Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00344/08.3BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/18/2011
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR
APRECIAÇÃO DAS PROVAS
PENAS DE SUSPENSÃO E DE MULTA
CONTROLE JUDICIAL DE CONCEITOS INDETERMINADOS.
Sumário:1. É através da fundamentação da decisão que se deve averiguar se a valoração das provas está racionalmente justificada e se ela é capaz de gerar uma convicção de verdade sobre a prática dos ilícitos disciplinares imputados ao recorrente.
2. Nas infracções disciplinares atípicas, o legislador deixa em aberto, pelo carácter exemplificativo e pela utilização de expressões de conteúdo, extensão e sentido impreciso e incerto, as descrições dos comportamentos considerados ilícitos.
3. Por isso, o tribunal pode averiguar se a aplicação da medida sancionatória observou os parâmetros do princípio da proporcionalidade.
4. Demonstrada a violação do dever de correcção, está legitimada a possibilidade de em abstracto haver lugar à aplicação da pena de multa, sem que a Administração tenha que provar que tal conduta revela «negligência» ou «má compreensão dos deveres funcionais».*
* Sumário elaborado pelo Relator
Data de Entrada:06/01/2010
Recorrente:Município do Porto
Recorrido 1:Sindicato...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Norte:
1 – O Município do Porto interpõe recurso jurisdicional do acórdão proferido em 04/02/2010 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou procedente a acção administrativa especial interposta pelo Sindicato… (S…), em representação do seu associado F…, melhor identificado nos autos, anulando a pena disciplinar de suspensão e condenando o Município a pagar ao representado os vencimentos de 121 dias de suspensão, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados sobre cada vencimento não pago e até integral pagamento, a computar a antiguidade, para todos os efeitos legais referente aos 120 dias de suspensão e a conceder férias e respectivo subsídio vencidas em 1/1/2008.
Nas alegações, concluiu o seguinte:
a) Recorre-se do Acórdão que anulou o acto praticado pelo Vereador dos Recursos Humanos em 07/11/2007, que aplicou ao Autor a pena disciplinar de 121 dias de suspensão;
b) Na óptica do Tribunal a quo, os factos provados, embora legitimem a punição numa pena de suspensão por aplicação da cláusula geral prevista no nº 1 do art. 24º, no caso concreto, tal não deveria ter acontecido porque o Réu não teria demonstrado a negligência grave e/ou o grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais;
c) Insurge-se o Réu contra este entendimento, pois, por um lado, perante a factualidade apurada, não se poderia ter aplicado ao Autor uma outra pena, estando a pena de multa afastada do leque de penas potencialmente aplicáveis àqueles factos;
d) Os factos consubstanciam a violação do dever de correcção. Foram dadas como provadas condutas que demonstram gravidade e desrespeito pelos colegas de profissão e pela dignidade do trabalho desenvolvido, porque praticadas no local de trabalho, por funcionário com bastantes anos de casa, por motivo fútil (conforme se demonstra das declarações das testemunhas) e sem que sequer o Autor tenha presenciado directamente os factos que constituíram a motivação para a prática do ilícito disciplinar;
e) Tais condutas assumem, inclusive, uma gravidade e ilicitude de natureza criminal. Podendo integrar a prática de um crime de ofensa à integridade física ou de ameaça e praticadas a título de dolo e não de negligência;
f) Os factos dados como provados, não representando a violação de um dever profissional de funcionário de diminuta gravidade ou ilicitude, afastam a aplicação de pena de multa pois o artigo 23º do Estatuto Disciplinar, embora integrando hipótese em que se mostra violado o dever de correcção, não dispensa que a violação do dever do funcionário resulte apenas de comportamento negligente, conforme se retira da leitura do nº 1 do preceito;
g) E a violação do dever de correcção que legitima a aplicação de pena de multa é aquela que, decorrendo de comportamento negligente, não assume uma especial importância ou relevância no sentido de afectar o bom funcionamento do serviço.
h) Porém, nos autos, o comportamento do Autor, conforme explanado no Relatório Final, assume uma considerável gravidade e grau de culpa, tendo sido praticado a título doloso, apenas podendo se subsumir ao art. 24º, nº 1 do ED, que nos fala de negligência grave. E que por maioria de razão, integra o dolo;
i) Podendo, inclusive, as condutas fundamentarem a aplicação de aposentação compulsiva, por verificação da hipótese prevista no nº 1, 2º, al. a) do artigo 25º do ED;
j) Assim sendo, entende o Recorrente que, perante a matéria de facto apurada, e nunca integrando o caso a possibilidade de aplicação de pena de multa, cai por terra a necessidade de demonstrar a necessidade de aplicação da pena de suspensão;
k) Inexistindo, por conseguinte, o vício que o Tribunal recorrido imputa à decisão disciplinar; e ao não assim decidir, incorreu o Acórdão recorrido em erro de julgamento, por violação dos arts 11º, 23º, 24º e 28º do Estatuto Disciplinar;
l) Por outro lado, sempre se julga demonstrado que no Relatório Final se mostram explicitadas as razões para a opção pela pena de suspensão, a qual se configura como a mais proporcional à gravidade dos factos; comprovando-se a negligência grave do agente;
m) Dos factos apurados decorre suficientemente esclarecida a considerável culpa do agente e correspondente ilicitude, que afaste a aplicação da pena de multa e legitime a pena de suspensão;
n) Do Relatório Final percebe-se o porquê da opção pela pena de suspensão atenta a gravidade da conduta e o desrespeito pelos colegas e pelo próprio serviço em si;
o) Nenhum vício se pode assacar à actuação do Réu, incorrendo o Acórdão em erro de julgamento por violação das normas substantivas (art.s 11º, 23º, 24º e 28º do Estatuto Disciplinar);
p) Por último, a decisão tomada pelo Réu insere-se no âmbito dos seus poderes discricionários, sem possibilidade de sindicância pelos Tribunais, com excepção dos casos de desvio de poder, erro sobre os pressupostos, “erro grosseiro e manifesto”, violação dos princípios da justiça e da proporcionalidade;
q) O que não foi alegado pelo Autor nem manifestamente se verifica no caso concreto, atenta toda a matéria constante do processo.
