Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01008/23.3BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/23/2024
Tribunal:TAF de Braga
Relator:VIRGÍNIA ANDRADE
Descritores:INDEFERIMENTO LIMINAR;
LEGITIMIDADE ACTIVA;
GARANTIA DA TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA;
Sumário:
I. A limitação do acesso ao processo por meio das regras próprias da legitimidade, não é susceptível de configurar qualquer tipo de negação do acesso à justiça previsto no artigo 22.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

II. No âmbito do processo judicial tributário não se verifica o pressuposto processual de legitimidade quando o Recorrente não é sujeito passivo da liquidação impugnada ou responsável subsidiário, nem é titular de interesse legalmente protegido.

III. Constituindo a reversão um instituto próprio do processo de execução fiscal, por via do qual Autoridade Tributária e Aduaneira chama à execução os responsáveis subsidiários, a notificação prevista no nº 4 do artigo 105.º do RGIT não confere a qualidade de responsável subsidiário
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* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1 – RELATÓRIO

«AA» vem interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal ... na impugnação judicial intentada pelo Recorrente contra a Autoridade Tributária e Aduaneira, que indeferiu liminarmente a petição inicial apresentada, por ilegitimidade processual do Recorrente.

O Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
“I.
Vem o presente recurso interposto da, aliás douta, sentença proferida nos autos que indeferiu liminarmente a impugnação judicial apresentada pelo Impugnante.
II.
Para tal, a decisão em mérito julgou o Impugnante parte ilegítima para a presente ação, julgando procedente a exceção dilatória invocada – ilegitimidade ativa. Ora,
III.
Salvo o devido respeito, que se diga, é todo, não se pode o Impugnante conformar com tal decisão, uma vez que, entende e sustenta que detém a legitimidade necessária para intervir nos presentes autos.
IV.
Ao decidir de modo diverso, a decisão em mérito violou, entre outros comandos normativos, o estabelecido no artigo 9.º do CPPT.
V.
Em causa nos presentes autos está uma impugnação judicial deduzida pelo Impugnante contra o ato de liquidação adicional efetuado contra a sociedade comercial [SCom01..., Lda.], relativamente ao período de tributação de 200401M.
VI.
O Impugnante, à data dos factos, integrava os órgãos de administração da referida sociedade comercial.
VII.
Pelo cargo que ocupava, o Impugnante, apesar de nunca ter sido citado, viu dívidas tributária da mencionada sociedade comercial constarem da sua página da Administração Fiscal (dívidas contra si revertidas).
POR OUTRO
VIII.
Relativamente à mesma sociedade comercial e relativamente ao mesmo período de tributação em discussão nos autos, contra o Impugnante foi instaurado processo-crime, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e fraude fiscal.
IX.
A liquidação adicional que originou a liquidação adicional aqui em mérito é a mesma que sustentou o despacho de acusação proferido no processo-crime na qual a sociedade comercial é arguida, conjuntamente com o impugnante.
X.
Onde lhe vem imputada factualidade desenvolvida pela sociedade comercial objeto da liquidação adicional e repercutida na sua pessoa pelo facto de ter integrado os órgãos sociais da mesma.
XI.
O mesmo sucedendo em matéria exclusivamente tributária, onde o aqui Impugnante, viu ser contra si revertido ou projetado reverter dívidas da sociedade comercial [SCom01..., Lda.], nas quais, por certo, se incluem os períodos a que respeita a liquidação adicional aqui sindicada.
XII.
O que, só por si, é suficientemente demonstrativo e elucidativo da legitimidade do Impugnante em sindicar o ato de liquidação adicional aqui sob escrutínio.
XIII.
Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 9.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), “Têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provém interesse legalmente protegido.”
XIV.
O nº 4 do mesmo preceito legal estabelece que: “Têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.”
XV.
E ao falar de entidades ao cimo referidas, o legislador refere-se aos responsáveis solidários e subsidiários.
XVI.
Por outro lado, o artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) no seu nº 1 estatui que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
XVII.
O nº 4 do mesmo preceito legal determina que: “4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
XVIII.
Ora, a notificação a que respeita este nº 4 do artigo 105.º do RGIT inserta no artigo respeitante ao crime de abuso de confiança fiscal (imputado ao impugnante e à respetiva sociedade comercial) estabelece como condição de punibilidade a notificação para regularização da falta de entrega do imposto.
XIX.
Sendo que tal notificação terá impreterivelmente de ser feita à sociedade arguida e, bem assim, ao responsável subsidiário (aquele que ocupa o cargo de gestão da sociedade) e a falta de pagamento, faz o responsável subsidiário incorrer em responsabilidade criminal como co-autor do crime de abuso de confiança fiscal.
XX.
Por tudo isto, e tendo o aqui Impugnante, sido notificado no Processo-crime nº ..6/05.0I.... nos termos do disposto no artigo 105.º, nº 4, alínea b) do RGIT, bem como tendo sido contra este deduzido despacho de acusação e despacho de pronuncia sempre enquanto responsável subsidiário da sociedade comercial, mostra-se de todo incompreensível que o Tribunal a quo, considere que o mesmo não tem legitimidade, em virtude de não ter um interesse legalmente protegido.
