Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00050/22.6BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/06/2024
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:PAULO FERREIRA DE MAGALHÃES
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; INFRACÇÃO DISCIPLINAR;
PENA DISCIPLINAR DE SUSPENSÃO CUMPRIDA;
APLICABILIDADE DA LEI N.º 38-A/2023, DE 02 DE AGOSTO; INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE; EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário:
1 - Conforme se extrai do corpo da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, e em torno da amnistia de infracções disciplinares, o legislador dispôs que a mesma deve ser aplicada se as infracções disciplinares, em suma, tiverem sido praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, se não constituírem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei, e caso a sanção aplicável não seja superior a suspensão [Cfr. artigos 2.º, n.º 2, alínea b), 6.º e 7.º do referido diploma legal].

2 - Da amnistia de infrações disciplinares prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, decorre o efeito essencial e típico de qualquer amnistia – impedir que o agente agraciado sofra a sanção que lhe poderia vir a ser [ou que já lhe foi] aplicada pela prática de uma infração –, pelo que a conformação concreta dos respetivos efeitos fica dependente das regras estatuídas no regime jurídico disciplinar aplicável, enquanto legislação subsidiária ou complementar.

3 - Dada a superveniência de um diploma legal que por si é determinante da extinção da responsabilidade disciplinar do arguido [o Autor ora Recorrente], tal reveste aptidão para que, em face do patenteado nos autos e na Lei, seja declarada a amnistia da infracção, tornando-se assim inútil, nessa parte, a continuação da lide, podendo já não ser, todavia, fundamento que seja determinante da extinção da instância.

4 - Quando o Tribunal se confronte com uma pena disciplinar que deva ser amnistiada, deve então ponderar, em obediência ao disposto no artigo 130.º do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, atinente ao princípio da limitação dos actos [segundo o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis], por que termos e pressupostos é que se justifica a continuação da sua instrução, no sentido de ser conhecido do mérito do pedido, pois que, convém lembrar, justaposta à aplicação da pena disciplinar está todo um repositório jurídico e factual em que se apoiou o autor do acto sancionatório para efeitos da sua decisão, quanto ao qual o visado não concorda, sendo seu [do Autor] o impulso de vir a Tribunal impugnar a sua validade, e sua pretensão, pelo menos, a sua anulação, fundada em ocorrência de nulidade ou em erro nos pressupostos de facto e/ou de direito.

5 - Em face da aplicação positiva da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto, e devendo ser declarada amnistiada a infracção disciplinar, o Autor tem direito a fazer prova da sua inocência tendo por referência a factualidade que lhe foi imputada pela Administração e que esteve na base da aplicação da sanção disciplinar, ou seja, o direito a que a pretensão por si deduzida na impugnação judicial da decisão punitiva seja apreciada no seu mérito potencial, quando subjacente à sua motivação para efeitos de entender não dever ser extinta a instância, estiver o pressuposto de que não praticou qualquer ilícito de natureza disciplinar.

6 – Determinar a extinção da instância, quando tenha sido requerida a sua continuação, por não se conformar o interessado com a pena disciplinar que lhe foi aplicada, constitui a final uma limitação do direito do Autor e a consagração de uma absoluta impossibilidade de poder ver revertida essa decisão, ficando sempre a pairar sob a sua figura o véu da eventualidade do cometimento dos factos integradores do ilícito, mas que veio a ser amnistiado.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:


I - RELATÓRIO


«AA» [devidamente identificado nos autos] Autor na acção que intentou contra o Ministério da Administração Interna [também devidamente identificado nos autos], inconformado com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, pela qual, entre o mais, foi julgada verificada a extinção da sua responsabilidade disciplinar, e consequentemente (i) declarado extinto o Processo Disciplinar n.º 2017PRT00207DIS contra si instaurado, (ii) declarados cessados os efeitos da pena disciplinar que lhe foi aplicada no âmbito do sobredito Processo Disciplinar n.º 2017PRT00207DIS, e (iii) declarada a instância extinta, por impossibilidade superveniente da lide, veio interpor recurso de Apelação.

*

No âmbito das Alegações por si apresentadas, elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

“[…]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida] CONCLUSÕES
1.ª O presente recurso jurisdicional foi interposto contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela em 29 de Dezembro p.p. que extinguiu a instância por inutilidade superveniente da lide por entender que, operando a amnistia prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto ex vi legis e sendo de considerar amnistiada a infracção disciplinar que originou o acto punitivo impugnado, não pode o processo prosseguir para conhecimento dos vícios assacados ao mesmo.
2.ª Deverá dizer-se que com a presente acção o Autor, ora Recorrente, pretendia demonstrar que não praticou qualquer infracção e limpar o seu bom nome, bem como ver restituídas as remunerações que deixou de auferir pelo período de 150 dias de suspensão, através da anulação jurisdicional do acto punitivo,
3.ª A questão fundamental em apreço no presente recurso consiste em saber se, em caso de amnistia de sanção disciplinar já cumprida, essa amnistia torna a inútil a lide ou se, pelo contrário, o amnistiado tem direito a que o processo prossiga para eliminação da sanção e dos efeitos por ela já produzidos.
4.ª Sempre se deverá acrescentar que se aceita expressamente o entendimento do Tribunal a quo segundo o qual "(...) no âmbito da amnistia, tudo se passa como se a infracção pura e simplesmente desaparecesse do ordenamento jurídico, no que se está perante uma abolição retroactiva da mesma, pois, operando ex tunc, a amnistia incide sobre a pena e, também, sobre o acto que, por acção ou por omissão, constitui a infracção, que, desta forma, deve ser havido como não praticado e, consequentemente, eliminado do registo. " (v. pág. 5 da sentença proferida em 29 de Dezembro de 2023), pelo que se pretende deixar bem claro que o presente recurso não abrange este segmento da sentença.
5.ª Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo começa por incorrer em manifesto erro de julgamento erro quando julgou extinta a instância por impossibilidade da lide, por considerar que a amnistia da infracção fez desaparecer o objecto do litígio, quando, na realidade, o que o Recorrente pretendia era demonstrar que não praticou qualquer infracção e limpar o seu bom nome, bem como ver restituídas as remunerações que deixou de auferir pelo período de 150 dias de suspensão, através da anulação jurisdicional do acto punitivo.
6.ª Ora, é pacífico na nossa jurisprudência que a lide se torna inútil (…) quando ocorre um facto ou circunstância, ulterior à sua instauração, que toma desnecessário que sobre ela recaia pronúncia judicial, nomeadamente porque o pedido formulado já foi atingido por outro meio. " (v.Acórdão do STA de 28 de Setembro de 2017, Proc. n.0 049/17, disponível em www.dgsi.pt) ou quando “(…) por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de ter todo o interesse e utilidade, conduzindo, por isso, à extinção da instância (art.º 287º, al. e), do Código de Processo Civil) (v. Acórdão do STA de 9 de Janeiro de 2013, Proc. n.0 01208/12, disponível em www.dgsi.pt).
7.ª Sucede que, não só a lei da amnistia não veio satisfazer a pretensão do Recorrente ou sequer trazer uma solucão para o concreto litígio, como seguramente continuam por acautelar os efeitos iá produzidos pela aplicação da sanção disciplinar — efeitos que se produziram efectivamente e que a decisão anulatória peticionada pelo Autor era susceptível de eliminar — razão pela qual, não só é inequívoco que o Recorrente mantém todo o interesse no prosseguimento dos presentes autos, como é inegável que a sua procedência da acção lhe teria utilidade - designadamente ver restituídas as remunerações que deixou de auferir pelo período de 150 dias de suspensão, ver estes dias contabilizados para efeitos de antiguidade e gozo de férias, ver limpo o seu registo disciplinar, o que só é possível através da anulação jurisdicional do acto punitivo impugnado.
8.ª Por outro lado, o Tribunal a quo incorre em erro de julgamento quando julga extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, uma vez que ao passo que afirma expressamente que a amnistia das infrações disciplinares tem efeitos retroactivos, e que "tudo se passa como se a infracção pura e simplesmente desaparecesse do ordenamento jurídico", não condena a entidade demandada, ora recorrida, a eliminar os efeitos da decisão impugnada.
9.ª Com efeito, ao limitar-se a declarar extinto o procedimento disciplinar e a declarar cessados os efeitos da sanção disciplinar, o Tribunal a quo permitiu a manutenção dos efeitos lesivos já produzidos na esfera do Recorrente pelo cumprimento integral da sanção disciplinar, sendo que, enquanto tais efeitos perdurarem na ordem jurídica, a lide sempre será útil e possível justamente para eliminação dos efeitos já produzidos, tanto mais que, ao deduzir uma pretensão anulatória o que o Recorrente pretendia era precisamente a eliminação destes efeitos.