R) Deve ser anulado o Acórdão Recorrido e mantido acto praticado pelo Vereador dos Recursos Humanos em 07/11/2007, que aplicou ao Autor a pena disciplinar de 121 dias de suspensão.
O Sindicato… contra-alegou ampliando o objecto do recurso, concluindo da seguinte forma:
1ª Conclusão – Foi dado como provado que: “O arguido encontrava-se incompatibilizado com o M…, por razões profissionais, entrou no vestiário, empurrou-o contra um armário, pôs a sua mão no ombro do M…, com agressividade. Encostou-se ao Colega, de frente, num tom ameaçador e disse-lhe: “que seja a última vez que me andas a vigiar, porque se não eu caço-te cá fora e fodo-te os cornos”.
Embora, esteja tal matéria concentrada num único artigo, o certo é que contem vários factos:
h) Que o arguido se encontrava incompatibilizado com o M…;
i) Por razões profissionais;
j) Empurrou-o contra um armário;
k) Pôs a sua mão no ombro;
l) Com agressividade;
m) Disse-lhe num tom ameaçador;
n) Que seja a última vez que me andas a vigiar, porque se não eu caço-te cá fora e fodo-te os cornos.
2ª Conclusão – Não obstante, não existiu qualquer testemunha presencial da ocorrência, o recorrido negou os comportamentos e os superiores hierárquicos apenas referiram que o eventual ameaçado se apresentava assustado, stressado e incomodado e que este perante colegas se dirigiu ao recorrido dizendo “estás-me a ameaçar”, “queres bater-me, bate”, “podes me matar”.
3ª Conclusão – Tais depoimentos são manifestamente insuficientes, existindo um non liquet que não permite serem dados como provados os factos constantes no artigo 4º da Acusação que foram integralmente dados como provados!
4ª Conclusão – Face à inexistência de prova segura de todos os factos deveriam os mesmos terem sido considerados como não provados e a douta decisão ao assim não entender errou de Direito.
5ª Conclusão – Quanto ao recurso, a ser doutamente entendido que tais factos devem ser dados como provados, a douta sentença não enferma de erro de Direito, porquanto, e como foi doutamente decidido não se encontra demonstrado, nem provado que o recorrido tenha agido com negligência grave ou grave desinteresse do cumprimento dos deveres profissionais, pressupostos de aplicação da pena de suspensão.
O Ministério Público junto deste tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do art.º 146º, nº 1 do CPTA, não se pronunciou.
2. O aresto recorrido deu como provado os seguintes factos:
1. O representado do Autor, é funcionário do Município do Porto, tendo sido alvo de processo disciplinar, no qual foi punido com a pena de suspensão de 121 dias por decisão do Vereador dos Recursos Humanos tomada em 07/11/2007.
2. O Relatório Final do instrutor deu como provados os seguintes factos:
A) Resultante de um processo de averiguações, por despacho do Senhora Directora do Departamento Jurídico Contencioso, de 28 de Maio último, foi determinada a instauração de processo disciplinar contra o funcionário F…, Fiscal Municipal, com o n.º mecanográfico …, tendo sido nomeado instrutor o ora signatário, no mesmo despacho.
B) Está junta a fls. 13 a ficha disciplinar do arguido.
A fls. 32 e ss. deduziu-se a seguinte acusação contra o arguido F… indiciam os autos que:
O funcionário F…, com o n.º mecanográfico …, exerce pelo menos desde 1 de Janeiro de 2007 as funções de Fiscal Municipal, nos Serviços de Fiscalização da Divisão Municipal de Trânsito, instalados no Palácio Visconde Balsemão, sito à Praça Carlos Alberto, 71, nesta cidade.
O arguido, em 2/Abril de 2007, encontrava-se nas mencionadas instalações da Divisão de Trânsito, por volta das 14 h, onde ia iniciar o turno da tarde.
Àquela hora e no dito dia, 2 de Abril, por sua vez, o colega M…, Fiscal Municipal, tinha terminado o turno da manhã e encontrava-se no vestiário dos Fiscais a despir a sua farda de trabalho.
O arguido, encontrando-se incompatibilizado com o M…, por razões profissionais, entrou no vestiário, empurrou-o contra um armário, pôs a sua mão no ombro do M…, com agressividade. Encostou-se ao Colega, de frente, num tom ameaçador e disse-lhe: "que seja a última vez que me andas a vigiar, porque se não eu caço-te lá fora e fodo-te os cornos".
Com o comportamento do arguido, o M… ficou assustado, stressado, incomodado e indignado, pelo que saiu do Gabinete logo que pôde e conforme pôde, pedindo apoio ao seu Coordenador A… e Colega N…, os quais arrastaram o M… para a sala do primeiro.
O comportamento do arguido teve a intenção de provocar medo e ofender a integridade moral do Colega M….
O arguido sabia que estava nas instalações desta Câmara, seu local de trabalho, quando praticou os factos descritos nos artigos anteriores.
Apesar disso, agiu de forma livre e consciente e tinha conhecimento que a sua conduta não lhe era permitida por lei.
Os colegas do arguido souberam de imediato dos factos aqui descritos.
Os factos descritos constituem a prática de uma infracção disciplinar, pois o arguido F… violou um dos deveres gerais decorrentes da função que exerce (art. 3. ° do ED.), como se refere a seguir:
Com efeito o arguido infringiu o dever de correcção, prevista no citado art. 3°, al. f) do n.º 4 e n.º 10, infracção punida pelas disposições conjugadas da citada al. f), nºs 1 e 3 do art. 24 do mencionado Estatuto, com a pena de suspensão de 121 a 240 dias.
