta parte, de erro de direito e não está conforme à lei e ao direito devendo ser revogada e afastada da Ordem Jurídica; 3º - O recurso interposto pelos impugnantes/recorrentes merece ser considerado totalmente improcedente, |
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Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte: 1. RELATÓRIO 1.1. AA e BB, com os sinais dos autos, e a Fazenda Pública vêm recorrer da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto em 28.02.2022, que julgou parcialmente procedente a Impugnação Judicial por eles deduzida contra as liquidações de IRS e respetivos juros compensatórios referentes aos anos de 2003 a 2005, no valor global de € 147.591,99. 1.2. Os Recorrentes AA e BB terminaram as respetivas alegações formulando as seguintes conclusões: «I. A douta sentença de que se recorre julgou parcialmente improcedente o pedido dos aqui Recorrentes, designadamente no tocante às correções de IRS no montante global de € 752.520,. II. Para decidir no sentido em que o fez, o Tribunal a quo sustentou-se nos factos que julgou provados, concretamente os identificados nos pontos 3., 6., e 13., que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais. III. O Tribunal a quo não deu nenhum facto como não provado. IV. Face ao peticionado em sede de impugnação judicial (petição inicial), e bem assim dos elementos de prova carreados para os autos, os Recorrentes entendem que o Tribunal a quo cometeu erro de julgamento, porquanto: V. Julgou procedente a pretensão dos Impugnantes no concernente às notas de débito do ano de 2005 com base na falta de verificação dos pressupostos de facto, concluindo que a AT não cumpriu o ónus da prova do efetivo recebimento pelo Impugnante marido, mas VI. Julgou improcedente o demais pedido com fundamento na correta fundamentação formal dos atos tributários impugnados. VII. Isto é, o Tribunal a quo não apreciou a questão do alegado recebimento dos lucros pelos Impugnantes à luz da regra do ónus da prova, designadamente que teria de ser a AT a fazer a prova de que os lucros tinham sido recebidos pelos Impugnantes (recorrentes), o que não sucedeu. VIII. A decisão recorrida, na senda da conclusão da AT, olvidou o disposto no n.º 4, do artigo 6º, do CIRS, que dispõe: “Os lançamentos a seu favor em quaisquer contas correntes dos sócios escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial, quando não resultem de mútuos ou de prestação de trabalho ou exercício de cargos sociais presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros” IX. Impendia, pois, sobre a AT o ónus da prova de que tais valores tinham sido creditados, colocados à disposição dos sócios em contas correntes destes, escrituradas na "Clínica ..., Lda." de conformidade com o disposto no artigo 74º, n.º 1, da LGT. X. Decidindo contra o disposto no artigo 74º da LGT e contra o n.º 4, do artigo 6º, do CIRS, o Tribunal a quo cometeu erro de julgamento. XI. Aliás, os Recorrentes imputam à decisão inclusivamente a contradição nos seus fundamentos, porquanto, no que toca às notas de débito, o Tribunal considerou que a AT não tinha provado o efetivo recebimento, mas quanto aos lucros alegadamente distribuídos já considerou que a AT fundamentou de facto a sua decisão – neste conspecto, salienta-se a ausência de prova do efetivo recebimento dos alegados lucros por parte dos sócios. XII. Do elenco da factualidade provada não consta que os sócios tivessem contas correntes escrituradas na "Clínica ..., Lda." onde os referidos valores tivessem sido creditados (colocados à disposição dos sócios). XIII. Aliás, retira-se do facto provado 3. que “(…) as quantias não se traduziram em lucros espelhados na situação líquida” da "Clínica ..., Lda." XIV. Daqui se conclui que os valores nem sequer figuravam na contabilidade da Clínica, pelo que também não se poderiam considerar como lucros distribuídos aos sócios. XV. A jurisprudência maioritária vai no sentido de considerar que tais lucros deverão ser apurados em conta de resultados, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 17º, do CIRC. XVI. A mesma jurisprudência vem entendendo que a distribuição de lucros teria de ser autorizada em assembleia de sócios, facto regulado no Código das Sociedades Comerciais para as sociedades anónimas, mas que os Tribunais Superiores entendem ser de aplicar também às sociedades comerciais por quotas. XVII. Ocorreu ainda erro de julgamento quando o Tribunal a quo, na decisão que proferiu, concluiu pela improcedência do invocado vício de errónea quantificação dos rendimentos, pela verificação da autoridade do caso julgado. XVIII. Nesta matéria, o Tribunal a quo deu como provado o facto 13., do qual consta que, em 04.10.2021, foi proferida nova decisão de improcedência em sede da impugnação a que se alude em 7., já transitada em julgado, na qual se decidiu pela improcedência do erro na quantificação da matéria coletável – cfr. decisão do processo de impugnação que correu termos no TAF do ... sob o n.º 641/08.8BEPRT, que consta de fls. 1482 do SITAF daquele processo. XIX. Com todo o respeito, que é muito, naquele processo decidiu-se que os valores em causa foram recebidos pela "Clínica ..., Lda." e nada mais. XX. Não se concluiu, naquela douta decisão, nem que os valores foram distribuídos aos sócios, nem tão pouco que o foram a título de lucro ou de adiantamento de lucro. XXI. Esta questão entronca na invocada falta de fundamentação de facto e de direito a que nos vimos pronunciando ao longo deste recurso, imputada quer à AT, no RIT, quer à decisão final da 1ª instância. XXII. O erro de julgamento inquina de ilegalidade a decisão aqui em evidência, pela violação do disposto no artigo 74º da LGT, o n.º 1, e al. h), do n.º 2, do artigo 5º, e o n.º 4, do artigo 6º, todos do CIRS. XXIII. Razão pela qual a mesma não pode manter-se no universo jurídico, devendo ser anulada e substituída por decisão que julgue totalmente procedente o pedido dos recorrentes, com a consequente anulação das liquidações de IRS dos anos de 2003, 2004 e 2005. Termos em que pugnam pelo provimento do presente recurso, pois só decidindo nos termos ora propugnados farão Vossas Excelências inteira justiça!». 1.3. A Recorrente Fazenda Pública, por seu turno, finalizou as suas alegações de recurso nos termos que seguem: «CONCLUSÕES A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida por AA, NIF 15...00 e BB, NIF 16...56, melhor identificada nos autos, contra as liquidações de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) respeitantes aos anos de 2003, 2004 e 2005, no montante total de 147.591,99 €. B. Tendo o Tribunal a quo decidido pela procedência relativamente à questão iii), sendo esta o objeto do presente recurso. C. Para assim decidir, considerou que, no caso presente não recaindo sobre o Impugnante AA a obrigação de emitir fatura, o facto tributário ocorreu com o pagamento ou colocação à disposição do sobredito rendimento, recaindo assim sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) o ónus de comprovar o efetivo recebimento por parte do Impugnante AA. No entanto, dos autos não resultou comprovado o recebimento por parte do Impugnante AA dos montantes em causa. Concluindo que não poderia a AT considerar como acréscimo do lucro tributável do ano de 2005 o montante de 14.766,45 €. D. Com ressalva do sempre devido respeito, que é muito, não pode a Fazenda Pública conformar-se com o doutamente decidido, uma vez que, é sua convicção que a sentença sob recurso incorre em erro de julgamento de facto por errada e insuficiente valoração da prova de facto e de direito pela errada aplicação do número 6 do artigo 3º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS). E. Resumindo-se o objeto deste recurso ao facto de o Tribunal a quo ter considerado que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) não logrou provar o recebimento por parte do Impugnante dos montantes ínsitos nas notas de débito, com o número 42 e 43, datadas de 03.08.2005, nos montantes de 11.380,45 € e 3.386,00 €, respetivamente, emitidas pela sociedade "X" e melhor identificadas no ponto 3) do probatório, como lhe competia, nos termos do número 1 do artigo 74º da Lei Geral Tributária (LGT) com correspondência no número 1 do artigo 342º do Código Civil (CC). F. O número 6 do artigo 3ºdo CIRS, na redação vigente à data da emissão das notas de débito (03.08.2005) tinha a seguinte redação: “6 - Os rendimentos referidos neste artigo ficam sujeitos a tributação desde o momento em que para efeitos de IVA seja obrigatória a emissão de fatura ou documento equivalente ou, não sendo obrigatória a sua emissão, desde o momento do pagamento ou colocação à disposição dos respetivos titulares, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 18.