Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00364/22.5BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/15/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:MARIA FERNANDA ANTUNES APARÍCIO DUARTE BRANDÃO
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA CONTRA A ORDEM DOS MÉDICOS E CONTRAINTERESSADAS; ACTO ADMINISTRATIVO PRATICADO PELO CONSELHO SUPERIOR DA ORDEM DOS MÉDICOS;
REGULAMENTO DISCIPLINAR DA ORDEM DOS MÉDICOS; OFENSA DOS PRINCÍPIOS QUE DEVEM PAUTAR A TRAMITAÇÃO E INSTRUÇÃO DOS PROCESSOS DISCIPLINAR E DE AVERIGUAÇÃO, MORMENTE O PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL;
PROCEDÊNCIA DA AÇÃO COM A CONSEQUENTE ANULAÇÃO DA DECISÃO IMPUGNADA;
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
«AA» propôs ação administrativa contra a Ordem dos Médicos, indicando como Contrainteressadas «BB» e «CC», todas melhor identificadas nos autos.
Pediu:
Termos e fundamentos pelos quais deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e em consequência:
1. Declarar-se, nos termos do art. 163.°, n.° 1 do CPA, a anulação do acto administrativo de 28 de Setembro de 2021, praticado pelo Conselho Superior da Ordem dos Médicos, acto que negou provimento ao recurso interposto pela aqui Autora, por violação, por erro de interpretação e aplicação do disposto nos artigos 30.°, 39.°, n.° 1, 46.° e 54.°, n.° 1 do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Médicos, e ofensa dos princípios que devem pautar a tramitação e instrução dos processos disciplinar e de averiguação, mormente o princípio da verdade material; quando assim não se entenda,
2. Declarar-se, nos termos do art. 163.°, n.° 1 do CPA, a anulação do acto administrativo de 28 de Setembro de 2021, praticado pelo Conselho Superior da Ordem dos Médicos, acto que negou provimento ao recurso interposto pela aqui Autora, por violação, por omissão de pronúncia; caso assim não se entenda,
3. Declarar-se a nulidade do acto administrativo de 28 de Setembro de 2021, praticado pelo Conselho Superior da Ordem dos Médicos, acto que negou provimento ao recurso interposto pela aqui Autora, por manifesta obscuridade e ininteligibilidade da fundamentação de tal acto, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 152.°, n.° 1, alíneas a) e b), 153.°, n.° 2 e 161.°, n.° 2, alínea d), todos do CPA, por referência ao art. 268°, n° 3 da CRP, com os efeitos previstos no art. 162.° do CPA; quando assim não se entenda,
4. Decretar-se, nos termos do art. 163.°, n.° 1 do CPA, a anulação do acto administrativo de 28 de Setembro de 2021, praticado pelo Conselho Superior da Ordem dos Médicos, acto que negou provimento ao recurso interposto pela aqui Autora, por manifesta obscuridade e ininteligibilidade da fundamentação de tal acto.
Por sentença proferida pelo TAF de Penafiel foi julgada procedente a ação e, em consequência, anulada a decisão impugnada.
Desta vem interposto recurso pelas Contrainteressadas.
Alegando, formularam as seguintes conclusões:
1. O presente recurso deve ser julgado totalmente procedente, julgando-se totalmente improcedente a presente ação e, em consequência, mantendo válida a decisão impugnada proferida pelo Conselho Superior da Ordem dos Médicos.
2. Não há nenhuma razão de facto ou de direito que permita anular a decisão proferida pelo Conselho Superior da Ordem dos Médicos.
3. A participação criminal apresentada pela Autora não tinha como “Denunciadas” as Contra-Interessadas a toda a matéria descrita nessa mesma participação.
4. Vista a referida participação criminal, que a Autora juntou como documento ..., constata-se que a mesma apenas imputou às Contrainteressadas determinadas condutas, nos pontos 11 a 28, 30 e 34 da respectiva queixa crime.
5. Toda a demais imputação alegada pela Autora na respectiva queixa crime dirige-se ao Centro Hospitalar ... e/ou a desconhecidos seus trabalhadores.
