Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
| Processo: | 02095/10.0BEPRT |
| Secção: | 2ª Secção - Contencioso Tributário |
| Data do Acordão: | 05/09/2024 |
| Tribunal: | TAF do Porto |
| Relator: | ANA PATROCÍNIO |
| Descritores: | DIREITO DE PROPRIEDADE; PROVA, REGISTO PREDIAL; CONCEITO DE TERCEIRO, PENHORA, EMBARGOS DE TERCEIRO; |
| Sumário: | I – Os requisitos da dedução dos embargos de terceiro, de acordo com a lei processual tributária, são os seguintes (cfr. artigo 237.º, do CPPT): a-A tempestividade da petição de embargos; b-A qualidade de terceiro face ao processo de execução no âmbito do qual se verificou a diligência judicial ofensiva da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da mesma diligência; c-A ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial. II – Os embargos de terceiro servem, actualmente, não só para defender a posse, como também qualquer outro direito que se mostre incompatível com a diligência ordenada. III – No caso, após ponderação crítica dos factos provados, ficou demonstrado verificar-se ofensa de direito de propriedade da embargante incompatível com a realização da penhora, traduzindo-se esta num acto de agressão patrimonial, causal da procedência dos presentes embargos.* * Sumário elaborado pela relatora (art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil) |
| Votação: | Unanimidade |
| Decisão: | Conceder provimento ao recurso. |
| Aditamento: |
| Parecer Ministério Publico: |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte: I. Relatório «AA», contribuinte fiscal n.º ...34, com residência e domicílio fiscal na Rua ..., rés-do-chão, direito, 4415.455, ..., ..., interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida em 19/05/2017, que julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos na sequência da penhora de imóvel no âmbito do processo de execução fiscal n.º ..............161 e apensos, por dívidas do executado «BB». A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões: “1. Na sentença Meritíssimo Juiz “a quo” decidiu julgar improcedentes os embargos de terceiro, considerando-se que não ficou demonstrado a posse da embargante. 2. A posse da Recorrente iniciou-se no momento em que o Executado declarou que iria vender da fracção autónoma designada pela letra “D”, com entrada pelos n.ºs ...21 e ...31 da Rua ..., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito naquela Rua, da Freguesia ..., Concelho .... 3. A partir daquele momento a Recorrente iniciou todo um processo que conduziria ao registo do imóvel e à transmissão efectiva do mesmo, para a sua esfera pessoal. 4. Procedeu à marcação da celebração da escritura de compra e venda junto do Cartório Notarial, celebrou acordo com o executado, permitindo que este residisse naquela fracção durante dois meses e procedeu ao pagamento dos impostos legalmente exigidos. 5. A partir do momento em que ocorre a declaração negocial de aceitação, entre Executado e Recorrente, existe a transferência para a esfera jurídica desta, todos os elementos que constituem a posse sobre o imóvel, conforme os artigos 224.º, 236.º e 239.º do Código Civil. 6. Por outro lado, existe contradição da fundamentação da sentença a qual começa por referir que “os embargos de terceiro são o meio processual adequado, para quem for ofendido na sua posse ou qualquer outro direito por um acto e arresto, penhora ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão…”. Para depois afirmar que “… sendo os embargos uma acção de tutela da posse, a verdade é que esta não vem demonstrada…”. 7. Acrescente-se que, na sentença vem ainda referido que a Recorrente demonstrou a sua posse e a sua propriedade, em sede de audiência de inquirição de testemunhas, estando todo o processo de embargos fundamentado no facto de, aquando do registo da penhora, a Recorrente havia, junto dos Serviços de Finanças, demonstrado a existência da sua posse e de que iria registar o seu direito nos termos legais. 8. No momento em que a Recorrente requer para proceder ao pagamento dos impostos recaía sobre os Serviços de Finanças a obrigação de comunicar a existência de penhora sobre o imóvel objecto da venda, nos termos do artigo 82.º do Código de Procedimento Administrativo. Irregularidade que também foi invocada e sobre a qual o Meritíssimo Juiz “a quo” não se pronunciou. 