A escala e a caracterização da pena estão previstas nos arts 11 e ss. do Estatuto.
Contra o arguido militam as circunstâncias agravantes que advierem do presente processo disciplinar, nomeadamente as que resultarem do certificado de registo disciplinar.
O poder de punir está delegado no Vereador do Pelouro das Actividades Económicas, Protecção Civil e Recursos Humanos, Senhor Dr. M…, por Ordem de Serviço n.º 47/2005, actual redacção (O. S. n.º 9/07, 8. M. n.º 3699/07, de 9/Março).
Da acusação foi devidamente notificado, respondendo por escrito a fls. 38.
O arguido impugna.
Alega falsidade da acusação.
Conclui pelo arquivamento do processo disciplinar.
C)
CUMPRE-NOS PARTIR PARA A PROPOSTA DE DECISÃO:
Do confronto de toda a prova produzida, das declarações do arguido, da sua defesa escrita, dá-se como provado que:
FACTO 1.º
O funcionário F…, com o n.º mecanográfico …, exerce pelo menos desde 1 de Janeiro de 2007 as funções de Fiscal Municipal, nos Serviços de Fiscalização da Divisão Municipal de Trânsito, instalados no Palácio Visconde Balsemão, sito à Praça Carlos Alberto, 71, nesta cidade.
FACTO 2.º
O arguido, em 2/Abril de 2007, encontrava-se nas mencionadas instalações da Divisão de Trânsito, por volta das 14 h, onde ia iniciar o turno da tarde.
FACTO 3.º
Aquela hora e no dito dia, 2 de Abril, por sua vez, o colega M…, Fiscal Municipal, tinha terminado o turno da manhã e encontrava-se no vestiário dos Fiscais a despir a sua farda de trabalho.
FACTO 4.º
O arguido, encontrando-se incompatibilizado com o M…, por razões profissionais, entrou no vestiário, empurrou-o contra um armário, pôs a sua mão no ombro do M…, com agressividade. Encostou-se ao Colega, de frente, num tom ameaçador e disse-lhe: "que seja a última vez que me andas a vigiar, porque se não eu caço-te lá fora e fodo-te os cornos".
FACTO 5.º
Com o comportamento do arguido, o M… ficou assustado, stressado, incomodado e indignado, pelo que saiu do Gabinete logo que pôde e conforme pôde, pedindo apoio ao seu Coordenador A… e Colega N…, os quais arrastaram o M… para a sala do primeiro.
FACTO 6.º
O comportamento do arguido teve a intenção de provocar medo e ofender a integridade moral do Colega M….
FACTO 7.º
O arguido sabia que estava nas instalações desta Câmara, seu local de trabalho, quando praticou os factos atrás descritos.
FACTO 8.º
Apesar disso, agiu de forma livre e consciente e tinha conhecimento que a sua conduta não lhe era permitida por lei.
FACTO 9.º
Os colegas do arguido souberam de imediato dos factos aqui descritos.
O instrutor formulou a sua convicção de dar os factos como provados, com os seguintes elementos probatórios: (por remissão, ao abrigo do art. 125, nº 1 do C.P.A):
Na prova documental existente, bem como na testemunhal, a saber:
Facto 1°: - fls. 1 e ss, 13, 31, depoimentos de fls. 16 e ss, declarações de fls. 29.
Factos 4° a 9° - fls. 2 e s, depoimentos de fls. 16 e ss.
Para cada um dos factos, na falta de elementos probatórios referenciados, remeter-se-á supletivamente para a prova carreada para os autos.
Com relevância para a decisão, inexistem factos não provados:
Face à matéria dada como provada, o arguido incorreu na prática de uma infracção disciplinar. Com efeito, preenchida a respectiva tipicidade objectiva e subjectiva, o arguido, com o comportamento dado como provado, praticou uma infracção, pois violou o dever de correcção), previsto nos arts 3° - n.ºs 1, 4.º, al. f) e 10, punida com a pena de infracção punida pelas disposições conjugadas da citada al. f), n.ºs 1 e 3 do art. 24 do mencionado Estatuto, com a pena de suspensão de 121 a 240 dias.
D) Da medida e graduação da pena:
Passemos a trilhar, ou a ter em conta os "factores ou índices" (nota 1 ao art. 28º do E.D. de Leal Henriques) do art. 28 do ED. "os consignados nos arts 22º a 27º, a natureza do serviço, a categoria do funcionário, o grau de culpa, a personalidade do agente, todas as circunstâncias que rodearam o cometimento da infracção e que favoreçam ou desfavoreçam o arguido".
Natureza do serviço:
No que respeita à natureza do serviço: o mesmo é importante e de responsabilidade, pois o arguido é um funcionário que tem um contacto permanente com os colegas - trabalha em equipa -, o que lhe é exigível um comportamento adequado ao seu âmbito de notoriedade.
Categoria do funcionário:
O arguido já é um funcionário com mais de dez anos na Câmara, o que lhe acarreta uma responsabilidade acentuada. Salienta-se também que até à data não apresenta qualquer caso de indisciplina, no seu histórico disciplinar.
Igualmente em nada obstou ao decurso normal do presente disciplinar.
Grau de culpa
Pela facticidade, dada como provada, a gravidade da infracção e a censura ético - jurídica do arguido atingem acentuada gravidade. Face aos factos dados como provados, o arguido atentou contra um dever fundamental, de correcção, perante um colega. O arguido tem de ter um contacto exemplar com os colegas. É certo que estamos perante um funcionário que é um fiscal e não um licenciado ou técnico superior com um outro grau de exigência comportamental. O mesmo comportamento tem um grau de culpa diferente. Ou seja, insere-se este raciocínio no conceito de "culpabilidade", apresentado por Vítor Faveiro "A Infracç. Discip., Cadernos de Ciênc. e Tecn. Fisc", p. 121., o qual "consiste na verificação de um certo conjunto de requisitos que estabeleçam a ligação entre o facto e a personalidade do agente ... ".