6. Os registos clínicos e o conhecimento médico de todos aqueles que proferiram as decisões de arquivamento são a pedra de toque para avaliar a bondade da decisão. Os registos clínicos permitiram aos membros integrantes dos órgãos disciplinares avaliarem as boas práticas das Recorrentes.
7. E, por isso, a inquirição das testemunhas não arroladas e não inquiridas nada iriam acrescentar à instrução do processo de averiguações.
8. Com mediana clareza pode concluir-se que o dito Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos, assim como o Conselho Superior da Ordem dos Médicos, aqui Réu, nunca poderiam pronunciar-se sobre toda a factualidade alegada pela Autora na respectiva participação criminal, ou sequer apreciá-la para que efeito fosse.
9. E isto porque os referidos órgãos, integrantes da Ordem dos Médicos, apenas detêm competência disciplinar sobre os Médicos inscritos naquela Ordem profissional,
10. Mas já não detêm essa competência disciplinar sobre o Centro Hospitalar ... – Maternidade ..., ou sobre os “vários sujeitos diferentes, cuja identidade se desconhece”.
11. Nem tampouco detêm aqueles órgãos competência investigatória que lhes permita investigar a identidade dos sujeitos cuja identidade a Autora desconhece, sujeitos esses que podem nem sequer ser Médicos.
12. Da referida queixa-crime, resultavam factos que, em abstrato, eram passiveis de integrar responsabilidade disciplinar (cfr. fls. 9 a 16 do PA) das referidas médicas, visto que a mencionada participação criminal acusava-as da violação das legis artis na realização de um parto.
13. Tais imputações constam dos pontos 11 a 28, 30 e 34 da respectiva participação criminal.
14. Todavia, a demais factualidade invocada nessa queixa crime (conforme acima se deixou expresso) em nada se relaciona com as contra-interessadas e, como tal, não tinha que ser apreciada em sede do procedimento disciplinar.
15. E, por conseguinte, fazer-se prova da sua veracidade ou inveracidade.
16. Aliás, quer a demais factualidade invocada nessa queixa crime quer a demais factualidade constante dos pontos 14 a 18 do recurso interposto para o Conselho Superior da Ordem dos Médicos.
17. Nessa medida, nenhuma prova teria de ser produzida a esse respeito, visto tratarem-se de imputações que não eram dirigidas às aqui Recorrentes, mas sim ao Centro Hospitalar ..., através de “vários sujeitos diferentes, cuja identidade se desconhece”, que a Recorrida desconhece.
18. Ou seja, os factos porventura carecidos de instrução em nada se relacionam com as Recorrentes e/ou estão na esfera disciplinar da Ordem dos Médicos, mas antes tratam-se de factos que devem ser alvo de investigação pelo Ministério Público, no respectivo processo criminal.
19. No caso em apreço, dada a irrelevância que uma descrição subjetiva dos eventos que ocorreram no parto pelas testemunhas arroladas, sempre a sua audição consubstanciaria um ato impertinente, inútil e dilatório.
20. Ouvir testemunhas ou a própria parturiente, não traria nenhum elemento relevante para a aferição do cumprimento das legis artis pelas médicas que prestaram a assistência à autora, motivo pelo qual, ainda que a autora tivesse arrolado testemunhas, as mesmas não seriam ouvidas.
21. Como tal, a audição das ditas testemunhas seria diligência impertinente e, como tal, proibida.
22. Mais ainda se tivermos em consideração que a autora não impugnou a matéria de facto julgada provada e não provada pelo Conselho Disciplinar do Norte da Ordem dos Médicos.
23. Isto é, no âmbito do recurso dirigido ao Conselho Superior da Ordem dos Médicos, a Autora não impugnou a matéria de facto julgada provada e não provada pelo Conselho Disciplinar.
24. Não há nenhuma norma que impeça que durante a instrução se arquive o procedimento apenas com base nos registos clínicos.
25. O tribunal recorrido sancionou com vício de anulabilidade uma decisão que não é anulável e relativamente à qual não há fundamento legal para declarar tal vício.
