Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01778/15.2BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/17/2024
Tribunal:TAF de Braga
Relator:ROGÉRIO PAULO DA COSTA MARTINS
Descritores:LEI DA AMNISTIA; APLICAÇÃO AO PROCESSO JUDICIAL;
APRECIAÇÃO DO PEDIDO DE RESTITUIÇÃO DE SALÁRIOS; INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE;
ARTIGOS 6º E 14.º DA LEI DA AMNISTIA (LEI N.º 38-A/2023, DE 02.08);
Sumário:
1. A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais.

2. Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08): “Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.”

3. A ideia subjacente a este preceito é a seguinte: competente para aplicar as medidas previstas na Lei da Amnistia é quem aplicou a sanção criminal ou disciplinar.

4. Os juízes, em qualquer instância judicial, não são os juízes do “julgamento” da infracção nem da condenação. E apenas podem aplicar a Amnistia a sanções aplicadas nos processos judiciais, como decorre, a contrario, do citado preceito. Não podem aplicar a Lei da Amnistia, directamente, nos processos administrativos, disciplinares. Fazendo-o, violam o referido artigo 14.º da Lei da Amnistia e, com ele, o princípio constitucional da separação de poderes.

5. Não importa aqui saber se a Lei da Amnistia tem eficácia ex tunc ou ex nunc. Importa extrair da Lei da Amnistia a única solução compatível com a letra da lei: o tribunal não pode aplicar a Lei da Amnistia ao caso concreto em processo administrativo. E sendo certo que retirar efeitos jurídicos para o processo judicial da Lei da Amnistia aplicável ao processo disciplinar é aplicar a Lei da Amnistia no processo administrativo.

6. Os artigos 6º e 14º da Lei da Amnistia de 2023, na interpretação contrária a esta, são inconstitucionais, por violação do princípio constitucional, da separação de poderes.

7. No caso concreto não se poderia, mesmo sob entendimento diverso destas normas, aplicar a Lei da Amnistia por não estar demonstrado nos autos que a infracção em causa constitui ilícito criminal amnistiado pela Lei da Amnistia, nem ser possível determinar, se a infracção está amnistiada face à pena aplicável em abstracto, dado o disposto no artigo 6º da Lei da Amnistia, e, finalmente, por não resulta dos autos a idade do visado.

8. Quanto ao pedido do autor no sentido de lhe serem restituídos os direitos salariais correspondentes aos 150 dias de suspensão, não se compreende a afirmação feita na decisão recorrida de que “não cabe, nesta sede, apreciar”; não existe outra sede para apreciar este pedido, dirigido ao tribunal na acção judicial, que não seja a decisão de mérito no processo judicial.

9. Ainda que fosse aplicável no processo judicial e ao caso concreto a Lei da Amnistia - e não é, como vimos – esta Lei e os seus efeitos em nada bulem com o pedido deduzido na acção principal.

10. Isto porque este pedido se situa para além da mera anulação do acto. Pressupõe a declaração de invalidade do acto impugnado, mas não se reduz a este pedido. Vai para além desse pedido.

11. Assim a aplicação da Lei da Amnistia apenas teria a virtualidade – se fosse aplicável ao processo judicial – de fazer desaparecer da ordem jurídica o acto punitivo e, assim, o objecto da acção nessa parte. Não teria a virtualidade de fazer desaparecer da ordem jurídica a relação jurídica em litígio cuja causa de pedir se traduz na ilegalidade do acto – essa permanece apesar da aplicação da Lei da Amnistia- e nos prejuízos causados com a sua prática.

12. De resto a Lei da Amnistia destina-se a impedir a punição do infractor que tenha cometido uma infracção amnistiada. Não se destina a impedir que esta seja ressarcido por acto punitivo ilegal.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

O Ministério Público veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, Unidade Orgânica 1, pela qual foi aplicada a amnistia nos termos do artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, e declarada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, na acção administrativa especial que «AA» moveu contra o Ministério da Educação e Ciência para declaração de nulidade ou anulação do acto pelo qual lhe foi aplicada a sanção disciplinar de suspensão de cento e cinquenta dias, e para a prática do acto devido, a não aplicação de sanção, com as demais consequências legais.

Invocou para tanto, em síntese, que a decisão recorrida padece de omissão de pronúncia, por não ter apontado factos essenciais para a decisão, e de violação clara do disposto nos artigos 6.º e 7.º n.º1 alínea a) ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (“Lei da Amnistia”), por ter considerado amnistiado um ilícito disciplinar sem prova da idade do infractor, de que o ilícito disciplinar não constitui ilícito penal não amnistiado, nem verificação se a sanção aplicável a tal ilícito é superior à sanção de suspensão.