XXI.
Mais, ao ser solicitado ao mesmo o pagamento do imposto, sob pena de prosseguimento do procedimento criminal, as liquidações objeto dos presentes autos, projeta inequivocamente os seus efeitos na esfera jurídica e patrimonial do aqui Impugnante.
XXII.
É de todo incompreensível, que o Impugnante tenha legitimidade e seja considerado responsável subsidiário, no procedimento criminal, e que no processo judicial tributário não tenha qualquer legitimidade – não obstante de já por diversas vezes terem sido revertidas ou projetadas reversões contra o aqui Impugnante.
XXIII.
Desta forma, andou mal o Tribunal a quo, ao considerar não só que o Impugnante não tem um interesse legalmente protegido, bem como que os atos impugnados não produzem efeitos na esfera jurídica do Impugnante.
XXIV.
Pois que, se uma pessoa que possa vir a ser condenado por crime de abuso de confiança fiscal, pelo imposto aqui em causa, não tem legitimidade, por não ter interesse legítimo em demandar, quem terá?
XXV.
Mas mais, como não pode ter legitimidade para censurar uma liquidação adicional em resultado de uma inspeção tributária alguém que se perfila como devedor subsidiário e que “amanhã” tem contra si revertida tal dívida – e, não podendo impugnar, apenas poderá mais tarde vir a reagir a por via da oposição à execução.
XXVI.
Que, como sabemos, os fundamentos em sede de oposição à execução estão limitados aos estabelecidos no artigo 204.º do CPPT, o que consubstancia uma clara e ostensiva violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais, ínsito no artigo 20.º da CRP.
XXVII.
Reitere-se que o Impugnante era o administrador da sociedade comercial [SCom01..., Lda.], no período a que se referem as liquidações adicionais sindicadas, tal como era, aquando da notificação das respetivas liquidações adicionais.
XXVIII.
Estando, assim, na contingência de ser condenado num processo de abuso de confiança fiscal, por dívidas que emergem de uma inspeção tributária e cujo método de apuramento do imposto devido mostra-se desconforme com as regras legalmente previstas.
XXIX.
Padecendo o relatório de inspeção tributária de manifesto erro de apuramento das quantias supostamente omitidas, resulta indubitável que as liquidações adicionais que lhe seguiram e aqui se mostram sindicadas, se encontram totalmente inquinadas pelo vício que lhes precede.
XXX.
De ressaltar ainda que a sociedade comercial [SCom01..., Lda.], já se mostra dissolvida logo, a legitimidade para sindicar qualquer ato contra a mesma proposta, terá de ser sindicado pelo seu legal representante, ou seja, o aqui Impugnante.
XXXI.
Isto posto, tendo o aqui Impugnante sido notificado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, ou seja, foi notificado para proceder ao pagamento do montante constante das liquidações adicionais supra mencionadas e sendo consabido que o pagamento excluí a punibilidade dos factos, tem por isso, o Autor, interesse legítimo para impugnar os atos de liquidação adicional de IVA objeto dos presentes autos.
XXXII.
Ora, o Impugnante, ao ser notificado nos termos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do Regime Geral das Infrações Tributárias, é notificado para efetuar o pagamento dos valores constantes das liquidações sindicadas.
XXXIII.
Logo, existe aqui, uma exigência de cumprimento da obrigação tributária.
XXXIV.
E, se tem legitimidade para pagar, não tem legitimidade para sindicar essa liquidação?
AINDA POR OUTRO LADO,
XXXV.
Também não será despiciendo referir que atento os fundamentos expostos na impugnação judicial aqui deduzida a mesma, assume-se como uma questão prejudicial à resolução do processo penal tributário.
XXXVI.
Porquanto, a definição da situação jurídico tributária em resultado da apreciação do mérito da impugnação judicial deduzida pelo Impugnante, inelutavelmente se irá refletir e repercutir no enquadramento jurídico-criminal do Impugnante e da sociedade comercial no processo-crime – Proc. nº ..6/05.0I...., que corre termos no Juízo Central Criminal ... – Juiz ....
XXXVII.
E, também, por essa via, o Impugnante se mostra legitimado a deduzir a impugnação judicial subjacente aos presentes autos – por ter legitimidade para o fazer nos termos do artigo 9.º do CPPT.
SEM PRESCINDIR,
XXXVIII.
A interpretação desenvolvida na douta decisão recorrida do artigo 9.º do CPPT, no sentido do administrador da sociedade comercial a quem foi feita a liquidação adicional não ter legitimidade de impugnar judicialmente tal ato de liquidação, não obstante de estar a ser criminalmente perseguido pelos factos e valores constantes da mencionada liquidação adicional sindicada, deve ser declarada inconstitucional por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa – inconstitucionalidade que desde já se deixa aqui invocada, nos termos e para os efeitos do artigo 70.º, nº 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
TERMOS EM QUE, Concedendo provimento ao recurso agora interposto e revogando a douta decisão recorrida, farão Vossas Excelências a acostumada,
JUSTIÇA!”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de não ser concedido provimento ao recurso.
Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos ao abrigo do disposto no artigo 657.º n.º 4 do Código de Processo Civil, submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.

