Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. RELATÓRIO
1.1. A Fazenda Pública (Recorrente), notificada da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datada de 29 de março de 2017, pela qual foi julgada totalmente procedente a impugnação judicial contra a liquidação de Imposto de Selo (IS) e respetivos juros compensatórios, respeitante ao exercício de 2006, no valor global de €336 805.73, inconformada vem dela interpor o presente recurso jurisdicional.
Alegou, formulando as seguintes conclusões:
«A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou procedente a impugnação deduzida contra a liquidação de Imposto de Selo e juros compensatórios com o n.º 20...935, relativa ao ano de 2006, no montante de € 311.677,33, por haver concluído que “a Impugnante fez prova da verificação da terceira condição em causa, de tal forma que as operações financeiras em causa não se encontram sujeitas a tributação em sede de Imposto de Selo”.
B. Entendeu o Tribunal na sentença recorrida: “Como resulta dos factos considerados provados, o Tribunal da análise dos documentos constantes nos autos e na sua conjugação com a prova testemunhal realizada nos autos, considerou como provado que “nos períodos em que a Impugnante procedeu a operações financeiras com a N...,SGPS, o que fez por motivos de carência de tesouraria. E apenas por este motivo.”
C. O quadro factológico e dado como assente pelo probatório, com relevância para a decisão do presente recurso, é, segundo a Mmº Juiza a quo o seguinte:
"5. A impugnante encontra-se incluída na politica de centralização ou gestão consolidada da tesouraria de todo o Grupo em que se insere, o qual tem por objectivo a redução da sua dependência económica de empréstimos exteriores - facto alegado pela Impugnante na Petição Inicial, por si confirmado em sede de inquirição de testemunhas;
"6. As notificações realizadas pela N...,SGPS, nos termos do contrato de operações financeiras em vigor, são levadas e efeito, única e exclusivamente, para os fins previstos naquele, designadamente, para satisfação de carências de tesouraria - facto que resulta dos depoimentos prestados em sede de inquirição de testemunhas:
"7. Esta é uma forma de financiamento interno, sem recurso à banca, que representa custos mais baixos - facto que resulta dos depoimentos prestados em sede de inquirição de testemunhas;
"8. No seguimento do referido em 5, 6 e 7 a Impugnante procedeu a cedências de fundos, a título de operações financeiras.”
D. O ato de liquidação controvertido tem na sua génese o resultado do procedimento inspectivo efectuado pelos Serviços de Inspecção Tributária, em cumprimento da ordem de Serviço n.º OI2...081, durante o qual foi apurado Imposto de Selo em falta, face à não demonstração por parte da impugnante, dos pressupostos de facto que a permitiram subsumir determinadas cedências de fundos concedidos sob a forma de conta corrente à “Sociedade N...,SGPS”, detentora de 50,94% do seu capital, à previsão da alínea g) do n.º 1 do art. 7.º do CIS.
E. Perante a concessão por parte da impugnante, no exercício de 2006, de fundos, sob a forma de três contratos de linha de crédito, à sociedade dominante “N...,SGPS.” (doravante, N...,SGPS), competia à AT, verificar se o respectivo imposto de selo havia sido liquidado ou se se reuniam os pressupostos de isenção desse mesmo imposto que pudesse o sujeito passivo beneficiar, a saber:
Crédito concedido por prazo não superior a um ano;
Crédito concedido pelas sociedades participadas em benefício da SGPS que com ela estejam em relação de domínio ou de grupo;
Crédito destinado exclusivamente à cobertura de carências de tesouraria;
F. Analisados os documentos apresentados pela impugnante durante o procedimento inspectivo, constatou a AT que os três pressupostos exigidos na norma aplicável e supra transcrita - al. g) do n.º 1 do art. 7.º do CIS, que, nos termos da mesma, constituem condições cumulativas, não se reuniam integralmente, uma vez que, a Impugnante (a OT..., SA.) no caso, não demonstrou o pressuposto de que tais operações financeiras eram “exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria” .
G. Questão nuclear a decidir e como também entendeu o Tribunal a quo, era “considerar verificável na presente situação a última condição”.
H. Competia então à impugnante, e dúvidas não existem quanto a tal, o ónus de prova de que os pressupostos da isenção que se arroga se reuniam, isto é, no que ao caso importa, de que os fundos concedidos em causa se destinavam, e como determina a lei, “exclusivamente ... à cobertura de carência de tesouraria”.
I. Entendeu o Tribunal a quo que a impugnante fez tal prova.
J. Entende a Fazenda Pública que a prova apresentada foi insuficiente para o Tribunal dar como provados os factos constantes do probatório nos pontos 6) e 8), e concluir como concluiu.
K. Ao enunciar a motivação do sentido decisório, a douta sentença não fundamentou de modo adequado o entendimento abrangente que perfilha da noção de carência de tesouraria,
L. Assim, e no que respeita ao conceito de operações de tesouraria, a existência de eventuais ou previsíveis carências de liquidez não se coaduna, segundo a experiência comum, com linhas de crédito mutuamente contratadas nos termos descritos no RIT, não suficientemente examinadas na sentença recorrida, a ponto de ter sido retirada legitimidade aos actos tributários impugnados e ser ordenada a sua anulação.
M. As carências de tesouraria, definidas como necessidades pontuais que uma certa entidade enfrenta para fazer face aos pagamentos que tem de efectuar, são por regra, certas quanto ao seu montante e determináveis quanto ao seu período, ou seja, a entidade que pontualmente enfrentar estas carências conhece o montante de que necessita e o tempo pelo qual tem de supri-las.
N. Ora, segundo o que consta dos contratos pelos quais as operações financeiras em causa foram formalizadas e o que foi averiguado em inspecção, tais operações funcionaram em sistema de conta-corrente e conforme a iniciativa da N...,SGPS, que tinha o direito de decidir o momento da utilização do crédito e o montante de cada utilização, e ainda o direito de fazer reembolsos parciais em função da avaliação das suas possibilidades.
O. Diante das circunstâncias de facto que rodeiam a concessão de linhas de crédito através dos contratos supra identificados, e dos termos em que esses contratos foram celebrados, factos estes devidamente expostos pelo RIT, a conclusão que deles se retira é que o crédito concedido teve outros destinos que não exclusivamente a cobertura de carências de tesouraria.
P. Podendo definir-se carências de tesouraria, como uma necessidade pontual que uma determinada entidade enfrenta para fazer face aos pagamentos que tem que efectuar, as mesmas, são, por via de regra, certas quanto ao seu montante e determináveis quanto ao seu período, ou seja, a entidade que pontualmente sentir necessidades de tesouraria, conhece o montante a necessitar e mais ou menos por quanto tempo necessita de fazer face a esta carência.
