Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01037/19.1BEAVR-S1
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/11/2024
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:LUÍS MIGUEIS GARCIA
Descritores:PERÍCIA;
Sumário:
I) – Deverá a perícia ser viabilizada desde que se reconheça que a mesma não é impertinente nem dilatória; impertinente por não respeitar aos factos da causa, ou dilatória, por, respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe (art. 388.º CC).

II) - Sem embargo, não se confunde o juízo da serventia do meio de prova aos factos alegados (se relativamente a eles a perícia é pertinente ou dilatória), com, noutro plano, a relevância desses factos e a necessidade da abertura de uma fase de instrução para a decisão do mérito da causa segundo as plausíveis soluções de direito.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:

«AA» (Rua ..., freguesia ..., concelho ..., ... ...), em «ACÇÃO ADMINISTRATIVA PARA IMPUGNAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS» intentada contra Município ... (Praça ..., Apartado ...00, ... ...), interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF de Aveiro, o qual entendeu que “mostrando-se a prova pericial requerida impertinente para prova dos factos alegados que o Autor pretende provar com a mesma, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 476.º, n.º 1, do CPC, indefere-se a perícia requerida”.

O recorrente conclui:

1- Face ao disposto nos artigos 388.º do Código Civil, 476.º, n.º 1 do CPC e 91.º, n.º 3 do CPTA, a prova pericial só pode ser indeferida quando se mostre impertinente ou dilatória e claramente desnecessária.
2- O que não é o caso, uma vez que as questões de facto colocadas em apreciação e essenciais para a decisão de mérito da ação, exigem um conhecimento técnico especializado que apenas uma perícia pode trazer.
3- Há factos alegados que só através de perícia, face à exigência de conhecimentos especializados, se podem provar.
4- E além do mais é ainda através desses factos que o julgador pode inferir deduções conclusões que lhe permitem chegar a outros factos. Ora saber se para executar as obras que se mostram necessárias no prédio se deve proceder à elaboração dum projeto, dum caderno de encargos, dum plano de segurança e que tal exige o recurso a técnicos, é algo que se infere: Pelas condições atuais do prédio. Pelas obras que se mostra necessárias realizar. Pela “legis artis” do sector. Factos que para serem apurados necessitam de conhecimentos técnicos. Assim, a não realização da perícia, impede-nos de provar factos essenciais, técnicos e ainda de provar ainda outros que se inferem deles.
5- O despacho ao indeferir a prova pericial está a impedir que o autor possa contradizer os relatórios técnicos juntos pela ré com o P.A. e assim viola o principio do contraditório e o direito do acesso à Justiça.
6- O despacho recorrido ao indeferir a perícia esta á coartar o direito à prova do recorrente, violando o direito a um processo equitativo, previsto no n.º 4 do artigo 20.º da CRP, no n.º 1 do artigo 2.º do CPTA e no artigo 6.º da CEDH.
7- Foram violados os artigos 388.º do Código Civil, 476.º, n.º 1 do CPC e 91.º, n.º 3 do CPTA, CPTA e ainda o direito à prova ínsito no princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.° da CRP)

Contra-alegou o Município, concluindo “que o despacho recorrido não merece qualquer censura, porque a perícia requerida não tinha objecto admissível e pertinente, e da mesma nada resultaria que auxiliasse à análise dos pressupostos de facto das decisões impugnadas. Deste modo não ocorreu qualquer violação das normas indicadas, e o recurso não merece provimento.”.

A contra-interessada «BB» contra-alegou, entendendo que «deverá a Apelação ser totalmente improcedente e consequentemente ser confirmado na íntegra o Despacho proferido pelo Tribunal “a quo”.».