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Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta do disposto no artigo 608.º n.º 2, artigo 635.º n.º 4 e artigo 639.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir do erro no julgamento do Tribunal a quo ao decidir pelo indeferimento liminar.

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2 - Fundamentação
2.1. Matéria de Facto
O Tribunal a quo decidiu a matéria de facto da seguinte forma, que aqui se reproduz:
1) Foi emitida em nome da sociedade “[SCom01..., Lda.]” a liquidação adicional nº ...53 e ...08 referente ao IVA do período de janeiro de 2004, no valor global de € 24.333,59 – cfr. fls. 40 do SITAF (Doc nº 1), cujo teor se dá por reproduzido.
2) Da informação prestada pela Autoridade Tributária, no procº nº 1010/23.5 BEBRG resulta que o Impugnante não é executado nos processos de execução fiscal nºs ...22 e ...69. Mais se informa que, não foram efetuados quaisquer procedimentos de reversão. – cfr. consulta da informação prestada no Proc. 1010/235 BEBRG, cujo teor se dá por reproduzido.
3) No inquérito n.º ..6/05.0I...., que corre termos no Departamento de Investigação e Ação Penal ..., está em causa o cometimento de factos ilícitos que podem integrar a prática por «BB» de crimes de fraude fiscal, debruçando-se a investigação, além do mais, sobre a sociedade “[SCom01..., Lda.]” – cfr. fls. 41 do SITAF (Doc nº 2), cujo teor se dá por reproduzido.”
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2.2 – O direito
Constitui objecto do presente recurso a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que indeferiu liminarmente a impugnação judicial intentada pelo aqui Recorrente, pois julgou verificada a exceção dilatória de ilegitimidade activa.