Q. Daí que, de forma a demonstrar que as operações financeiras em concreto nos autos se destinaram exclusivamente para cobertura de carências de tesouraria da sociedade beneficiária, à impugnante, enquanto sujeito passivo do imposto e beneficiário de uma provável isenção, impunha-se a prova, relativamente à data, ou num espaço temporal próximo em que os fundos foram concedidos, que os respectivos meios de caixa se revelavam inferiores ao passivo a incorrer por aquela, demonstrando nesse momento a existência de tesouraria negativa ou em ruptura da sociedade beneficiária.
R. Todavia, a impugnante apenas apresentou à AT e na presente impugnação, dois documentos (Doc. n.º 5 e 6 da PI) e dois mapas, feitos em excel, com descritivo dos movimentos de débito e crédito das contas-correntes e três contratos, designados por “Contratos de Operações Financeiras,”dos quais com o devido respeito não se vislumbra a extracção da conclusão pelo Tribunal recorrido de que nos períodos em que foram concedidos os fundos, ocorriam carências de tesouraria na Sociedade N...,SGPS.
S. Note-se ainda que, conforme resulta dos contratos que constam dos autos, referidos na sentença recorrida (na reprodução do Relatório da Inspecção Tributária) são celebrados por períodos sempre inferiores a um ano, mas sucessivamente repostos por outros de igual teor e igual duração, por forma a possibilitar contornar a lei fiscal,
T. O que demonstra a inexistência de pontuais carências de tesouraria da N...,SGPS, mas que revela um modo de financiamento de médio/longo prazo sob a forma de conta corrente.
U. O Tribunal deu como provado que “as notificações realizadas pela N...,SGPS, nos termos do contrato de operações financeiras em vigor, são levadas e efeito única e exclusivamente, para os fins previstos naquele, designadamente, para satisfação de carências de tesouraria.”
V. Com o devido respeito, como se pode verificar do conspecto de tais documentos, não é possível extrair tal conclusão.
W. Já no que concerne à prova testemunhal, entendeu o Tribunal que as duas testemunhas apresentadas pela impugnante, tendo como credíveis os respetivos depoimentos, referiram que os montantes em causa se efectuaram apenas e somente por motivos de carências de tesouraria.
X. Com o devido respeito, impera ponderar a existência de determinadas restrições à prova testemunhal, designadamente quando o facto alegado deva ser plenamente provado por documento ou outro meio com força probatória plena (art. 393.º, n.º 2 do Código Civil).
Y. Ainda assim, perscrutada a prova testemunhal, a mesma não concretizou as operações em causa, limitando-se a explicar o conteúdo de cada célula nos documentos 5 e 6, nem tão pouco demonstrou que, nos períodos em que foram concedidos os fundos ocorriam carências de tesouraria naquela sociedade SGPS. Ou seja, decorreu dos depoimentos prestados uma configuração e análise deste tipo de operações em abstracto no seio do Grupo.
Z. Mas, contudo, sublinha-se, impunha-se a prova documental.
AA. Sobre o assunto, referiu a 1ª testemunha, Sr. AA, ao minuto 20.03 da gravação da inquirição: “contratualmente está lá dito, que os fundos se destinam a um determinado fim, isso está no próprio contrato que se assina entre as duas sociedades; diz que se destinam a carências de tesouraria da N...,SGPS, agora não é no dia-a-dia, quando a OT..., SA. recebe um pedido da empresa de cima, não vai verificar, não tem a obrigação nem forma de o fazer dia a dia, se corresponde ou se lhe estão a mentir.
BB. E no minuto 32.31, perante a pergunta se era possível, na N...,SGPS fazer a comprovação das carências de tesouraria perante a AT respondeu “Eu julgo que sim. Tem que, no fundo, olhar para aquele dia ver os pagamentos que existiram naquele dia, ver as sociedades de baixo, esse tipo de informação pode reconstruir-se (...) acho que não se pode dar diariamente, acho que se pode evidenciar numa determinada data, à posteriori, qual foi a utilização daqueles fundos, a certeza de que a N...,SGPS, não pegou no dinheiro da subsidiária e o aplicou num banco.”
CC. Já a 2ª testemunha, Sr. BB, no minuto 1.05.38, à questão colocada pela RFP se existiam documentos que permitissem à AT confirmar a existência de carência de tesouraria respondeu “toda a contabilidade é transparente, e são aprovadas as contas, a N...,SGPS é uma empresa cotada tem obrigações fiscais e legais (...) todos os documentos financeiros estão perfeitamente disponíveis, contabilísticos (...) agora o que está em causa é o pedido ter sido efectuado à OT..., SA., que é uma empresa que é distinta, da empresa que no fundo deveria fazer essa prova”.
DD. Ora, aqui chegados, urge esclarecer o seguinte: de acordo com a alínea b) do nº 1 do artº 2º do Código do Imposto de Selo, são sujeitos passivos do imposto, as entidades concedentes do crédito e da garantia ou credoras de juros, prémios, comissões e outras contraprestações.
EE. No caso, a OT..., SA. é o sujeito passivo do imposto, não liquidou imposto e invocou uma isenção.
FF. Logo é sobre a OT..., SA., impugnante, que recai o ónus da prova da isenção que invoca.
GG. Então, os documentos destinados à comprovação da situação de isenção invocada, foram solicitados à entidade a quem incumbia, legalmente, a sua apresentação.
HH. Pelo que, no fundo, o motivo indicado pelas testemunhas não legitima a falta de prova, pois a solicitação da prova (do motivo “carência de tesouraria”) foi bem dirigida à recorrida,
II. Do referido pelas testemunhas, a Fazenda Pública conclui que a prova documental exigida, era possível (sem prejuízo, como é obvio, da sua análise).
JJ. Se a impugnante não apresentou, como o poderia e devia fazer, em cumprimento do ónus da prova que lhe incumbia, não pode o Tribunal concluir que a prova foi feita, valorando então mais a prova testemunhal e uma pequena amostragem de documentos ou mapas que poderia e deveria apresentar, em detrimento da prova necessária para concluir como concluiu, “nos períodos em que a Impugnante procedeu a operações financeiras com a N...,SGPS, o que fez por motivos de carência de tesouraria. E apenas por este motivo.”
KK. Na realidade, a impugnante escuda-se no facto de ser detida pela N...,SGPS que como referiu a 1ª testemunha (6.30 da gravação) “não tem actividade operacional própria, gere a alocação de dinheiros entre as empresas participadas e na existência dos contratos que exibiu à AT, outorgados pela SGPS e pela Impugnante, ali qualificados como “destinados à cobertura de carências de tesouraria da N...,SGPS a funcionar como sistema de conta corrente”.
LL. E, que as utilizações de crédito previstas no contrato encontram-se isentas de Imposto de Selo sobre o capital e juros, por força do artº 7º nº 1 alínea g) do Código do Imposto de Selo.
MM. Ou seja, a impugnante não liquidou imposto porque, no fundo, o destino dos fluxos financeiros que transferiu para a sociedade-mãe, estava fixado no contrato e bem como a qualificação da operação, como isenta.