26. Pelo exposto, resulta claro que a instrução do presente procedimento disciplinar foi conduzida à luz do estabelecido nos artigos 30.º, 39.º, n.º 1, 46.º e 54.º, n.º 1 do RDOM, motivo pelo qual, não padece o ato impugnado proferido pelo Conselho Superior da Ordem dos Médicos de qualquer vicio.
27. Pelo contrário, a decisão proferida pelo TAF de Penafiel é contrária aos ditames legais dos artigos 30.º, 39.º, n.º 1, 46.º e 54.º, n.º 1 do RDOM, razão pela qual deve ser revogada.
Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, procedendo-se à revogação da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.
A Autora juntou contra-alegações, concluindo:
I. A decisão proferida pelo tribunal a quo é inatacável.
II. A tramitação e instrução dos processos disciplinar e de averiguação regem-se pelos princípios da verdade material, da cooperação entre os sujeitos processuais e da celeridade, assegurando-se todas as garantias de defesa – cfr. art. 30.º, n.º 1 do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Médicos.
III. Uma das consequências do princípio da verdade material resulta na obrigação de promover a realização de todas as diligências de prova que se mostrem necessárias à descoberta da verdade.
IV. A decisão revogada pelo tribunal a quo não invoca o desconhecimento quanto à existência das testemunhas elencadas na queixa crime apresentada, limitando-se apenas a concluir pela desnecessidade da sua audição, dado não ter sido requerida.
V. Ou seja, a decisão de não inquirir as testemunhas ou a aqui recorrida é reconduzível apenas e só a uma questão de rigidez burocrática, designadamente, o facto de a sua audição não ter sido requerida no âmbito do processo disciplinar, sendo que em momento algum foi efectuado um juízo acerca da necessidade ou pertinência da audição dos referidos sujeitos.
VI. Nesta medida, perante o relato de que existiriam situações não descritas no relatório de internamento e nos demais documentos constantes do processo disciplinar que as testemunhas em questão teriam presenciado, impunha-se a sua audição.
VII. A inquirição das testemunhas só seria dispensável se pudesse dar-se como assente que os registos clínicos reproduziam fielmente o que efectivamente se passou durante a realização do parto da aqui recorrida, o que manifestamente não corresponde à verdade, porquanto na queixa crime apresentada a aqui recorrida mencionou procedimentos e práticas não constantes dos registos clínicos e que não se coadunam com o considerado como boas práticas médicas.
VIII. Nesta medida, a inquirição das testemunhas e até da aqui recorrida afigurava-se não só necessária, como fundamental.
IX. Competia, assim, ao relator do processo revogar a decisão recorrida, e determinar a produção de prova suplementar, mormente, a audição das referidas testemunhas, e até da aqui recorrida.
X. Não o tendo feito, agiu em clara violação do disposto no Regulamento Disciplinar da Ordem dos Médicos, pelo que andou bem o tribunal a quo ao anular a decisão impugnada.
XI. Por outro lado, afigura-se desprovida de sentido a argumentação recursiva das contra-interessadas relativamente à circunstância de apenas determinadas condutas lhes serem imputadas na queixa crime apresentada pela aqui recorrida, daqui resultando que o Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos não se poderia pronunciar sobre a aludida factualidade.
XII. Desde logo, bastaria que fosse imputada às aqui recorrentes uma única conduta susceptível de constituir um desvio às boas práticas médicas para justificar a apreciação do Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos.
XIII. Por outro lado, contrariamente ao vertido no recurso das contra-interessadas, as condutas que lhes são imputadas não se resumem às por estas elencadas no seu recurso, nem tal conclusão é extraível da queixa crime apresentada.
XIV. Ademais, enquanto médicas responsáveis pelo parto da aqui recorrida, a responsabilidade disciplinar das ora recorrentes não se esgota nos actos por estas directamente levados a cabo, recaindo sobre estas, primacialmente, e em primeira linha, a responsabilidade sobre todas as decisões tomadas e todos os actos praticados no decurso do aludido parto.
XV. Sem embargo, resulta manifesto que as condutas relatadas na queixa crime e imputadas às aqui recorrentes tem relevância disciplinar, pelo que se impunha a sua apreciação pelo Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos.