Não forma apresentadas contra-alegações.

*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1. A sentença recorrida considerou aplicável aos presentes autos a amnistia consagrada pelo artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, julgando amnistiada a sanção disciplinar aplicada ao Autor, pelo que declarou a extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide.

2. A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (doravante “Lei da Amnistia”), estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

3. Desta amnistia ficam, porém, excluídas as infrações disciplinares que constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados por essa mesma lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão (artigo 6.º da citada Lei).

4. Em momento algum da sentença é identificada, descrita e analisada a infração disciplinar em causa para se poder concluir (ou não) se a mesma constitui ou não ilícito criminal não amnistiados por essa mesma lei, como é o caso do crime de Maus Tratos, nos termos do artigo 7.º n.º1 alínea a) ii) da referida Lei da Amnistia.

5. Na verdade, na própria fundamentação da sentença, a Mm.ª Juiz reconhece que a matéria em causa na infração disciplinar constituí ilícito penal, mas não diz qual, sendo este facto essencial para a aplicação, ou não, da Lei da Amnistia.

6. O artigo 6.º da Lei da Amnistia, salvo melhor opinião, não exige a condenação, mas apenas que as infrações disciplinares constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados por essa mesma Lei.

7. Sucede que, resulta da matéria indiciada no processo disciplinar junto aos autos que o ilícito disciplinar integrava também a prática do crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152.ºA, n.º1 alínea a) do Código Penal, o qual, nos termos do artigo 7.º n.º1 alínea a) ii) da referida Lei da Amnistia, não beneficia da amnistia.

8. Ou seja, atendendo apenas ao teor da sentença ficaria a desconhecer-se em absoluto qual o crime que o ilícito disciplinar em causa constitui e se o mesmo está excluído de perdão e amnistia, sendo tal facto essencial à decisão a proferir.

9. A sentença também não contém elementos que permitam apurar a idade do Autor à data da prática dos factos que constituíram a infração disciplinar, para permitir verificar se, caso a infração disciplinar constitua simultaneamente crime “amnistiável”, tal ilícito penal está efetivamente amnistiado (o que apenas aconteceria se tivesse entre 16 e 30 anos, nos termos do art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto).

10. Acresce ainda que não há quaisquer elementos na sentença que permitam aferir se à infração disciplinar em causa não é abstratamente aplicável sanção superior a suspensão, o que também é requisito de aplicação da Lei da Amnistia, nos termos do já citado artigo 6.º.

11. Face ao exposto, a sentença em crise viola claramente o disposto nos artigos 6.º e 7.º n.º1 alínea a) ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (“Lei da Amnistia”), por ter considerado amnistiado um ilícito disciplinar sem prova de que o mesmo não constitui ilícito penal não amnistiado, nem verificação se a sanção aplicável a tal ilícito é superior a suspensão.

12. Pelo que a sentença deverá ser revogada por violação da Lei e por omissão de pronuncia sobre factos essenciais, nos termos do artigo 615.º n.º1 alínea d) do CPC.

*
II –Matéria de facto.

Determina a alínea d) do n.º1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 1º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, invocado pelo Ministério Público, que a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Este preceito deve ser compaginado com a primeira parte do n.º2, do artigo 608º, do mesmo diploma: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

Conforme é entendimento pacífico na nossa jurisprudência e na doutrina, só se verifica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, a que aludem os citados preceitos, quando o juiz se absteve de conhecer de questão suscitada pelas partes e de que devesse conhecer (cfr. Alberto Reis, Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra 1984 (reimpressão), p.140; e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 11.9.2007, recurso 059/07, de 10.09.2008, recurso 0812/07, de 28.01.2009, recurso 0667/08, e de 28.10.2009, recurso 098/09).

O erro de direito ou no julgamento da matéria de facto não se integra no conceito de falta de fundamentação ou omissão de pronúncia.

O erro no enquadramento jurídico ou no julgamento da matéria de facto leva à revogação da sentença e não à declaração de nulidade, nos termos da invocada norma da alínea d), do n.º1 do artigo 615º do actual Código de Processo Civil.

Questões para este efeito são todas as pretensões processuais formuladas pelas partes, que requerem a decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os específicos de qualquer acto especial, quando realmente debatidos entre as partes (Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122º, página 112), não podendo confundir-se as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões, argumentos e pressupostos em que fundam a respectiva posição na questão (Alberto dos Reis, obra citada, 143, e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, volume III, 1972, página 228).