NN. Ora, aqueles contratos constituem mera forma jurídica que, como é óbvio, pode ter ou não ter adesão na realidade. Ou seja, mesmo que se entendesse que a execução rigorosa do contrato, na realidade não geraria operações tributáveis, daí não decorreria, de per si, que essa execução rigorosa tivesse efectivamente ocorrido na realidade, o que sempre haveria que demonstrar, e no caso não foi feito.
OO. Ou seja, é uma questão de boa-fé entre as partes, que refira-se, não permite demonstrar o que competia à impugnante provar: que as operações financeiras efectuadas pela impugnante à sociedade-mãe N...,SGPS foram exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria, como a lei impõe.
PP. Ante o exposto, não existindo sequer quaisquer documentos que demonstrem tais carências de tesouraria da N...,SGPS, uma vez que os contratos e os documentos nº 5 e nº 6 nada demonstram, e a prova testemunhal apresentada nada demonstrou em concreto quanto às operações em causa, não vislumbra a Fazenda Pública a extracção da conclusão pelo Tribunal recorrido que “considerou como provado que nos períodos em que a Impugnante procedeu a operações financeiras com a N...,SGPS, o que fez por motivos de carência de tesouraria. E apenas por este motivo.”
QQ. À questão da insuficiência da prova apresentada pela recorrida acresce ainda uma outra que intimamente conectada com a primeira e respeita ao conceito “carência de tesouraria”.
RR. Das declarações da 2ª testemunha, podemos concluir que na sua grande maioria, os fluxos financeiros da impugnante para a “N...,SGPS”, se destinam afinal ao financiamento de outras participadas.
SS. Assim à pergunta “Que carências são essas?” formulada pela Fazenda Pública a testemunha respondeu: (gravação aos 1.07.01) “A N...,SGPS é uma empresa que não tem um negócio propriamente dito, não tem receitas de clientes como a OT..., SA. ou a N... (...) A N...,SGPS é SGPS que no fundo tem um financiamento bancário, tem dívida tem comissões bancárias a liquidar, tem os juros dessa dívida (...) é ela que no fundo presta também financiamento às suas subsidiárias, porque no fundo infelizmente a N...,SGPS também tem muitas empresas que não geram liquidez, são deficitárias e efectivamente necessitam que a empresa mãe as financie e consiga cumprir com os compromissos de curto prazo que essas empresas têm junto dos seus fornecedores (...) e no fundo é fruto destes fluxos que ela efectivamente tem carências de tesouraria” – na gravação 1.08.31(...) destacado nosso.
TT. Continuando (gravação 1.09.00) “A N...,SGPS não é a empresa que tem o financiamento de todo o grupo, mas tem 95%, portanto todos os juros destes empréstimos todos, as comissões bancárias, as garantias bancárias, tudo isto é a N...,SGPS que suporta e ela por sua vez também tem salários que suporta obviamente a uma escala bastante menor do que uma OT..., SA. ou outras empresas do grupo (...) “Uma subsidiária que recorresse à banca iria ter um custo bastante superior aquele que a N...,SGPS lhe empresta (...), por outro lado porque a banca muitas vezes não iria conceder crédito, até poderia dizer que não, àquela empresa, fruto da sua deficiente situação financeira. (...) E obviamente que no fundo ela também ao buscar excedentes que existem nas outras subsidiarias, no fundo, em termos consolidados, é mais eficiente, esta gestão de tesouraria porque efetivamente a OT..., SA. - (a impugnante) - também consegue, por sua vez, obter uma remuneração superior àquela que conseguiria obter junto do Banco.”
UU. Atenta esta factualidade, afigura-se que as cedências de fundos da impugnante para a N...,SGPS, se destinam a permitir o financiamento, e financiamento a custo inferior de outras subsidiárias, por um lado, garantindo, concomitantemente, uma maior rentabilidade para a Impugnante; e não como prevê a norma constante da alínea g) do artº 7º do CIS, a isentar empréstimos da participada à participante, para cobrir pontuais carências de tesouraria desta.
VV. Assim, decidindo o Tribunal a quo como decidiu, ao considerar que foi feita a prova necessária pela impugnante, incorreu, não só em deficiente fundamentação, mas também e principalmente, em de erro de julgamento na matéria de facto por valoração errada da prova produzida e consequentemente, na aplicação do direito, por violação do art. 7º, n.º 1, al. g) do Código do Imposto de Selo.
Termos em que, Deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, com as legais consequências.»
1.2. A C..., S.A. (Recorrida), notificada da apresentação do presente recurso, apresentou contra-alegações, que conclui do seguinte modo:
«1. Nos presentes autos, discute-se a legalidade da liquidação nº 20...724, relativa Imposto do Selo (IS) e respectivos juros compensatórios do ano de 2006, no valor global de € 336.805,73.
2. Em causa está a desconsideração, por parte da Autoridade Tributária (AT), da isenção de imposto de selo, prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7 º do Código do IS, nas cedências de fundos, a título de operações financeiras, efectuadas pela impugnante em beneficio da sociedade N...,SGPS, a qual, a 31 de Dezembro de 2006, detinha 50,94% do seu capital, bem como a totalidade do da St..., S.A., titular da parte remanescente do capital da impugnante.
3. Confrontado com aqueles fundamentos da liquidação de imposto objecto de impugnação, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto considerou que os mesmos são ilegais, tendo concluído, com efeito, pela respectiva anulação.
4. A decisão em referência teve na sua base a seguinte matéria de facto, considerada provada “na conjugação entre os documentos e informações constantes do processo e os depoimentos das testemunhas indicadas pela impugnante, os quais foram apreciados de acordo com as regras da experiência comum”. Com efeito, a respeito da prova documental produzida nos autos, o Tribunal teve em consideração os depoimentos produzidos por AA, economista, trabalhador na impugnante e BB, economista, trabalhador da impugnante, tendo considerado que os mesmos depuseram de forma clara, escorreita, sem hesitações, denotando isenção e distanciamento sobre a matéria em causa nos presentes autos e dessa forma considerou o Tribunal os respectivos depoimentos credíveis, tendo ambos referido que os montantes em cause emprestados pela Impugnante às sociedades em causa nos presentes autos se efectuaram apenas e somente por motivos de carências de tesouraria destas.
5. A convicção do Tribunal foi, assim, formada com base no depoimento das testemunhas e no teor dos documentos juntos com a Petição inicial, designadamente os documentos n.º 4 – cópia do contrato de operações financeiras, onde se estabelece, na cláusula primeira para que efeitos é estabelecida a linha de crédito, sendo estes exclusivamente de cobertura de carências de tesouraria – n.º 5 e n.º 6, devidamente explicados pela testemunha BB, os quais, nos critérios do decisão, se mostraram fundamentais para se considerar como provados os factos nº 5, 6, 7 e 8 indicados na sentença.
6. A recorrente entende que o Tribunal a quo incorreu, não só numa deficiente fundamentação, mas, também e principalmente, num erro de julgamento da matéria de facto por valoração errada da prova produzida e, consequentemente, num erro de aplicação do direito, por violação da alínea g) do n.º 1 do artigo 7 º do Código do IS.