XVI. Apreciação essa que, conforme supra se referiu, se quedou desconforme com as normas e princípios vigentes, pelo que andou bem o tribunal a quo ao ter proferido a decisão ora em crise.
XVII. Sendo a decisão, nessa medida, inatacável.
NESTES TERMOS e nos melhores de direito, deve a presente apelação ser julgada improcedente, mantendo-se a sentença recorrida na íntegra.
Sendo que, deste modo, farão
JUSTIÇA!
A Senhora Procuradora Geral Adjunta notificada, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
1) Em 26.03.2020, a autora apresentou requerimento dirigido ao Procurador Adjunto da junto da Procuradoria da República da Comarca do Porto, onde refere pretender queixar-se criminalmente contra o Centro Hospitalar ... - Maternidade ..., e contra as contrainteressadas, tendo indicado, a final, duas testemunhas;

Doc. ... junto com a p.i.

2) A 19.10.2020 deu entrada no Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos ofício da Procuradoria da República da Comarca do Porto remetendo a queixa apresentada pela autora;
Doc. ... junto com a p.i.

3) O referido Conselho Disciplinar instaurou processo disciplinar que correu termos sob o n.º 328/20;
P.A., fls. 1 e ss.

4) A autora constituiu mandatário no processo disciplinar referido, remetendo procuração forense para o mesmo a 26.10.2020;
P.A., fls. 19 e ss.

5) A 11.01.2021 foi elaborado relatório final propondo o arquivamento por falta de elementos que integrem qualquer ilícito disciplinar;
Doc. ... junto com a p.i.

6) Do relatório final, consta, entre o mais, o seguinte:
Doc. ... junto com a p.i.
(...)
A avaliação dos registos clínicos permite concluir que a assistência médica prestada à queixosa teve como base a melhor evidência científica e que os actos médicos praticados estiveram de acordo com as normas de boa prática.
A avaliação do processo de internamento permite também concluir que não existiram motivos clínicos que exigissem a realização de uma cesariana; pelo contrário, a sua realização implicaria um risco infeccioso acrescido.
O esfacelo e a escoriação na RN, compreensivelmente preocupantes para os pais, constituem complicações raras – mas possíveis – associadas ao parto distócico. Têm geralmente um bom prognóstico e curam rapidamente. O edema perineal constitui uma complicação relativamente frequente de parto vaginal e tem habitualmente uma evolução favorável.
De uma forma geral, sabe-se que as cesarianas apresentam uma maior morbimortalidade maternal e fetal.
A morbilidade aqui descrita não pode, obviamente, ser conhecida previamente, pelo que a única forma de a evitar seria o recurso universal à realização de cesariana!
Assim sendo, nem necessidade de mais considerações, e não se vislumbrando qualquer outro acto de instrução, importa concluir pela falta de elementos que integrem qualquer ilícito disciplinar.

7) Por acórdão do Conselho Disciplinar Regional do Norte de 11.01.2021 foi deliberado, por unanimidade, arquivar o procedimento disciplinar com base nos fundamentos do relatório referido;
Doc. ... junto com a p.i.

8) A autora recorreu da decisão referida para o Conselho Superior da Ordem dos Médicos peticionando a revogação da decisão de arquivamento e que determinasse a existência de violação de deveres pelas contrainteressadas e que lhes fosse aplicada sanção disciplinar;
Doc. ... junto com a p.i.

9) A 28.09.2021 foi elaborado proposta de decisão pelo Conselheiro-relator de negar provimento ao recurso interposto pela autora e manter a decisão de arquivar o processo disciplinar;
Doc. ... junto com a p.i.

10) Da proposta referida resulta, entre o mais, o seguinte;
Doc. ... junto com a p.i.
Vem, numa primeira fase, a recorrente afirmar que “em momento algum foram tais testemunhas ouvidas no âmbito do presente processo disciplinar”, após aquela arrolar duas testemunhas que alegadamente terão estado presentes “no decurso do internamento e do parto propriamente dito”.
Além disso, alega a recorrente que as médicas recorridas terão violado as regras da boa prática, uma vez que optaram pelo parto natural face a um quadro clínico que o desaconselhava.