º do Código do IRC, sempre que o rendimento seja determinado com base na contabilidade.” Sublinhado nosso. G. Temos ainda o número 1 do artigo 18º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC) que à data dos factos tinha a seguinte redação: “1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.” Sublinhado nosso. H. O Tribunal a quo considerou que a AT não fez prova de que o Impugnante AA, NIF 15...00, (AA) recebeu os valores constantes das notas de débito já identificadas anteriormente. I. Ora, o Impugnante AA, em sede de IRS, optou pela contabilidade organizada como forma de determinação dos rendimentos da atividade por si exercida – protésico dentário -, cf. [alínea b) do número 1 do artigo 28º do CIRS]. J. E disso é prova o ponto D do capítulo “II – Objectivos, âmbito e extensão da ação inspetiva”, a pág. 1/8 do RIT, do qual consta a demonstração de resultados por funções, um documento contabilístico e caracterizador da contabilidade organizada, cujo objeto prende-se com a determinação do lucro tributável, nos temos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC). K. No entanto, tal facto não foi tido em consideração pelo Tribunal a quo, pelo que se requer ampliação da matéria de facto onde passe a constar o teor do aludido ponto: 14) “D – Nos anos em causa, quanto à actividade que exerce em nome individual, contabilizou e declarou os seguintes valores. - imagem- L. Tal omissão, no entendimento da Fazenda Pública, leva a um erro de julgamento em matéria de facto e de direito, que irremediavelmente, entorpece o decisório, uma vez que, a falta de valoração da prova produzida abala a validade formal e substancial da sentença recorrida. M. Acresce, ainda, que do ponto 3) do probatório, anteriormente enunciado, também se depreende que o Impugnante AA optou pela contabilidade para determinação dos rendimentos da sua atividade, cf. “As mencionadas notas de débito não se encontram relevadas na contabilidade do sujeito passivo nem evidenciada nas declarações de rendimentos apresentadas. Daqui resulta um acréscimo do lucro tributável, do ano de 2005, no montante de 14.766,45€, que corresponde a igual montante de omissão de proveitos. (…)” N. Esta realidade, também, não mereceu qualquer sindicância por parte do Tribunal a quo, que para a Fazenda Pública reveste-se de primordial importância, tendo, ao invés, o Tribunal a quo, considerado que competia à AT a prova de que os valores em questão foram recebidos pelo Impugnante AA. O. Tal situação corresponderia à realidade contabilística do Impugnante AA, se não tivesse optado pela contabilidade na determinação dos rendimentos da atividade por si exercida, como o fez. P. Ao ter assim decidido, o Tribunal a quo, manifestamente, incorreu em erro de julgamento em matéria de facto e de direito com a errada aplicação do número 6 do artigo 3º do CIRS. Q. Revertendo ao caso concreto, os valores constantes das notas de crédito, uma vez que não se encontram relevados na contabilidade do Impugnante AA, deveriam ter sido acrescidos ao lucro tributável do exercício de 2005, como bem decidiram os Serviços de Inspeção Tributária SIT), em sede de RIT. R. O princípio da livre apreciação da prova, plasmado no número 5 do artigo 607º do Código de Processo Civil (CPC), vigora para o Tribunal de 1ª instância e, de igual modo, para o Tribunal da Relação, quando é chamado a reapreciar a decisão proferida sobre a matéria de facto. S. Em tal circunstância, compete ao Tribunal da Relação reapreciar todos os elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos e, de acordo com a convicção própria que com base neles forme, consignar os factos que julga provados, coincidam eles, ou não, com o juízo alcançado pela 1ª instância, pois só assim atuando está, efetivamente, a exercitar os poderes que nesse âmbito lhe são legalmente conferidos. T. Em face do exposto e de acordo com o preceituado supra, mas com o devido respeito, que é muito, perante os factos dados como provados, a decisão do Tribunal a quo não poderia ter determinado a procedência da questão em causa. U. In casu, o decisório foi na direção da procedência desta questão, salvo opinião diversa, pelo facto da errada e insuficiente valoração da prova, realidade já anteriormente escalpelizada. V. Nos termos do preceituado na alínea d) do número 1 do artigo 615º do CPC é nula a sentença, além do mais, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. Decorre de tal norma que o vício que afeta a decisão advém de uma falta de pronúncia (cf. 1º segmento da norma). W. Na verdade, é sabido que essa causa de nulidade se traduz no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no número 2 do artigo 608º do CPC. O qual consiste, por um lado, no resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, excetuadas aquelas, cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes (salvo aquelas de que a lei lhe impõe o conhecimento oficioso). X. Como se infere do que já deixámos expresso, a falta de pronúncia pressupõe que o julgador fica aquém do conhecimento que lhe foi pedido pelas partes. Por outras palavras, haverá falta de pronúncia, sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido. Y. Em conclusão, a douta sentença padece de erro de julgamento da matéria de facto por errada e insuficiente valoração da prova produzida e de direito por errada aplicação do número 6 do artigo 3º do CIRS e também, padece da falta de pronúncia, nos termos supra expostos, enfermando de nulidade, nos termos do número 1 do artigo 125º do CPPT e da alínea b) do número 1 do artigo 615º do CPC, aplicável ex vi artigo alínea e) do artigo 2º do CPPT, devendo considerar-se improceder a questão objeto do presente recurso. Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, na questão “do erro nos pressupostos de facto quanto às correcções respeitantes às notas de débito”, com as devidas consequências legais.». 1.4. Nenhuma das Recorridas apresentou contra-alegações. 1.5. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer em 15.11.2022, cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido e do qual destacamos os seguintes excertos: «(…) II – Questão prévia (Retificação de erros materiais da sentença recorrida, na parte decisória) Compulsada a sentença recorrida, concretamente na sua parte decisória, entendemos que a mesma padece de vários erros materiais que urge proceder à sua retificação. (…) Ou seja, admite a lei sejam corrigidos erros materiais da decisão, situação que ocorre quando há divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, ou seja, no caso em que o juiz tenha escrito uma coisa diferente daquela que queria, de facto, escrever. (…) Assim, o erro material da decisão, passível de retificação, nos termos do artigo 614º, nº 1, CPC, é aquele que ressalta de forma clara e ostensiva do teor da própria decisão. Só do contexto desta é possível aferir se ocorreu ou não esse erro. Portanto, emergindo – como, in casu, emerge – do próprio texto da sentença (de 28.02.2022) vários indícios de ocorrência de divergência entre a vontade do juiz e o que ali efetivamente se plasmou, pode falar-se em erro material (passível de retificação). Vejamos, in casu. A sentença recorrida na parte decisória está disposta da seguinte maneira: “VI – Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo: a) Procedente a presente impugnação quanto ao acréscimo do lucro tributável do ano de 2005 no montante de €14.76,45, impondo-se a anulação da liquidação no que a esta parte respeita; b) Improcedente a presente impugnação quanto às demais correções no montante total de €752.520,69, mantendo-se nesta parte as liquidações impugnadas. ** Custas a cargo das partes pelo decaimento, 98,08% a cargo dos Impugnantes, e 1,9% a cargo da Fazenda Pública, nos termos do artigo 527º n.º 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 2º alínea e) do CPPT e artigo 6º, Tabela I-A do Regulamento das Custas Processuais.”6 Vejamos. Na alínea a) da parte dispositiva verificamos que a sentença recorrida faz alusão à quantia de €14.76,45 quando queria dizer 14.766,45 €, correspondente ao montante global das notas de débito, com os números 42 e 43, datadas de 03.08.2005, nos montantes de 11.380,45 € e 3.386,00 €. Por outro lado, o montante global das correções é de 147.591,99 € correspondente ao montante global da liquidação do IRS de 2003, 2004 e 2005 (valor esse indicado na PI da impugnação) e ao valor da ação (fls. 3 da sentença recorrida, que não foi impugnado) e não €752.520,69 como erroneamente está enunciado na sentença recorrida, na parte decisória. Mutatis mutandis, no que concerne aos montantes das custas que a cada uma das partes estão incursas. Assim, a sentença recorrida refere “…98,08% a cargo dos Impugnantes, e 1,9% a cargo da Fazenda Pública…”, quando devia referir “…89,996% a cargo dos Impugnantes, e 10,004% a cargo da Fazenda Pública…”, constituindo este lapso de escrita um erro material retificável a todo o tempo, o que se requer (cf. artigo 614º, nº 3 do CPC) aplicável ex vi artigo 2º, al. e) do CPPT). III - Do Recurso da AT (…) a) – Da nulidade de sentença (por omissão de pronúncia) No tocante à nulidade de sentença invocada, diga-se em abono da verdade que a AT parte de pressupostos jurídicos errados para chegar à conclusão que acabou por chegar. (…) Ora, tal como é referido no douto despacho judicial proferido pela Meritíssima Juiz de Direito a quo onde refutou a nulidade de sentença:8 “(…) De acordo com o que estatui o artigo 608.º n.º 2 do CPC, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. A inobservância de tal comando é, como se sabe, sancionada com a nulidade da sentença, nos termos do que dispõe o artigo 125º do CPPT. Ora, do que se depreende do alegado, a Fazenda Pública sustenta a omissão de pronuncia, por considerar que o Tribunal valorou de forma errada e insuficiente a prova apresentada. No entanto, tal não constitui nulidade nos termos do artigo 125º do CPPT. Isto porque, tal como a própria Fazenda Pública invoca, a verificar-se a apontada errada valoração da prova apresentada, esta consubstanciará erro de julgamento e não nulidade da decisão. Ademais, a falta de relevância dos factos que vêm enunciados no relatório do procedimento inspectivo contende com a apreciação da realidade fáctica inerente à questão a decidir e nunca a questão nos termos do preceituado pelo n.º 2 do artigo 608.º do CPC. Por outro lado, a Fazenda Pública nem sequer apresentou contestação nos autos, para que se pudesse sequer considerar que tal questão aí vinha invocada sem que o Tribunal se tivesse pronunciado sobre tal. (…)” O que se sufraga, fazendo nosso os doutos argumentos jurídicos escalpelizados pela Meritíssima Juiz de Direito a quo. (…) Assim, o segmento que a AT pretende questionar como nulidade de sentença tem antes a ver com uma diferença de pontos de vista quanto à valoração da matéria de facto dada por assente na sobredita sentença (cabendo aqui o eventual erro de julgamento), que não cabe obviamente na previsão das nulidades de sentença previstas no artigo 125º, nº 1 do CPPT, pelo que extravasa a sua previsão, sendo assim, de afastar tal nulidade de sentença invocada. b) - Erro de julgamento (…) Assim, o tribunal a quo considerou que a AT não logrou provar o recebimento por parte do impugnante AA dos montantes ínsitos nas notas de débito, com o número 42 e 43, datadas de 03.08.2005, nos montantes de 11.380,45 € e 3.386,00 €, respetivamente, emitidas pela sociedade "X" e melhor identificadas no ponto 3) do probatório, como lhe competia, nos termos do nº 1 do artigo 74º da LGT com correspondência no nº 1 do artigo 342º do CC, isto é, não recaindo sobre o impugnante AA a obrigação de emitir fatura, o facto tributário ocorreu com o pagamento ou colocação à disposição do sobredito rendimento, recaindo assim sobre a AT o ónus de comprovar o efetivo recebimento por parte do impugnante AA. No entanto, dos autos não resultou comprovado o recebimento por parte do impugnante AA dos montantes em causa, de modo que conclui o tribunal a quo que não poderia a AT considerar como acréscimo do lucro tributável do ano de 2005 o montante de 14.766,45 €. Salvo o devido respeito, não concordamos. Sucede que in casu o nº 6 do artigo 3º do CIRS, na redação vigente à data da emissão das notas de débito (03.08.2005), tinha a seguinte redação: “6 - Os rendimentos referidos neste artigo ficam sujeitos a tributação desde o momento em que para efeitos de IVA seja obrigatória a emissão de fatura ou documento equivalente ou, não sendo obrigatória a sua emissão, desde o momento do pagamento ou colocação à disposição dos respetivos titulares, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 18.