7. Ao invés, a recorrida é da opinião de que a decisão de que vem interposto o presente recurso não merece censura na apreciação que faz dos factos provados por via documental e no direito mobilizável, não lhe sendo imputável qualquer erro de julgamento de facto ou de direito, por a mesma se encontrar em conformidade com as exigências de fundamentação impostas pelo artigo 123º do CPPT e pelos nº 2 e 3 do artigo 659º do CPC, ou, bem assim, qualquer nulidade das previstas no artigo 125º do CPPT e no artigo 668º do CPC.
8. Na verdade, não pode deixar de reconhecer-se que, não só a sentença é eximia no modo como identifica o objecto de litígio, sintetiza a pretensão da impugnante e a posição do representante da Fazenda Pública e os respectivos fundamentos, como o é no modo como fixa a questão que ao tribunal cumpre solucionar e no modo como fundamenta – de facto e de direito – as suas decisões. Percebe-se que o tribunal procede a um exame detido da prova documental apresentada, apreciando-a, censurando-a e valorando-a ao ponto de a estabilizar e de com ela consubstanciar as suas opções de direito.
9. Em rigor, o tribunal, depois de proceder, como sempre se lhe imporia, a uma avaliação da aptidão dos factos para integração de normas mobilizáveis na discussão das questões jurídicas suscitadas, criou uma convicção probatória que verteu, no capítulo que destinou à factualidade provada. Uma vez dado este passo, o Tribunal recorrido concretizou a sua motivação numa exposição de direito fundamentada e rigorosamente balizada pelos factos que deu como estabilizados quanto ao seu valor probatório em capítulo autónomo e prévio.
10. Por outro lado, vigora no processo tributário português o princípio da livre apreciação da prova ínsito no artigo 607.º, n.º 5 do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.”), al. e) do CPPT, segundo o qual ao tribunal de recurso apenas é permitida a modificação da matéria de facto fixada no tribunal a quo se ocorrer erro manifesto ou grosseiro na sua apreciação, ou se os elementos documentais fornecerem uma resposta inequívoca em sentido diferente, o que não é obviamente o caso dos autos. A este respeito deve ser tido em conta, entre outros, o teor do decidido no Acórdão do TCA Sul, de 31/10/2013, no âmbito do processo n.º 06531/13.
11. Não suscita também qualquer dúvida na doutrina e jurisprudência nacionais a conclusão segundo a qual não se verifica erro manifesto ou grosseiro na apreciação da prova testemunhal quando não exista no processo prova documental que corrobore os depoimentos, justamente porque, como se disse, a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal – nos termos do artigo 396.º do CC –, salvo se estivermos perante factos para cuja prova a lei exija formalidade especial – cfr. a 2.ª parte do n.º 5 do artigo 607.º, n.º 5 do CPC – (vide, por todos, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no âmbito do processo n.º 01220/06, de 06/12/2014). Ou seja, ao contrário do que defende a recorrente nas suas alegações, a circunstância de ter sido realizada prova testemunhal prescinde/não impõe a prestação simultânea (muito menos preferencial) de prova documental que a corrobore, uma vez que ela é um meio de prova idóneo, sujeito à livre apreciação do decisor.
12. A posição da recorrente parece circunscrever-se à ideia de que, no caso concreto, seria forçoso que a prova se produzisse por um único meio – o documental – com prejuízo para todos os outros. A matéria em crise está, na sua opinião, unicamente dependente de prova documental, nenhum valor ou sentido podendo ser extraído dos outros meios probatórios adicionalmente utilizados, em reforço e para esclarecimento dos puramente documentais. Sucede, porém, que esta ideia é fortemente infirmada, quer por via da disciplina legal aplicável —designadamente, a do artigo 115.º do CCPT e a do artigo 72.º da LGT –, quer ainda por via da doutrina e jurisprudência relacionadas. Daquelas normas e desta doutrina e jurisprudência decorre que não valem no processo de impugnação judicial quaisquer limitações de prova que não resultem de proibições gerais de meios de prova. Nestes termos, não poderão considerar-se obstáculo à averiguação da verdade material limitações probatórias estabelecidas pelos próprios particulares ou pela lei para vigorarem no âmbito das relações contratuais, sob pena de violação da garantia constitucional do acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos (cfr. artigo 20.º, n.º 1 da CRP).
13. Na mesma linha, e dando concretização, a nível do procedimento administrativo a esse princípio, no artigo 87.º, n.º 1 do CPA, determina-se que “o órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito”. Assim, por determinação constitucional, no procedimento administrativo não há outras limitações probatórias que não sejam as derivadas das proibições gerais em matéria de meios de prova, o que, de resto, é também aplicável à actividade da administração tributária e no domínio do procedimento tributário, que é um tipo especial de procedimento administrativo.
14. Daqui é, pois, possível retirar que, dispondo a AT de elementos contabilísticos susceptíveis de resolver a dúvida relacionada com o destino dos meios financeiros concedidos ao abrigo dos contratos em causa, como sugere dispor, ter-lhe-ia sido exigível que os usasse, em sede inspectiva, com aquela finalidade. Não tendo este sido o caso, fica-se com a sensação de que a descoberta da verdade material é algo que interessa menos à AT do que a alegação de falta de demonstração documental das carências.
15. Além de não existir qualquer erro de julgamento de facto, na Sentença não é, além disso, possível identificar um qualquer erro de julgamento de direito, susceptível de gerar a sua anulabilidade.
16. Em termos genéricos e comuns, descreve-se uma situação de carência de tesouraria como a de insuficiência de disponibilidades monetárias para fazer face a compromissos de pagamento. Trata-se, pois, de um conceito com uma dose substancial de indeterminação, que cabe essencialmente aos responsáveis pela gestão económica e financeira das empresas preencher, consoante os planos e as necessidades concretas destas, de que apenas eles têm conhecimento directo: não é à AT que compete formular juízos a respeito da bondade dessas decisões de gestão, mas apenas a respeito do impacto fiscal das mesmas atenta, contudo, a vontade que as partes (de boa-fé) exprimiram no acto de contratação.
17. No caso sub judice essa necessidade foi identificada como uma situação de insuficiência de tesouraria, que exigiu a criação formal de uma conta corrente de empréstimos, a qual assumiu a função de enquadramento das operações em causa – na verdade, não sendo de todo exigível a adopção deste formalismo, foi o mesmo instituído com a finalidade de nele virem a ser expressamente revelados os objectivos das referidas operações de financiamento –, razão pela qual existe a eventualidade de a carência de tesouraria não poder ser directa e facilmente identificável numa determinada data (mais uma vez, atendendo ao facto de que as decisões de gestão são muitas vezes tomadas com base num critério de previsibilidade e expectativa).
18. Esse facto não significa, porém, que ela não exista; é que ela “não existe”, precisamente, porque, de modo preventivo, a recorrida acedeu a colmatar as referidas insuficiências – a interpretação da alínea g) do n º 1 do artigo 70º do Código do IS não pode deixar de atender aos critérios de prudência que devem nortear (e norteiam) um bom gestor.