9. Por outro lado, o Serviço de Finanças também não cumpriu com todos os requisitos do processo que antecedem a realização da penhora, nos termos do n.º 1 do artigo 215.º do CPPT, findo o prazo de 30 dias após a citação para que o executado pague, se oponha ou peça o pagamento das dívidas em prestações, sem que nada seja feito, deve o escrivão do processo passar mandado de penhora, o qual deverá ser cumprido no prazo de 10 dias, devendo a penhora ser registada nos 5 dias seguintes, conforme dispõe a alínea a), do n.º 1 do artigo 231.º também do Código de Procedimento e de Processo Tributário, factos que o Meritíssimo Juiz “a quo” referiu que não teria de se pronunciar, mas que tornam o acto da penhora inexistente devido a nulidade. 10. É obrigação do Meritíssimo Juiz “a quo” pronunciar-se sobre todas as irregularidades e nulidades que se traduzam numa ofensa dos direitos de todos os cidadãos e neste processo em concreto, a inércia e incúria dos Serviços de Finanças acabaram por prejudicar o erário público e os direitos de um terceiro que nada deve à Fazenda Pública e que sempre cumpriu com as suas obrigações. Conforme Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo e Fiscal, de 03 de Maio de 2017 “Os processos são apenas veículos para conduzir os direitos dos contribuintes ao seu reconhecimento judicial sem serem importantes por si próprios e sem que as deficiências do veículo possam impedir a viagem até à tutela jurisdicional efectiva” (Processo n.º 0777/16, in www.dgsi.pt), é obrigação do Meritíssimo Juiz “a quo” decidir sobre todas as irregularidades e nulidades invocadas, devendo apreciá-las e decidir sobre as mesmas. 11. Assim sendo, a embargada incumpriu com o disposto no n.º 3 do artigo 215.º do CPPT, o qual refere expressamente: “se, no acto da penhora, o executado ou alguém em seu nome declarar que os bens a penhorar pertencem a terceiro, deve o funcionário exigir-lhes a declaração do título porque os bens se acham em poder do executado e respectiva …” 12. Salvo respeito por melhor opinião, deve-se entender que existe declaração em como os bens pertencem a 3.º quando se requer aos Serviços de Finanças que procedam à liquidação do IMT, pois que este imposto “incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional” (n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis – CIMT), sendo que esta obrigação tributária se constitui no momento em que ocorrer a transmissão (n.º 2 do artigo 5.º CIMT). 13. Posto isto, também não podia a sentença declarar os embargos improcedentes como fez, uma vez que a posse é dada a conhecer à Recorrida muito antes de ser emitido o mandato de penhora de registar a mesma. 14. A presunção do Meritíssimo juiz “a quo”, em como a escritura de compra e venda se celebrou às 14horas, é infundamentada e descabida, uma vez que o início da tarde se dá ao meio dia. Este sim é um facto público e notório, pelo que a escritura terá sido realizada muito antes das 13h42, altura em que foi registada a penhora, a qual enferma, como se referiu, de nulidade. 15. No mesmo sentido destas alegações segue o parecer do Procurador do Ministério Público emitido a 01 de Julho de 2015, dois meses após a audiência de inquirição de testemunhas. Considerando que a presente sentença dista dois anos daquela audiência, só podemos concluir que o Meritíssimo Juiz “a quo” não teria presente a prova produzida, atendendo ao hiato temporal decorrido, devendo ser tido em consideração o Parecer apresentado, por ser mais próximo da data da produção da prova. Foram violados: - O artigo 615.º Código de Processo Civil; - Os artigos 224.º; 236.º e 239.º do Código Civil; - Os artigos 215.º; 231.º 237.º e seguintes do Código de Procedimento e Processo Tributário; - Os artigos 1.º e 5.º do Código do Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis Nestes termos, e nos demais que v. Exas doutamente suprirão, concedendo-se provimento ao presente recurso será feita Inteira e Sã Justiça.” **** Não houve contra-alegações. **** O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso. **** Com dispensa dos vistos legais, tendo-se obtido a concordância dos Meritíssimos Juízes-adjuntos, nos termos do artigo 657.º, n.