º do Código do IRC, sempre que o rendimento seja determinado com base na contabilidade.”9 E o nº 1 do artigo 18º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), que à data dos factos, tinha a seguinte redação: “1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.”. Ora, o impugnante AA, em sede de IRS, optou pela contabilidade organizada como forma de determinação dos rendimentos da atividade por si exercida – protésico dentário - cf. [alínea b) do nº 1 do artigo 28º do CIRS]. Acresce, ainda, que do ponto 3) do probatório, anteriormente enunciado, também se depreende que o impugnante AA optou pela contabilidade organizada para determinação dos rendimentos da sua atividade, cf. “As mencionadas notas de débito não se encontram relevadas na contabilidade do sujeito passivo nem evidenciada nas declarações de rendimentos apresentadas. Daqui resulta um acréscimo do lucro tributável, do ano de 2005, no montante de 14.766,45€, que corresponde a igual montante de omissão de proveitos. (…)” E, esta realidade, também, não mereceu qualquer sindicância por parte do Tribunal a quo, tendo, ao invés, considerado que competia à AT a prova de que os valores em questão foram recebidos pelo impugnante AA. Ora, tal situação corresponderia à realidade contabilística do impugnante AA, se não tivesse optado pela contabilidade organizada na determinação dos rendimentos da atividade por si exercida, como o fez. Assim, ao ter assim decidido como decidiu, o Tribunal a quo, incorreu em erro de julgamento em matéria de facto e de direito, por errada aplicação do nº 6 do artigo 3º do CIRS. Revertendo ao caso concreto, nesta parte, os valores constantes das notas de crédito, uma vez que não se encontram relevados na contabilidade do impugnante AA, deveriam ter sido acrescidos ao lucro tributável do exercício de 2005, como bem decidiram os Serviços de Inspeção Tributária (SIT), em sede de RIT. Em resumo, nesta parte, deve o recurso proceder. IV – Recurso dos impugnantes a) Da nulidade de sentença (por omissão de pronúncia) Invocam os impugnantes/recorrentes que não tendo sido dado como provado na sentença recorrida quais os valores alegadamente disponibilizados aos sócios e que esses valores foram creditados na conta corrente destes, não poderia ter concluído como concluiu. Tal asserção poderá ser interpretada como “falta de pronúncia sobre questões que o juiz deve apreciar”, suscetível de integrar a nulidade de sentença prevista no artigo 125º, nº 1, parte final do CPPT. Ora, no seu despacho de sustentação, a Meritíssima Juiz de Direito a quo referiu o seguinte: (…) No mais, fazemos nossos – com a devida vénia - os doutos argumentos de direito aduzidos no douto despacho judicial de sustentação, que para todos os efeitos legais se dá por integralmente reproduzido. (cf. fls. 522 e ss. do SITAF). b) Do mérito do recurso (…) Vejamos. Entendemos, tal como a sentença recorrida, que ocorreu a exceção dilatória de caso julgado, que absolve o réu da instância. (…) Retornando ao caso dos autos e como resulta do acervo probatório, pontos 1) e 5), os SIT efetuaram procedimento inspetivo à "Clínica ..., Lda.", tendo resultado em correções à matéria tributável e consequentes liquidações adicionais de IRC. Notificada das liquidações emitidas, a "Clínica ..., Lda." deduziu impugnação judicial que correu termos no TAF do ..., sob o n.º ..1/08.8 BEPRT, onde foi invocada a preterição de formalidades legais, a falta de fundamentação do relatório do procedimento inspetivo, assim como o erro na quantificação da matéria coletável – cf. pontos 7) e 8) da factualidade assente. Por sentença do TAF do ..., de 04.10.2021, julgou-se improcedente em sede daquele processo de impugnação, a qual transitou em julgado, na qual se decidiu pela improcedência do erro na quantificação da matéria coletável – cf. ponto 13) da factualidade assente. Ora, tal como naquele processo deduzido pela "Clínica ..., Lda.", nos presentes autos os impugnantes/recorrentes vêm invocar o erro na quantificação da matéria tributável decorrente do procedimento inspetivo efetuado em sede da "Clínica ..., Lda.", invocando outrossim (tal como naqueles autos) o aproveitamento de fundada dúvida ao abrigo do disposto no artigo 100.º n.º 1 do CPPT. Assim, tendo em consideração o que foi decidido em sede do processo de impugnação judicial que correu termos no TAF do ... sob o n.º ..1/08.8 BEPRT, assim como à causa de pedir formulada nos presentes autos, impõe-se concluir pela verificação da autoridade do caso julgado, exceção dilatória que absolve o réu da instância. V – Conclusões Em conclusão, s.m.o., somos do parecer, que: 1º - Como questão prévia, deve proceder-se à retificação da sentença recorrida por conter erros materiais, tal como expendido por nós, no capítulo II. 2º - O recurso interposto pela recorrente AT: a) - merece ser considerado improcedente, na parte, em que invocou a nulidade de sentença (por omissão de pronúncia); e b) - procedente, na questão de mérito, pois que a sentença a quo enferma, nesta parte, de erro de direito e não está conforme à lei e ao direito devendo ser revogada e afastada da Ordem Jurídica; 3º - O recurso interposto pelos impugnantes/recorrentes AA e BB merece ser considerado totalmente improcedente, pelo que deve a sentença recorrida, nesta parte, ser corroborada e consequentemente mantida na Ordem Jurídica, a liquidação adicional de IRS referente aos períodos de 2003, 2004 e 2005, ora postas em crise; 4º - Com custas processuais a cargo dos recorrentes AT e impugnantes, na proporção dos respetivos decaimentos (cf. artigo 527º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” artigo 281º, do CPPT, e artigos 6º, nº 2 e 7º, nº 2, do Regulamento de Custas Processuais e Tabela I – B anexa); e 5º - Dê-se conhecimento do acórdão que vier a ser proferido ao processo de inquérito a correr termos no DIAP ..., 6ª seção, NUIPC nº ...4/07.3 TDPRT.». * Dispensados os vistos legais, nos termos do artigo 657º, nº 4, do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir, pois que a tanto nada obsta. * 2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR Uma vez que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, cumpre apreciar e decidir se a sentença recorrida enferma de erro na valoração da prova e de nulidade, ao concluir que a ATA não fez prova do recebimento dos valores das notas de débito nº 42 e 43 (recurso da Fazenda Pública), bem como de erro de julgamento ao entender que está fundamentada a correção, no sentido de que ocorreu adiantamento de lucros a favor do impugnante (recurso dos impugnantes). Mais deverá ser ponderada a retificação dos erros materiais apontados pelo DMMP. 3.FUNDAMENTAÇÃO 3.1. DE FACTO 3.1.1. Matéria de facto fixada em 1ª instância A decisão recorrida fixou a seguinte «IV – Matéria de facto Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, consideram-se provados os seguintes factos: 1) No cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2...752 e n.º OI200600753, os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças do ... efectuaram procedimento inspectivo a "Clínica ..., Lda.", de âmbito parcial, para os exercícios de 2003, 2005 e 2005 em sede de IRC, tendo resultado correcções a esses exercícios – cfr. fls. 132 a 153 do processo administrativo (PA) junto aos autos e fls. 126 do SITAF do processo de impugnação que correu termos no TAF do ... sob o n.º 641/08.8BEPRT. 2) No cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI20.....50 e OI n.º OI20......51, foi realizado procedimento inspectivo a AA e BB, de âmbito parcial, para os exercícios de 2003, 2005 e 2005 em sede de IRS – cfr. fls. 30 a 39 do processo administrativo (PA) junto aos autos. 3) No âmbito do procedimento inspectivo a que se alude em 2) foi elaborado em 2.05.20007 relatório pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças do ... de onde decorre o seguinte: “(…) I –Conclusões da acção inspectiva (…) C- O sujeito passivo, em nome individual, exerce a actividade de protésico dentário, sendo os rendimentos daí provenientes, rendimentos da Categoria B de IRS. Esta actividade é isenta de IVA, nos termos da alínea b) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 9º do Código do IVA, quanto às prestações de serviços médicos, de odontologia e de protésicos dentários. (…) III – Descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas à matéria tributável ▪ Atividade desenvolvida m nome individual de protésico dentário (…) 2 – A "X" enviou-nos fotocópias dos documentos que lhe foram emitidos pelo sujeito passivo, os quais passamos a discriminar: (…) As mencionadas notas de débito não se encontram relevadas na contabilidade do sujeito passivo nem evidenciada nas declarações de rendimentos apresentadas. Daqui resulta um acréscimo do lucro tributável, do ano de 2005, no montante de 14.766,45€, que corresponde a igual montante de omissão de proveitos. (…) ▪ Lucros recebidos AA e esposa BB (…) Dos factos então apurados, concluímos que a "Clínica ..., Lda.", não relevou na sua contabilidade as operações económicas, nos anos e montantes acima calculados e consequentemente não se refletiram nos resultados apresentados, nem acolhidos na situação líquida, sendo certo que os mesmos se traduziram em movimentos financeiros não relevados. Tais valores, os quais provamos serem inequívocos, foram recebidos, na medida em que são suportados documentalmente por recibos, ou seja, por um documento legal de quitação e como referido não integram o circuito financeiro espelhado pela clinica. Do exposto conclui-se que: - as quantias foram recebidas; - não relevadas na componente financeira - não se traduziram em lucros espelhados na situação liquida, - porquanto só poderão ter sido disponibilizados aos sócios. Assim, nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS, os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, consideram-se rendimentos de capitais, rendimentos da categoria E, dos respectivos sócios. Temos igualmente que ter em conta o disposto no n.