19. Não é necessário, portanto, para a identificação, pela AT, de uma situação de carência de tesouraria, para que esta possa identificar, por exemplo, um efectivo incumprimento de uma obrigação por falta de meios de caixa. Pelo contrário, bastar-lhe-á, tão somente, poder verificar que, na data do recurso ao financiamento, existem fortes expectativas (ou dados certos) da verificação dos compromissos) de curto prazo.
20. Seja como for, a verdade é que, da documentação fornecida pela recorrida à AT, retira-se claramente que os fundos por ela transferidos para a N...,SGPS se destinaram a satisfazer compromissos correntes.
21. Conforme vimos, as necessidades permanentes de tesouraria desta sociedade resultam evidentes dos movimentos registados, a débito e crédito, pelas contas correntes de financiamento estabelecidas com a impugnante. Tendo em conta alguns exemplos desses registos – levados, de resto, ao conhecimento dos inspectores tributários (que os não interpretaram ou não quiseram interpretar) –, conclui-se que os movimentos de financiamento são sempre de curto prazo, variáveis, sujeitos a grandes oscilações (cfr. documentos n.º 5 e n.º 6). Em todos os financiamentos referidos na Fundamentação, é possível identificar, nas contas da N...,SGPS, vários momentos em que o valor financiado é integramente restituído – na vida do contrato – à recorrida (cfr. documentos n.º 5 e n.º 6).
22. Ora, tal só pode significar que as necessidades de tesouraria da sociedade destinatária dos empréstimos são efectivas; isto é, que nela se verificam solicitações de tesouraria, de montante variável, sempre reembolsáveis a curto prazo.
23. Nestes termos, os actos de liquidação impugnados encontram-se feridos de ilegalidade, por violação, desde logo, do nº 3 do artigo 22º da LGT, e ainda dos invocados artigos 7º, n.º 1, alínea g), do CIS, 58º, 74º, nº 1, 75º, nº 1, 76º, n. 1, 77º, todos da LGT, 125º, nº 1, do CPA, 342º, 344º, nº 1, 350º, nº 1, todos do CC, e 268º, nº3, da Constituição.
TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO IMPROCEDENTE, POR NÃO PROVADO, E A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA INTEGRALMENTE MANTIDA.»
1.3. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer a fls. 470 SITAF, no sentido da procedência do recurso.
1.4. Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos (cfr. art. 657º, n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC), submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.
Questões a decidir:
As questões sob recurso e que importam decidir, suscitadas e delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, são as seguintes:
Se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto ao dar por provados os conteúdos dos itens 6) e 8) do probatório, falta de motivação do julgamento de facto e análise crítica da prova em sede de motivação;
Se a sentença recorrida incorreu em deficiente fundamentação e erro de julgamento de direito ao concluir que as operações financeiras que estão na génese da liquidação impugnada preenchem os pressupostos de isenção prevista no artigo 7º, n. º 1 al. g) do Código de Imposto de Selo (na redacção à data dos factos).
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. De facto
2.1.1. Matéria de facto dada como provada e não provada na 1ª instância e respectiva fundamentação:
«Factos provados
1. A Impugnante C..., S.A. incorporante por fusão da OT..., SA. foi objecto de inspecção tributária externa referente ao ano de 2006, realizada em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2...081 de 07 de Fevereiro de 2008, que se iniciou a 10 de Março de 2008 – cf. Relatório de Inspecção Tributária, constante do Processo Administrativo apenso aos autos;
2. A Impugnante tem sede no Lugar ..., x... e exerce a actividade de “implementação de redes de telecomunicações, operações e exploração de redes e serviços de telecomunicações e, ainda, no fornecimento e comercialização de equipamentos de telecomunicações”, correspondendo-lhe o CAE 64200 – cf. relatório de Inspecção Tributária constante do Processo Administrativo apenso aos autos;
3. No âmbito do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, a Impugnante encontra-se sujeita ao regime geral de tributação e no âmbito de Imposto sobre o Valor Acrescentado encontra-se enquadrada no regime normal com periodicidade mensal – cf. Relatório de Inspecção Tributária constante do Processo Administrativo apenso aos autos;
4. Finda a Inspecção Tributária identificada em 1., foi elaborado Relatório de Inspecção Tributário, o qual se considera aqui integralmente reproduzido e no qual consta:
“III.2.3 – Imposto do Selo
III.2.3.1 – Cedência de Fundos à N...,SGPS sob a forma de Operações de Tesouraria não isentas
Pela análise à rubrica de aplicações de tesouraria do Sujeito Passivo, verificamos que este concedeu, no exercício de 2006, fundos à entidade N...,SGPS (...).
Em 31 de Dezembro de 2006 a N...,SGPS detinha 50.94% do capital da OT..., SA. A N...,SGPS detém, ainda, 100% da St..., S.A., que por sua vez detém a parte restante da OT..., SA., ou seja, 49.06%.
A concessão de crédito acordada foi contabilizada na Conta 18200001 – Outras aplicações Tesouraria/Grupo e rege-se por três contratos, celebrados pelas duas entidades, os quais vigoram pelos seguintes períodos de tempo:
1º contrato: assinado em 12 de Agosto de 2005, com linha de crédito disponibilizada por 364 dias, contados da data da assinatura;
2º contrato: assinado em 18 de Agosto de 2006, com linha de crédito disponibilizada por 111 dias, contados da data da assinatura;
3º contrato: assinado em 14 de Dezembro de 2006. Com linha de crédito disponibilizada por 364 dias, contados da data da assinatura.
(…)
Relativamente às operações de crédito contabilizadas na conta POC 18200001, foi solicitado ao sujeito passivo para comprovar a liquidação de Imposto de Selo nestas operações. Veio este responder que não efectuou nenhuma liquidação de Imposto Selo pelo facto de não estar obrigado, tendo fornecido os contratos entre as partes que lhes dão origem.
No seguimento desta resposta, notificámos o Sujeito Passivo (...), para que, relativamente às aplicações financeiras contabilizadas na Conta 18200001, no ano de 2006, justificar ao abrigo de que norma não ocorreu qualquer liquidação de Imposto Selo, nomeadamente demonstrar, de acordo com o n.º2 do art. 14º da Lei Geral Tributária, se as mesmas se destinam à cobertura de carências de tesouraria reconhecidas pelas contrapartes da operação nos contratos supra identificados.