Porém o arguido agiu com um alto grau de dolo, e não teve em conta que estava nas instalações de um ente público e ao comportar-se perante um colega como se provou, não teve em conta, como devia, que não era a pessoa F…, mas antes o funcionário F… a agir, com agiu, perante outro funcionário, ambos, pese o pleonasmo, funcionários da Administração Pública.
Provou-se que o arguido teve intenção consciente e livre em realizar os factos, que tipificaram a infracção, prevendo-os e aceitando-os como consequência directa, necessária e possível da sua conduta.
O arguido sabia que a sua conduta era ilícita, no entanto não deixou de cometer a infracção, agindo de uma forma deliberada e consciente, mantendo-se em flagrante violação da lei, uma vez que, com os comportamentos provados, se vê que desrespeitou a sua qualidade profissional, o Colega profissional, bem como desrespeitou o Serviço, que, como já se disse, é público.
A personalidade do arguido:
Diz Leal - Henriques, in ob. cit., p. 212, nota 6 ao art. 28.º que "a personalidade do agente também deve condicionar a determinação da medida, já que não pode ser avaliado por igual o infractor ocasional e normalmente avesso ao incumprimento dos deveres funcionais e aquele que, por sistema, ou pelo menos com frequência, manifesta tendência para a violação de tais deveres".
Estamos perante um funcionário que desde o início das suas funções profissionais não tem qualquer registo de âmbito disciplinar, o que tal facto deve ser levado em conta na dosimetria da pena disciplinar. Também se realce que, no decorrer do presente processo disciplinar, em nada obstruiu ao seu curso normal.
Entrou para o serviço público em 1996 e tem o seu registo disciplinar limpo. Parafraseando Leal - Henriques, estamos perante um "infractor ocasional".
Todavia manifesta uma personalidade que precisa de ser corrigida, no âmbito funcional.
Se o seu comportamento significa que não se respeitou a si próprio, nem o colega, não se vislumbra um laivo de arrependimento, perante um Colega, o qual, ficou assustado, tal a agressividade que imperou no comportamento do arguido.
Salvo o devido respeito, é surpreendente a defesa do arguido, de fls. 38. ¼ de página, com uma impugnação, no mínimo simplista, sem uma tentativa de contra prova, ou de tentativa de esboço por contra-prova, de alterar, a imagem que emerge do processo, no que concerne ao seu comportamento.
Circunstâncias em que a infracção tiver sido cometida que militem contra ou a favor do arguido:
Marcelo Caetano, in "Man. Dto. Administ.", V. II, p. 856, fala em "atenuantes e agravantes da responsabilidade": inexistem circunstâncias agravantes e atenuantes especiais, sem prejuízo da inexistência de qualquer registo disciplinar na sua nota biográfica.
Pena proposta
Verifica-se que toda a matéria fáctica provada constitui violação do dever de correcção a que o arguido estava obrigado, como funcionário desta Câmara.
A infracção cometida está sancionada com a pena de suspensão entre 121 e 240 dias.
Orientado pelos princípios da justiça e da proporcionalidade (em sede das penas disciplinares o princípio da proporcionalidade postula a adequação da pena imposta à gravidade dos factos apurados, por forma a que a medida punitiva a aplicar seja aquela que, sendo idónea aos fins a atingir, se apresente como a menos gravosa para o arguido, em decorrência também do principio da intervenção mínima ligado ao princípio do "favor libertatis" (Ac TCAN, P. n.º 00162/02 - Porto, 25/05/06) a que a Administração está vinculada, conforme exige o n.º 2 do art. 266 da Constituição, tendo em conta a gravidade objectiva, grau de culpa, a personalidade do arguido e a sua categoria profissional, há que ponderar a pena adequada, in casu.
Tem-se em conta aqui a finalidade característica das medidas disciplinares, a qual (segundo Vasconcelos Abreu, "Para o estudo do Procedim Discipl. no Dto Administr Port., p. 43) se traduz na "prevenção especial ou correcção, motivando o agente administrativo que praticou uma infracção disciplinar para o cumprimento, no futuro, dos seus deveres"; as penas "têm uma função essencial e primordialmente educativa" (Leal- Henr., ob. cil., anot. ao art. 11.º do E. D.).
Entendemos como ponderada e justa a aplicação de uma pena de suspensão.
Propõe-se a aplicação da pena de suspensão de 121 dias ao funcionário F…, Fiscal Municipal, com o n.º mecanográfico ….».
3. Em reunião da Câmara Municipal do Porto de 04/03/2008, foi deliberado que fossem aproveitados todos os actos instrutórios, respectiva nota de culpa e relatório final, constante do processo disciplinar em que é arguido o funcionário aqui representado do Autor e em consequência aplicar-lhe, com os fundamentos de facto e direito insertos no relatório final, a sanção disciplinar em causa.
3. O despacho impugnado na acção administrativa especial aplicou ao representado do recorrido a pena disciplinar de 121 dias de suspensão, fazendo o enquadramento jurídico da sua conduta no nº 1 do artigo 24º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pela DL nº 24/84, de 16/1 (ED).
Na acção, o sindicato representante do arguido, para além da incompetência do autor do acto, questão que foi logo resolvida através da ratificação do acto, invocou a inexistência de prova do facto que lhe foi imputado e o errado enquadramento jurídico do mesmo, por não estar demonstrada a “negligência grave” ou o “grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais”.
O acórdão recorrido decidiu ambas as ilegalidades, julgando improcedente a primeira e procedente a segunda.
Relativamente àquela, argumentou que «tendo o instrutor formado a sua convicção por uma das versões dos factos e nada argumentando o Autor relativamente a errada convicção, a mesma mostra-se curial e razoável em face dos acontecimentos relatados»
E em relação à outra, fundamenta-se no seguinte: «em momento algum no Relatório Final se refere que o arguido actuou com negligência grave ou grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais. Podendo antes concluir-se que do Relatório se extrai ter havido falta do dever de correcção, o qual é punido com a pena de multa»; e que «para que haja a não aplicação do que se mostra discriminado nas diversas hipóteses punitivas, competia esclarecer a opção pela pena em causa, em detrimento da que se encontra expressamente prevista como de multa para os casos de falta ao dever de correcção».