º 4 do CPC; submete-se o processo à Conferência para julgamento. **** II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa averiguar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e, consequentemente, de direito, ao decidir que ficaram por demonstrar factos passíveis de sustentarem, por referência à data da realização da penhora, a alegada propriedade do imóvel em causa pela Embargante. III. Fundamentação 1. Matéria de facto Na sentença prolatada em primeira instância foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor: “Factos provados: 1. No Serviço de Finanças ... – 2 corre termos o Processo de Execução Fiscal ..............161 e apensos (...74, ...50, ...87, ...20, ...97, ...76, ...10, ...19, ...14 e ...04), instaurados contra «BB», visando a cobrança coerciva de dívidas referentes a Imposto Municipal sobre Imóveis e coimas aplicadas em processos de contra ordenação, no valor global de €3 052, 17 – cf. informação elaborada pelo Serviço de Finanças e que costa de fls. 4 dos autos e documentos juntos a fls. 80 e seguintes dos autos, sempre numeração referente ao processo físico; 2. No âmbito do Processo de Execução Fiscal id. em 1., em 31.05.2010, foi realizada penhora incidindo sobre o imóvel identificado como “1/2 da fracção autónoma designada pela letra D, correspondente a uma habitação, com entrada pelo n.º...21 da Rua ... e faz parte do prédio em propriedade horizontal sito na Rua ..., ... da Freguesia ..., deste concelho, inscrito na matriz predial urbana sob o n.º...28..., com o valor patrimonial de 54 471, 54€. Encontra-se descrito na Conservatória o Registo Predial sob o n.º ...22...” – cf. auto de penhora constante de fls. 66 dos autos, numeração referente ao processo físico, documento para o qual se remete e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais; 3. No dia 31.05.2010, pelas 13H13 e 13H14, a Embargante procedeu ao pagamento das liquidações de Imposto Selo e de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas, documentos com os números ...92 e ...03, com os valores de €435, 77 e €544, 72, respectivamente, ambos referentes à aquisição do imóvel identificado em 1. – cf. liquidações e comprovativos de pagamento a fls. 19 e seguintes e 22 e seguintes dos autos, numeração referente ao processo físico, documentos n.º 2 e 3 da Petição Inicial; 4. Em 31 de Maio de 2010, no Cartório Notarial ... na Avenida ..., em ..., ..., a Embargante, «AA», celebrou escritura de compra e venda pela qual adquiriu o bem imóvel identificado em 2. – cf. cópia da escritura pública de compra e venda, constante de fls. 15 e seguintes dos autos, numeração referente ao processo físico, para a qual se remete e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais; 5. Esta escritura foi realizada no início da tarde – facto que resulta do depoimento prestado nos autos. 6. Na certidão permanente de registo predial, relativamente ao imóvel descrito em 2, conta o registo de uma penhora, Ap. 2308 de 31.05.2010, pelas 13H42.35, a favor da Fazenda Nacional, pelo Processo de Execução Fiscal ..............161 e apensos do Serviço de Finanças ... – 2, incidindo sobre ½ do mesmo e garantindo a quantia exequenda de €2 353, 21 – cf. certidão permanente de fls. 34 e seguintes dos autos, numeração referente ao processo físico; 7. Da mesma certidão consta ainda a aquisição do imóvel em causa, a favor de «AA», registada pela Ap. 260 de 01.06.2010 – cf. a mesma certidão permanente identificada em 6.; 8. Depois da aquisição a Embargante permitiu ao Executado que ainda ali vivesse mais 2 meses – facto que resulta do depoimento prestado nos autos; 9. Este imóvel encontra-se arrendado, por contrato celebrado em 2012 – facto que resulta do depoimento prestado nos autos; 10. Em 09.07.2010 deu entrada no Serviço de Finanças ... – 2 a Petição Inicial que deu origem à instauração dos presentes Embargos – cf. carimbo aposto no rosto da Petição Inicial a fls. 6 dos autos, numeração referente ao processo físico. *** Inexistem factos não provados com relevância para a decisão em causa. *** Alicerçou-se a convicção do Tribunal na consideração dos factos provados no teor dos documentos junto aos autos, bem como no teor do depoimento prestados em sede de inquirição de testemunhas, o qual foi também mencionados junto de cada um dos factos que se consideraram provados, pela forma credível e desinteressada que demonstrou, bem como pelo conhecimento que revelou ter dos acontecimentos. Não se provaram quaisquer outros factos constantes da petição inicial. Todos os demais, em rigor, não integram propriamente matéria de facto. Nesta medida, as asserções contidas na petição constituem antes meras considerações pessoais e/ou conclusões de facto e/ou direito.” 