º 1 do artigo 40.º do CIRS, o qual estabelece que os lucros devidos por pessoas colectivas sujeitas e não isentas de IRC são apensas considerados em 50% do seu valor, para efeitos de englobamento. (…)” - cfr. fls. 30 a 39 do PA junto aos autos. 4) Em 17.05.2007 a "Clínica ..., Lda." apresentou requerimento junto da Polícia Judiciária ... com o seguinte teor: “(…) vem ao abrigo do disposto no artigo 37, n.º 1 do CPPT e do artigo 64, n.º 4 da Lei Geral Tributária, solicitar a V. Ex.ª, que se digne ordenar a passagem de certidão, com os elementos contabilísticos que estão apreendidos nessa polícia. Foi feito o apuramento da matéria colectável sujeita a IRC dos anos de 2003, 2004 e 2005, e sem esses elementos não é possível apresentar qualquer contestação ou reclamação.” – cfr. fls. 52 do processo físico. 5) Na sequência das correcções descritas em 1), foi emitida a liquidação adicional de IRC n.º 2007.........21 do exercício de 2003, no montante de €59.010,70 e consequente demonstração de acerto de contas no montante de €66.061,39, liquidação n.º 2007 ........33, do exercício de 2004, no montante de €77.308,16 e consequente demonstração de acerto de contas no montante de €77.388,16, liquidação n.º 2007 ........48 do exercício de 2005, no montante de €113.409,22 e consequente demonstração de acerto de contas no montante de €117.585,16 – cfr. fls. 255 do SITAF do processo de impugnação que correu termos no TAF do Porto sob o n.º 641/08.8BEPRT. 6) Na sequência das correcções descritas em 2) foi emitida em 14.05.2007 a liquidação de IRS n.º 2007......51 do ano de 2003, no montante a pagar de €24.565,53, a liquidação n.º 2007 ..........78 do ano de 2004, no montante a pagar de €39.774,57 e n.º 2007 ........83, do ano de 2005, no montante a pagar de €84.147,86 – cfr. fls. 33 a 40 do processo físico. 7) A "Clínica ..., Lda." deduziu impugnação judicial das liquidações a que se alude em 5), que correu termos no TAF do Porto sob o n.º 641/08.8BEPRT – cfr. petição inicial do processo de impugnação correu termos no TAF do Porto sob o n.º 641/08.8BEPRT que consta de fls. 1 do SITAF. 8) No âmbito do processo de impugnação judicial a que se alude em 7), foi invocada a preterição de formalidades legais, a falta de fundamentação do relatório do procedimento inspectivo, assim como o erro na quantificação da matéria colectável – cfr. petição inicial do processo de impugnação correu termos no TAF do Porto sob o n.º 641/08.8BEPRT que consta de fls. 1 do SITAF. 9) Sob a impugnação a que se alude em 7), recaiu em 17.11.2014 decisão de improcedência – cfr. fls. 176 a 207 do processo físico. 10) Interposto recurso, por Acórdão do TCA Norte de 11.02.2016, foi confirmada a decisão a que se alude em 8) na parte respeitante à preterição de formalidades legais e à fundamentação do relatório do procedimento inspectivo e revogada a decisão no demais, retornando os autos à 1ª instância para diligências várias - cfr. fls. 217 a 265 do processo físico. 11) Em 3.12.2018 foi proferida nova decisão de improcedência em sede do processo de impugnação a que se alude em 7) – cfr. fls. 269 a 281 do processo físico. 12) Interposto recurso da decisão a que se alude em 11), por Acórdão de 24.10.2019 foi concedido provimento ao recurso e determinada a baixa dos autos à 1ª instância para nova decisão – cfr. Acórdão que recaiu sobre o processo de impugnação que correu termos no TAF do Porto sob o n.º 641/08.8BEPRT, que consta de fls. 1339 do SITAF daquele processo. 13) Em 4.10.2021 foi proferida nova decisão de improcedência em sede do processo de impugnação a que se alude em 7), já transitada em julgada, na qual se decidiu pela improcedência do erro na quantificação da matéria colectável - cfr. decisão do processo de impugnação que correu termos no TAF do Porto sob o n.º 641/08.8BEPRT, que consta de fls. 1482 do SITAF daquele processo. ** Factos não provados Não se mostram provados outros factos, além dos supra referidos. ** Motivação da decisão de facto O Tribunal considerou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, e o PA junto que não foram impugnados, assim como, na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados [cfr. artigo 74º da Lei Geral Tributária (LGT)], também são corroborados pelos documentos juntos, conforme predispõe o artigo 76º n.º 1 da LGT e artigo 362º e seguintes do Código Civil.». 3.1.2. Ampliação da matéria de facto Em conformidade com o que infra vai considerado, no ponto 3.2.1.2., vamos proceder ao seguinte aditamento à matéria de facto, requerido pela Recorrente fazenda Pública: 14) No relatório aludido no ponto 3 supra, consta ainda o seguinte: “D – Nos anos em causa, quanto à actividade que exerce em nome individual, contabilizou e declarou os seguintes valores. [dá-se por reproduzido(a) o(a) documento/imagem conforme original] Estabilizada nestes termos a factualidade relevante, avancemos na apreciação do mérito dos presentes recursos. 3.2. DE DIREITO 3.2.1. Recurso da Fazenda Pública A Recorrente Fazenda Pública não se conforma com a sentença recorrida na parte em que a mesma foi julgada procedente (questão iii), por ali se ter considerado que “não recaindo sobre o Impugnante AA a obrigação de emitir fatura, o facto tributário ocorreu com o pagamento ou colocação à disposição do sobredito rendimento, recaindo assim sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) o ónus de comprovar o efetivo recebimento por parte do Impugnante AA. No entanto, dos autos não resultou comprovado o recebimento por parte do Impugnante AA dos montantes em causa. Concluindo que não poderia a AT considerar como acréscimo do lucro tributável do ano de 2005 o montante de 14.766,45 €”. Entende que, nesta parte, a sentença sob recurso incorre em erro de julgamento de facto, por errada e insuficiente valoração da prova de facto, e de direito pela errada aplicação do número 6 do artigo 3º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS). Refere que «O número 6 do artigo 3ºdo CIRS, na redação vigente à data da emissão das notas de débito (03.08.2005) tinha a seguinte redação: “6 - Os rendimentos referidos neste artigo ficam sujeitos a tributação desde o momento em que para efeitos de IVA seja obrigatória a emissão de fatura ou documento equivalente ou, não sendo obrigatória a sua emissão, desde o momento do pagamento ou colocação à disposição dos respetivos titulares, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 18.º do Código do IRC, sempre que o rendimento seja determinado com base na contabilidade.”», invoca o disposto no artigo 18º do CIRC e defende que «o Impugnante AA, em sede de IRS, optou pela contabilidade organizada como forma de determinação dos rendimentos da atividade por si exercida – protésico dentário -, cf. [alínea b) do número 1 do artigo 28º do CIRS]», sendo «(…) disso […] prova o ponto D do capítulo “II – Objectivos, âmbito e extensão da ação inspetiva”, a pág. 1/8 do RIT, do qual consta a demonstração de resultados por funções, um documento contabilístico e caracterizador da contabilidade organizada, cujo objeto prende-se com a determinação do lucro tributável, nos temos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC).», o que não foi considerado pelo Tribunal a quo, pelo que requer a ampliação da matéria de facto provada, sustentando, ainda, que «(…) do ponto 3) do probatório, anteriormente enunciado, também se depreende que o Impugnante AA optou pela contabilidade para determinação dos rendimentos da sua atividade, (…)». Mais entende que, em face do considerado, a sentença enferma de nulidade por omissão de pronúncia. 3.2.1.1. Da nulidade da sentença No que a esta questão respeita, ante a falta de clareza do que consta das conclusões para sustentar a ocorrência deste vício da sentença, atentemos ao que vem referido nos pontos 25 a 32 das alegações de recurso: «25. Nos termos do preceituado na alínea d) do número 1 do artigo 615º do CPC é nula a sentença, além do mais, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. 26. Decorre de tal norma que o vício que afeta a decisão advém de uma falta de pronúncia (cf. 1º segmento da norma). 27. Na verdade, é sabido que essa causa de nulidade se traduz no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no número 2 do artigo 608º do CPC. 28. O qual consiste, por um lado, no resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, excetuadas aquelas, cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes (salvo aquelas de que a lei lhe impõe o conhecimento oficioso). 29. Como se infere do que já deixámos expresso, a falta de pronúncia pressupõe que o julgador fica aquém do conhecimento que lhe foi pedido pelas partes. Por outras palavras, haverá falta de pronúncia, sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido. 30. Face do exposto e de acordo com o preceituado supra exposto, mas com o devido respeito, que é muito, perante os factos dados como provados, a decisão do Tribunal a quo não poderia ter determinado a procedência da questão em causa, tendo incorrido erro de julgamento da matéria de facto por errada e insuficiente valoração da prova produzida e de direito por errada aplicação do número 6 do artigo 3º do CIRS e também, 31. padece da falta de pronúncia, nos termos supra expostos, enfermando de nulidade, nos termos do número 1 do artigo 125º do CPPT e da alínea b) do número 1 do artigo 615º do CPC, aplicável ex vi artigo alínea e) do artigo 2º do CPPT, com as consequências legais. 