Em resposta à notificação, (...) o sujeito passivo veio informar que “as operações financeiras efectuadas pela OT..., SA., na N...,SGPS, durante o exercício de 2006, estão isentas de Imposto Selo ao abrigo do art. 7º, n. º1 g) do Código do Imposto Selo, e destinam-se aos fins acordados entre as partes, nos contratos entre elas celebrados, nomeadamente os montantes utilizados destinam-se exclusivamente para a cobertura de carências de tesouraria correntes”
Os contratos celebrados entre as duas entidades, denominados “contrato de Operações Financeiras” estabelecem uma linha de crédito, entre outras, com as seguintes indicações:
Refere na cláusula primeira que “a OT..., SA. estabelece a favor da N...,SGPS, uma linha de crédito, no montante máximo de EUR. 75 000 000, cujos montantes serão utlizados exclusivamente para a cobertura de carências de tesouraria corrente e funcionará em sistema de conta-corrente”;
Refere na cláusula terceira que “as utilizações ao abrigo do presente contrato devem ser solicitadas pela N...,SGPS”. Esta cláusula refere ainda que “os movimentos de reembolso de cada utilização, restabelecem a possibilidade de o reutilizar e processar-se-ão por crédito da conta DO indicada pela OT..., SA.”;
A cláusula quarta estabelece a taxa de juro e contagem de juros;
A cláusula sexta de cada um dos contratos, refere ainda que as referidas utilizações de crédito se encontram “isentas de Imposto Selo sobre o capital e juros, por força do art. 7º n. º1 alínea g) do Código do Imposto Selo.”
(…)
c.1) Da natureza das operações praticadas
Da análise à resposta à notificação é possível observar através nos três contratos fornecidos que “a OT..., SA. pretende estabelecer um contrato destinado à cobertura de carências de tesouraria da N...,SGPS”.
Por outro lado, os elementos contabilísticos da OT..., SA. reflectem que o 1º contrato teve o seu início em 12 de Agosto de 2005 pelo prazo improrrogável de 364 dias, o 2º contrato teve o seu início em 18 de Agosto de 2006 pelo prazo improrrogável de 111 dias e o 3º contrato teve o seu início em 14 de Dezembro de 2006 pelo prazo improrrogável de 364 dias.
Em virtude da utilização do capital utilizado no âmbito daqueles contratos a OT..., SA. debita jutos à N...,SGPS os quais contabiliza na conta 78151100 – Outras Aplicações Tesouraria – Grupo.
As cedências de fundos sob análise configuram aplicações de tesouraria de curto prazo e remuneradas, de qualquer forma não sendo possível na esfera da OT..., SA. aferir do requisito da existência de carências de tesouraria na N...,SGPS, resta-nos então avaliar a situação na esfera desta entidade
5.A Impugnante encontra-se incluída na política de centralização ou gestão consolidada da tesouraria de todo o Grupo em que se insere, o qual tem por objectivo a redução da sua dependência económica de empréstimos exteriores – facto alegado pela Impugnante na Petição Inicial, por si confirmado em sede de inquirição de testemunhas;
6.As notificações realizadas pela N...,SGPS, nos termos do contrato de operações financeiras em vigor, são levadas e efeito, única e exclusivamente, para os fins previstos naquele, designadamente, para satisfação de carências de tesouraria – facto que resulta dos depoimentos prestados em sede de inquirição de testemunhas;
7.Esta é uma forma de financiamento interno, sem recurso à banca, que representa custos mais baixos – facto que resulta dos depoimentos prestados em sede de inquirição de testemunhas;
8.No seguimento do referido em 5., 6. e 7., a Impugnante procedeu a cedências de fundos, a título de operações financeiras;
9.Os presentes autos deram, neste Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, em 23 de Dezembro de 2008 – cf. data de envio de fax a fls.2 e seguintes dos autos.
10.Em 20.12.2013 a Impugnante procedeu ao pagamento da quantia de €311 677. 33, devidos a título de Imposto Selo – veja-se demonstração de liquidação de Imposto Selo a fls. 89 dos autos e comprovativo de pagamento a fls. 348 dos autos, numeração referente ao processo civil.
Factos não provados
Para a decisão da causa, sem prejuízo das conclusões ou alegações de matéria de direito produzidas, de relevante, nada mais se provou.
*
Fundamentação da matéria de facto:
A decisão da matéria de facto, consonante ao que acima ficou exposto, efectuou-se na conjugação entre os documentos e informações constantes do processo e os depoimentos das testemunhas indicadas pela Impugnante, os quais foram apreciados de acordo com as regras da experiência comum.
Assim AA, economista, trabalhador na impugnante e BB, economista, trabalhador da Impugnante, depuseram de forma clara, escorreita, sem hesitações, denotando isenção e distanciamento sobre a matéria em causa nos presentes autos e dessa forma considerou o Tribunal os respectivos depoimentos credíveis, tendo ambos referido que os montantes em causa emprestados pela Impugnante às sociedades em causa nos presentes autos se efectuaram apenas e somente por motivos de carências de tesouraria destas.
O depoimento das testemunhas e os documentos juntos com a Petição inicial, designadamente os documentos 4, cópia do contrato de operações financeiras, onde se estabelece, na cláusula primeira para que efeitos é estabelecida a linha de crédito, sendo estes exclusivamente de cobertura de carências de tesouraria; e ainda os documentos 5 e 6, devidamente explicados pela testemunha BB, mostraram-se fundamentais para se considerar como provados os factos n.º 5, 6, 7 e 8.»
2.1.2. Aditamento oficioso
Pela pertinência para a decisão da causa e atendendo ao disposto no artigo 662º, nº 1 do CPC, nomeadamente em complemento e densificação do item 4. Do probatório, procede-se ao aditamento da seguinte matéria:
11. Para além da transcrição do Relatório de Inspecção Tributária transcrita no item 4. consta ainda que:
« c.2) Da situação financeira na esfera do beneficiário:
Importa avaliar se os meios financeiros concedidos pela OT..., SA. à N...,SGPS, se destinaram de facto a suprir necessidades de tesouraria desta.
Relativamente a esta questão é de salientar que:
Tendo em consideração que existem carências de tesouraria quando os fundos de curto prazo disponíveis numa empresa (activos) são insuficientes para fazer face aos compromissos / obrigações (passivo), com referência ao mesmo horizonte temporal, então o sujeito passivo para demonstrar o pressuposto da isenção em causa deveria ter apresentado, relativamente à data, ou num espaço temporal próximo em que os fundos foram concedidos à N...,SGPS, que os respectivos meios de caixa48, que em conformidade com a Directriz Contabilística 14, ponto 3 Definições – “para efeitos da presente Directriz, aos termos a seguir indicados é atribuído um significado específico, a saber: Caixa – compreende o numerário e os depósitos bancários imediatamente mobilizáveis;” se revelavam inferiores aos passivos a incorrer ainda que o grau de liquidez dos activos disponíveis seja pelo menos igual ao prazo de exigibilidade dos passivos a incorrer, demonstrando nesse momento a existência de tesouraria negativa ou em ruptura.
Acresce que sendo a tesouraria de uma empresa deficitária num determinado momento, salvo as situações de tesouraria deficitárias permanentes, o que nos remete para desequilíbrios na estrutura de capitais, relativamente ao qual a empresa necessita de fundos para fazer face a essa carência, os elementos comprovativos da isenção controvertida deverão ser reportados a esse preciso momento, conforme refere Hélder Caldeira Menezes em “Elementos para o estudo da estrutura financeira da empresa”.