2. O Direito No Código de Processo Civil, resultante da reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12, os embargos de terceiro deixaram de ter a natureza de processo especial, passando a ser configurados como modalidade do incidente de oposição, ampliando-se os pressupostos da sua admissibilidade, assim deixando de estar ligados, necessariamente, à defesa da posse do embargante. Isto é, face a este novo regime, o embargante, através dos embargos, além da posse, pode defender qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial [cfr. artigos 342.º a 350.º, do Código de Processo Civil (CPC) e relatório constante do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12]. Os requisitos da dedução dos embargos de terceiro, de acordo com a lei processual tributária, estão previstos no artigo 237.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), dispondo que: “1- Quando o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro”. Assim sendo, os embargos de terceiro não constituem actualmente um meio de defesa da posse, exclusivamente, podendo ser defendida através de embargos de terceiro a ofensa de qualquer outro direito cuja manutenção seja incompatível com a realização ou âmbito da diligência. Os requisitos da dedução dos embargos de terceiro, de acordo com a lei processual tributária, são os seguintes (cfr. A. José de Sousa e J. da Silva Paixão, Código de Processo Tributário anotado e comentado, 3ª. edição, 1997, pág.670 e seguintes e Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, II volume, Áreas Editora, 5.ª edição, 2007, pág.123 e seg.): 1-A tempestividade da petição de embargos; 2-A qualidade de terceiro face ao processo de execução no âmbito do qual se verificou a diligência judicial ofensiva da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da mesma diligência; 3-A ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial. Nesta sede recursiva, no processo vertente é somente o exame do terceiro requisito que está em causa. Desde logo, o seguinte segmento da sentença recorrida, em face da referida ampliação dos pressupostos da admissibilidade dos embargos, com a motivação aí plasmada, não pode manter-se: “Face ao exposto, uma vez que os embargos de terceiro são um meio processual de defesa da posse e não da propriedade, porque a posse não só não foi provada nos autos como nem sequer é alegada, consideram-se os presentes embargos improcedentes.” Ora, analisada a restante alegação da Recorrente e a motivação do presente recurso, retira-se a sua sustentação na prova produzida, concluindo dever-se entender que existe declaração em como os bens pertencem a 3.º quando se requer aos Serviços de Finanças que procedam à liquidação do IMT, pois que este imposto “incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional” (n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis – CIMT), sendo que esta obrigação tributária se constitui no momento em que ocorrer a transmissão (n.º 2 do artigo 5.º CIMT). Posto isto, sustenta que a sentença não podia declarar os embargos improcedentes, como fez, uma vez que a posse é dada a conhecer à Recorrida muito antes de ser emitido o mandado de penhora e de ser registada a mesma. Acrescenta a Recorrente que a presunção do Meritíssimo juiz “a quo”, em como a escritura de compra e venda se celebrou às 14 horas, é infundamentada e descabida, uma vez que o início da tarde se dá ao meio dia. Este sim é um facto público e notório, pelo que a escritura terá sido realizada muito antes das 13h42, altura em que foi registada a penhora. Portanto, urge realizar uma ponderação crítica da factualidade levada ao probatório, dado mostrar-se estabilizada a decisão da matéria de facto. Como ensina Jorge Lopes de Sousa (in Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, vol. III, 6.