No mesmo sentido se orientou a jurisprudência conhecida, em particular os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.10.2003, processo n.º 03B1816, e de 12.05.2005, processo n.º 05B840; os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 21.02.2002, processo n.º 034852 (Pleno), de 02.06.2004, processo n.º 046570, e de 10.03.2005, processo n.º 046862.

No caso apenas importava, na perspectiva do Tribunal recorrido, conhecer da questão de retirar da recente da Lei da Amnistia os efeitos legais dela decorrentes para a presente acção. Trata-se de uma perspectiva errada, em nosso entender, como melhor veremos adiante. Mas não existe nulidade da sentença: esta alinhou os factos que entendeu suficientes para conhecer da única questão que, nessa perspectiva, importava conhecer.

Inexiste, portanto, nulidade da sentença por omisso de pronúncia.

Deveremos, assim, dar como provados os seguintes factos, constantes da decisão recorrida.

1. O Autor foi condenado, no âmbito de processo disciplinar, por despacho de 22.04.2014 – cfr. documento 1 junto com a petição inicial.

2. Ao Autor foi aplicada pena de suspensão de 150 dias – cfr. documento 1 junto com a petição inicial.

3. A factualidade, subjacente a tal condenação, ocorreu antes das 00.00horas de 19.06.2023 – o presente processo foi instaurado em 28.04.2015.

4. Não houve condenação penal nem há nota quanto a reincidência – cfr. documento junto com a contestação.

*
III - Enquadramento jurídico.

A decisão recorrida procedeu ao seguinte enquadramento jurídico:

“(…)

Cumpre, ainda, chamar à colação o disposto nos artigos 127.º e 128.º, n.º 2 do Código Penal, dos quais se extrai que a amnistia é uma causa de extinção da responsabilidade criminal, que “(…) extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança”.

Na senda da doutrina e jurisprudência que se debruçaram sobre este tema, refira-se que que amnistia pode ser própria, quando, aplicada antes da condenação definitiva, extingue o crime, operando, em consequência, a extinção do procedimento criminal e imprópria, quando opera após a condenação definitiva e faz cessar a execução da pena principal e penas acessórias (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 046137, de 18.05.1994).

Relativamente às infrações disciplinares, na linha do entendimento expresso no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 0262/12.0BELSB, de 16.11.2023: “I - A amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, tem eficácia ex-tunc, e faz desaparecer o objeto da ação que visa a anulação ou declaração de nulidade do ato que aplicou a pena disciplinar, determinando a inutilidade da respetiva lide.

[…]

Sem prejuízo dos efeitos de facto que, entretanto, se tenham consumado, nomeadamente os relativos ao cumprimento da pena, é entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina que a amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, determina o «esquecimento» da infração, extinguindo os respetivos efeitos com eficácia ex-tunc.

Daqui decorre, necessariamente, que a amnistia faz desaparecer também – retroativamente - o objeto da ação que visa a anulação ou declaração de nulidade do ato que aplicou a correspondente pena disciplinar.

Ora, se cessou a responsabilidade disciplinar do arguido, extinguindo-se os efeitos do ato que a efetivou, não subsiste nenhum interesse em determinar se o poder disciplinar prescreveu ou não antes da prática daquele ato, porque não existem outros efeitos jurídicos a extinguir para além daqueles que são extintos pela própria amnistia.
[…]”.

Na mesma linha de raciocínio, o acórdão do mesmo Tribunal de 20.12.2023, proferido no processo 0699/23.0BELSB, refere que:

“Desde logo porque a atribuição do efeito «ex tunc» à presente declaração de amnistia, única questão vertida nas conclusões da revista, aparenta estar bem decidida, até porque já tem a seu favor um recente aresto deste Supremo Tribunal - AC STA de 16.11.2023, processo nº0262/12.0BELSB que se pronunciou sobre a «questão» no âmbito da aplicação da mesma lei de amnistia - Lei nº38A/2023, de 02.08 - e segundo o qual, citamos, […] sem prejuízo dos efeitos de facto que, entretanto, se tenham consumado, nomeadamente os relativos ao cumprimento da pena, é entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina que a amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, determina o esquecimento da infracção, extinguindo os respectivos efeitos com eficácia ex-tunc. Daqui decorre, necessariamente, que a amnistia faz desaparecer também - retroactivamente - o objecto da acção que visa a anulação ou declaração de nulidade do acto que aplicou a correspondente pena disciplinar. Ora, se cessou a responsabilidade disciplinar do arguido, extinguindo-se os efeitos do acto que a efectivou, não subsiste nenhum interesse em determinar se o poder disciplinar prescreveu ou não antes da prática daquele ato, porque não existem outros efeitos jurídicos a extinguir para além daqueles que são extintos pela própria amnistia […]. A interpretação e aplicação da lei que foi feita no ponto 14 do acórdão recorrido tem, portanto, consistência jurídica, e não pode ser vista como manifestamente errada, de modo a «justificar» a admissão da presente revista com base na clara necessidade de uma melhor aplicação do direito.