Bem assim a contra-interessada «CC», em igual sentido.
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A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta foi notificada nos termos do art.º 146º, nº 1, do CPTA, emitindo parecer no sentido do provimento do recurso.
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Dispensando vistos, cumpre decidir.
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Circunstancialmente:
1º) - Veio o Autor/recorrente com a presente acção - cujos termos aqui se têm presentes - “impugnar dois atos administrativos:
1- O despacho do senhor vereador da Câmara Municipal ...: «DD», constante do ofício datado de 2019/10/21, que se junta como doc. n.º 1 e aqui se dá por reproduzido,
2- O despacho do senhor Presidente da Câmara Municipal ..., constante do oficio datado de 2019/10/22, que se junta como doc. n.º 2 e aqui se dá por reproduzido.” – art.º 1º da p. i..
2º) - Actos, respectivamente, assim documentados (extracto):
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
3º) - Requerendo a final da p. i. “a perícia ao prédio a fim de serem averiguadas as suas condições de segurança e recuperação, nomeadamente para prova do alegado em 38.º a 42.º, 44.º, 46.º, 47.º e 48.º, sem prejuízo de se apresentarem quesitos no momento próprio”.
4º) - O Mmº juiz lavrou o seguinte despacho em 28/09/2020:
«(…)
Petição inicial aperfeiçoada:
Notifique o Autor para, no prazo de 10 (dez) dias, indicar, na sua completude, as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da perícia requerida.
(…)».
5º) - O autor apresentou peça processual de resposta.
6º) - Em 28/12/2022 foi dada a decisão recorrida, nestes termos:
«O Autor, na Petição Inicial, requereu uma perícia ao prédio em causa nos autos a fim de serem averiguadas as suas condições de segurança e recuperação, nomeadamente para prova do alegado em 38.º a 42.º, 44.º, 46.º, 47.º e 48.º da Petição Inicial.
Notificado para tal, por requerimento de fls. 562-564 do SITAF veio o Autor indicar as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da perícia requerida.
O Réu Município ..., por requerimento de fls. 574-575, veio opor-se à realização da perícia.
Sendo assim, cumpre agora apreciar se a perícia requerida é impertinente ou dilatória, nos termos e para os efeitos do artigo 476º do CPC, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA.
O direito à prova é um dos componentes do direito de acesso ao direito e aos tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos que está constitucionalmente consagrado, conforme emerge do art.º 20.º da CRP.
Este direito faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados, tanto para a prova dos factos principais da causa, como também para a prova dos factos instrumentais ou acessórios, não se destinando a utilização dos meios de prova apenas à prova dos factos que a parte tem o ónus de provar, mas também a pôr em causa os factos que são desfavoráveis às suas pretensões, que, em princípio, não terão o ónus de provar, considerando as várias soluções plausíveis de direito.
Portanto, as perícias, como todas as demais provas, servem nos processos para provar factos alegados.
Mas, por outro lado, a prova pericial só se justifica quando os factos alegados, sobre os quais os peritos e técnicos têm de se pronunciar, não possam ser percecionados direta e exclusivamente pelo juiz, por este não dispor de conhecimentos científicos ou técnicos que permitam responder ao perguntado.
Como refere Antunes Varela em “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, a prova pericial, pág. 576, “tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem”.
Dito isto, nos artigos 38.º a 42.º, 44.º, 46.º, 47.º e 48.º da Petição Inicial (factos alegados sobre os quais o Autor pretende que venha a incidir a perícia), o Autor alega, muito em síntese, factos relacionados com as condições de segurança e recuperação do prédio em questão.
No entanto, o alegado nos artigos 38º a 42º baseia-se numa perícia técnica já elaborada por um engenheiro civil em 12 de novembro de 2019 que o Autor juntou sob o doc. 14 da PI.
Por outro lado, os artigos 44º e 46º a 48º não incluem factos que não possam ser percecionados direta e exclusivamente pelo juiz e, portanto, que necessitem de prova pericial.
Ademais, efetivamente, estando em causa nos autos, nomeadamente, a apreciação do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto relativamente a atos administrativos proferidos em 21 e 22 de outubro de 2019, a perícia a realizar, neste momento, não poderá avaliar com precisão os pressupostos de facto dos quais a Administração partiu, à época, para proferir os atos impugnados, já que não se pode garantir que o prédio em questão esteja hoje nas mesmas condições.
Por outro lado, compulsado o teor de toda a documentação junta aos Autos, conclui-se que os factos alegados sobre os quais o Autor pretende que venha a incidir a perícia são suscetíveis de prova por outros meios, capaz de ser percecionada direta e exclusivamente pelo juiz, não sendo necessário acrescer-lhe prova pericial.
Pelo exposto, mostrando-se a prova pericial requerida impertinente para prova dos factos alegados que o Autor pretende provar com a mesma, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 476.º, n.º 1, do CPC, indefere-se a perícia requerida.».
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A apelação:
Não vem em causa a oportunidade do despacho recorrido, embora não deixe aqui de se notar e de acabar por condicionar.
Conforme resulta dos artigos 388.º e 389.º, ambos do Código Civil, a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial [Cfr. artigo 390.º do CC], sendo que, a força das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal.
Conforme se dispõe no artigo 475.º, n.º 1, do CPC, no caso de a perícia ser requerida por alguma das partes, a requerente, indica logo, sob pena de rejeição, o respectivo objecto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da requerida diligência.
Nos termos do seu artigo 476.º, entendendo que a diligência não é impertinente nem dilatória, o Juiz ouve a parte contrária sobre o objecto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição, cabendo ao Juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respectivo objecto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.
Portanto, deverá a perícia ser viabilizada desde que se reconheça que a mesma não é impertinente nem dilatória; impertinente por não respeitar aos factos da causa, ou dilatória, por, respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe (art. 388.º CC).
Nas palavras de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 262), a prova pericial [t]raduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas.”.
Motiva o recurso o despacho supra transcrito.
Que não pode manter-se.
No ponto que aqui interessa, a posição do Autor é a de que “os despachos, que são o objecto da impugnação, padecem de erro grosseiro, uma vez que determinam a realização de obras de conservação: recuperação da cobertura do edifício e substituição de todos os elementos danificados ou em mau estado de conservação, quando para realizar tal não é possível com apenas obras de conservação (art.º 36º da p. i.), asseverando que as obras exigidas pelo actual estado do prédio não são desse tipo, mas sim obras de alteração e obras de reconstrução, face ao que vem definido no RJUE (art.ºs 37º e 38º da p. i.), assinalando que conforme “perícia técnica elaborada por um engenheiro civil que se junta como doc. n.º 14 e aqui se dá por integralmente reproduzida, o prédio padece de vícios que impõem rigorosas obras”, extratando tal texto com narrativa das circunstâncias (art.º 39º da p. i.), e tirando que “as obras necessárias são obras que, como supra se demonstrou exigem demolição do telhado e de algumas paredes que não é já possível de recuperar e a sua reconstrução com a reconstituição da estrutura das fachadas introduzindo elementos que tornem a sua estrutura mais resistente, sem que de tal resulte aumento da área total de construção, da área de implantação ou da altura da fachada” (art.º 44 da p. i.), não sendo as obras determinadas pelos actos impugnados “as adequadas a repor as condições de habitabilidade, segurança e salubridade” (art.º 46º da p. i.), com um “prazo de execução manifestamente irrealista” (art.º 47º da p. i.), em “tarefa para vários meses” (art.º 48º da p. i.).
Como se refere no despacho impugnado, “nos artigos 38.º a 42.º, 44.º, 46.º, 47.º e 48.º da Petição Inicial (factos alegados sobre os quais o Autor pretende que venha a incidir a perícia), o Autor alega, muito em síntese, factos relacionados com as condições de segurança e recuperação do prédio em questão.”.
Assim, como nele próprio se reconhece, confrontando-se “factos alegados sobre os quais o Autor pretende que venha a incidir a perícia”, ela respeita aos factos da causa; mesmo que (até também) contidos numa “perícia técnica elaborada por um engenheiro civil”; e a respeito de matéria fora da “cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, inclusive a respeito dos “artigos 44º e 46º a 48º”, mesmo se imbuídos de juízos de facto, que não deixam de se sujeitar a regra da liberdade de julgamento.
Ofende direito à prova que sirva de fundamento a uma rejeição a circunstância de até poderem coexistir outros meios de prova, em contrário ao que até de enunciação de princípio o próprio tribunal “a quo” colocou.
Pode, pois, projectar-se que, quanto ao seu âmbito - não sendo impertinente nem dilatória -, como meio a alcançar uma resposta, a perícia é admissível.
E foi isso que o tribunal “a quo” se propôs determinar, se a perícia “é impertinente ou dilatória, nos termos e para os efeitos do artigo 476º do CPC, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA.”.
E nesta medida, também agora, o julgado que resulta.
Se a perícia proposta se não destina a “avaliar com precisão os pressupostos de facto dos quais a Administração partiu, à época, para proferir os atos impugnados”, antes as obras exigidas pelo actual estado do prédio, a questão que aí se coloca não é a da serventia do meio de prova aos factos alegados (se relativamente a eles a perícia é pertinente ou dilatória), antes, sem se confundir e noutro plano, à relevância desses factos e a necessidade da abertura de uma fase de instrução para a decisão do mérito da causa segundo as plausíveis soluções de direito.
O que, na sã condução do processo e dos seus momentos, não fica postergado.
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Acordam, pelo exposto, em conferência, os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida.
Custas: pelo réu e contra-interessada.

Porto, 11 de Outubro de 2024.


Luís Migueis Garcia
Ana Paula Martins
Catarina Vasconcelos