Alegou ainda estarem violadas as legis artis "ao não ter sido efetuada ecografia no início do internamento”, bem como na sua “vertente do dever geral de cuidado”, ao submeter a recorrente “a um tratamento vexatório, humilhante e desumano”, tendo estado sujeita a um “parto desnecessariamente traumático”. Em sentido contrário, vieram as médicas recorridas contra-alegar, para tal afirmando que “todas as práticas médicas seguidas durante o período de tempo em que a equipa de urgência que chefiava à data, assistiu a grávida, foram objeto de tempestiva e adequada informação clínica, tendo sido realizadas mediante prévio consentimento da parturiente e de acordo com a legis artis”. Acrescentam ainda que a “realização de cesariana, na fase do período expulsivo em questão, aumentaria a morbimortalidade materna e fetal”, razão pela qual se impunha a realização do parto vaginal.
Chegados atá aqui, importa aferir se os argumentos invocados pela recorrente devem considerar-se procedentes.

I) Da não inquirição de testemunhas
Ora, a queixa crime levada a cabo pela ora recorrente foi dirigida ao Ministério Público (MP), tendo este posteriormente dirigido a queixa ao CDRN, que diligenciou o processo de modo a apurar a verdade dos factos, bem como da possível existência de uma violação da legis artis pelas médicas participadas. No âmbito da instrução do processo são admitidos todos os meios de prova em direito, tal é o que consta do artigo 45.º, n.º 1 do RDOM. Do n.º 3 daquele artigo resulta que “sem prejuízo do disposto no artigo 39.º, o interessado e o arguido podem requerer ao relator todas as diligências que considerem necessárias ao apuramento da verdade”.
No caso em apreço, a participação foi realizada pelos Serviços do Ministério Público, que enviou a denúncia apresentada naqueles serviços pela ora recorrente.
Naquela participação a recorrente arrolou duas testemunhas.
Acontece porém, que no presente processo a recorrente, na qualidade de interessada, não arrolou qualquer testemunha, não se podendo considerar que as testemunhas arroladas em sede penal tenham sido arroladas nesta sede disciplinar.
Por este motivo, considera-se não ter existido qualquer violação de direitos da ora recorrente, uma vez que, a mesma não participou disciplinarmente dos médicos arguidos, e, mesmo tendo a Ordem dos Médicos iniciado o processo disciplinar no seguimento da participação dos serviços do Ministério Público, não requereu o depoimento de qualquer testemunha.
Com efeito, deve o improceder o presente argumento da recorrente.

11) Por acórdão de 28.09.2021 os membros do Conselho Superior acordaram, por unanimidade, com os fundamentos da proposta referida, negando provimento ao recurso interposto pela autora e mantendo a decisão de arquivamento do processo disciplinar em causa.
Doc. ... junto com a p.i.
DE DIREITO
Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Sem embargo, por força do artigo 149.º do CPTA, o Tribunal, no âmbito do recurso de apelação, não se quedará por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decidirá “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
Assim, está posta em causa a sentença que, julgando procedente a acção, anulou a decisão impugnada.
Propugnam as Contrainteressadas, no âmbito do presente recurso, pela revogação da sentença.
Cremos que carecem de razão.
Vejamos,
O recurso interposto assenta, essencialmente, na circunstância de apenas determinadas condutas lhes serem imputadas na queixa crime apresentada pela Autora, sendo a demais imputação dirigida ao Centro Hospitalar ... e/ou a desconhecidos seus trabalhadores, pelo que o Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos não se poderia pronunciar sobre toda a factualidade alegada na participação criminal, porquanto detém apenas competência disciplinar sobre os Médicos inscritos naquela Ordem profissional.
Neste sentido, alegam as Contrainteressadas que a factualidade invocada na queixa crime em nada se relaciona com estas e, como tal, não tinha que ser apreciada em sede do procedimento disciplinar, nem nenhuma prova teria de ser produzida a esse respeito, visto tratarem-se de imputações que eram dirigidas ao Centro Hospitalar ..., através de “vários sujeitos diferentes, cuja identidade se desconhece”.