2.2.1.Do erro de julgamento quanto ao indeferimento liminar

A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto decidiu pelo indeferimento da impugnação judicial, por ter considerado que o Recorrente não tinha legitimidade activa.
O Recorrente, discorda do assim decidido, sustentando, no essencial, que o Tribunal a quo, ao considerar que não tem legitimidade activa, violou o artigo 9.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, pois entende que tem legitimidade activa para impugnar a liquidação em causa, uma vez que, apesar da liquidação ter sido efectuada contra a sociedade comercial [SCom01..., Lda.], fazia parte dos órgãos sociais da sociedade no período de tributação dessa liquidação e é arguido, conjuntamente com a referida sociedade, em processo crime em que estão em causa factos que também abarcam esse período e a actividade da sobredita sociedade.
Ademais, defende que considerando que a sociedade [SCom01..., Lda.], já se mostra dissolvida, a legitimidade para sindicar qualquer acto será do Recorrente.
Vejamos.
Dispõe o n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva” que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
No entanto, “O direito ao processo traduz-se no direito de abertura de um processo após a apresentação da pretensão inicial, com o consequente dever do órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada (...) a) O legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, cabendo-lhe designadamente ponderar os diversos direitos e interesses constitucionalmente protegidos relevantes – incluindo o próprio interesse de ambas as partes (e não apenas do autor) – e, em conformidade, disciplinar o âmbito do processo, a legitimidade, os prazos, os poderes de cognição do tribunal e o processo de execução. Não é, por isso, incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes;” – cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora 2005, a páginas 190 a 191).
“De resto e neste sentido, há muito que constitui jurisprudência absolutamente firmada do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça que o legislador ordinário dispõe de plena liberdade de conformação na concreta modelação processual por si adoptada, desde que não se estabeleçam mecanismos arbitrários ou desproporcionados de compressão ou negação do direito à prática dos actos predispostos ao exercício do direito de acção, em particular no caso da impugnação recursiva das decisões judiciais desfavoráveis.” – cfr. Acórdão do STJ de 12.07.2022, proc. 1916/18.3T8STS.P1.S1.
Nesta medida, atendendo à liberdade de conformação processual que aqui demos conta, e, considerando que os pressupostos processuais traduzem requisitos que a lei institui para garantir o acesso ao processo através de regras próprias pré-determinadas que visam regular de forma equitativa e justa o processo, as regras processuais são indispensáveis ao acesso ao direito e aos tribunais, bem como à garantia da tutela jurisdicional efetiva, assegurando a igualdade das partes.
Assim, a limitação do acesso ao processo por meio das regras próprias da legitimidade, não é susceptível de configurar qualquer tipo de negação do acesso à justiça estatuído no artigo 20.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, sendo de negar provimento a tal alegação.
Relativamente ao conceito de legitimidade activa enquanto pressuposto processual geral, este traduz a relação entre a parte no processo e o objecto deste (a pretensão ou pedido), sendo de aferir, em concertação com o n.º 1 e 2 do artigo 30.º do Código de Processo Civil pelo interesse directo em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação.
O n.º 3 do citado artigo 30.º Código de Processo Civil estabelece ainda que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como esta é configurada pelo autor.”
Assim, “a legitimidade activa é uma condição necessária para obter uma apreciação sobre o mérito da pretensão e não uma condição da sua procedência, o que justifica que, para reconhecer a legitimidade, não se exija uma verificação da efectiva titularidade da relação jurídica invocada pelo interessado (como se exige para decidir sobre a procedência), mas apenas a alegação dessa titularidade” – cfr. Jorge Lopes de Sousa (in Código de Procedimento e de Processo Tributário Volume I, 6ª edição, 2011, anotado e comentado, fls. 113).