Contra esta decisão reagiram as duas partes: o Município recorrente, por entender que os factos provados consubstanciam “negligência grave” enquadrada no nº 1 do art.º 24º do ED e pelo facto do tribunal só poder controlar a aplicação desse conceito em caso de “erro manifesto”; o sindicato representante do arguido, ampliou o objecto do recurso, por continuar a defender que o processo disciplinar não contém prova dos factos pelos quais foi condenado.
Comecemos por esta questão, cuja procedência prejudica o conhecimento da outra. Com efeito, na infracção disciplinar há que distinguir o que propriamente respeita ao facto, à materialidade, autoria e voluntariedade, do que constitui qualificação jurídica do facto como falta disciplinar. Só depois de apurado o facto é que se impõe saber se ele pode ser juridicamente qualificado como infracção disciplinar e se pode ser reconduzido a um determinado tipo de infracção.
O que o recorrido põe em causa, não é a fase de produção da prova procedimental, a existência de algum deficit de instrução, mas apenas a fase da apreciação da prova, actividade que tem por fim extrair de cada um dos meios de prova o máximo de conclusões com o máximo de probabilidades e do conjunto do material probatório uma determinada conclusão. Produzida a prova, o órgão instrutor deve fazer uma interpretação das provas, dizendo o que se deve concluir delas, e uma avaliação ou valoração, indicando qual o grau de probabilidade que reveste essa conclusão.
Dada a natureza inquisitória do procedimento disciplinar e em conjugação com o princípio da verdade real (cfr. arts. 56º e 86º do CPA), em regra, nesta fase vigora o princípio da livre apreciação das provas, segundo o qual o órgão instrutor tem a liberdade de, em relação aos factos que hajam servir de base à aplicação do direito, os apurar e determinar como melhor entender, interpretando e avaliando as provas de harmonia com a sua própria convicção.
Todavia, como referimos no processo nº 827/07.2.BEPRT, esta “liberdade probatória” não é total e completa, pois evidentemente que está condicionada pela finalidade de se obter o mais elevado grau possível de aproximação à verdade. O instrutor não pode avaliar as provas simplesmente segundo as suas opiniões individuais, mas segundo as regras da verdade histórica e com fundamentação da decisão. A «livre convicção», sob pena de não ter qualquer conteúdo lógico, não significa ausência de motivos de convicção, mas apenas que o juízo em que se traduz a apreciação não decorre directamente de regras legalmente impostas.
O condicionamento da ampla zona de liberdade probatória pelo fim de se obter a verdade material, conduz necessariamente à revisibilidade jurisdicional do juízo efectuado pelo órgão instrutor ou decisor sobre a apreciação e valoração das provas. O tribunal não está vinculado à apreciação que esse órgão tenha feito das provas recolhidas. O juiz fará o seu próprio juízo a propósito dos factos e elementos que o processo forneça, certamente persuadido racionalmente por uma positiva convicção de que os factos ocorreram muito provavelmente de uma certa maneira.
Mas, se o princípio da livre apreciação das provas confere ao órgão decisor do procedimento o poder de basear a sua decisão numa íntima convicção livremente formada sobre o exame e avaliação dos motivos probatórios reunidos no processo, a actividade do tribunal não pode limitar-se a substituir essa convicção pelo íntimo convencimento do juiz. Na apreciação das provas, não se trata de decidir através da impressão ou intuição que se tem, mas segundo a persuasão racional que o órgão administrativo tem das provas recolhidas através do processo. A autonomia que o órgão administrativo tem na apreciação das provas está pois submetida a um princípio de racionalidade, cuja violação é controlável pelo tribunal. A função de controlo judicial limita-se assim a detectar se a apreciação das provas tem uma base racional, se o valor das provas produzidas foi pesado com justo critério lógico, não enfermando de erro de facto ou erro manifesto de apreciação.
É através da fundamentação da decisão que se deve averiguar se a valoração das provas está racionalmente justificada e se ela é capaz de gerar uma convicção de verdade sobre a prática dos ilícitos disciplinares imputados ao recorrente.
Quer perante cada meio de prova em concreto, quer perante o conjunto das provas, não julgamos que a apreciação que o órgão instrutor fez das provas tenha sido arbitrária, desrazoável ou racionalmente indemonstrável.
Na verdade, lendo os vários depoimentos produzidos no processo disciplinar, sabe-se que existiu uma “discussão” entre o arguido F… e o participante M… no vestiário do local de trabalho; que essa discussão foi ouvida pelo coordenador de turno e pelo colega de trabalho N…, os quais retiraram o ofendido do vestiário; que no mesmo momento foi dada a conhecer ao chefe dos serviços de fiscalização J… e que fiscal municipal I… também dele teve conhecimento (cfr. doc. de fls. 15, 17, 18 e 19 do p.a).