Alegam ainda as aqui recorrentes, que a audição da Autora ou das testemunhas arroladas na queixa crime em sede do procedimento disciplinar consubstanciaria um acto impertinente, inútil e dilatório e, nessa medida, proibido, porquanto não traria nenhum elemento relevante para a aferição do cumprimento das legis artis pelas médicas que prestaram a assistência à Autora, motivo pelo qual, ainda que esta tivesse arrolado testemunhas, as mesmas não seriam ouvidas.
Concluem assim que o Tribunal recorrido sancionou com vício de anulabilidade uma decisão que não é anulável e relativamente à qual não há fundamento legal para declarar tal vício, pelo que a decisão proferida é contrária aos ditames legais dos artigos 30.º, 39.º, n.º 1, 46.º e 54.º, n.º 1 do RDOM.
Não secundamos este entendimento.
Senão vejamos,
A Ordem dos Médicos exerce, com competência exclusiva, o poder disciplinar sobre aqueles que exerçam legalmente a profissão de médico em Portugal, estando as normas respeitantes aos princípios gerais da jurisdição disciplinar e da actuação dos órgãos, a definição de infracção disciplinar, a tipificação e a caracterização das respectivas sanções, bem como todas as demais normas referentes à acção disciplinar e à tramitação do processo disciplinar, previstas no anexo ao Estatuto da Ordem dos Médicos - cfr. artº 68.º do Estatuto da Ordem dos Médicos (EOM).
A instrução do processo disciplinar é sumária, devendo o relator remover todos os obstáculos ao seu célere andamento e recusar tudo o que for impertinente, inútil ou dilatório - cfr. artº 39, n.º 1 do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Médicos (Regulamento n.º 631/2016).
A tramitação e instrução dos processos disciplinares e de averiguação regem-se pelos princípios da verdade material, da cooperação entre os sujeitos processuais e da celeridade, assegurando-se todas as garantias de defesa - cfr. artº 30.º, n.º 1 do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Médicos.
Uma das consequências do princípio da verdade material resulta na obrigação de que, oficiosamente ou a requerimento, sejam ordenadas todas as diligências de prova que se mostrem necessárias à descoberta da verdade.
Estando o processo disciplinar vinculado legalmente ao princípio da verdade material, o responsável pela instrução não pode subtrair-se ao dever de realizar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade.
Tal como resulta do n.º 1 do artº 54.º do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Médicos, “o relator pode ordenar a realização de novas diligências que considere necessárias para o apuramento da verdade.”
A decisão anulada pelo Tribunal a quo não invoca o desconhecimento quanto à existência das referidas testemunhas, limitando-se apenas a concluir pela desnecessidade da sua audição, dado não ter sido requerida. Ou seja, conforme referido na sentença recorrida, a decisão de não inquirir as testemunhas ou a aqui recorrida é reconduzível apenas e só a uma questão de rigidez burocrática, designadamente, o facto de a sua audição não ter sido requerida no âmbito do processo disciplinar.
No entanto, tendo o relator conhecimento da existência de testemunhas indicadas na queixa crime, e perante o relato da Recorrida de que existiriam situações não descritas no relatório de internamento e nos demais documentos constantes do processo disciplinar que as testemunhas em questão teriam presenciado, impunha-se a sua audição.
A inquirição das testemunhas só seria dispensável se pudesse dar-se como assente que os registos clínicos reproduziam fielmente o que efectivamente se passou durante a realização do parto da aqui recorrida, o que não sucede, porquanto na queixa crime apresentada a aqui recorrida mencionou procedimentos e práticas não registados nos registos clínicos e que não se coadunam com o considerado como boas práticas médicas.
Nesta medida, a inquirição das testemunhas e até da aqui recorrida afigurava-se não só necessária, como fundamental. Competia, assim, ao relator do processo determinar a produção de prova suplementar, mormente, a audição das referidas testemunhas, e até da aqui recorrida.
Não o tendo feito, agiu em violação do disposto no Regulamento Disciplinar da Ordem dos Médicos, pelo que andou bem o Tribunal a quo ao anular a decisão impugnada.