ª edição, 2011, página 179): “[a] procedência dos embargos depende de o direito do embargante ser incompatível com a realização ou o âmbito da diligência e de ele dever prevalecer sobre o direito do exequente. (…) Haverá incompatibilidade entre o direito do embargante sobre uma coisa e a realização da diligência que a tenha por objecto sempre que aquele seja afectado pela diligência ou pela subsequente venda, isto é, não for possível concretizar a finalidade do processo executivo, sem afectar ou eliminar tal direito”. Deve sublinhar-se que não pode bastar à procedência dos embargos a mera conjectura sobre possíveis ou eventuais ofensas, sendo indispensável a demonstração de que a diligência em causa colidia, de facto, com o direito da embargante. Com efeito, a Recorrente pretende demonstrar que a penhora incidiu sobre bem imóvel que já era da sua propriedade. Vejamos, parcialmente, o julgamento recorrido: “(…) Por outro lado, adoptando o conceito restrito, Terceiros, para efeitos de registo predial, são tão-somente aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, o que não acontece no caso da penhora, em que o executado não tem aí qualquer intervenção. O exequente que nomeia bens à penhora e o seu anterior adquirente não são «terceiros», embora sujeita a registo, no caso de imóveis, a penhora não se traduz na constituição de algum direito real sobre o prédio, sendo apenas um dos actos em que se desenvolve o processo executivo ou, mais directamente, um ónus que passa a incidir sobre a coisa penhorada para satisfação dos fins da execução. A ineficácia apenas se reporta aos actos posteriores à penhora, pelo que «os actos de disposição ou oneração de bens, com data anterior ao registo da penhora, prevalecem sobre esta» (P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 1.ª ed., p. 67). O que transfere a titularidade de um bem não é o registo, é, designadamente, o negócio de compra e venda, com a sua eficácia real [artigos 408.º e 879.º, alínea a), do Código Civil]. Tudo isto a conjugar com o carácter meramente presuntivo do direito registado, conforme se reflecte no artigo 7.º do Código do Registo Predial. A máxima suum quique tribuere continua a ser um muito relevante leit motiv da actividade jurisdicional. «Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os que do mesmo autor ou transmitente recebam sobre o mesmo objecto direitos total ou parcialmente conflituantes», conforme ensina Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II 1960, pp. 19-20, e Orlando de Carvalho, «Terceiros para efeitos de registo», in Boletim da Faculdade de Direito, ano 70.º, 1994, pp. 97 e seguintes. Neste sentido vide, por todos, acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo n.º 23841, de 30.06.99; n.º 23270, de 9/06/99, n.º 21539, de 10.02.99; n.º 20582, de 8.07.99; 24274, de 2.02.00.; e acórdão do STJ, de 18.05.99, n.º JSTJ00036987; e Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, 2007, Áreas Editora, pág. 145 e 146. No caso vertente, os Embargante demonstraram ter adquirido o imóvel sobre o qual veio a incidir a penhora, contudo, esta penhora foi registada em momento anterior à transmissão de propriedade, veja-se que, tendo ambos os factos ocorridos no mesmo dia, 31.05.2010, a verdade é que o registo da penhora ocorreu às 13H42.35 (facto provado n.º6), enquanto que a escritura estava marcada para o início da tarde, não tendo a testemunha que referiu este facto concretizado a hora em que a mesma se iniciou a verdade é que este conceito início da tarde, se concretiza sempre numa hora posterior às 14H, tanto mais que, atendendo à hora em que foi realizado o pagamento do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas e do Imposto Selo, 13H13 e 13H14 (factos provados n.º 3 e 5), entende-se demonstrado que, quando celebrada a escritura, já se encontrava realizado o registo da penhora. (…)” Não vem questionado no recurso que terceiros, para efeitos de registo, sejam aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Aliás, tal conceito foi expressamente consagrado no n.º 4 do artigo 5.º do Código de Registo Predial (aditado pelo DL n.º 53/99, de 11 de Dezembro) e mostra-se em consonância com o entendimento restritivo a esse respeito largamente maioritário que a jurisprudência do STJ, bem como do STA, vinha perfilhando até então (cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/99, de 18/05/99, do STJ, mencionado na sentença recorrida, e acórdãos do STA de 12/11/97, 9/04/97, 15/12/99 e 12/01/00, proferidos nos recursos n.