32. Pelo que deve ser revogada a douta sentença que decidiu de forma contrária ao ora propugnado pela Fazenda Pública.». Ora, se bem entendemos o teor desta alegação, para a Recorrente Fazenda Pública, ocorrerá omissão de pronúncia quando o juiz incorre em erro de julgamento da matéria de facto, por errada e insuficiente valoração da prova produzida, e de direito. Está, porém, equivocada, pois, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, a sentença só é nula quando «O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; ou seja, só ocorre quando o julgador deixe de se pronunciar sobre questões que deveria apreciar, seja porque essas questões lhe foram colocadas pelas partes seja porque eram do seu conhecimento oficioso. A noção de questão, para este efeito, não se confunde com a de fundamentos ou razões jurídicas apresentadas pelas partes, sendo reservada às pretensões que estas formularam no processo, e que requerem a decisão do tribunal, bem como aos pressupostos de ordem geral, ou específicos de determinado ato, quando debatidos entre elas [cfr. Antunes Varela, RLJ, Ano 122º, página 112; Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, volume V, página 143; e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, volume III, 1972, página 228; entre outros, AC STJ de 09.10.2003, Rº03B1816; AC STJ de 12.05.2005, Rº05B840; AC STA/Pleno de 21.02.2002, Rº034852; AC STA de 02.06.2004, Rº046570; e AC STA de 10.03.2005, Rº046862]. Assim, “a questão” desagua numa pretensão a que o juiz tem de dar resposta, enquanto os fundamentos, ou razões, cimentam o caminho que a tal resposta conduz. A questão tem a ver com a tese adotada, e os fundamentos são as razões pelas quais ela se adota. No caso vertente, a Meritíssima Juiz a quo pronunciou-se sobre a “questão” suscitada pelos Impugnantes, sendo que o eventual erro nos fundamentos de facto ou direito usados pelo Tribunal para lhe dar resposta, embora possa redundar em erro de julgamento, não configura nulidade. Concluímos, assim, que não ocorre a nulidade da sentença arguida pela Fazenda Pública. 3.2.1.2. Do erro de julgamento Na ótica da Recorrente Fazenda Pública, foram demonstrados os pressupostos legais de que dependia o acréscimo à matéria tributável declarada pelos Impugnantes dos valores constantes das Notas de Débito emitidas pela "X"; especificamente, resulta provado que o Impugnante marido tinha contabilidade organizada para a atividade que desenvolvia em nome próprio. Este facto é evidenciado pelo teor do Relatório da Inspeção Tributária, parcialmente transcrito no ponto 3 dos factos provados, como também do seu ponto D do capítulo “II – Objectivos, âmbito e extensão da ação inspetiva”, a pág. 1/8 do RIT, do qual consta a demonstração de resultados por funções, um documento contabilístico e caracterizador da contabilidade organizada, cujo objeto prende-se com a determinação do lucro tributável, nos temos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC). Consequentemente, requer a Fazenda Pública o aditamento ao rol dos factos provados do teor daquele ponto D) e do quadro dele constante. Verificando-se que nos factos provados não está autonomamente relevado o facto em causa, nem consta o mesmo da transcrição do Relatório da Inspeção Tributária ou se dá este como integralmente reproduzido, justifica-se a ampliação da matéria de facto provada, nos termos requeridos pela Fazenda Pública, o que já mostra feito, no local próprio. Resulta, pois, da factualidade provada, especificamente do que se mostra apurado pela Inspeção Tributária, que o Impugnante marido exercia a atividade de protésico dentário em nome pessoal, para a qual possuía contabilidade organizada, onde não foram relevadas as Notas de Débito nº 42 e 43 que este emitiu a favor pela "X", no ano de 2005, da qual resultam contabilizados e declarados os valores constantes do quadro que consta do ponto 14) dos factos provados (agora aditado ao probatório) que evidencia a demonstração de resultados por natureza, ou seja, constitui uma demonstração financeira que, como se sabe, é um instrumento contabilístico, caracterizador da contabilidade organizada. Aqui chegados, há que atentar aos normativos invocados pela Fazenda Pública, por serem os pertinentes para a análise da correção operada, bem como para determinação da parte onerada com o ónus probatório e verificação do respetivo cumprimento. Assim, à data da emissão das Notas de Débito o artigo 3º do CIRS, respeitante aos rendimentos da categoria B, dispunha no seu nº 6, do seguinte modo: « 6 - Os rendimentos referidos neste artigo ficam sujeitos a tributação desde o momento em que para efeitos de IVA seja obrigatória a emissão de factura ou documento equivalente ou, não sendo obrigatória a sua emissão, desde o momento do pagamento ou colocação à disposição dos respectivos titulares, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 18.º do Código do IRC, sempre que o rendimento seja determinado com base na contabilidade.». Por sua vez, o artigo 18º do CIRC, estatuía que: «1 - Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.». A Nota de Débito é um documento retificativo que permite corrigir o valor de uma determinada fatura, v.g. quando o IVA não tiver sido aplicado ou para aplicar uma taxa de IVA diferente da que tinha sido aplicada originalmente. Por exemplo, se uma fatura for emitida sem taxa de IVA de 23% sobre um determinado produto, pode ser usada uma nota de débito para corrigir esse erro, dando ao cliente o título que, contabilisticamente, justifica qual lapso que foi corrigido e o valor restante em dívida. Trata-se, pois, de documento retificativo de fatura previamente emitida. Assim, uma vez que o rendimento tributável dos Impugnantes foi determinado com base na contabilidade, as Notas de Débito deviam ser contabilizadas no ano da sua emissão, por representarem um crédito do Impugnante marido sobre a "X", independentemente do efetivo recebimento do seu valor. Nesta medida, à AT apenas competia provar que os documentos (Notas de Débito) foram emitidos pelo Impugnante, o ano a que os mesmos respeitam e que não foram relevados contabilisticamente, para cumprir o ónus probatório a seu cargo e demonstrar a legitimidade da sua atuação. Verificando-se observado este ónus, forçoso é concluir que a correção deve ser mantida e, assim, que o recurso da Fazenda Pública deve ser provido com a consequente revogação da sentença recorrida, nesta parte. 3.2.2. Recurso dos Impugnantes Já os Recorrentes imputam diversos vícios à sentença recorrida, na parte em que lhes foi desfavorável, designadamente, (i) erro de julgamento por não ter analisado a questão do suposto recebimento dos lucros à luz das regras do ónus da prova, sendo que nos termos do artigo 6º, nº 4, do CIRS, cabia à AT provar que tais valores foram creditados, colocados à disposição dos sócios em contas correntes destes, escrituradas na "Clínica ..., Lda."; (ii) contradição nos seus fundamentos, porquanto, no que toca às notas de débito, o Tribunal considerou que a AT não tinha provado o efetivo recebimento, mas quanto aos lucros alegadamente distribuídos já considerou que a AT fundamentou de facto a sua decisão e (iii) erro de julgamento por ter considerado verificada a autoridade do caso julgado. Vejamos, antes do mais, o que a este respeito ficou consignado na sentença recorrida: «(…) Da errónea quantificação dos rendimentos No âmbito do procedimento inspectivo efectuado aos aqui Impugnantes, concluíram os SIT que os Impugnantes receberam lucros da "Clínica ..., Lda.", considerando que tais valores constituíam rendimentos da categoria E ao abrigo do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS. Os Impugnantes, por sua vez, vêm invocar a errónea quantificação de tais rendimentos, sustentando que não tendo tido acesso aos seus elementos contabilísticos apreendidos não poderão questionar dos valores constantes do relatório. Ademais, com referência ao ano de 2006 alegam que poderá ter ocorrido duplicação de proveitos, porquanto eram processados para os mesmos serviços prestado pela Clinica, factura-recibo e recibo, não configurando estes documentos duas receitas. Por outro lado, em sede da petição inicial os Impugnantes requereram que os autos aguardassem pela decisão a proferir na impugnação judicial a intentar pela "Clínica ..., Lda.". Nessa medida, por despacho de 5.09.2011 foi determinada a suspensão dos presentes autos a aguardar a decisão a proferir no processo de impugnação judicial a correr termos sob o n.º 641/08.8BEPRT. Transitada em julgado a decisão que recaiu sobre aquela impugnação judicial, prosseguiram os autos os seus termos. Vejamos. Decorre do artigo 619.º nº 1 do CPC que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º” Ora, como decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 11.06.2019, rec. 355/16.5T8PMS.C1 “A citada disposição legal reporta-se e delimita os contornos do caso julgado material, ou seja, o caso julgado que se forma relativamente à decisão (sentença ou saneador) que, decidindo do mérito da causa, define a relação ou situação jurídica deduzida em juízo (a relação material controvertida), determinando que tal decisão tem força obrigatória dentro e fora do processo (dentro dos limites estabelecidos nos arts. 580º e 581º) e impedindo, dessa forma, que a mesma relação material venha a ser definida em moldes diferentes pelo tribunal ou qualquer outra autoridade. Segundo Manuel de Andrade[3], o caso julgado material “consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão”. Conforme resulta do disposto na norma citada, o caso julgado material vigora dentro dos limites estabelecidos nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sendo, portanto, delimitado através dos elementos que identificam a relação jurídica definida na sentença (as partes, o pedido e a causa de pedir) e é a definição dessa concreta relação jurídica (delimitada pelos referidos elementos) que se impõe por força da autoridade do caso julgado; significa isso, portanto, que a concreta relação material controvertida que foi objecto da decisão não pode voltar a ser discutida entre as mesmas partes e não pode vir a ser contrariada – antes deverá ser respeitada – por qualquer outra decisão (importando notar que, em conformidade com o disposto no artigo 625º, nº 1, do CPC, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, há-se cumprir-se a que passou em julgado em primeiro lugar).” Decorre outrossim do mesmo Aresto que “Mas o caso julgado assim