Sobre o conteúdo e a forma com decorreu a discussão, os testemunhos do coordenador de turno A… e do fiscal N… são suficientes para que se possa acreditar, com alto grau de probabilidade, na versão apresentada pelo participante. Este queixa-se de que o arguido entrou no vestiário, empurrou-o contra um armário, pôs-lhe a sua mão no ombro, com agressividade, encostou-se, de frente, num tom ameaçador e disse-lhe: "que seja a última vez que me andas a vigiar, porque se não eu caço-te lá fora e fodo-te os cornos”, facto constante do artigo 4º da acusação e que se deu por provado no relatório final. Ora, o N… confirma que o M… estava «calmo, normal, a mexer no seu cacifo» e quando saiu do vestiário para ir à casa de banho cruzou com o arguido na porta, o qual lhe disse “cuidado, que andam fiscais a vigiar-nos”; quando regressou, já viu o M… exaltado, a dizer ao arguido “estás-me a ameaçar”, “queres-me bater, bate-me”, tendo então, juntamente com o A…, arrastado o M… para o gabinete do A…. E o A…, que tem o gabinete ao lado do vestiário, afirma que ao ouvir a discussão foi ao vestiário, onde encontrou o M… «muito irritado, nervoso, corado e berrava”, dizendo para o F…, que «não tinha nada que o ameaçar», que “lhe podia bater ali”, “podes matar-me”. Com a ajuda do N…, puxou o M… para o seu gabinete, onde este lhe contou que tinha sido ameaçado de agressão pelo F…, o qual tinha dito que “lhe partia as trombas”. Aconselhou então o M… a fazer uma participação por escrito, o que ele fez de imediato, altura em que o F… entrou no gabinete dizendo “andas para aí a vigiar”.
Estes factos permitem que se faça um juízo sobre a veracidade dos factos constantes da acusação. Se está provado que o M… disse ao F… que “lhe podia bater ali”, então pode inferir-se que o F… terá ameaçado bater-lhe noutro local; se o M… se queixou que o F… “lhe partia a trombas”, também é provável que, quando estiveram a sós, lhe terá dito algo equivalente, designadamente que “lhe fodia os cornos”. Tem-se, pois, por certo que o arguido, com as expressões usadas, ameaçou um colega de trabalho, colocando-o na situação de «assustado, stressado, incomodado», indignado e com medo», que foi o estado o chefe de serviços J… diz ter encontrado o M… após a discussão.
Mais complexo é o problema de saber se à conduta do arguido cabe ou não a pena de suspensão que lhe foi aplicada.
Diferentemente do que acontece com o direito criminal, a tradição legislativa no direito disciplinar tem sido a de não tipicizar a ilicitude dos factos. Como refere Marcello Caetano, «enquanto o ilícito criminal se traduz na formulação exacta e precisa da conduta proibida, originando tipos legais de infracção fora de cujo esquema não é admissível a punibilidade, é disciplinarmente ilícita qualquer conduta do agente que transgrida a concepção dos deveres funcionais válida para as circunstâncias concretas da sua posição e actuação» (cf. Manual. Vol. II, pág. 786).
Os enunciados dos artigos 23º, 24º, 25º e 26º do ED de 1984 confirmam que, em regra, a infracção disciplinar é atípica. Depois de definir os deveres gerais dos funcionários (art. 3º) e de fixar taxativamente as penas disciplinares (cfr. art. 11º), define-se, relativamente a cada uma das penas, as respectivas infracções, através de cláusulas gerais, conceitos indeterminados e enumeração exemplificativa, com o propósito de facilitar a subsunção das condutas disciplinarmente relevantes. Naquelas disposições, o legislador deixa em aberto, pelo carácter exemplificativo e pela utilização de expressões de conteúdo, extensão e sentido impreciso e incerto, as descrições dos comportamentos considerados ilícitos. Atente-se, por exemplo, nas directivas de qualificação de um facto disciplinarmente punido constantes daqueles artigos: «faltas leves de serviço» (art. 22º); «negligência e má compreensão dos deveres funcionais» (art.23º); «negligência grave ou grave desinteresse pelo cumprimento de deveres profissionais» (nº 1 do art. 24º); «atente gravemente contra a dignidade e prestígio do funcionário ou agente ou da função» (nº 1 do art. 25º); «inviabilizarem a manutenção da relação funcional» (nº 1 do art. 26º). Como é nítido, a lei aqui não define de modo preciso todos os pressupostos de facto de que depende a aplicação da sanção disciplinar. O que são faltas leves ou com grave desinteresse? Quando é que a falta atenta gravemente contra o prestígio da função ou inviabiliza a manutenção da relação laboral?
Se as normas que referem os factos disciplinarmente puníveis são normas abertas, indicativas ou modulares ou, como refere Marcello Caetano, «meras normas de orientação para servirem de padrão ao intérprete», depressa se colocam as questões que o recorrente refere na última parte das alegações: que autonomia de livre decisão dispõe a Administração na interpretação e aplicação de tais conceitos? que tipo de controlo o tribunal pode fazer da aplicação administrativa desses conceitos?
A resposta a estas questões é suficientemente conhecida na doutrina e na jurisprudência, embora nem sempre no mesmo sentido: uns consideram que os conceitos indeterminados integram-se na chamada «discricionariedade técnica» ou «discricionariedade imprópria» e, por isso, embora entendam que a interpretação e aplicação de tais conceitos configura uma situação de vinculação, dizem que não há controlo judicial pleno, a não ser nos casos de «erro manifesto» (Marcello Caetano e Freitas do Amaral); outros submetem a generalidade dos conceitos indeterminados ao controlo total da Administração, mas reconhecem que há certos conceitos - os «conceitos discricionários» - que reconhecem a favor do órgão administrativo que os aplica uma liberdade discricionária (Rogério Soares, Afonso Queiró, Sérvulo Correia, Gomes Canotilho, Azevedo Moreira, Esteves de Oliveira e Gonçalves Pereira); e há ainda a acrescentar a posição mais radical de António Francisco de Sousa, alimentada pela doutrina germânica actual, para quem as doutrinas dos «conceitos discricionários», da «discricionariedade técnica» e da «discricionariedade imprópria» são inconstitucionais, porque «por força do princípio do Estado de Direito, os conceitos indeterminados não só não excluem como exigem o seu controlo jurisdicional pleno, sob pena de comprometimento irremediável da segurança dos particulares perante o Estado» (Conceitos Indeterminados» no Direito Administrativo, págs. 86 a 103 e 103 e 211).