Nestes termos,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença em recurso e julgada totalmente procedente por provada a acção e os pedidos nela formulados pela A.
Assim será cumprido o Direito e feita JUSTIÇA
[…]”

**

O Recorrido Ministério da Administração Interna não apresentou Contra alegações.

*

O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto, fixando os seus efeitos.

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O Ministério Público junto deste Tribunal Superior emitiu parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional, em suma, no sentido do seu provimento, em ordem ao prosseguimento dos autos.

***

Com dispensa dos vistos legais [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir.

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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas Alegações - Cfr. artigos 144.º, n.º 1 do CPTA, e artigos 639.º e 635.º n.ºs 4 e 5, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA [sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem deva conhecer oficiosamente], sendo que, de todo o modo, em caso de procedência da pretensão recursiva, o Tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida pois que, ainda que venha a declarar a sua nulidade, sempre tem de decidir [Cfr. artigo 149.º, n.º 1 do CPTA] “… o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito.”, reunidos que estejam os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas.

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III - FUNDAMENTOS
IIIi - DE FACTO
Do processado nestes autos, resultam as seguintes incidências processuais:

1 – Já depois de finda a fase dos articulados, no dia 04 de outubro de 2023, o Mm.º Juíz do Tribunal a quo proferiu o despacho - Cfr. fls. 183 dos autos, SITAF - que para aqui se extrai como segue:

“[…]
Nos presentes autos vem impugnado o despacho proferido a 08.04.2020 pelo Director Nacional Adjunto para a Unidade Orgânica de Operações e Segurança da Polícia de Segurança Pública, que, no âmbito de processo disciplinar, aplicou ao Autor a pena disciplinar de suspensão por 150 dias, e, ainda, o Despacho do Ministro da Administração Interna de 12.10.2021, que negou provimento ao recurso hierárquico que o Autor interpôs daquela decisão.
A 01.09.2023, entrou em vigor a Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, que, por ocasião da realização, em Portugal, da Jornada Mundial da Juventude, estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações.
Sob a epígrafe Âmbito, consigna o artigo 2.º, n.º 2, alínea b), da referida Lei que (…) Estão igualmente abrangidas pela presente lei as (…) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º (…). O artigo 6.º da mesma Lei estabelece que(…) São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar (…).
Significa isto que estão abrangidas pela amnistia as infracções disciplinares para as quais a Lei não preveja, em abstracto, pena disciplinar superior à de suspensão, desde que tenham sido praticadas até às 00:00 do dia 19.06.2023 e não constituam, simultaneamente, infracções penais não amnistiadas ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
No caso em apreço, afigura-se que a infração disciplinar que, alegadamente, o Autor cometeu e que motivou as decisões impugnadas não constitui infracção penal que que tenha sido ou seja susceptível de ser amnistiada ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, e não é punível com pena disciplinar superior à de suspensão, de harmonia, até, com o enquadramento jurídico que lhe foi dado pela Entidade Demandada, na qualidade de titular do poder disciplinar.
Por tal, afigura-se igualmente, com meridiana clareza, que, nos presentes autos, a infração disciplinar que, pelas decisões impugnadas, foi objecto sanção disciplinar é de ser considerada amnistia, de harmonia com o disposto nos sobrecitados artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
De acordo com a jurisprudência emanada do Venerando Supremo Tribunal Administrativo (STA), a amnistia é havida como uma causa de inutilidade superveniente da lide (cf., inter alia, o acórdão do STA de 31.05.2000, no Processo n.º 041298), o que, por sua vez e de harmonia com o disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC, é causa de extinção da instância.
Todavia, em observância do princípio do contraditório (cf. o artigo 3.º, n.º 3, do CPC), notifique as partes para, no prazo de 10 dias (cf. o artigo 29.º, n.º 1, do CPTA), querendo, se pronunciarem, com a advertência de que o silêncio será valorado como não oposição à extinção da presente instância, por inutilidade superveniente da lide decorrente de amnistia.
[…]”

2 – Nessa sequência, o Autor veio a emitir pronúncia - Cfr. fls. 189 dos autos, SITAF, pela qual, em suma pugnou pela amnistia da infracção, e pela continuidade dos autos tendo em vista a anulação dos efeitos já produzidos pela pena disciplinar.

3 - Nessa sequência, no dia 29 de dezembro de 2024 foi proferida a Sentença recorrida, pela qual, a final e em suma, foi julgada extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide – Cfr. fls. 200 dos autos, SITAF.

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IIIii - DE DIREITO

Está em causa a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, que precedendo a audiência prévia do Autor e do Réu, e tendo subjacente a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, veio a julgar verificada a extinção da sua responsabilidade disciplinar do Autor, e consequentemente declarado extinto o Processo Disciplinar n.º 2017PRT00207DIS contra si instaurado, declarados cessados os efeitos da pena disciplinar que lhe foi aplicada no âmbito do sobredito Processo Disciplinar n.º 2017PRT00207DIS, e declarada extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide, quanto ao que o Autor ora Recorrente não se conforma.

Como assim deflui da Sentença recorrida, o Tribunal a quo não conheceu do mérito do pedido formulado pelo Autor, por ter julgado em suma, que tendo a infracção disciplinar sido praticada até às 00,00 horas do dia 9 de junho de 2023, que tal era determinante da aplicação da amnistia prevista naquela diploma legal, ocorrendo dessa forma a extinção da responsabilidade disciplinar do Autor ora Recorrente, da pena aplicada e dos seus efeitos, o que tornou assim inútil o prosseguimento da lide, por ter desaparecido o objecto do litígio e tornando a acção impossível, por falta de objecto.