formado e delimitado pode impor-se e produzir os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da excepção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas. Poder-se-á dizer, em suma, que quando o objecto da segunda acção é idêntico e coincide com o objecto da decisão proferida na primeira acção, o caso julgado opera por via de excepção (a excepção de caso julgado), impedindo o Tribunal de proferir nova decisão sobre a matéria (nesse caso, o Tribunal limitar-se-á a julgar procedente a excepção, abstendo-se de apreciar o mérito da causa que já foi definido por anterior decisão); o caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objecto da segunda acção mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objecto da primeira decisão). Conforme se refere no Acórdão do STJ de 26/02/2019 (processo nº 4043/10.8TBVLG.P1.S1)[4] “Esta distinção tem justamente por pressuposto que, na autoridade de caso julgado, existe uma diversidade entre os objectos dos dois processos e na excepção uma identidade entre esses objectos. Naquele caso, o objecto processual decidido na primeira acção surge como condição para apreciação do objecto processual da segunda acção; neste caso, o objecto processual da primeira acção é repetido na segunda. Na excepção, a repetição deve ser impedida, uma vez que só iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a. Na autoridade, há uma conexão ou dependência entre o objecto da segunda acção e o objecto definido na primeira acção, sem que aquele se esgote neste. Aqui, impõe-se que essas questões comuns não sejam decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda acção acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível”. Daí que se considere que, ao contrário do que acontece com a excepção de caso julgado (cujo funcionamento pressupõe a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir – cfr. artigo 580º, nº 1, do CPC), a invocação e o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensam a identidade de pedido e de causa de pedir[5].” Retornando ao caso dos autos e como resulta do acervo probatório, pontos 1) e 5), os Serviços da Inspecção Tributária (SIT) efectuaram procedimento inspectivo à "Clínica ..., Lda.", tendo resultado em correcções à matéria tributável e consequentes liquidações adicionais de IRC. Notificada das liquidações emitidas, a "Clínica ..., Lda." deduziu impugnação judicial que correu termos no TAF do Porto sob o n.º 641/08.8BEPRT, onde foi invocada a preterição de formalidades legais, a falta de fundamentação do relatório do procedimento inspectivo, assim como o erro na quantificação da matéria colectável – cfr. pontos 7) e 8) da factualidade assente. Por decisão de 4.10.2021 foi proferida decisão de improcedência em sede daquele processo de impugnação, já transitada em julgada, na qual se decidiu pela improcedência do erro na quantificação da matéria colectável – cfr. ponto 13) da factualidade assente. Ora, tal como naquele processo deduzido pela "Clínica ..., Lda.", nos presentes autos os Impugnantes vêm invocar o erro na quantificação da matéria tributável decorrente do procedimento inspectivo efectuado em sede da "Clínica ..., Lda.", invocando outrossim (tal como naqueles autos) o aproveitamento de fundada dúvida ao abrigo do disposto no artigo 100.º n.º 1 do CPPT. Assim, tendo em consideração o que foi decidido em sede do processo de impugnação judicial que correu termos no TAF do Porto sob o n.º 641/08.8BEPRT, assim como à causa de pedir formulada nos presentes autos, impõe-se concluir pela verificação da autoridade do caso julgado Com os fundamentos expostos, julgo verificada a autoridade do caso julgado, impondo-se improceder o alegado no que respeita à errónea quantificação. Da falta de fundamentação Invocam outrossim as Impugnantes a falta de fundamentação por considerarem não se encontrarem fundamentadas as correcções, nomeadamente no que respeita às notas de débito, assim como, quanto aos lucros antecipados. Vejamos. A fundamentação dos actos administrativos em geral constitui um imperativo constitucional, expressamente vertido no artigo 268.° n.º 3 da Constituição da Republica Portuguesa (CRP). Em obediência ao dever geral de fundamentação dos actos administrativos previsto na CRP, assim como nos artigos 124.º e 125º do Código do Procedimento Administrativo (CPA à data em vigor), conjugado com o que dispõe o artigo 77.º da LGT, este acto terá de se encontrar fundamentado de forma expressa, clara, congruente e suficiente. A fundamentação deverá ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão. As razões de facto ou de direito, embora enunciadas de forma sucinta, não podem ser confusas, obscuras ou contraditórias, sob pena de não se dar a entender o que determinou o agente a praticar o acto. A fundamentação tem de ser suficiente e congruente, na medida em que o conteúdo do acto tem de ter uma relação lógica com os fundamentos invocados e tornar claro os pressupostos tidos em conta pelo autor do acto. Os actos administrativos devem apresentar-se, formalmente, como disposições conclusivas lógicas de premissas correctamente desenvolvidas, e, permitir, através da exposição sucinta dos factos e das regras jurídicas em que se fundam, que os seus destinatários concretos, pressupostos cidadãos diligentes e cumpridores da lei, façam a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela entidade decidente. Reportando-nos agora ao caso dos autos, importa verificar, se ocorre a alegada falta de fundamentação. No que respeita à falta de fundamentação quanto às notas de débito, atendendo a que o Tribunal já apreciou e decidiu do erro nos pressupostos de facto quanto a estas correcções, decidindo pela procedência do alegado, o vício formal alegado queda-se prejudicado nos termos do disposto no nº 2 do artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 2.º alínea e) do CPPT. Resta apreciar a falta de fundamentação invocada no que respeita aos lucros antecipados recebidos da "Clínica ..., Lda.", vindo invocado por parte dos Impugnantes que não se encontra fundamentado o relatório dos SIT de facto nem de direito. Ora, como decorre do relatório do procedimento inspectivo vertido no ponto 3) da factualidade assente, os SIT fundamentaram a sua actuação no seguinte: “(…) Dos factos então apurados, concluímos que a "Clínica ..., Lda.", não relevou na sua contabilidade as operações económicas, nos anos e montantes acima calculados e consequentemente não se refletiram nos resultados apresentados, nem acolhidos na situação líquida, sendo certo que os mesmos se traduziram em movimentos financeiros não relevados. Tais valores, os quais provamos serem inequívocos, foram recebidos, na medida em que são suportados documentalmente por recibos, ou seja, por um documento legal de quitação e como referido não integram o circuito financeiro espelhado pela clinica. Do exposto conclui-se que: - as quantias foram recebidas; - não relevadas na componente financeira - não se traduziram em lucros espelhados na situação liquida, - porquanto só poderão ter sido disponibilizados aos sócios. Assim, nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS, os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, consideram-se rendimentos de capitais, rendimentos da categoria E, dos respectivos sócios. Temos igualmente que ter em conta o disposto no n.º 1 do artigo 40.º do CIRS, o qual estabelece que os lucros devidos por pessoas colectivas sujeitas e não isentas de IRC são apensas considerados em 50% do seu valor, para efeitos de englobamento. (…)” Assim, ao longo do capítulo fundamentador das correcções prosseguidas pelos SIT foram descritas as situações e respectiva factualidade que suportou a actuação dos SIT, assim como as devidas justificações para o seu entendimento. Com efeito, do relatório decorrem os factos que suportaram o comportamento dos SIT, assim como os preceitos legais adequados à análise efectuada, impondo-se concluir que a fundamentação nele inserta permitiu aos Impugnantes conhecer as razões de facto e de direito que consubstanciaram as sobreditas correcções. Ao contrário do invocado pelos Impugnantes, o relatório dos SIT é perfeitamente perceptível. Ademais, considera o Tribunal que não se impunha que do relatório dos SIT decorresse explicação sobre o que se entende por adiantamento por conta de lucros, impondo-se tão só o seu enquadramento legal. Aqui chegados, impõe-se a distinção entre fundamentação formal e fundamentação material, na medida em que, uma coisa é saber se a AT deu a conhecer os motivos que a motivaram a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto; situação diversa e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa. Distinguindo a dimensão formal e a dimensão substancial do dever de fundamentação, Vieira de Andrade, (in “O dever de fundamentação expressa de actos administrativos”, Almedina, 2003, pág. 231), aclara que a diferença está “em que o dever formal se cumpre pela apresentação de pressupostos possíveis ou de motivos coerentes e credíveis; enquanto a fundamentação material exige a existência de pressupostos reais e de motivos correctos susceptíveis de suportarem uma decisão legítima quanto ao fundo”. Entendido o dever de fundamentação expressa na sua dimensão formal, afigura-se-nos que, no caso concreto, a AT externou as razões de facto e de direito que estão na base da decisão em termos que as tornam apreensíveis para o seu destinatário e, dessa forma, cumpriu aquele dever. Saber se colhem ou não as razões invocadas, é matéria que vai para além da formalidade da fundamentação, entrando já no domínio da substância da decisão, do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e/ou de direito, que já não no da validade formal do acto. (cfr. Acórdão do TCA Norte de 11.03.2010, rec.02794/04). Vicio que, como já aqui expendido, já aqui analisamos. Nesta conformidade, improcede a pretensão dos Impugnantes, no que a este vício formal respeita.». 