É verdade que conceitos que envolvam a emissão de juízos técnicos valorativos «têm o significado inequívoco de atribuição de uma margem de livre apreciação ao órgão competente» e, portanto, a sua aplicação ao caso concreto não pode ser repetida pelo tribunal administrativo, «pois apenas faria suceder um segundo a um primeiro juízo subjectivo, sem nada acrescentar quanto a garantias de legalidade» (cfr. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, págs.116 a 137 e 473 a 478).
Todavia, não se deve esquecer que, tal como acontece com os poderes discricionários, os conceitos indeterminados devem encontrar na letra da lei um tal grau de densificação normativa que correspondam a um mínimo de critérios objectivos que balizem a margem de livre apreciação da Administração, em termos tais que permitam aos cidadãos, com um mínimo de segurança, saber com que quadro normativo contam quanto à possível aplicação dessa lei e que simultaneamente confiram aos tribunais elementos objectivos suficientes para apreciação da adequação e proporcionalidade no uso de tais poderes (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional de Portugal, nº 285/92, publicado no Diário da República, 1ª série – A, de 17 de Agosto de 1992). Portanto, constitui exigência do princípio da legalidade que os conceitos indeterminados contenham uma densificação normativa que permitam, por um lado, aos administrados saber em que situações concretas é possível a Administração agir e, por outro, ao tribunal conhecer da exigibilidade e da proporcionalidade da conduta da Administração.
Em face dos avanços doutrinais e jurisprudenciais ocorridos nesta matéria terá que se admitir um controlo jurisdicional que abranja, pelo menos: a) a correcção da interpretação da norma; b) a verificação dos pressupostos de aplicação da norma; c) e a observância do princípio da proporcionalidade, ou seja, do «iter» lógico seguido pela Administração na valoração dos elementos da situação concreta e da correcção interna dos raciocínios lógico-discursivos que presidiram à aplicação da norma ao caso concreto.
Quer dizer: o que se avançou relativamente à doutrina da «discricionariedade técnica», no sentido de um controlo «mais profundo», foi a inclusão na fiscalização contenciosa da apreciação da exactidão dos elementos que integram o conceito indeterminado, isto é, os chamados juízos técnicos de existência ou de accertamento técnico.
Pode, pois, o tribunal controlar os juízos técnicos da Administração, emitidos ao abrigo da norma que contém o conceito indeterminado, destinados a verificar a existência de elementos de facto predeterminados e tendo em vista a prossecução do interesse público que subjaz à intervenção administrativa, uma vez que, embora esta intervenção «accertativa» se caracterize por uma assinalável subjectividade, ela não exclui a possibilidade da sua reedição e subsequente controlo, enquanto actividade de avaliação e de determinação de factos e de censura em sede de um juízo de legalidade.
Mas já não pode controlar os juízos técnicos valorativos ou de probabilidade, pois, a previsão normativa que os concebe significa a atribuição de uma reserva de decisão da Administração (ou como prefere a doutrina alemã, uma “margem de apreciação” ou uma “prerrogativa de avaliação”.
Em face do exposto, não há dúvida que o tribunal pode averiguar se a aplicação da medida sancionatória observou os parâmetros do princípio da proporcionalidade. E pode fazê-lo em dois momentos diferentes: na subsunção dos factos à norma qualificativa e na determinação da medida concreta da sanção. Como refere Ana Fernanda Neves, no direito disciplinar da função pública há duas operações distintas: «há a proporcionalidade na subsunção – a adequação do preenchimento dos conceitos indeterminados e de cláusulas gerais utilizados no recorte infraccional não pode deixar de ser controlada; para cada sanção a lei prevê uma determinada sanção e não a possibilidade de várias sanções para uma mesma infracção – e a proporcionalidade no apuramento da concreta sanção» (cfr. O princípio da tipicidade no direito disciplinar da função pública, CJA, nº 32, pág. 27).
No caso dos autos, está em causa a primeira operação: saber se é ou não adequado integrar o ilícito disciplinar na sanção (abstracta) de suspensão.
Esta assente que o dever funcional violado foi o dever de correcção, que a lei define como o dever de «tratar com respeito quer os utentes dos serviços públicos, quer os próprios colegas quer ainda os superiores hierárquicos» (nº 10 do art. 3º do ED). O incumprimento culposo desse dever constitui um ilícito disciplinar que o estatuto recorta em três normas: alínea d) do nº 2 do artigo 23º, punido com a pena de multa; alínea a) do nº 2 do art. 25º, punida com a pena de inactividade; e alínea a) do nº 2 do art. 26º, punido com a pena de aposentação compulsiva e demissão. As três infracções ao dever de correcção estão dispostas segundo uma ordem de gravidade e as duas últimas segundo o critério do local onde foi praticada a infracção.
Se qualificássemos a violação do dever de correcção como desrespeito «grave» de um colega, que ocorreu no local de serviço ou em serviço público, teríamos que enquadrá-la na pena de demissão. Só que essa pena não poderia ser aplicada por falta do pressuposto delimitador desse subtipo de infracção, ou seja, por não estar demonstrado que a infracção inviabiliza a manutenção da relação funcional. E tendo ocorrido no local de serviço, também fica excluída a possibilidade de subsunção na infracção punida com a pena de inactividade.
Restaria assim a subsunção da infracção na referida alínea d) do nº 2 do artigo 23º, com se considerou no acórdão recorrido. O dever de correcção previsto nesta norma consubstancia-se na obrigatoriedade do trabalhador, em serviço, tratar com cortesia, boa educação, polidez e urbanidade os utentes, os superiores hierárquicos e os demais trabalhadores dos serviços públicos. No relacionamento entre trabalhadores do mesmo serviço, a exigência de um tratamento educado e urbano é mesmo uma condição essencial ao regular funcionamento da Administração. Como ensina Marcello Caetano, «este dever não impõe ao funcionário que mantenha relações de intimidade, amizade ou cordialidade, sequer, com os outros funcionários, superiores ou não. Apenas exige que, em serviço, ponha de banda ressentimentos, inimizades ou rivalidades, tendo em mente que não estão em causa as pessoas, mas o exercício de funções cujo desempenho regular e harmonioso é indispensável ao regular funcionamento da Administração e, por conseguinte, à satisfação dos interesses públicos» (cfr. Manual. Vol. II, pág. 724).