Neste conspecto, para aqui extraímos a essencialidade da fundamentação de direito aportada pelo Tribunal a quo na Sentença recorrida, como segue:

Início da transcrição
“[…]
No caso em apreço, está em causa o despacho do Ministro da Administração Interna de 12.10.2021, que negou provimento ao recurso hierárquico que o Autor interpôs do despacho do Director Nacional Adjunto para a Unidade Orgânica de Operações e Segurança da PSP de 08.04.2020, que, no âmbito do Processo Disciplinar n.º 2017PRT00207DIS, lhe aplicou a pena disciplinar de suspensão por 150 dias.
Estamos, pois, perante infracção disciplinar que, alegadamente, foi praticada pelo Autor antes das 00:00 horas do dia 19.06.2023 e que, de acordo com o próprio enquadramento jurídico que lhe foi dado pela Entidade Demandada, não é punível com pena disciplinar superior à de suspensão e não constitui infracção penal susceptível de ser ou de não ser amnistiada ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
Assim, nos termos que vêm de ser expendidos e por força do que resulta da conjugação das normas dos artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, e 127.º, n.º 1, e 128.º, n.º 2, do CP, é de declarar extinta a responsabilidade disciplinar do Autor e, consequentemente, é de declarar extinto o procedimento disciplinar e de fazer cessar os efeitos da decisão impugnada, o que se decidirá.
DA IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sob a epígrafe Causas de extinção da instância, consigna o artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil (CPC), aqui supletivamente aplicável por via do artigo 1.º do CPTA, que (…) A instância extingue-se com (…) A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (…).
Em regra, a instância extingue-se com o trânsito em julgado da sentença ou do acórdão, qualquer que seja o seu conteúdo, porque põe termo ao processo. Contudo, de harmonia com a sobredita norma do artigo 277.º, alínea e), do CPC, entre as causas de extinção da instância figuram, também, a impossibilidade ou a inutilidade superveniente da lide.
A impossibilidade superveniente da lide dá-se quando, já em momento posterior ao da propositura da acção, se verifica um facto que substancia o desaparecimento dos sujeitos ou o desaparecimento do objecto do litígio, tornando a acção impossível, por falta de sujeitos ou por falta de objecto.
A inutilidade superveniente da lide dá-se quando, já em momento posterior ao da propositura da acção e por qualquer meio diverso desta, tem lugar um facto que substancia a satisfação do efeito jurídico almejado pelo autor ou a satisfação do seu pedido. Neste caso, deixa de ter qualquer efeito útil a decisão judicial ou sentença a proferir no futuro, tornando-se a lide desnecessária, pois aquilo que o autor pretendia ou pedia já se mostra alcançado por outros meios.
Em qualquer dos casos, não sendo possível ou não sendo útil dar satisfação à pretensão que o demandante formula em juízo, o processo não deve continuar. Deve cessar ou extinguir-se, pois que se tornou impossível ou desnecessário.
Assim, nestes casos, o Tribunal não conhece do mérito da causa, limitando-se a declarar a extinção da instância, por impossibilidade ou por inutilidade superveniente da lide, consoante o caso.
Vertendo estas considerações ao caso que nos ocupa, verifico que, nos presentes autos, o Autor peticionou a anulação do despacho do Ministro da Administração Interna de 12.10.2021, que negou provimento ao recurso hierárquico que interpôs do despacho do Director Nacional Adjunto para a Unidade Orgânica de Operações e Segurança da PSP de 08.04.2020, que, no âmbito do Processo Disciplinar n.º 2017PRT00207DIS, lhe aplicou a pena disciplinar de suspensão por 150 dias, constatando, agora, que, a 01.09.2023, entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, ao abrigo da qual, nos termos já atrás expendidos, a responsabilidade disciplinar do Autor será declarada extinta, pelo que, consequentemente, será declarado extinto o procedimento disciplinar e serão cessados os efeitos da decisão impugnada.
Deste modo, já depois de proposta a acção, mas antes de qualquer decisão, verificouse um facto (a amnistia) que substancia o desaparecimento do objecto do litígio, tornando a acção impossível, por falta de objecto.
Assim, já não é possível, por falta de objecto, dar satisfação à pretensão que o Autor formulou em juízo, pelo que o processo não deve continuar, mas, sim, cessar ou extinguir-se, pois que se tornou impossível.
Consequentemente, de harmonia com o disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC, restará julgar verificada a impossibilidade superveniente da presente lide, o que é e aqui será causa determinante da extinção da instância.
[...]
DISPOSITIVO
Nos termos expostos e com base nos argumentos neles vertidos, julgo verificada a extinção da responsabilidade disciplinar de «AA».
Consequentemente:
1. Declaro extinto o Processo Disciplinar n.º 2017PRT00207DIS, instaurando contra «AA»;
2. Declaro cessados os efeitos da pena disciplinar aplicada a «AA», no âmbito do sobredito Processo Disciplinar n.º 2017PRT00207DIS;
3. Declaro a presente instância extinta, por impossibilidade superveniente da lide;
[...]“

Aqui chegados.

Apreciou e decidiu o Tribunal a quo que a sanção disciplinar em apreço nos autos, de suspensão por 150 dias, e que foi cumprida pelo ora Recorrente está a coberto da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, em face do disposto nos seus artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º, e que é assim passível de ser amnistiada por ter sido cometida até às 00,00 horas de 19 de junho de 2023.

Porém, em face do que apreciamos tendo por referência as conclusões das Alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente, julgamos que os autos deviam ter continuado os seus termos no TAF de Mirandela, ou seja, que errou o Tribunal a quo ao julgar pela extinção da instância [Cfr. ponto 3 do dispositivo].

Vejamos.

Em torno da continuação dos autos para efeitos de ver apreciada a legalidade do acto que aplicou ao Autor a pena disciplinar, no sentido de poder ver reconstituída a sua situação hipotética, assiste razão ao Recorrente, pois que, como assim julgamos, a perda de remuneração durante esses 150 dias não pode ser compaginada como um efeito da pena disciplinar, que tendo sido amnistiada, tenha de manter-se, pese embora o Autor ora Recorrente também não ter prestado a sua função a favor do Réu, mas não por vontade sua.

Atenta a posição vertida nas suas Contra alegações, julgamos que o Autor ora Recorrente é titular de um concreto interesse em agir, e que passa pela continuação dos autos tendo em vista a apreciação da/s invalidade/s que vêm por si apontadas ao acto administrativo sob impugnação.

Neste patamar.

Por julgarmos com interesse para a decisão a proferir, para aqui convocamos o recente Acórdão do STA, datado de 29 de fevereiro de 2024, proferido no Processo n.º 03008/14.5BELSB.

Nesses autos estava em apreço a apreciação da invalidade de todos os actos de instrução e de decisão, incluindo os despachos do Director Nacional da Polícia de Segurança Pública e do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, que a final derivaram na conclusão de que o arguido, também um agente policial da PSP, violou deveres que consubstanciavam a prática de infracção disciplinar, sendo que depois de ponderadas as circunstâncias envolventes que rodearam o facto subjacente à referida infração, as circunstâncias atenuantes e agravantes e as exigências sancionatórias, foi aplicada ao arguido a pena de 50 [cinquenta] dias de suspensão.