No âmbito das relações jurídicas tributárias impõe-se aferir o que decorre das normas tributárias atinente à legitimidade no processo judicial tributário.
Isto porque, estando-se perante liquidação adicional de IVA, e, como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 1.º da Lei Geral Tributária, estamos perante uma relação jurídico-tributária, na medida em que por um lado temos a Autoridade Tributária e Aduaneira, agindo como tal e, por outro lado uma pessoa singular (o aqui Recorrente).
Ora, nesta matéria, estabelece o artigo 9.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário que “1 - Têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido. 2 - A legitimidade dos responsáveis solidários resulta da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal. 3 - A legitimidade dos responsáveis subsidiários resulta de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários. 4 - Têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.”
Assim, no âmbito do processo judicial tributário tem legitimidade para intervir i) a administração tributária ii) os contribuintes iii) os substitutos legais, iv) os responsáveis solidários v) o Ministério Público, assim como vi) o Representante da Fazenda Pública.
O n.º 3 do artigo 18.º da Lei Geral Tributária, estatuindo quem são os sujeitos das relações tributárias dispõe que “O sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contributo directo, substituto ou responsável.”
Nesta senda, estatui o n.º 2 do artigo 22.º da Lei Geral Tributária que “Para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas”
Com efeito, “as pessoas solidária ou subsidiariamente responsáveis poderão reclamar ou impugnar a dívida cuja responsabilidade lhes for atribuída nos mesmos termos do devedor principal, devendo, para o efeito, a notificação ou citação conter os elementos essenciais da sua liquidação, incluindo a fundamentação nos termos legais” – cfr. n.º 5 do artigo 22.º da Lei Geral Tributária.
A par, o artigo 20.º da Lei Geral Tributária estatui que a substituição tributária se verifica quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa distinta do contribuinte e que é efectivada através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido.
O artigo 23.º n.º 1 da Lei Geral Tributária estabelece, por sua vez, que a responsabilidade subsidiária se efectiva por reversão do processo de execução fiscal.
No caso presente, considerou o Tribunal a quo que “Ora, ainda que o art.º 9º do CPPT estabeleça um conceito amplo de legitimidade no processo judicial tributário, não se vê que este pressuposto processual possa ser atribuído ao aqui Impugnante, já que, tal como resulta do probatório, não é o sujeito passivo da liquidação impugnada (mas sim a sociedade[SCom01..., Lda.]”), não é responsável subsidiário pela dívida (pois, conforme resulta da informação prestada pelo Serviço de Finanças ... o Impugnante não é executado nos processos de execução fiscal nºs ...22 e ...69. Mais se informa que, não foram efetuados quaisquer procedimentos de reversão, sendo certo que as pessoas subsidiariamente responsáveis poderão reclamar ou impugnar a dívida cuja responsabilidade lhes for atribuída nos mesmos termos do devedor principal, devendo a impugnação ser apresentada no prazo de três meses contados a partir da sua citação em processo de execução fiscal [cfr. o artigo 22.º, n.º 5 da Lei Geral Tributária (LGT) e artigo 102.º, n.º 1, al. c) do CPPT]. Acresce que o Impugnante também não demonstra qualquer interesse legalmente protegido que lhe confira legitimidade em processo judicial tributário, pois a instauração e pendência do inquérito n.º ..6/05.0I.... (cfr. o item 3) dos factos provados) não incorpora qualquer liquidação de imposto operada em nome do Impugnante nem é equivalente a um ato de declaração de reversão contra si da dívida, além de que o Impugnante não demonstra que tenha sido notificado como sujeito passivo para o respetivo pagamento, sendo de realçar que não está impedido de, em sede de processo crime, fazer a prova de que não praticou os factos por que é acusado. Também não é titular de interesse legalmente protegido, na medida em que, por um lado, o ato de liquidação, objeto desta impugnação, projetou os seus efeitos na esfera jurídica e patrimonial da sociedade “[SCom01..., Lda.]” e não do Impugnante e, por outro lado, a decisão proferida no inquérito n.