Por outro lado, no que tange à argumentação recursiva das Contrainteressadas relativamente à circunstância de apenas determinadas condutas lhes serem imputadas na queixa crime apresentada pela aqui recorrida, daqui resultando que o Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos não se poderia pronunciar sobre a aludida factualidade, sempre se dirá, que a mesma é desprovida de sentido.
Desde logo, bastaria que fosse imputada às aqui recorrentes uma única conduta susceptível de constituir um desvio às boas práticas médicas para justificar a apreciação do Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos.
Ora, é manifesto que as condutas imputadas às aqui recorrentes assumem relevância disciplinar, pelo que sempre se justificaria a sua apreciação pelo Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos, que deveria, em todo o caso, ter-se regido pelos princípios acima elencados, o que, conforme se verificou, não aconteceu.
Andou bem o Tribunal a quo ao ter proferido a decisão ora em crise.
Em suma,
A questão decidenda é a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao decidir que a Entidade Demandada/Ordem dos Médicos violou o Regulamento Disciplinar da Ordem dos Médicos porque não ouviu as testemunhas indicadas na queixa crime apresentada.
Na situação em apreciação, atenta a factualidade apurada e o quadro jurídico aplicável, não se mostra censurável a decisão recorrida, já que procedeu a uma análise correcta dos factos e do direito.
Como sentenciado: Insurge-se a autora contra o facto de as testemunhas por si arroladas não terem sido inquiridas antes da decisão de arquivamento.
É certo que, como resulta dos autos, e invocado pela entidade demandada, o presente processo disciplinar não se iniciou com base numa participação disciplinar apresentada junto da entidade demandada pela autora, mas antes inicia-se com base de uma comunicação por parte da Procuradoria da República da comarca do Porto na qual é remetida uma queixa-crime apresentada aí pela autora.
Também é certo que a autora não apresentou nenhum requerimento específico, designadamente em que pedisse para ser ouvida ou que indicasse testemunhas, apenas tendo junto procuração forense no processo disciplinar.
O relatório final, elaborado a 11.01.2021, conclui com base na avaliação dos registos clínicos que a atuação das contrainteressadas teve por base a melhor evidência científica e esteve de acordo com as normas de boa prática, concluindo pela falta de elementos que integrem qualquer ilícito disciplinar, não vislumbrando qualquer outro ato de instrução e propondo o arquivamento.
Conforme a autora reconhece na p.i., a questão da inquirição das testemunhas só foi levantada no âmbito do recurso por si apresentado contra a decisão de arquivamento do processo disciplinar em causa.
A proposta sobre a qual recaiu a decisão impugnada analisou especificamente esta matéria. E, desde já se avança, que a argumentação aí expendida não merece um mínimo de acolhimento.
Como já se referiu supra, o Regulamento Disciplinar estabelece os critérios em que deve ou não ser produzida prova no processo disciplinar na fase de instrução (que deve ser sumária e célere e deve ser recusado qualquer ato que seja impertinente, inútil ou dilatório).
É evidente que o processo disciplinar em causa foi instaurado com base numa participação da autora, tendo o Ministério Público apenas remetido a queixa crime apresentada pela autora para que a Ordem dos Médicos apurasse a eventual existência de ilícitos de natureza disciplinar. E nessa queixa crime apresentada pela autora e que serve de participação à instauração do processo disciplinar são arroladas duas testemunhas.
Afirmar-se que tais testemunhas apenas servem para o processo crime e não para o processo disciplinar é alhear-se de obrigações decorrentes dos princípios gerais do direito administrativo e que vinculam a entidade demandada, como seja o princípio da boa administração, da proporcionalidade, da justiça e da razoabilidade, da confiança e da boa-fé e da colaboração com os particulares, previstos nos artigos 5.º, 7.º, 8.º, 10.º e 11.º do CPA.
Assim, afigura-se assistir razão à autora quanto a este ponto.
É que face aos princípios e normas regulamentares indicadas, afigura-se que a entidade demandada não pode decidir não inquirir testemunhas arroladas por um interessado numa queixa crime que apesar de ter sido apresentada ao Ministério Público, foi por este remetida à Ordem dos Médicos, e constitui a participação que dá origem ao processo disciplinar.