Desta forma não demonstrou o sujeito passivo o pressuposto da isenção, designadamente através da apresentação de mapas de tesouraria da N...,SGPS, que comprovassem a insuficiência de meios financeiros face às obrigações a que tinha que incorrer.
Neste seguimento refira-se que, uma vez que a condição sob análise “existência de carências de tesouraria” se verifica em sede do beneficiário do crédito, então parece lógico que só perante as Demonstrações Financeiras e elementos relacionados da N...,SGPS, entidade que tem o encargo do imposto e beneficiar de uma eventual isenção, o sujeito passivo estaria apto a comprovar à Administração Fiscal, o pressuposto da isenção.
A este propósito convoca-se o disposto no art.º 74º da LGT, com a epígrafe “Ónus da prova”. De acordo com o seu n.º 1, “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.” daqui resultando que a “administração tributária terá o ónus da prova dos pressupostos dos factos constitutivos dos -direitos-que-pretender exercer no procedimento, enquanto-os-sujeitos-passivos terão o ónus de provar os factos que possam servir de suporte à concretização desses direitos.” – cfr. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de-Sousa in Lei Geral Tributária comentada e anotada, 3ª edição.
Não sendo possível isentar as operações em causa de Imposto do Selo, terá que se determinar o valor tributável, que de acordo com a regra geral disposta no nº 1 do art.º 9º do CIS, “é o que resulta da Tabela Geral”, sendo as taxas do imposto “as constantes da Tabela anexa em vigor no momento em que o imposto é devido” (n.º 1 do art.º 22º do CIS), não podendo haver “(...) acumulação de taxas de imposto relativamente ao mesmo acto ou documento”, conforme o n.º 2 do art.º 22º do CIS.
Em conformidade com a verba 17.1. da Tabela Geral do Imposto do Selo, que de seguida se transcreve: “17. Operações Financeiras: 17.1. Pela utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título, incluindo a cessão de créditos, o factoring e as operações de tesouraria quando envolvam qualquer tipo de financiamento ao cessionário, aderente ou devedor, considerando-se, sempre, como nova concessão de crédito a prorrogação do prazo do contrato – sobre o respectivo valor, em função do prazo: 17.1.4. Crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30 – 0,04%”, o valor tributável é apurado através da média mensal da soma dos saldos em dívida, evidenciados na Conta 18200001 – Outras Aplicações de Tesouraria / Grupo, ao qual deve ser aplicada a taxa de 0,04%.
Ocorre ainda, que pelo disposto no n.º 1 do art.º 23º do CIS, “a liquidação do imposto do selo compete aos sujeitos passivos referidos no n.º 1 do artigo 2º” do mesmo diploma, sendo que “sempre que, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação ou a entrega de parte ou da totalidade do imposto devido, acrescerão ao montante do imposto juros compensatórios, de harmonia com o artigo 35º da LGT”, pelo disposto no n.º 1 do art.º 40º do CIS.
Vem ainda, o n.º 2 do art.º 40º do CIS, referir que os juros compensatórios “serão contados dia a dia, a partir do dia imediato ao termo do prazo para a entrega do imposto ou, tratando-se de retardamento da liquidação, a partir do dia em que o mesmo se iniciou, até à data em que for regularizada ou suprida a falta”.
Como o sujeito passivo não efectuou a correspondente liquidação do Imposto Selo, serão devidos juros compensatórios, nos termos do n.º 10 do art.º 35º da Lei Geral Tributária, sendo “a taxa dos juros compensatórios é equivalente à taxa dos juros legais fixados nos termos do nº 1 do artigo 559º do Código Civil”, que se encontra fixada pela Portaria n.º 291/ 2003 de 8 Abril, em 4%.
Por fim, importa saber, que o pagamento do Imposto é efectuado pelas pessoas ou entidades a quem compete a liquidação, conforme disposto no art.º 41º do CIS, pelo que será a OT..., SA. a entidade a proceder ao pagamento do Imposto do Selo.
Face ao exposto e atendendo ao facto da justificação apresentada pelo sujeito passivo não comprovar que os fundos concedidos sob a forma de conta corrente, se destinavam a cobrir carências de Tesouraria, estes não se encontram isentos de liquidação de Imposto do Selo ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do art.º 7º do CIS, pelo que se apurou imposto em falta…» - cf. fls. 123 a 124 do Processo Administrativo.
2.2. De direito
Nos presentes autos, discute-se a legalidade da liquidação nº 20...724, relativa a Imposto do Selo (IS) e respectivos juros compensatórios do ano de 2006, no valor global de € 336.805,73.
Em causa está a desconsideração, por parte da Autoridade Tributária (AT), da isenção de imposto de selo, prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7 º do Código do IS, nas cedências de fundos, a título de operações financeiras, efectuadas pela impugnante em beneficio da sociedade N...,SGPS, a qual, a 31 de dezembro de 2006, detinha 50,94% do seu capital, bem como a totalidade do da St..., S.A., titular da parte remanescente do capital da impugnante. A Recorrente (Fazenda Pública) insurge-se contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto pela qual foi julgada totalmente procedente a impugnação judicial contra a liquidação de IS e respetivos juros compensatórios, respeitante ao exercício de 2006, no valor global de €336 805.73.
Insurge-se a Fazenda Pública, alegando que a sentença enferma de erro de julgamento quer de facto quer de direito, por valoração errada da prova produzida ao dar como provado os itens 6. e 8. do probatório e, na aplicação do direito, por violação do artigo 7º nº1 alínea g) do Código de Imposto de Selo (CIS), ao considerar verificados os pressupostos da isenção ali prevista.
2.2.1. Da impugnação da matéria de facto – sua reapreciação
Prevendo acerca da modificabilidade da decisão de facto, consagra o artigo 662º do Cód. de Processo Civil os poderes vinculados deste Tribunal ad quem, estatuindo que:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Para que tal conhecimento se consuma, deve previamente o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus a seu cargo plasmado no artigo 640º do mesmo diploma, o qual dispõe que:
“1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada. E, tendo a Recorrente (FP) dado cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º, nº. 2, alínea a) e b), do Cód. de Processo Civil, nada obsta a que o presente Tribunal proceda à reapreciação da matéria factual fixada, operando-se, assim, à devida audição e ponderação da indicada prova, bem como à leitura dos excertos transcritos.
Não se desconhece que “para negar a admissibilidade da modificação da decisão da matéria de facto, designadamente quando esta seja sustentada em meios de prova gravados, não pode servir de justificação o mero facto de existirem elementos não verbalizados (gestos, hesitações, posturas no depoimento, etc.) insusceptíveis de serem recolhidos pela gravação áudio ou vídeo. Também não encontra justificação a invocação, como factor impeditivo da reapreciação da prova oralmente produzida e da eventual modificação da decisão da matéria de facto, da necessidade de respeitar o princípio da livre apreciação pelo qual o tribunal de 1ª instância se guiou ou sequer as dificuldades de reapreciação de provas gravadas em face da falta de imediação”.