O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa [TACL] veio a julgar a acção procedente, do que foi interposto recurso de Apelação para o TCA Sul, que por seu Acórdão datado de 19 de maio de 2022 veio a confirmar o julgado em 1.ª instância, do que foi interposto recurso de Revista para o STA, que por seu Acórdão datado de 20 de outubro de 2022 proferido em formação de apreciação preliminar, julgou pela sua admissão, com fundamento, em suma, na necessidade de ser conhecido o termo da contagem do prazo de prescrição do procedimento disciplinar na PSP.

Já em sede da apreciação do mérito do recurso de Revista, o respectivo relator, com fundamento em que a infração imputada ao agente representado pelo Recorrido ocorrera em 22 de janeiro de 2009, ordenou por seu despacho de 30 de janeiro de 2024, a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem sobre a eventual extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, em consequência da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, ao abrigo do disposto nos seus artigos 2.º, n.º 2, alínea b), 6.º e 7.º, n.º 1, alíneas j) e k).

Tendo as partes emitido pronúncia, o Recorrente Ministério da Administração Interna veio referir, em suma, ver com muito bons olhos a aplicação ao Autor da ação da recente Lei da Amnistia [Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto], mas que se opunha à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, com fundamento em que o objecto do recurso de Revista se mantém incólume após a publicação da referida Lei nº 38-A/2023, por estar em vista, caso não tenha ocorrido a prescrição do procedimento disciplinar, que a Lei da Amnistia, pura e simplesmente, seria inaplicável.

Ora, o STA veio a apreciar como devida a precedência do conhecimento da amnistia, sobre a questão da prescrição do procedimento disciplinar [ou mesmo sobre outras questões que se tenham suscitado no âmbito da ação administrativa de impugnação de actos administrativos de aplicação de sanções disciplinares], e que a sua aplicação, podendo conduzir à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, torna irrelevante o conhecimento do momento exacto em que o poder disciplinar se extingue por prescrição, de modo a impedir a aplicação da sanção disciplinar considerada devida, e nesse sentido, que a eventual aplicação da amnistia pode tornar a discussão inútil se, independentemente do momento considerado relevante para efeitos de prescrição, tornar inaplicável a sanção disciplinar.

Neste conspecto, para aqui extraímos parte desse Acórdão do STA, como segue:

Início da transcrição
“[...]
5. Mesmo sem aprofundar a discussão dogmática sobre a autonomização da “amnistia imprópria” face ao “perdão genérico” (num quadro em que a amnistia já é perspetivada como pressuposto negativo da punição, e não como modo de extinção da infração) – sobre o ponto, v., por todos Figueiredo Dias, ob. cit., p. 687 e ss. (conceção ampla de amnistia) e Francisco Aguilar, Amnistia e Constituição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 51 e ss. (conceção restrita de amnistia, em que o seu caráter como amnistia “própria” ou imprópria” «não reside já na sua previsão normativa, mas antes nas situações da vida que aquela irá regular, em função de existir uma decisão condenatória com força de caso julgado») –, certo é que «quer a amnistia de crimes, quer a amnistia de infrações disciplinares estão sujeitas a princípios comuns» (v. o Ac. TC n.º 301/97, n.º 6; itálicos acrescentados): «Constituindo um obstáculo à efetivação da punição, as amnistias são da competência reservada da Assembleia da República (cfr. o artigo 164º, alínea g), da Constituição) e revestem forma de lei. Nessa medida, quaisquer limitações estabelecidas na lei quanto às condições ou aos efeitos da amnistia – como as do nº 4 do artigo 11º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local ou as do artigo 126º do Código Penal de 1982 – valerão apenas na medida em que, por força da lei da amnistia, não sejam afastadas. É que, sendo esta posterior – e especial –, as normas que a compõem sempre prevalecerão sobre as antes estabelecidas em normas de igual hierarquia (cfr. J. Figueiredo Dias, ob. cit., p. 695, que considerava o referido artigo 126º do Código Penal de 1982 "legislação subsidiária").
Neste contexto, poderá perguntar-se: é constitucionalmente admissível à Assembleia da República amnistiar infrações disciplinares sem destruir os efeitos já produzidos pela aplicação da pena – como o determina aquele normativo e, por omissão de expressa previsão noutro sentido, se tem de entender que foi querido pelo legislador da Lei nº 23/91, de 4 de Julho?
7. Tendo em conta a liberdade de conformação reconhecida neste domínio ao legislador (cfr., neste sentido, os Acórdãos deste Tribunal nºs.152/93 e 153/93 […]), não poderá deixar de responder-se afirmativamente àquele quesito, desde que seja salvaguardada a legitimidade material da amnistia, a qual, segundo Eduardo Correia/Taipa de Carvalho (cfr. ob. cit., p. 17), “deve afirmar-se sempre e apenas quando ocorrerem situações em que a defesa da comunidade sócio-política seja melhor realizada através da clemência que não da punição” ou, como refere J. de Sousa e Brito, sempre que a amnistia se reconduzir à “totalidade dos fins do Estado, legítimos num Estado de Direito”, e não apenas “aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado e ainda menos à prevenção dos factos do tipo de infração visado pela norma amnistiante” (cfr. Sobre a amnistia, in Revista Jurídica da AAL, nº 6 (1986), p. 43).
Sob o ponto de vista constitucional, a legitimidade das leis de amnistia de infrações punidas por normas de direito público deve ser aferida à luz do princípio do Estado de Direito, donde resulta que os fins das leis de amnistia não podem ser incompatíveis com a realização de um tal princípio.»
Estes princípios, que de algum modo, concretizam um conceito constitucional de amnistia, foram corroborados pelo Ac. TC n.º 116/2001, n.º 7: «O Tribunal Constitucional, no mencionado Acórdão nº 301/97, considerou expressamente ser constitucionalmente admissível à Assembleia da
República amnistiar infrações disciplinares sem destruir os efeitos já produzidos pela aplicação da pena, desde que seja salvaguardada a legitimidade material da amnistia. […]
Ora, decorre da jurisprudência constitucional sumariamente citada que a definição de certas condições de concessão de uma amnistia integra o espaço de liberdade de conformação legislativa, podendo o legislador estabelecer limites aos efeitos da medida de graça, efeitos esses que não têm, desse modo, de significar a destruição de todas as consequências da infração amnistiada. Compreende-se, de resto, que assim seja, uma vez que a concessão da amnistia, consubstanciando uma medida excecional, repercute-se no funcionamento do sistema sancionatório público, impedindo a normal produção de efeitos das normas que o integram. Trata-se, pois, de uma intervenção singular, em ordem a valores específicos e necessariamente legítimos (cf., quanto à natureza e legitimidade de tais valores, os Acórdãos n.º 444/97 e 510/98), cuja concreta extensão assim como as respetivas condições de aplicação não se encontram constitucionalmente pré-definidas.
Os limites a tal medida referem-se então aos seus fins (como o Tribunal Constitucional apreciou nos Acórdãos n.ºs 444/97 e 510/98), de forma a que, com a concessão da amnistia, não se afetem princípios fundamentais do Estado de direito. O carácter mais ou menos restrito dos seus efeitos (uma vez assente, sublinhe-se, a legitimidade material e teleológica da medida de graça), ou seja, os efeitos concretos da infração amnistiada que são eliminados, assim como as repercussões processuais da medida também poderão ser livremente conformadas pelo legislador dentro dos assinalados limites.
Por outro lado, a aplicação da amnistia não poderá, naturalmente, limitar, ainda que reflexamente, de modo inevitável outros direitos fundamentais do agente beneficiário. Adianta-se, porém, de imediato, que in casu tal não acontece, pois pode ser requerida a não aplicação da amnistia, nos termos do artigo 10º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio.
Em resumo, pode afirmar-se que a amnistia se traduz num benefício concedido pelo Estado, com maior ou menor amplitude, e que, consubstanciando uma valoração excecional e de algum modo acidental da infração, deixa intocados os direitos e as garantias fundamentais do agente, caso possa, por opção livre do potencial beneficiário, não ser aplicado.»
Nesta linha de entendimento, também se afirma na jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo: «[a]mnistia própria ou imprópria, já não pode hoje conceberse, o instituto, como no passado, como uma forma de esquecimento ou apagamento dos factos e da ilicitude, deles, mas simplesmente como um ato de renúncia do Estado ao seu direito de os punir ou de prosseguir na execução da punição já decretada» (v. o Ac. STA, de 22.04.1997, P. 39538, publicado no Apêndice ao Diário da República, 2.ª série, de 23.03.2001).
6. De todo o modo, e sem prejuízo do enquadramento dogmático da amnistia na doutrina da consequência jurídica do crime enquanto pressuposto negativo da punição, sujeito na sua configuração concreta ao poder de conformação do legislador democrático, e das consequências daí advenientes para a amnistia de infrações disciplinares, importa não esquecer, por um lado, que a responsabilidade criminal – mas o mesmo vale mutatis mutandis para a responsabilidade disciplinar – só se efetiva através do procedimento criminal: ou seja, não há que considerar efeitos punitivos da prática de dado facto previsto como crime que não decorram de uma condenação definitiva (transitada em julgado) pela prática do crime (facto punível e juízo de censurabilidade). Nessa medida, compreende-se a “imagem” frequentemente associada à amnistia própria – ou seja, aquela que, por ser anterior à condenação com trânsito em julgado, extingue o procedimento criminal (cfr. o artigo 128.º, n.º 2, do Código Penal) – de “apagamento” ou “esquecimento” da própria infração criminal em causa. Expressas em termos dogmaticamente menos rigorosos, é frequente deparar com afirmações como: «a amnistia atinge a punibilidade dos atos definidos como crime; atua em função dos crimes, deixando os atos praticados até ao momento histórico-jurídico considerado de poderem ser enquadrados nos tipos legais amnistiados»; ou «amnistia, enquanto medida de graça de caráter geral e pressuposto negativo da punição, é aplicada em função do tipo de ilícito, considerando abstratamente as infrações (i.e., “apagando” a natureza criminal do facto)» (assim, por exemplo, v. o Ac. TRL, de 23.01.2024, P. 1161/20.8PBSNT-D.L1-5; itálicos acrescentados).
Por outro lado, cumpre igualmente ter presente que a ausência de condenação penal não “apaga” a ação ou os factos na sua materialidade, os quais poderão relevar como pressupostos de facto de efeitos não penais (ou não disciplinares). 7. A Lei n.º 38-A/2023 é muito parca na caracterização da amnistia de infrações disciplinares praticadas por membros das forças policiais, limitando-se a uma delimitação positiva e negativa daquelas que pretende abranger:
– Infrações disciplinares: i) praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023; e ii) cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão; desde que, – Tais infrações: i) não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela mesma Lei n.º 38-A/2023; ii) se praticadas no exercício de funções, não constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, e iii) não sejam praticadas por reincidentes.
É entendimento comum da jurisprudência dos tribunais superiores, que, enquanto providências de exceção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, e em via de princípio, interpretação extensiva, restritiva ou analógica (cfr. o Ac. TRL, de 24.01.2024, P. 778/23.3T8PDL-A.L1-4, com amplas referências jurisprudenciais).
Significa isto que o legislador deixou um amplo espaço para a aplicação daquilo a que Figueiredo Dias designa de legislação subsidiária: preceitos da lei ordinária que prevêem consequências determinadas de uma amnistia, mas que, dado o valor legal da norma amnistiante, só são aplicáveis na medida em que não sejam expressamente afastadas pela lei da amnistia (v. Autor cit., ob. cit, p. 695; em sentido substancialmente idêntico, v. também Maia Gonçalves, Código Penal Português – Anotado e Comentado e Legislação Complementar, 12.ª ed., Almedina Coimbra, 1998, anot 4 ao art. 128.º, p. 410).
8. In casu, o agente representado pelo recorrido foi punido disciplinarmente por factos praticados em relação a agentes da GNR, em 22.01.2009, e que foram avaliados como representando a violação dos deveres de zelo, correção e aprumo, previstos no Regulamento Disciplinar da Polícia Segurança Pública, aprovado pela Lei n.º 7/90 de 20 de fevereiro (“RDPSP”; cfr. supra o n.º 2). Por tais factos, foi aplicada ao agente da PSP, por despacho do Comandante do ..., de 23.07.2010, uma pena de
50 dias de suspensão, «nos termos do art.º 25.º, n.º 1, alínea d), Art.º 27.º n. 3, Art.º 29. n.º 1, alínea b) conjugado com os Artigos 43.º e 46.º, todos do RD/PSP» (cfr. ibidem). Na sequência de recursos administrativos, foi proposta uma ação administrativa especial em que, além do mais, foi pedida a anulação da aplicação daquela sanção disciplinar (cfr. supra o n.º 1). Tal ação, de que emerge o presente recurso de revista, ainda se encontra pendente, pelo que a decisão sancionatória objeto da mesma também ainda não se tornou definitiva.
Verifica-se, pelo exposto, que a amnistia decretada pela Lei n.º 38-A/2023 é plenamente aplicável no caso sub iudicio.
9. Do enunciado dos artigos 2.º, n.º 2, alínea a), e 6.º da Lei n.º 38-A/2023 apenas resulta, com interesse para os presentes autos, que são amnistiadas as infrações disciplinares cometidas até à 00:00 horas de 19.06.2023 cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão. Deste modo, vale o conceito constitucional de amnistia – «um obstáculo à efetivação da punição» (Ac. TC n.º 301/97, n.º 6); «impedir-se que o agente agraciado sofra a sanção a que poderia vir a ser (ou a que já foi) condenado» (Ac. TC n.º 510/98, n.º 3) –, o qual, como referido, «descreve apenas o principal efeito jurídico da amnistia, deixando em aberto os efeitos jurídicos que podem separar a amnistia do perdão, como o da restituição dos direitos de que a condenação privou o criminoso ou de aproveitar aos reincidentes e criminosos por tendência, ou o do apagamento da sanção no registo, por exemplo. Mas mesmo que o regime destes últimos efeitos seja idêntico na amnistia e no perdão, tal não é uma necessidade conceptual, mas uma proposta de política legislativa que pode ser ou não seguida pelo legislador ordinário» (assim, v. ibidem, o Ac. TC n.º 510/98).
Ora, como referido, no caso da amnistia prevista nos artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º da Lei n.º 38-A/2023, não existem outros efeitos legalmente previstos, pelo que a amnistia das infrações disciplinares abrangidas por aquelas normas se limita ao efeito principal, ou seja, o de neutralizar os efeitos da sanção aplicável à infração disciplinar que deixa de poder ser punida. Todavia, na ausência de outras determinações, a conformação concreta de tais efeitos decorre das regras estatuídos no regime jurídico disciplinar aplicável, enquanto legislação subsidiária ou complementar.
No caso dos autos, vale o disposto nos artigos 38.º, n.º 5, 54.º, alínea e) e 59.º do RDPSP, regime jurídico em vigor à data da prática da infração. Em especial, o citado artigo 59.º, n.º 1, estatui que a amnistia faz cessar a execução da pena, se ainda estiver a decorrer, mas não anula os efeitos já produzidos pela sua aplicação, mantendo-se o respetivo registo unicamente para os efeitos expressos no mesmo Regulamento. Quanto à pena de suspensão, prevê o respetivo artigo 27.º, n.º 3, que a mesma se traduz no afastamento completo do serviço durante o período de cumprimento da pena e na perda, para efeitos de remuneração, antiguidade e aposentação, de tantos dias quantos tenham durado a suspensão.
Recorde-se que a pena de 50 dias de suspensão foi aplicada ao agente representado pelo recorrido, nos termos dos artigos 25.º, n.º 1, alínea d), 27.º n. 3, e 29.º n.º 1, alínea b), todos do RDPSP, por despacho datado de 23.07.2010 e executada em 2014 (cfr. supra o n.º 2).
10. Entre os efeitos que prima facie se podem ter como já produzidos pela execução de tal pena de suspensão, contam-se o afastamento do serviço durante o período de 50 dias e a perda da correspondente remuneração (artigo 27.º, n.º 3, do RDPSP), assim como as perdas de oportunidade relativamente à promoção ou acesso durante o período de um ano (v. ibidem, o artigo 29.º, n.º 1, alínea b) ).
Porém, a perda de 50 dias para efeitos de antiguidade e de aposentação ainda não se consumaram e são, por conseguinte, neutralizados pela amnistia.