Sem menosprezar a importância da questão trazida à revista, nomeadamente na sua «vertente paradigmática», constatamos, todavia, que ela se encontra suficientemente trabalhada pela doutrina e pela jurisprudência, não configurando actualmente questão particularmente complexa, de tratamento jurisprudencial obscuro, a necessitar de uma abordagem clarificadora pelo tribunal de revista, neste caso concreto. Ademais, e como já salientamos, a bem recente prolação de aresto, sobre o assunto, por este Supremo Tribunal, satisfaz não só a dita vertente paradigmática como concede à decisão que foi tomada no acórdão recorrido uma auréola de bom direito.

[…].

Com interesse, mencione-se, ainda, o acórdão, também, do STA, de 28.11.1995, proferido no processo n.º 036683, que estabelece que “[n]o caso de amnistia que abranja infracção disciplinar pela qual já exista pena aplicada, aquela não destrói os efeitos já produzidos”. E, ainda, a recomendação do Provedor de Justiça de 03.09.1997, a propósito das consequências da amnistia, destacando-se “a amnistia (seja ela própria ou imprópria) atinge o acto praticado, não na sua materialidade, mas nas suas consequências. Ou seja, o que se pretende na amnistia (própria ou imprópria) é só impedir que o agente agraciado sofra sanção em que poderia vir a ser ou em que já foi condenado, não apagando por isso mesmo o facto na sua materialidade naturalística”.

Destarte, mostrando-se preenchidos os pressupostos de que depende a amnistia, deve a mesma operar, o que se determina, nos termos do artigo 14º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, não obstando a tal, como decorre dos efeitos da amnistia que se analisaram supra, o pedido do Autor no sentido de lhe serem restituídos os direitos salariais correspondentes aos 150 dias de suspensão, que não cabe, nesta sede, apreciar.

(…)”.

Discordamos deste entendimento.

Desde logo não se aplica ao caso nenhuma da jurisprudência ou doutrina citada.

Não importa aqui saber se a Lei da Amnistia tem eficácia ex tunc ou ex nunc.

Importa determinar se o Tribunal podia ou não aplicar a Lei da Amnistia ao caso concreto, encontrando-se verificados todos os seus pressupostos, e se podia, com esse fundamento, não conhecer, no todo ou em parte, do objecto da acção, com fez.

Entendemos que não.

Os tribunais não são segunda instância administrativa sob pena de violação do princípio da separação de poderes consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

O objecto da decisão do Tribunal de Primeira Instância não é processo disciplinar em si – a que possa pôr termo por aplicação da Lei da Amnistia ou outra razão qualquer -, mas a decisão punitiva que pode, por exemplo, ter recusado a aplicação da Lei da Amnistia.

A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais.

Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08):

“Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.”

A ideia subjacente a este preceito é a seguinte: competente para aplicar as medidas previstas na Lei da Amnistia é quem aplicou a sanção criminal ou disciplinar.

Os juízes, em qualquer instância judicial, não são os juízes do “julgamento” da infracção nem da condenação. E apenas podem aplicar a Amnistia a sanções aplicadas nos processos judiciais, como decorre, a contrario, do citado preceito. Não podem aplicar a Lei da Amnistia, directamente, nos processos administrativos, disciplinares. Fazendo-o, violam o referido artigo 14.º da Lei da Amnistia e, com ele, o princípio constitucional da separação de poderes.

Sendo neste aspecto irrelevante a concordância das partes, por não terem reagido, quanto à aplicação da Lei da Amnistia à infração disciplinar, directamente, pelo Tribunal “a quo”, por a lei ser imperativa e, por isso, não estar na disponibilidade das partes.

E sendo certo que retirar efeitos jurídicos para o processo judicial da Lei da Amnistia aplicável ao processo disciplinar é aplicar a Lei da Amnistia ao processo administrativo.

Os artigos 6º e 14º da Lei da Amnistia de 2023, na interpretação feita na decisão recorrida, são inconstitucionais, por violação deste princípio constitucional, da separação de poderes.

Pelo que não cabia ao Tribunal recorrido aplicar à acção judicial a Lei da Amnistia, antes se impunha conhecer de mérito, logo por aqui.

Em todo o caso, também não poderia aplicar aqui a Lei da Amnistia por, tal como defende o Ministério Público, Recorrente, não estarem verificados os respectivos pressupostos.