3.2.2.1. Erro de julgamento, por violação das regras do ónus da prova Como já adiantámos, a sentença apenas é objeto de recurso na parte tocante às correções de IRS no montante global de € 752.520,69. Em sede inspetiva, considerou a AT que «Dos factos então apurados, concluímos que a "Clínica ..., Lda.", não relevou na sua contabilidade as operações económicas, nos anos e montantes acima calculados e consequentemente não se refletiram nos resultados apresentados, nem acolhidos na situação líquida, sendo certo que os mesmos se traduziram em movimentos financeiros não relevados. Tais valores, os quais provamos serem inequívocos, foram recebidos, na medida em que são suportados documentalmente por recibos, ou seja, por um documento legal de quitação e como referido não integram o circuito financeiro espelhado pela clínica. Do exposto conclui-se que: - as quantias foram recebidas; - não relevadas na componente financeira - não se traduziram em lucros espelhados na situação liquida, - porquanto só poderão ter sido disponibilizados aos sócios. Assim, nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS, os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, consideram-se rendimentos de capitais, rendimentos da categoria E, dos respectivos sócios. Temos igualmente que ter em conta o disposto no n.º 1 do artigo 40.º do CIRS, o qual estabelece que os lucros devidos por pessoas colectivas sujeitas e não isentas de IRC são apensas considerados em 50% do seu valor, para efeitos de englobamento. (…)” - cfr. fls. 30 a 39 do PA junto aos autos.». Nas conclusões IV a X, os Recorrentes entendem que ocorre erro de julgamento porquanto o Tribunal a quo julgou procedente a pretensão dos Impugnantes no concernente às notas de débito do ano de 2005 com base na falta de verificação dos pressupostos de facto, concluindo que a AT não cumpriu o ónus da prova do efetivo recebimento pelo Impugnante marido, mas julgou improcedente o demais pedido com fundamento na correta fundamentação formal dos atos tributários impugnados. Concluem, por isso, que o Tribunal a quo não apreciou a questão do alegado recebimento dos lucros pelos Impugnantes à luz da regra do ónus da prova, designadamente que teria de ser a AT a fazer a prova de que os lucros tinham sido recebidos pelos Impugnantes (recorrentes), o que não sucedeu. Vejamos, antes de mais, o enquadramento legal e as normas aplicáveis à situação vertente. Dispõe o artigo 5º, nº2, alínea h), do CIRS (na redação aplicável) sob a epígrafe “Rendimentos da Categoria E” que: «1 – Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, directa ou indirectamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respectiva modificação, transmissão ou cessação, com excepção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias. 2 – Os frutos e vantagens económicas referidas no número anterior compreendem, designadamente: (...) h) Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º;». O preceito transcrito, sistematicamente inserido na categoria de incrementos patrimoniais (normas de incidência real), consagra como rendimentos de capitais sujeitos a incidência de IRS os lucros, incluindo os adiantamentos por conta de lucros, colocados à disposição dos respetivos associados. Por sua vez, o artigo 6º, nº 4, do mesmo Código, sob a epígrafe “Presunções relativas a rendimentos da categoria E”, estatui que: «Os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros». Deste modo, as quantias escrituradas em quaisquer contas correntes dos sócios de sociedades comerciais, que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se lucros ou adiantamento por conta de lucro. Com esta presunção o legislador, quis tão somente resolver a qualificação das quantias escrituradas em quaisquer contas correntes dos sócios cuja "causa" jurídica não foi expressamente declarada (cfr. José Guilherme Xavier de Basto, in Incidência real e determinação dos rendimentos líquidos, 2007, págs. 221 e seg.). Sucede que, no caso que nos ocupa, as correções que estão na génese das liquidações impugnadas não assentam num rendimento presumido ao abrigo do nº 4, do artigo 6º do CIRS. Tratam-se, antes, de rendimentos apurados pela Autoridade Tributária emergentes de factualidade indiciadora de que tais montantes, recebidos pela sociedade e não registados na sua contabilidade, ingressaram no património individual dos ora Recorrentes, num circunstancialismo fáctico-jurídico passível de conduzir ao enquadramento dos valores identificados como rendimentos de capitais colocados à disposição daquele sócio. Ou seja, a AT, no âmbito da sua atividade fiscalizadora, apurou factos concretos, a seu ver, indiciadores de que as verbas em questão ingressaram no património dos Recorrentes, devendo ser considerados como adiantamento por conta de lucros e, consequentemente, por constituírem rendimentos de capitais, da categoria E, nos termos do artigo 5º, nº 1, alínea h) do CIRS, sujeitos a tributação. Como se afirmou no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 07.07.2016, proferido no processo n.º 00446/11BEBRG, «(…) a norma do artigo 5º, nº 2, alínea h) do CIRS não exige a escrituração formal dessa realidade como pressuposto de incidência, mesmo porque “deixar ao critério do sujeito passivo a “classificação” como adiantamento por conta de lucros, de realidades da vida corrente das sociedades comerciais, que constituem verdadeiros desvios de fundos em proveito dos sócios, seria frustrar o interesse público do Estado na arrecadação de impostos e no combate à fraude e evasão fiscais e permitir que ficassem por tributar verdadeiros incrementos patrimoniais dos sócios”. É comummente aceite que quando os lucros distribuídos ou adiantamento por conta de lucros são devidamente escriturados, estamos perante um rendimento sujeito a impostos sobre o rendimento das pessoas singulares. Porém, o mesmo não acontece quanto uma parte do património das sociedades é afectado ou onerado, por contrapartida da transferência duma parte deste, de modo permanente e definitivo, para a esfera jurídica de um associado ou titular, sem que às mesmas operações lhes sejam dados os qualificativos de "lucros distribuídos" ou "adiantamentos por conta dos lucros". Tal situação ocorre quando os montantes, que deviam ter sido reconhecidos como proveitos das sociedades, (…) vão acrescer ao património individual dos respectivos associados ou titulares e, ainda, quando o registo, apesar de efectuado na contabilidade da sociedade, não foi relevado numa conta de proveitos, mas sim numa qualquer conta de passivo que confira ao associado ou titular o direito de, como qualquer normal credor, vir a exercer a respectiva exigibilidade - vide Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 27/01/2009, proferido no âmbito do processo n.º 02479/08.» (disponível em texto integral em www.dgsi.pt). Cabendo à Administração Tributária o dever de demonstração da ocorrência dos pressupostos legais (vinculativos) da sua atuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável), impende sobre ela o ónus de alegar e provar factos constitutivos do direito a que se arroga e que estão na génese das liquidações postas em crise (cfr. artigo 74º da LGT). Impõe-se, então, verificar se a fundamentação constante do RIT e vertida no probatório contém factos objetivos suscetíveis de demonstrar que as quantias em causa foram colocadas à disposição dos Recorrentes e se sustentam a conclusão de que estamos perante adiantamentos por conta dos lucros e, como tal, rendimento de capitais, da categoria E, nos termos do estatuído no artigo 5º, nº 1 e n.º 2, alínea h), do CIRS. Como é sabido, o adiantamento por conta de lucros supõe a transferência de disponibilidades financeiras geradas em resultado do exercício da sociedade para os seus sócios. Ora, os resultados das empresas decorrem da diferença entre os proveitos e os custos apurados no exercício. Como dispõe o nº 1 do artigo 17.º do CIRC, «O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código». A AT evidenciou a verificação do pressuposto da existência de lucros, através das correções que efetuou à contabilidade da sociedade, as quais foram mantidas em sede judicial. No que respeita ao pressuposto da apropriação de lucros da sociedade por banda dos Recorrentes, a AT constatou que as quantias em causa foram recebidas pela sociedade – porque esta emitiu os respetivos recibos - e não foram relevadas na contabilidade desta a qualquer título, designadamente como lucros, pelo que, sem mais, concluiu que teriam sido disponibilizadas aos sócios. Resta, então, determinar se tal inferência (presunção natural) está justificada o bastante; isto é, se os factos demonstrados através da prova direta, associados a uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum, permitem a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica, no caso, a conclusão retirada pela AT. Ora, se uma sociedade declara ter recebido determinada quantia, mas esta não está refletida no seu circuito financeiro nem nos seus proveitos, segundo as regras da experiência comum é de inferir que alguém a fez sua e esse alguém serão os sócios que, em representação da sociedade, deram quitação. Daí que, existindo lucros da sociedade e tendo os Recorrentes feito suas quantias recebidas pela sociedade mas que nunca entraram no seu circuito financeiro nem tiveram reflexos nos seus resultados, é de concluir pela existência de uma distribuição de lucros ou por conta de lucros e, assim, de rendimentos tributáveis em sede de IRS, categoria E. Nesta medida, a conclusão da AT está alicerçada em factos sólidos e seguros, que a permitem extrair. Por assim ser, temos de concluir que a fundamentação subjacente aos atos tributários impugnados é, neste particular aspeto, bastante, não se verificando o apontado vício formal. A sentença não padece, assim, do erro de julgamento que lhe é imputado, pois aplicou corretamente as regras do ónus da prova. 3.2.2. Contradição entre os fundamentos A sentença recorrida não merece, ainda, censura por contradição entre os seus fundamentos pois, como se percebe da sua leitura, relativamente aos rendimentos do ano de 2005 os fundamentos da correção foram distintos dos adotados quanto à distribuição de lucros/adiantamento de lucros, pelo que também era diferente o correspondente ónus a cargo da AT. Concretizando, no que tange a estas correções, o fundamento apontando pela AT foram os factos de a sociedade ter emitido notas de débito em nome da "X", as quais não se encontravam refletidas na contabilidade e, como resulta da análise do recurso da Fazenda Pública, o ónus probatório a cargo da AT era, ali, diferente daquele que sobre ela pesava quanto à correção ora apreciada. 