Cumpre, por isso, indagar se, tendo em conta os efeitos já produzidos pela aplicação da sanção ao representado pelo ora recorrido, subsiste algum interesse na ação de impugnação de que emerge o presente recurso de revista em determinar se o poder disciplinar prescreveu, ou não, antes do ato que determinou a efetivação da responsabilidade disciplinar – o despacho do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, datado de 12.09.2014 (cfr. supra o n.º 2). 11. No que se refere à perda da remuneração correspondente ao período da suspensão de funções, a mesma não pode, em rigor, ser tida como um efeito já produzido da pena disciplinar. Conforme se refere no Ac. TC n.º 301/97, n.º 8: «[D]o que se trata, no caso, é da aplicação de uma pena disciplinar (de suspensão) que importou uma interrupção bilateral numa relação sinalagmática: o vencimento deixou de ser pago, não tanto por isso constituir um efeito da pena, mas por ter sido deixado de prestar o trabalho que tal vencimento remunerava. Ao apagar a infração disciplinar, o que a amnistia apaga são os efeitos disciplinares – e suas repercussões – não os outros efeitos (salvo disposição legal expressa em contrário). Assim, conforme este Tribunal decidiu no Acórdão nº 107/92 (publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Julho de 1992), “não tendo os interessados exercido as suas funções, não têm eles direito a receber os respetivos vencimentos, que ... representam a contraprestação pelo exercício efetivo do cargo”. Decorrendo do nosso ordenamento jurídico que “o vencimento consiste na remuneração recebida pelo exercício do cargo em que o funcionário esteja provido, salvo nos casos excecionais considerados na lei” […], tal perda de remuneração não é um puro efeito da aplicação da pena, mas de outras normas jurídicas, que mantêm a sua aplicação qualquer que seja o entendimento conferido à extensão dos efeitos das amnistias […].»
Por outro lado, e conforme tem sustentado a jurisprudência deste Supremo Tribunal, a eliminação do efeito negativo do não pagamento dos vencimentos em consequência de sanções disciplinares como a suspensão ou a demissão que venham a ser consideradas ilegais não se opera pelo pagamento dos vencimentos relativos ao período de afastamento do funcionário do serviço em sede de execução de sentença, mas através de uma ação de indemnização dos prejuízos concretamente sofridos, em consequência do ato ilegal praticado pela Administração e anulado ou declarado nulo pelo tribunal (teoria da indemnização e não teoria do vencimento) – cfr., entre muitos, os Acs. STA, de 9.02.1999, P. 24711B; de 24.05.2000, P. 45977; de 17.04.2002, P. 32101A; de 19.04.2004, P. 222/04; ou de 28.05.2008, P. 69/08. Trata-se, em qualquer caso, de um ónus do interessado e não de um dever da Administração. Já no tocante à impossibilidade de promoção ou acesso durante o período de um ano previstas no artigo 29.º, n.º 1, alínea b), do RDPSP, as mesmas só se concretizaram como efeito já produzido da pena disciplinar, caso tenham surgido oportunidades de tais promoções ou acessos, o que não é invocado pelo recorrido. Acresce que a reconstituição da carreira, em sede de execução de sentença anulatória, em princípio, só impõe que se levem em conta as promoções que devessem ter ocorrido por antiguidade, mas já não as promoções que dependam de concurso ou escolha. Ou seja, só se pode atribuir relevância a promoções relativamente às quais esteja excluída qualquer dose de aleatoriedade, como acontecerá, designadamente, com promoções exclusivamente dependentes do preenchimento de pré-determinados módulos de tempo de exercício de funções em categoria inferior.
12. A pretensão expressa pelo recorrido de ser aplicada ao seu representado a amnistia decretada pela Lei n.º 38-A/2023, pode, nestes termos, ser interpretada no sentido de que, no caso vertente, e em seu entender, apesar de estar em causa uma amnistia imprópria (aquela que se esgota na eliminação dos efeitos de sanções disciplinares ainda não consumados), não há efeitos da suspensão aplicada já produzidos que careçam de ser eliminados ou destruídos retroativamente, tudo se passando como se de uma amnistia própria se tratasse. Ou seja, na perspetiva do recorrido, a amnistia aplicada in casu fará cessar a responsabilidade disciplinar do arguido seu representado, não tendo este mais interesse em prosseguir com o processo tendente à anulação da pena que lhe foi aplicada: para o passado, não há quaisquer efeitos de tal pena a destruir; e os efeitos da mesma ainda não produzidos, nomeadamente os relativos à antiguidade e aposentação, são neutralizados pela amnistia decretada pela Lei n.º 38-A/2023.
Daí poder concluir-se que a eficácia concretamente assumida pela amnistia ora em análise no caso vertente fez desaparecer também, à semelhança do que sucedeu nos recentes acórdãos deste Supremo Tribunal Administrativo de 16.11.2023, P. 262/12.0BELSB, de 7.12.2023, P. 1618/19.3BELSB, e de 7.12.2023, P. 2460/19.7BELSB, o objeto da ação que visa a declaração de nulidade ou anulação do ato que aplicou a pena disciplinar.
E assim sendo, «não subsiste nenhum interesse em determinar se o poder disciplinar prescreveu ou não antes da prática daquele ato, porque não existem outros efeitos jurídicos a extinguir para além daqueles que são extintos pela própria amnistia» (v. os citados acórdãos).
[...]“
Fim da transcrição

Em conformidade com o julgamento prosseguido pelo STA no Acórdão proferido, em torno de a amnistia prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, ser de aplicação imediata, e que deve preceder o conhecimento de qualquer outra questão que se tenha suscitado no âmbito da ação administrativa de impugnação de actos administrativos que apliquem sanções disciplinares, e de que a sua aplicação, podendo conduzir à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, torna a discussão inútil se se tornar inaplicável a sanção disciplinar, cumpre aferir se essa jurisprudência é aplicável à situação dos autos.