Desde logo não está demonstrado nos autos – nem a sentença descreve e analisa a infração disciplinar em causa - que esta infracção constitui ilícito criminal amnistiado pela Lei da Amnistia; sendo caso de crime de maus tratos não estará amnistiado.

Como dispõe o artigo 7.º, n.º1, alínea a), subalínea ii) da referida Lei da Amnistia:

“Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

a) No âmbito do crime contra as pessoas, os condenados por:
(…)
ii) Crimes de violência doméstica e de maus-tratos …
(…)”

Dos únicos elementos que constam dos autos, o teor do acto impugnado, bem como da informação e do parecer jurídico em que se apoiou, não resultam factos a partir dos quais se possa qualificar a infracção disciplinar como infracção criminal e qual, para saber se a infracção se enquadra, ou não, nas infracções susceptíveis de serem amnistiadas ao abrigo desta lei.

De igual modo dos elementos que constam dos autos não é possível determinar se a infracção está amnistiada face à pena aplicável em abstracto. Sendo aplicável à infracção disciplinar, em abstracto, sanção superior a suspensão, não são aplicáveis as medidas previstas na Lei da Amnistia.

Dispõe o artigo 6º da Lei da Amnistia (com sublinhado nosso):

“São amnistiadas as infracções disciplinares … que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão …”

O termo “aplicável” (em vez de “aplicada”) refere-se inequivocamente à sanção em abstracto e não à sanção aplicada em concreto à infracção.

Assim como não resulta dos autos a idade do Autor. Pressupondo que tem mais do que 16 anos (face às funções que exerce) não está documentado que tenha menos de 30 anos – artigo 2º da Lei da Amnistia.

Quanto ao pedido do Autor no sentido de lhe serem restituídos os direitos salariais correspondentes aos 150 dias de suspensão, não se compreende a afirmação feita na decisão recorrida de que “não cabe, nesta sede, apreciar”.

Não existe outra sede para apreciar este pedido, dirigido ao Tribunal na acção judicial, que não seja a decisão de mérito no processo judicial.

Ainda que fosse aplicável no processo judicial e ao caso concreto a Lei da Amnistia - e não é, como vimos – esta Lei e os seus efeitos em nada bulem com o pedido deduzido na acção principal.

Isto porque este pedido se situa para além da mera anulação do acto. Pressupõe a declaração de invalidade do acto impugnado, mas não se reduz a este pedido. Vai para além desse pedido.

Assim a aplicação da Lei da Amnistia apenas teria a virtualidade – se fosse aplicável ao processo judicial – de fazer desaparecer da ordem jurídica o acto punitivo e, assim, o objecto da acção nessa parte.

Não teria a virtualidade de fazer desaparecer da ordem jurídica a relação jurídica em litígio cuja causa de pedir se traduz na ilegalidade do acto – essa permanece apesar da aplicação da Lei da Amnistia- e nos prejuízos causados com a sua prática.

De resto a Lei da Amnistia destina-se a impedir a punição do infractor que tenha cometido uma infracção amnistiada. Não se destina a impedir que esta seja ressarcido por acto punitivo ilegal.

O que determina a procedência do recurso interposto pelo Ministério Púbico, por erro da decisão recorrida, de determinar a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, face à Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08).

Termos em que, na revogação da decisão recorrida, seja imperioso que os autos prossigam os seus normais termos na Primeira Instância para conhecimento de mérito, se nada mais a tal obstar.

*

IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO pelo que:

1. Revogam a decisão recorrida.

2. Determinam a baixa dos autos para que prossigam os seus normais termos para conhecimento de mérito se nada mais a tal obstar.

Não é devida tributação em qualquer das instâncias.

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Porto, 17.05.2024


Rogério Martins;

Paulo Ferreira de Magalhães, com a declaração de voto que se segue:
Declaração de voto:
Voto a decisão, mas não acompanho a fundamentação de direito vertida no projecto de Acórdão, por duas ordens de razões.

Por um lado, por considerar que a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, em face do disposto no seu artigo 11.º - parte inicial -, é imediatamente aplicável pelo Tribunal a quo, enquanto instância de julgamento, e que por erro de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito que assim venha a ser julgado ocorrer por parte do Tribunal de recurso, deve este em substituição [sendo-lhe possível apreciar da ocorrência dos necessários requisitos], proceder à sua aplicação.

Por outro lado, por considerar que a amnistia das infracções disciplinares e das infracções disciplinares militares, praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar, não está indexada a que o visado tenha entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto integrativo de infracção.

Isabel Costa, com a declaração de voto que se segue;
Declaração de voto:
Voto a decisão, e os fundamentos apenas na última parte.