ºs 20.927, 21.298, 24.275 e 23.682, respectivamente). Também inexiste controvérsia quanto a saber se o direito de propriedade e a penhora se definem como “direitos incompatíveis adquiridos a um mesmo autor comum” (mesmo transmitente). De facto, ao invés do que acontece no caso da aquisição do direito de propriedade, na penhora em execução fiscal a Fazenda Pública não adquire do executado qualquer direito real de gozo, tão-pouco lhe tendo sido criada por parte do mesmo a convicção de que seria o titular do direito de propriedade do imóvel em causa. Sendo assim, não lhe assiste uma expectativa igual à de quem, como a embargante, adquiriu o direito de propriedade do executado, convencida que ele era seu e de que podia transmiti-lo. O direito de penhora que possui a Fazenda Pública emerge tão-somente da diligência efectuada no processo executivo, sem qualquer intervenção do anterior proprietário do imóvel em causa. Como se afirma no já citado Acórdão do STA, de 12/01/2000, no recurso n.º 23.682 -“Em súmula, a Fazenda Pública, porque o executado não interveio na penhora, não adquiriu dele direito incompatível com o do adquirente do mesmo imóvel, em momento anterior à penhora; e, porque o executado transmitira para a embargante a propriedade de imóvel que veio a ser penhorado na execução, não adquiriu nenhum direito pela penhora, pois nenhum direito o executado detinha então que pudesse ser transmitido. Não é, pois, terceiro relativamente à compra e venda, que lhe é oponível, embora não registada. No mesmo sentido se posiciona Jorge Lopes de Sousa, in CPPT, anotado e comentado, a fls. 147, anotação 24 ao artigo 167.º, ao defender que “- Este entendimento jurisprudencial, baseia-se no facto do executado não ter intervenção no acto de penhora, pelo que não se pode afirmar que o exequente recebe dele o seu direito sobre o bem que é objecto de penhora, e a função do registo ser garantir ao adquirente de um direito sobre um prédio que aquele não realizou em relação a ele actos capazes de prejudicar o direito adquirido que não constem do registo. Porém, só são merecedores da protecção dada pelo artigo 5.º n.º 1 do Código do Registo Predial, aqueles que adquirem direitos incompatíveis sobre o mesmo prédio com intervenção directa do autor comum, gerando-lhes a convicção da existência daquele e na sua esfera jurídica”. Em conclusão, para efeitos de registo predial, terceiros são aqueles que tenham adquirido de autor comum direitos incompatíveis entre si (artigo 5.º n.º 4 do Código de Registo Predial). A penhora em execução fiscal, enquanto direito real de garantia, e o direito de propriedade não se definem como direitos adquiridos do mesmo autor comum, uma vez que no primeiro caso a Fazenda Pública não adquire do executado qualquer direito real de gozo, o qual tão-pouco tem intervenção no acto de penhora, não sendo, deste modo, susceptível de criar a convicção da existência do direito de propriedade sobre o imóvel – cfr. Acórdão do STA, de 24/02/2010, proferido no âmbito do processo n.º 01197/09. Daí que seja irrelevante, para a questão que nos ocupa, a circunstância vertida no ponto 7 do probatório, de a embargante somente ter registado o direito de propriedade sobre o imóvel em apreço em 01/06/2010, quando a penhora se mostra registada pela Fazenda Pública em 31/05/2010 – cfr. ponto 6 da decisão da matéria de facto. O facto que se apresenta fulcral para a decisão da causa é o vertido no ponto 4 do probatório: Em 31 de Maio de 2010, no Cartório Notarial ... na Avenida ..., em ..., ..., a Embargante, «AA», celebrou escritura de compra e venda pela qual adquiriu o bem imóvel (…) Verificamos, assim, que a penhora foi realizada pela Fazenda Pública na mesma data que a formalização da escritura pública de compra pela embargante, sobre o mesmo bem imóvel, em 31/05/2010. É nossa firme convicção que toda a factualidade apurada não permite retirar a ilação de que, quando foi celebrada a escritura pública, já se encontrava realizado o registo da penhora, como o efectuou o tribunal recorrido. Como ficou transcrito supra, o tribunal recorrido considerou que a embargante demonstrou ter adquirido o imóvel sobre o qual veio a incidir a penhora, contudo, entendeu que esta penhora foi registada em momento anterior à transmissão de propriedade, porque, tendo ambos os factos ocorrido no mesmo dia, 31/05/2010, o registo da penhora ocorreu às 13H42.35 (facto provado n.º 6), enquanto que a escritura estava marcada para o início da tarde, não tendo a testemunha que referiu este facto concretizado a hora em que a mesma se iniciou. Definiu o tribunal “a quo” que este conceito “início da tarde” se concretiza sempre numa hora posterior às 14H, tanto mais que, atendendo à hora em que foi realizado o pagamento do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas e do Imposto Selo, 13H13 e 13H14 (factos provados n.