º ..6/05.0I.... não incorpora qualquer liquidação de imposto operada em nome do Impugnante, nem lhe confere legitimidade para intervenção no processo judicial tributário, não se podendo confundir o ilícito criminal com a relação jurídico-tributária subjacente. De facto, o cumprimento da obrigação tributária não estava a ser exigido ao Impugnante, mas sim à sociedade (e nem a esta após a extinção da execução fiscal), o que lhe retira legitimidade para a impugnação, sendo certo que o impetrante não demonstra a existência de qualquer interesse legalmente protegido que o legitime a deduzir, em nome próprio, a impugnação judicial, interesse esse que também não se descortina existir porquanto a liquidação em apreço, como já tivemos oportunidade de salientar, apenas projetou os seus efeitos na esfera jurídica da sociedade e não na esfera jurídica do Impugnante, mero representante legal daquela e que não assume a qualidade de responsável direto pelo pagamento do imposto liquidado.”
Com efeito, impõe-se concordar com o assim decidido, senão vejamos.
“Recai sobre o interessado o ónus de alegar os factos que integram a sua legitimidade que, no caso da impugnação de actos de liquidação, se limitam à sua identificação no acto como sujeito passivo do tributo liquidado” – cfr. Jorge Lopes de Sousa (in Código de Procedimento e de Processo Tributário Volume I, 6ª edição, 2011, anotado e comentado, fls. 113).
Ora, em defesa da legitimidade activa para intentar impugnação judicial, o Recorrente invoca integrar os órgãos de administração da sociedade comercial [SCom01..., Lda.], o que por si só não lhe confere legitimidade, pois, a liquidação impugnada apenas produziu efeitos na esfera jurídica do sujeito passivo de IVA, a sobredita sociedade, e não na esfera jurídica e patrimonial do Recorrente, apesar de poder ser representante legal dessa sociedade, o que in casu não se verifica, pois os autos foram apresentados pelo Recorrente em nome pessoal e não em representação de tal sociedade comercial.
Ademais, apesar do Recorrente invocar que tais dívidas constam na sua página da Autoridade Tributária e Aduaneira na qualidade de revertido, do probatório dado como assente pelo Tribunal de 1ª instância consta no ponto 2) que a dívida correspondente à liquidação em questão não foi revertida contra o Recorrente.
Ora, não vindo impugnada a matéria de facto assente, este facto solidificou-se na ordem jurídica do Recorrente, impondo-se concluir que este não é responsável subsidiário relativamente às quantias em questão.
Acresce que, a notificação que o Recorrente alega ter recebido em sede do processo de inquérito respeitante ao crime de abuso de confiança fiscal (imputado ao impugnante e à respetiva sociedade comercial) não lhe confere a qualidade de responsável subsidiário, isto porque, tal notificação, embora efectuada pelos Serviços da AT, “insere-se no âmbito do próprio processo crime, nos termos da al. b) do nº 2 do art. 105º do RGIT, valendo, portanto, apenas para os efeitos aí previstos: se a quantia ali indicada for paga (e que haverá de corresponder à soma da prestação comunicada à AT através da respectiva declaração, dos juros respectivos e do montante da coima aplicável) os factos integradores do tipo de crime (abuso de confiança) não serão puníveis. Mas, se assim é, então, porque a notificação opera tão só no âmbito do processo crime, também não há nela a invocada exigência material, por parte da AT, da dívida correspondente ao imposto que está a ser objecto de cobrança em processo de execução fiscal, carecendo de razão legal a alegação da recorrente [cfr. Conclusão H) do recurso] no sentido de que aquele acto é equivalente a um acto de declaração de reversão da dívida contra a recorrente e operado através do referido mecanismo legal previsto no nº 4 do art. 105º do RGIT. É que, constituindo a reversão um instituto próprio do processo de execução fiscal, por via do qual a exequente (AT) chama à execução pendente os responsáveis subsidiários pela dívida exequenda de imposto, a recorrente nem está, por via da invocada notificação