Como assim apreciou e decidiu o Tribunal a quo, o procedimento disciplinar foi extinto e cessados os efeitos decorrentes da aplicação da pena disciplinar por efeito do disposto na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, decisão que transitou em julgado.

Dada a superveniência de um diploma legal que por si é determinante da amnistia da pena disciplinar aplicada, na situação concreta dos autos extinguiu-se a responsabilidade disciplinar do arguido [o Autor ora Recorrente], o que reveste aptidão para que, em face do patenteado nos autos e na Lei, ser declarada a amnistia da infracção, com todas as consequências legais, designadamente a cessação dos efeitos produzidos.

Situação diversa é a de saber se por ocorrência da amnistia, e assim, se por efeito da cessação de todos os efeitos da pena de suspensão de 150 dias, se a lide deixou de manter utilidade, e se dessa forma a instância deve ser extinta.

Nos termos do artigo 202.º da CRP, enquanto órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbe aos Tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, e aos Tribunais Administrativos em particular [Cfr. artigo 212.º também da CRP] cabe efectuar o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes, designadamente, os que decorram das relações jurídicas administrativas, com o âmbito definido pelo artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, para o que ora convocamos a sua competência material para a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais [Cfr. n.º 1, alínea b)], tudo em ordem a efectivar o direito de acesso à justiça, na busca de uma tutela jurisdicional efectiva, prosseguindo numa interpretação das normas processuais no sentido de promover a emissão de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas, quando como é o caso dos autos, assiste ao Autor o direito de ver apreciada a validade do acto administrativo que lhe foi dirigido, nos seus termos e pressupostos, em ordem a obter a sua remoção da ordem jurídica administrativa [o que é alcançável, tendo por pressuposto essencial, a existência de um pedido de anulação ou a declaração de nulidade ou de inexistência de actos administrativos – Cfr. artigo 2.º do CPTA] assim julgando, independentemente da declarada amnistia, para efeitos da prolação do acto administrativo impugnado - Cfr. artigo 148.º do CPA], se a Administração deu cabal cumprimento às normas e princípios jurídicos que a vinculam.

Como assim julgamos, quando o Tribunal se confronte com uma pena disciplinar que deva ser amnistiada, deve então ponderar, em obediência ao disposto no artigo 130.º do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, atinente ao princípio da limitação dos actos [segundo o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis], por que termos e pressupostos é que se justifica a continuação da sua instrução, no sentido de ser conhecido do mérito do pedido, pois que, convém lembrar, justaposta à aplicação da pena disciplinar está todo um repositório jurídico e factual em que se apoiou o autor do acto sancionatório para efeitos da sua decisão, quanto ao qual o visado não concorda, sendo seu [do Autor] o impulso de vir a Tribunal impugnar a sua validade, e sua pretensão, pelo menos, a sua anulação, fundada em ocorrência de nulidade ou em erro nos pressupostos de facto e/ou de direito.

Na situação dos autos, não ocorre a extinção da instância, porquanto a sua continuação ainda reveste interesse e utilidade para o Autor ora Recorrente, na medida em que há efeitos da pena de suspensão aplicada já produzidos que não são eliminados ou destruídos retroativamente, como é a situação atinente ao período por que durou a suspensão e o Autor não foi remunerado.

Esses efeitos foram produzidos na esfera jurídica do Autor, sendo que a declarada amnistia da infracção disciplinar [em termos de tudo se passar como se a mesma nunca tivesse sido cometida] não tem a virtualidade de os repor, nem o Recorrido disse nos autos que tal assim vai ser-lhe [ao Autor] garantido.

Tendo cessado a responsabilidade disciplinar do Autor, por vontade, ou graça do legislador, e assim a pena que lhe foi aplicada e que o Autor pretendia ver sindicada judicialmente por via da impugnação judicial do acto administrativo que a fixou, quanto aos efeitos que a mesma visava atingir em sede da antiguidade e da aposentação, esses foram já neutralizados, deixando de ter qualquer valor ou eficácia, impondo-se a reposição da condição jurídica ao tempo em que não lhe tinha sido aplicada a pena, ou melhor, ainda antes de lhe ter sido instaurado o processo disciplinar.

Mas já porém quanto aos efeitos produzidos no passado, o que é dizer, na situação concreta, o não pagamento de qualquer remuneração durante o período da suspensão, a lide já mantém utilidade, e deve prosseguir os seus termos, tendo subjacente a apreciação da ocorrência da invocada invalidade imputada ao acto administrativo, para a final ser formada a convicção de que, não padecendo dessa invalidade, e mantendo-se o acto nos seus termos e apenas para esse efeito, tem de manter-se a não remuneração, e em sentido inverso, caso seja formada a convicção de que ocorre a invalidade imputada ao acto administrativo, ver-se-á o Tribunal a quo confrontado com os termos e os pressupostos por que deve fixar esse montante, ponderando para tanto, entre o mais que se mostre devido, que o sujeito alvo do processo disciplinar não recebeu vencimento durante o período da suspensão, que também não prestou a sua actividade no âmbito desse período, mas que também não o fez porque a tanto foi obstado pela decisão punitiva, pois em circunstâncias tidas por normais, não fosse a interposição da sanção disciplinar, que já está amnistiada, teria cumprido a sua obrigação sinalagmática.

Como assim julgamos, assiste ao Autor ora Recorrente, enquanto arguido no processo disciplinar, e também enquanto demandante, o direito a que a pretensão por si deduzida na impugnação judicial da decisão punitiva seja apreciada no seu mérito potencial, quando subjacente à sua motivação para efeitos de entender não lhe dever/pode ser aplicada a amnistia, estiver o pressuposto de que não praticou qualquer ilícito de natureza disciplinar.

Determinar a extinção da instância, quando tenha sido requerida a sua continuação, por não se conformar o interessado com a pena disciplinar que lhe foi aplicada, constitui a final uma limitação do direito do Autor e a consagração de uma absoluta impossibilidade de ver revertida essa decisão, ficando sempre a pairar sob a sua figura o véu da eventualidade do cometimento dos factos integradores do ilícito, mas que veio a ser amnistiado.