º 3 e 5), entendeu que a escritura teria sido realizada posteriormente ao registo da penhora. A Recorrente não se conforma com a densificação do momento “início da tarde”, replicando ser do conhecimento público que a tarde se inicia às 12h. Realizando uma ponderação crítica e concatenando todos os factos levados ao probatório, entendemos que, como não existe termo de comparação horário quanto ao momento da formalização da escritura pública (em relação ao registo da penhora), temos, apenas, que assumir que os actos em causa ocorreram no mesmo dia, portanto, em simultâneo. A leitura dos factos não permite que entremos em meras conjecturas ou presunções, não sendo legítimo concluir que, como o IMT foi pago às 13h13 e 13h14, a escritura de compra e venda do imóvel só terá sido realizada após as 14h. Com efeito, o que se observa é que, perante a informação chegada à AT de que iria ocorrer a transmissão do imóvel do executado, através do pedido de liquidação do referido imposto, a mesma se teria apressado a registar a penhora sobre o mesmo imóvel, no mesmo dia, às 13h42, indiciando que se queria antecipar à celebração da escritura pública de transmissão do imóvel, podendo, igualmente, não passar de mera coincidência. A verdade é que se encontra ínsita nos autos, a fls. 66 e 67 do processo físico – cfr. ponto 2 do probatório, uma cópia do auto de penhora do imóvel em crise, lavrado em 31/05/2010, onde consta nomeado depositário o executado e que lhe terá sido entregue uma cópia desse auto, porém, embora se afirme no auto que o mesmo vai ser assinado pelo depositário, não se mostra aposta qualquer assinatura pelo depositário identificado. Este circunstancialismo associado à factualidade vertida no ponto 3 do probatório, referente ao pagamento pela embargante das liquidações de IMT, no dia 31/05/2010, pelas 13H13 e 13H14, documentos com os números ...92 e ...03, com os valores de €435, 77 e €544, 72, respectivamente, ambos referentes à aquisição do imóvel identificado no ponto 1 da decisão da matéria de facto, e ao facto de se ter apurado que a formalização da escritura referente ao contrato de compra e venda do mesmo imóvel se realizou no início da tarde do mesmo dia (cfr. ponto 5 do probatório), permite somente concluir que o auto de penhora e o seu registo, bem como a celebração do contrato de transmissão do imóvel, ocorreram no mesmo dia 31/05/2010. Perante todo o contexto em que foram levados a cabo todos os actos descritos no probatório, como já adiantámos supra, resta concluir que operaram em simultâneo. Ora, assim sendo, entendemos ser oponível à penhora o direito de propriedade da embargante, porque a penhora, no momento em que foi realizada (31/05/2010), já está a traduzir-se num acto de agressão patrimonial do direito de propriedade da embargante (31/05/2010). Nesta conformidade, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas no recurso, devendo conceder-se provimento ao mesmo, revogar a sentença recorrida e julgar procedentes os embargos de terceiro. Conclusões/Sumário I – Os requisitos da dedução dos embargos de terceiro, de acordo com a lei processual tributária, são os seguintes (cfr. artigo 237.º, do CPPT): a-A tempestividade da petição de embargos; b-A qualidade de terceiro face ao processo de execução no âmbito do qual se verificou a diligência judicial ofensiva da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da mesma diligência; c-A ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial. II – Os embargos de terceiro servem, actualmente, não só para defender a posse, como também qualquer outro direito que se mostre incompatível com a diligência ordenada. III – No caso, após ponderação crítica dos factos provados, ficou demonstrado verificar-se ofensa de direito de propriedade da embargante incompatível com a realização da penhora, traduzindo-se esta num acto de agressão patrimonial, causal da procedência dos presentes embargos. IV. Decisão Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar os presentes embargos procedentes. Custas a cargo da Recorrida, em ambas as instâncias; nesta instância, as custas não incluem a taxa de justiça, uma vez que não contra-alegou. Porto, 09 de Maio de 2024 Ana Patrocínio Vítor Salazar Unas Maria do Rosário Pais |