prevista no nº 4 do art. 105º do RGIT, a ser chamada (ex novo ou mesmo subsidiariamente) ao processo crime (já está, ali, constituída como arguida, juntamente com a B……, Lda.), nem a AT ali executa qualquer imposto. Tanto que, como se salienta no supra citado acórdão do TConstitucional, ( Nº 409/2008, de 31/7/2008, proc. nº 361/08, publicado no DR, 2ª série, nº 185, de 24/9/2008, pp. 40235 e ss. ) o critério de que competente para determinar a notificação prevista nesta al. b) do nº 4 do art. 105º do RGIT é a entidade titular do procedimento ou do processo (Administração, Ministério Público, tribunal de instrução criminal ou tribunal do julgamento), consoante a fase em que ele se encontre quando surge a necessidade de proceder a essa notificação, (…) pois que, «Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão de acusação ou de não acusação. Similarmente, quando o juiz de instrução ou o juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se limitam a praticar um acto instrumental necessário à comprovação da existência, ou não, de uma condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia ou não pronúncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em todas essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou por magistrados judiciais insere-se perfeitamente dentro das atribuições constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração, nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes (…)»” – cfr. Isabel Marques da Silva (in Regime Geral das Infracções Tributárias, 3ª ed., Almedina, 2010, pp. 229 a 231).
Por último, o Recorrente considera ser parte legitima na medida em que foi instaurado contra si processo-crime pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e fraude.
Ora, a instauração e pendência do inquérito n.º ..6/05.0I...., enunciado no ponto 3) do probatório fixado pelo Tribunal a quo não incorpora qualquer liquidação de imposto operada em nome do Recorrente, nem é equivalente a um acto de declaração de reversão contra si da liquidação em causa nos autos.
Neste sentido vide Acórdão do TCAS de 11.03.2021, proc. n.º 1971/16.0BELRS.
Nesta senda, impõe-se concluir que o Recorrente: i) não é o sujeito passivo da liquidação impugnada, uma vez que a liquidação controvertida não foi emitida em nome deste, mas em nome da sociedade [SCom01..., Lda.], ii) não foi chamado à execução por efeito da reversão e iii) não é substituto tributário pois não está em causa o incumprimento de qualquer obrigação de retenção na fonte, mas sim uma liquidação adicional de IVA – cfr. pontos 1) e 2) da matéria de facto assente pelo Tribunal a quo.
Consequentemente, o Recorrente em nada foi afectado nos seus direitos e interesses legalmente protegidos, pelo que, a sua esfera jurídica e pessoal em nada foi atacada pela sobredita liquidação.
Não tendo demonstrado a existência de qualquer interesse legalmente protegido que o legitime a deduzir, em nome próprio, a impugnação judicial, carece, assim, de legitimidade processual para os autos de impugnação judicial.
Nestes termos, concluímos pela total improcedência do recurso.

Nos termos do disposto no artigo 663.º nº 7 do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte sumário:

I. A limitação do acesso ao processo por meio das regras próprias da legitimidade, não é susceptível de configurar qualquer tipo de negação do acesso à justiça previsto no artigo 22.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
II. No âmbito do processo judicial tributário não se verifica o pressuposto processual de legitimidade quando o Recorrente não é sujeito passivo da liquidação impugnada ou responsável subsidiário, nem é titular de interesse legalmente protegido.
III. Constituindo a reversão um instituto próprio do processo de execução fiscal, por via do qual Autoridade Tributária e Aduaneira chama à execução os responsáveis subsidiários, a notificação prevista no nº 4 do artigo 105.º do RGIT não confere a qualidade de responsável subsidiário.

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3 – Decisão

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.


Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Porto, 23 de Maio de 2024



Virgínia Andrade
Paula Maria Dias de Moura Teixeira
Carlos de Castro Fernandes