3.2.3. Do caso julgado No que tange à autoridade do caso julgado, a propósito do alegado erro na quantificação dos rendimentos, entendem os Recorrentes que naquele processo decidiu-se que os valores em causa foram recebidos pela "Clínica ..., Lda." e nada mais, não se referindo quanto aos valores distribuídos aos sócios ou que a título o foram. Antes do mais, vejamos o que na petição inicial foi alegado a este respeito: [dá-se por reproduzido(a) o(a) documento/imagem conforme original] O vício em questão está, portanto, alegado relativamente às correções operadas na contabilidade da sociedade, em virtude de se terem apurado recibos que nela não foram não refletidos. Quanto a este vício ocorreu pronúncia no processo de impugnação apresentado contra as liquidações de IRC (nº 641/08.8BEPRT), conforme nos dá nota o probatório, ali se concluindo pela sua inverificação. Sobre a autoridade do caso julgado, acompanhamos sem reserva os considerandos tecidos no acórdão do STJ de 13.09.2018, rec. 687/17.5T8PNF.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ea1d753bcfa855b680258308003969f8?OpenDocument, que, por economia de exposição, passamos a reproduzir na parte aqui relevante: “Segundo a noção dada por Manuel de Andrade[3], o caso julgado material «consiste em a definição dada à relação jurídica controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão». A força obrigatória reconhecida ao caso julgado material, ainda segundo o mesmo autor[4], assenta na necessidade de garantir o prestígio dos tribunais, que ficaria seriamente comprometido « e a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente». Impõe-se por razões de «certeza ou segurança jurídica», pois, sem a força do caso julgado, cairíamos «numa situação de instabilidade jurídica (instabilidade das relações jurídicas) verdadeiramente desastrosa - fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas». E tem por finalidade, no dizer do mesmo Professor[5], obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas), a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão e, portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados. Dito de outro modo e nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa[6], «quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão antecedente». De realçar não ser unânime o entendimento de que, quanto à autoridade de caso julgado, tem que verificar-se a tríplice identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir estabelecida no art. 581º do CPC. Com efeito, enquanto para alguns doutrinadores, designadamente para Alberto dos Reis[7], a autoridade de caso julgado requer a verificação da tríplice identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, outros há que defendem que a autoridade de caso julgado pode funcionar independentemente da verificação desta tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado. Nesta última linha e quanto à identidade objetiva, escreve Castro Mendes[8] que «(…) se não é preciso entre os dois processos identidade de objecto (pois justamente se pressupõe que a questão que foi num thema decidendum seja no outro questão de outra índole, máxime fundamental, é preciso que a questão se renove no segundo processo em termos idênticos». Do mesmo modo, considera Lebre de Freitas que «(…) a autoridade do caso julgado tem (…) o efeito de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida». Também sustenta Miguel Teixeira de Sousa[9], que «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão». Assim, nesta linha de entendimento, na qual que se posiciona a maioria da jurisprudência, escreveu-se no Acórdão do STJ, de 15.01.2013 (processo nº 816/09.2TBAGD.C1.S1)[10], que «o alcance e autoridade do caso julgado não se pode limitar aos estreitos contornos definidos nos arts. 580 e 581º do CPC, para a exceção do caso julgado, antes se devendo tornar extensivos a situações em que, não obstante a ausência formal da identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento e razão de ser daquela figura jurídica estejam notoriamente presentes». E afirmou-se, no recente acórdão do STJ, de 22.02.2018 (revista nº 3747/13.8T2SNT.L1.S1) [11], que « a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa» e abrange, «para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado».”. Uma vez que, na impugnação nº 641/08.8BEPRT, ficou definida a situação fiscal da sociedade "Clínica ..., Lda." relativamente aos exercícios em causa (2003, 2004 e 2005), está definido, por decisão judicial transitada em julgado, que as correções operadas pela AT são corretas, não podendo ser novamente apreciada esta questão. Nesta medida, efetivamente, impõe-se a autoridade do caso julgado, conforme decidido em 1ª instância, não podendo relevar as objeções dos Recorrentes, pois a própria alegação do vício ora em apreciação não teve o alcance que agora pretendem, limitando-se o mesmo às correções operadas na contabilidade da sociedade, nada se referindo quanto às consequências em sede de IRS. Aliás, os Recorrentes reconheceram mesmo que o julgamento a realizar no processo de impugnação das liquidações de IRC teria repercussões ao nível das liquidações de IRS, aqui impugnadas. 3.3. Retificação da sentença No seu douto parecer, o DMMP junto deste Tribunal aludiu à existência de lapsos de escrita no dispositivo da sentença recorrida que, a seu ver, devem ser retificados. Estatui o artigo 614º, nº 1, do Cód. Proc. Civil que “1. Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz”. A lei permite, pois, que sejam corrigidos erros materiais da decisão, o que ocorre quando há divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, ou seja, no caso em que o juiz tenha escrito uma coisa diferente daquela que queria, de facto, escrever. A ocorrência dessa divergência entre a vontade declarada e a vontade real do julgador, que só pode dar-se como verificada quando ressalte da própria decisão, no contexto ou estrutura da decisão. Como realçava ALBERTO DOS REIS, em anotação ao artigo 667.º do C.P.C. de 1939[1]: «Importa distinguir cuidadosamente, o erro material do erro de julgamento. O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa da que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. O juiz queria escrever «absolvo» e por lapso, inconsideração, distracção, escreveu precisamente o contrário: condeno. O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz logo se convença de que errou, não pode socorrer-se do art. 667.° para emendar o erro.» – cfr. Código de Processo Civil Anotado, 1981, vol. 5º, pág. 130. Assim, o erro material da decisão, passível de retificação, nos termos do artigo 614º, nº 1, do CPC, é aquele que ressalta de forma clara e ostensiva do teor da própria decisão. Portanto, só do contexto desta é possível aferir se ocorreu ou não esse erro. No caso presente, os lapsos de escrita apontados encontram-se no dispositivo da sentença recorrida tem o seguinte teor: «VI – Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo: a) Procedente a presente impugnação quanto ao acréscimo do lucro tributável do ano de 2005 no montante de €14.76,45, impondo-se a anulação da liquidação no que a esta parte respeita; b) Improcedente a presente impugnação quanto às demais correções no montante total de €752.520,69, mantendo-se nesta parte as liquidações impugnadas. ** Custas a cargo das partes pelo decaimento, 98,08% a cargo dos Impugnantes, e 1,9% a cargo da Fazenda Pública, nos termos do artigo 527º n.º 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 2º alínea e) do CPPT e artigo 6º, Tabela I-A do Regulamento das Custas Processuais.». E, como bem aponta do DMMP, na alínea a) da parte dispositiva a sentença recorrida faz alusão à quantia de “€14.76,45” quando queria dizer 14.766,45 €, correspondente ao montante global das notas de débito, com os números 42 e 43, datadas de 03.08.2005, nos montantes de 11.380,45 € e 3.386,00 €. Este lapso de escrita é evidente, por ser manifesto que à quantia escrita falta um dígito. Já no que respeita ao montante das correções que, segundo aquele dispositivo, ascende a €752.520,69 não ocorre lapso algum, pois este montante surge como sendo o das correções operadas e já não das subsequentes liquidações. E, conforme é possível extrair do p.i. (cfr. artigo 4º), é precisamente este o resultado da soma das «correcções meramente aritméticas efectuadas à matéria tributável de IRS dos anos de 2003, 2004 e 2005, nos montantes de 7.416,72 €, 106.957,54 € e 213.652,54 €, respectivamente.». Por assim ser, não se justifica retificar a sentença nesta parte, nem no segmento referente à fixação do decaimento das partes. Ante o exposto, ao abrigo do disposto no artigo 614º do Código de Processo Civil, vamos proceder à retificação do lapso reconhecido e, assim, onde no ponto a) do dispositivo se lê: «a) Procedente a presente impugnação quanto ao acréscimo do lucro tributável do ano de 2005 no montante de €14.76,45, impondo-se a anulação da liquidação no que a esta parte respeita;», Deve ler-se: «a) Procedente a presente impugnação quanto ao acréscimo do lucro tributável do ano de 2005 no montante de €14.766,45, impondo-se a anulação da liquidação no que a esta parte respeita;». Sem prejuízo desta retificação, o recurso da Fazenda Pública deve ser julgado procedente, mantendo-se o acréscimo do lucro tributável do ano de 2005, com a consequente revogação da sentença nesta parte. Já o recurso dos Impugnante não merece provimento, mantendo-se a sentença na parte por eles recorrida. 4. DECISÃO Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em julgar: - procedente o recurso da Fazenda Pública e, nesta parte, revogar a sentença recorrida, julgando a impugnação improcedente, e - improcedente o recurso dos Impugnantes, mantendo a sentença na parte em que eles recorrem. Custas a cargo dos Impugnantes que saem vencidos em ambos os recursos, nos termos do artigo 527, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil, as quais não compreendem a taxa de justiça aqui devida, relativamente ao recurso da Fazenda Pública, uma vez que não apresentaram contra-alegações. Porto, 30 de novembro de 2022 Maria do Rosário Pais José Coelho Irene Isabel Neves |