É certo que a entidade demandada também não está obrigada a inquirir tais testemunhas só pelo simples facto de estas terem sido arroladas pela autora. O ter arrolado testemunhas não obriga o relator da instrução a inquiri-las, a menos que se vislumbrasse que a inquirição de tais testemunhas era pertinente, ou útil ou um mecanismo célere para o esclarecimento da verdade material, o que é uma análise que cabe, em primeira linha à entidade demandada. Face às normas regulamentares, afigura-se que se impõe à entidade demandada avaliar a sua necessidade ou desnecessidade em função dos critérios estabelecidos para a fase de instrução, que tem que ser sumária e célere, e deve ser recusada a realização de tudo o que seja impertinente, inútil ou dilatório.
O que se afigura não ser de acolher é a estratégia rígida e burocrática adotada pela entidade demandada para justificar a não inquirição das testemunhas no âmbito do recurso apresentado pela autora para o Conselho Superior. Repare-se que o relator da instrução analisa e fundamenta a sua decisão com base nos elementos clínicos. Tais elementos são documentais e objetivos. Exigia-se à entidade demandada com base em tais elementos e na alegação perceber se a inquirição das testemunhas arroladas era pertinente ou útil face ao que está em causa, já que a autora, conforme alegado no artigo 34º da p.i., alude a «situações não descritas no relatório de internamento e nos demais documentos constantes do processo disciplinar que as testemunhas em questão teriam presenciado».
Ao contrário do sustentado pela entidade demandada na contestação, a inquirição das testemunhas só seria irrelevante se pudesse dar-se como assente que os registos clínicos contêm a indicação exata daquilo que se passou durante a realização do parto da autora.
Afigura-se evidente que não sendo esse o caso, já que a autora indica procedimentos e práticas não registados nos procedimentos clínicos e que não são consentâneos com as boas práticas médicas, afigura-se não só necessário, mas também fundamental a inquirição das testemunhas arroladas, antes de tomar previamente uma decisão.
Repare-se que a descrição das testemunhas que presenciaram o comportamento das contrainteressadas durante o parto da autora se vislumbra relevante para perceber se os próprios registos elaboras pelas contrainteressados estão completos ou omitem elementos essenciais.
Repare-se que a entidade demandada valida determinado comportamento das contrainteressadas com base em registos feitos por estas últimas e com base nos depoimentos destas no procedimento disciplinar.
Ora, em face da alegação e queixa crime da autora o que está precisamente em causa é a própria veracidade ou completude desses registos.
Não se trata de saber se à luz das testemunhas indicadas a atuação das contrainteressadas foi ou não correta, mas apurar através de tais testemunhas o que é que exatamente ocorreu para então com base nesses e noutros elementos de prova perceber se durante o parto da autora as contrainteressadas adotaram procedimentos consentâneos com as boas práticas médicas.
Por isso mesmo, afigura-se que, embora o registo clínico seja um elemento fundamental, apoiar-se apenas nele, negando a possibilidade de haver aspetos não registados, abre a hipótese de ter ocorrido manipulação da realidade, bastando, para tal, que tenham ocorrido omissões nos registos ou que tenham sido registados
E repare-se que essa eventualidade tem que ser previamente afastada, daí a importância de inquirir as testemunhas arroladas, já que a função da instrução é o apuramento da verdade.
Não há nenhuma norma que permita durante a instrução arquivar o procedimento apenas com base nos registos clínicos. Exige-se uma ponderação concreta do que está a ser imputado e da necessidade, utilidade ou pertinência de outros meios de prova, que é o que acontece no caso em apreço, face ao que vem alegado.
Assim, é de anular a decisão impugnada.”
Improcedem as Conclusões das alegações.
É que, contrariamente ao invocado, a decisão proferida pelo TAF a quo fez correcta leitura dos artigos 30.º, 39.º/1, 46.º e 54.º/1 do RDOM, razão pela qual será mantida no ordenamento jurídico.
DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pelas Recorrentes.
Notifique e DN.
Porto, 15/3/2024

Fernanda Brandão
Paulo Ferreira de Magalhães
Rogério Martins