Em face do que assim resulta da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, estando reunidos os requisitos para ser declarada a amnistia da infracção disciplinar, sempre essa declaração deve ser efectuada pela instância de julgamento, sendo certo que, quando o demandante pretenda a continuação dos autos, seja para efeitos de ser feito julgamento em torno de que não cometeu qualquer infracção passível, seja para efeitos de serem restaurados na sua esfera jurídica os efeitos já produzidos pela pena aplicada [é o caso da pena de suspensão, que implica a perda de vencimento], nessa eventualidade, e assim querendo o interessado, a lide não pode ser extinta por manter a sua utilidade, no que seja remanescente.

Enfatizamos porém, que naquelas situações, o cidadão a quem foi aplicada pena disciplinar pode ter por certo que a infracção pode ser amnistiada de forma imediata e se assim for sua vontade, ser determinada a extinção da instância, desaparecendo da ordem jurídica por pressuposto dela, os efeitos que ainda não tenham sido produzidos, e nesse patamar, não mais se sabendo se os termos e os pressupostos em que a Administração se ancorou para lhe imputar o cometimento da infracção disciplinar eram válidos, isto é, se sempre ocorrerem e pelos termos e pressupostos fixados na decisão administrativa condenatória, ou então, pode prosseguir no pedido de apreciação do mérito da impugnação judicial do acto administrativo, como por si impulsionado, sendo certo que, na eventualidade de vir a ser julgada da validade do acto administrativo, e de assim vir a ficar patenteado numa Sentença proferida por um Tribunal, pese embora sempre a infracção disciplinar se ter por amnistiada, passa a ficar certo e firmado em sede da relação jurídica administrativa controvertida, que atenta a ilicitude da acção assacada ao arguido, que a actuação da Administração se tem por correcta, por isenta de qualquer crítica e a final de invalidade que seja determinante da sua nulidade ou anulação, com as legais consequências, e desde logo, patenteadas em documento público.

Como assim julgamos, será sempre uma opção do demandante, que tem de fazer o balanceamento entre os resultados possíveis, e em que medida, um ou outro melhor se compaginam com a sua perspectiva hedonística da realidade.

Em face da aplicação positiva da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto, e devendo ser declarada amnistiada a infracção disciplinar, o Autor ora Recorrente tem direito a fazer prova da sua inocência tendo por referência a factualidade que lhe foi imputada pela Administração e que esteve na base da aplicação da sanção disciplinar.

Em suma, sendo certo que o Tribunal a quo podia aplicar a Lei da Amnistia como assim constante dos artigos 11.º e 14.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, e sempre tendo essa aplicação de ser casuística, com ponderação dos termos e pressupostos de que depende a sua aplicação, na situação em apreço nos autos o Autor ora Recorrente tem interesse na apreciação do mérito do pedido deduzido, e que a final passará por saber se, pese embora a interposta amnistia, o acto administrativo deve ser expurgado da ordem jurídica, por via do conhecimento do mérito do pedido na sua vertente anulatória, com as legais consequências.




A pretensão recursiva do Recorrente tem assim de ser julgada procedente, e estando já declarada a amnistia pela Sentença recorrida, que nessa parte não foi objecto de recurso, devem os autos baixar ao TAF de Mirandela para efeitos de ser conhecido do mérito dos autos, tendo subjacente a causa de pedir imanente ao pedido deduzido a final a Petição inicial, e no fundo, se padece a decisão impugnada de invalidade determinante da sua nulidade/anulabilidade, que a final levasse a que não fosse aplicada a concreta pena disciplinar ao Autor ora Recorrente.

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E assim formulamos as seguintes CONCLUSÕES/SUMÁRIO:

DESCRITORES: Processo disciplinar; Infracção disciplinar; Pena disciplinar de suspensão cumprida; Aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto; Inutilidade superveniente da lide; Extinção da instância.

1 - Conforme se extrai do corpo da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, e em torno da amnistia de infracções disciplinares, o legislador dispôs que a mesma deve ser aplicada se as infracções disciplinares, em suma, tiverem sido praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, se não constituírem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei, e caso a sanção aplicável não seja superior a suspensão [Cfr. artigos 2.º, n.º 2, alínea b), 6.º e 7.º do referido diploma legal].

2 - Da amnistia de infrações disciplinares prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, decorre o efeito essencial e típico de qualquer amnistia – impedir que o agente agraciado sofra a sanção que lhe poderia vir a ser [ou que já lhe foi] aplicada pela prática de uma infração –, pelo que a conformação concreta dos respetivos efeitos fica dependente das regras estatuídas no regime jurídico disciplinar aplicável, enquanto legislação subsidiária ou complementar.

3 - Dada a superveniência de um diploma legal que por si é determinante da extinção da responsabilidade disciplinar do arguido [o Autor ora Recorrente], tal reveste aptidão para que, em face do patenteado nos autos e na Lei, seja declarada a amnistia da infracção, tornando-se assim inútil, nessa parte, a continuação da lide, podendo já não ser, todavia, fundamento que seja determinante da extinção da instância.

4 - Quando o Tribunal se confronte com uma pena disciplinar que deva ser amnistiada, deve então ponderar, em obediência ao disposto no artigo 130.º do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, atinente ao princípio da limitação dos actos [segundo o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis], por que termos e pressupostos é que se justifica a continuação da sua instrução, no sentido de ser conhecido do mérito do pedido, pois que, convém lembrar, justaposta à aplicação da pena disciplinar está todo um repositório jurídico e factual em que se apoiou o autor do acto sancionatório para efeitos da sua decisão, quanto ao qual o visado não concorda, sendo seu [do Autor] o impulso de vir a Tribunal impugnar a sua validade, e sua pretensão, pelo menos, a sua anulação, fundada em ocorrência de nulidade ou em erro nos pressupostos de facto e/ou de direito.

5 - Em face da aplicação positiva da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto, e devendo ser declarada amnistiada a infracção disciplinar, o Autor tem direito a fazer prova da sua inocência tendo por referência a factualidade que lhe foi imputada pela Administração e que esteve na base da aplicação da sanção disciplinar, ou seja, o direito a que a pretensão por si deduzida na impugnação judicial da decisão punitiva seja apreciada no seu mérito potencial, quando subjacente à sua motivação para efeitos de entender não dever ser extinta a instância, estiver o pressuposto de que não praticou qualquer ilícito de natureza disciplinar.

6 – Determinar a extinção da instância, quando tenha sido requerida a sua continuação, por não se conformar o interessado com a pena disciplinar que lhe foi aplicada, constitui a final uma limitação do direito do Autor e a consagração de uma absoluta impossibilidade de poder ver revertida essa decisão, ficando sempre a pairar sob a sua figura o véu da eventualidade do cometimento dos factos integradores do ilícito, mas que veio a ser amnistiado.

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IV – DECISÃO

Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Social da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em conferência:
A) em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso de Apelação deduzido por «AA»;
B) em determinar a baixa dos autos ao Tribunal de 1.ª instância, para efeitos de aí serem prosseguidos os termos de processo que se mostrem devidos, em ordem a ser apreciada a invalidade apontada à decisão impugnada atinente ao acto administrativo que aplicou a pena disciplinar de suspensão por 150 dias ao Autor ora Recorrente, se nada mais a tanto obstar.

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Custas a cargo do Recorrido, salvo nesta instância por não ter apresentado Contra alegações - Cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

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Notifique.
* Porto, 06 de junho de 2024.

Paulo Ferreira de Magalhães, relator
Maria Fernanda Brandão
Isabel Costa