Dada a descrição legal da infracção, pode dizer-se que verificada a incorrecção da conduta, está legitimada a possibilidade de em abstracto haver lugar à aplicação da pena de multa, sem que a Administração tenha que provar que tal conduta revela «negligência» ou «má compreensão dos deveres funcionais».
Todavia, se o comportamento do infractor demonstrar «grave negligência» ou «grave desinteresse» no cumprimento dos deveres funcionais e o juízo de censura desse comportamento assumir particular intensidade, revelando-se intolerável ou inaceitável, segundo a compreensibilidade de um empregador normal, pode ser adequado enquadrar a infracção no âmbito as infracções punidas com a pena de suspensão.
A separação entre a pena de multa e a pena de suspensão é feita através dos conceitos de «negligência» e «grave negligência» e «má compreensão» e «grave desinteresse» pelo cumprimento dos deveres funcionais.
A primeira distinção suscita alguma dificuldade de entendimento quando se pretender compará-la com as modalidades de negligência previstas no artigo 15º do Código Penal. Ou se compara a negligência leve à negligência inconsciente, a que corresponde a pena de multa e a negligência grave à negligência consciente, a que corresponde a pena de suspensão, ou então, para efeitos disciplinares, terá de aceitar-se uma terceira categoria de negligência, a negligência grave ou grosseira, muito próxima do dolo.
Mas também se pode entender que o conceito de «negligência», como elemento descritivo e delimitador da infracção, é o nome próprio da violação do dever de zelo. Pelo menos era assim que considerava Marcello Caetano quando, a propósito da classificação das infracções, referia que «a violação do dever de zelo origina negligência e a do dever de aplicação dá origem ao erro de ofício ou à incompetência profissional conforme o facto transgressor seja isolado ou continuado» (Manual, Vol. II, pág. 798). Se é o dever infringido que individualiza a infracção, então este último sentido de «negligência» parece ser o mais adequado, uma vez que a culpa em sentido lato (que engloba o dolo) não faz parte da ilicitude. Nesse sentido, a menor ou maior gravidade na violação do dever de zelo é que determinava a aplicação das penas de multa ou de suspensão, reportando-se a má compreensão ou o grave desinteresse à violação dos demais deveres funcionais.
A distinção entre «má compreensão» e «grave desinteresse» pelo cumprimento dos deveres funcionais passa por conhecer se o trabalhador interiorizou de forma correcta ou defeituosa os deveres funcionais. Se o trabalhador pratica o acto por erradamente entender que não está vinculado ao dever funcional, o comportamento é em abstracto punido com pena de multa; se compreendeu perfeitamente o dever, mas pratica o acto sem mostrar interesse em o praticar na forma correcta e esperada, o comportamento é em abstracto punido com a pena de suspensão.
No caso dos autos, a falta disciplinar foi enquadrada na pena de suspensão com fundamento exclusivo no grau de culpa manifestada pelo arguido na sua prática. Diz-se que agiu com dolo, equiparado a negligência grave, e por conseguinte só pode ser punido com a pena de suspensão. O relatório final não é muito claro quanto à subsunção dos factos na pena de suspensão, pois as considerações que faz reportam-se aos factores ou índices de determinação concreta da pena, os quais apenas devem relevar após a determinação da moldura abstracta da pena.
Mas as circunstâncias em que ocorreram os factos não apontam para que se possa censurar a conduta do arguido de forma tão grave que implique a suspensão de funções por quatro meses. Sabe-se que foi um episódio ocasional do qual não resultaram consequências importantes para o serviço público. Apenas parte da discussão foi ouvida por dois funcionários, o N… e o A… e conhecida por mais dois, o J…e a I…, sem ter ultrapassado os muros da instituição. A motivação do comportamento do arguido não consta da acusação nem do relatório, deduzindo-se pelas expressões ditas que terá agido motivado por ouvir dizer que o participante o andava a vigiar, mas desconhece-se a veracidade desse facto ou as circunstâncias em que o mesmo chegou ao conhecimento do arguido. De igual modo, não há elementos para se averiguar a seriedade da ameaça de ofensa à integridade física do funcionário ofendido. A expressão “que seja a última vez que me andas a vigiar, porque se não eu caço-te lá fora e fodo-te os cornos”, para além de não ter sido ouvida pelos demais funcionários, tem mais o sentido de uma advertência do que propriamente uma ameaça à prática de agressão sobre a pessoa do participante. O próprio ofendido, três dias após os factos, desistiu por escrito da participação, invocando dificuldade de provar o que se passou no vestiário, o que é bem demonstrativo da ausência de factos e detalhes que possam evidenciar a gravidade do desinteresse do arguido pelo cumprimento do dever de correcção. Há um despeito de um colega de profissão, presenciado por outros trabalhadores, mas não se pode dizer que assumiu uma intensidade tão grave que só uma pena de suspensão é capaz de corrigir e melhorar a conduta do arguido. A pena de multa é suficiente para defender o serviço da indisciplina, dar exemplo aos demais funcionários e evitar que o infractor, que é primário, volte a prevaricar. A intenção manifestada na conduta, o grau de culpa, deve ser valorada na determinação concreta da pena de multa.
Desta sorte, a pena de suspensão aplicada ao representante do ora recorrido é inadequada à gravidade da infracção cometida, a qual manifestamente a excede, com violação do princípio da proporcionalidade e erro manifesto da autoridade ora recorrente, tendo o respectivo despacho punitivo ofendido o nº 1 do artigo 24º do ED, em que se fundou juridicamente, porque a violação do dever de correcção não assume a gravidade aí pressuposta.
4. Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional e em manter a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique-se.
TCAN, 18 de Fevereiro de 2011
Ass. Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro
Ass. Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Ass. Antero Pires Salvador