Pelo que, poderá e deverá a Relação “modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado” [Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 285].
Estamos cientes de que o registo dos depoimentos “nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância.
Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador”.
Efectivamente, e esta é uma fragilidade que urge assumir e reconhecer, “o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo aos tribunais retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”.
Contudo, tais dificuldades não devem justificar, por si só, a recusa da actividade judicativa conducente à reapreciação dos meios de prova, ainda que tais circunstâncias ou fragilidades devam ser necessariamente “ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados” [Idem, pág. 285 a 287].
Vejamos, então:
Entende a Recorrente que atento o teor dos dois documentos (Doc. n.º 5 e 6 da PI), dois mapas, feitos em Excel, com descritivo dos movimentos de débito e crédito das contas-correntes e três contratos, designados por “Contratos de Operações Financeiras” e do depoimentos das testemunhas AA e BB, não podia o Tribunal recorrido extrair a conclusão de que nos períodos em que foram concedidos os fundos, ocorriam carências de tesouraria na Sociedade N...,SGPS (beneficiária dos “Contratos de Operações Financeiras”.
Considera, assim a Recorrente, que a prova apresentada foi insuficiente para o Tribunal dar como provados os seguintes pontos da base instrutória provada:
O narrado na alínea 6), de que “As notificações realizadas pela N...,SGPS, nos termos do contrato de operações financeiras em vigor, são levadas e efeito, única e exclusivamente, para os fins previstos naquele, designadamente, para satisfação de carências de tesouraria – facto que resulta dos depoimentos prestados em sede de inquirição de testemunhas;”.
E, com o referido na alínea 8) de que “No seguimento do referido em 5., 6. e 7., a Impugnante procedeu a cedências de fundos, a título de operações financeiras;”.
Sustenta ser mais do que evidente que a prova da “carência de tesouraria” não podia decorrer da prova testemunhal, mas sim de suporte documental susceptível de confirmar “...que as operações financeiras efectuadas pela impugnante à sociedade-mãe N...,SGPS foram exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria, como a lei impõe.” (cf. conclusões Z., OO. e PP.), demonstração essa da incumbência da Impugnante, pois sobre ela recai a prova da isenção que invoca (cf. conclusões FF. e NN.)
Concluindo a final, conclusão VV., que “... decidindo o Tribunal a quo como decidiu, ao considerar que foi feita a prova necessária pela impugnante, incorreu, não só em deficiente fundamentação, mas também e principalmente, em de erro de julgamento na matéria de facto por valoração errada da prova produzida e consequentemente, na aplicação do direito, por violação do art. 7º, n.º 1, al. g) do Código do Imposto de Selo.”
Ora, do conteúdo das alegações e conclusões apresentadas, decorre em sede de inconformismo com a matéria de facto fixada, duas questões, a saber, o conteúdo dos itens 6) e 8) do probatório, assente na afirmação que deles escoa de que as cedências de fundo ocorreram por “carências de tesouraria”, e da sua parca motivação e, como pilar do erro de julgamento de direito o recair sobre a impugnante do ónus da prova da verificação dos pressupostos inerentes a verificação da isenção que decorre do artigo 7º, n.º 1 al. g) do Código de Imposto de Selo.
Apreciando, iniciando pelos factos e sua motivação, cumpre reconduzir o erro sobre o ónus da prova para o plano do erro de julgamento de direito.
Como é sabido, independentemente da arguição da Recorrente, compete ao tribunal de recurso sindicar a natureza factual ou não dos juízos probatórios formulados pela instância recorrida que tenham relevo para apreciação das questões a resolver, procedendo à eliminação dos enunciados que, tidos como matéria de facto, se traduzam em puras afirmações de direito ou em juízos meramente valorativos vagos ou conclusivos.
Trata-se de uma apreciação em sede de direito que se impõe operar oficiosamente e que não é alcançada pelo preceituado no artigo 662.º, n.º 1, do CPC.
A questão que se nos coloca de antemão, é a de saber se, no caso concreto, a redacção dada aos pontos questionados [itens 6) e 8) da matéria de facto dada como provada] é destituída de qualquer substrato factual, “o que deve ser aferido não em termos absolutos, mas no respectivo contexto alegatório e de prova” – cf. ac. do STJ de 20.55.2020, in proc. 17084.17.5YIPRT.
Como é pacífico, além das afirmações de direito, também as conclusões (ou juízos conclusivos) não são factos: trata-se de matéria equiparável a matéria de direito, pelo que também se trata de alegações que são insusceptíveis de constar na decisão que venha a ser proferida sobre a matéria de facto em discussão numa determinada acção.
“Os factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo, desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos forem considerados provados ou não provados, toda a acção seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência), com base nessa única resposta”.
Por outro lado, “quando se fala em matéria de direito, estamos a referirmo-nos aos conceitos estritamente jurídicos que não têm qualquer sentido corrente… Tem sido entendido que podem ser consideradas matéria de facto expressões que são utilizadas simultaneamente em sentido corrente e jurídico, a não ser que face à natureza da acção, seja precisamente esse o objecto da disputa ou controvérsia entre as partes e dele dependa a resolução das questões jurídicas que no processo de discutem, constituindo nessa medida o objecto da própria decisão final da causa” [Helena Cabrita, in “A fundamentação de facto e de direito da decisão cível”, págs. 106, 110 e 111].
É certo que hoje não existe já nenhum normativo correspondente ao vetusto artigo 646º, n.º 4 do CPC que determinava terem-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito, a que se aplicava, por analogia, à matéria conclusiva.
Com efeito, como se retirava interpretativamente daquele preceito ("têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes") o direito aplicar-se-á a um conjunto de factos (confessados, aceites, documentados ou resultado das respostas à base instrutória) que não tenham a natureza de questões de direito e que sejam realidades demonstráveis e não juízos valorativos.
Tal preceito foi eliminado com o novo Código de Processo Civil.
No entanto, o princípio subjacente ao preceito não desapareceu, continuando hoje a vincar-se que, na fundamentação (de facto) da sentença, só os factos interessam.
Veja-se, nesse sentido, o artigo 607º, nº 4 do CPC que continua a referir que "Na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que foram admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou pelas regras de experiência".
Ou seja, antes como agora, a fundamentação (de facto) da decisão (sentença ou acórdão) só pode ser integrada por factos.
“Pode afirmar-se, em sentido muito simplificador, que uma conclusão implica um juízo sobre factos e estes, quando em si mesmos considerados, revelam uma realidade, compreensível e detectável sem necessidade de qualquer acréscimo dedutivo” – cf. acórdão da Relação do Porto de 07.10.2013, proferido nos autos 488/08.1TBVPA.
No mesmo sentido, refere o acórdão da Relação de Guimarães de 11.10.2018, proferido no âmbito do processo n.º 616/16.3T8VNF-D: “De resto, ainda que o actual CPC não inclua uma disposição legal com o conteúdo do artº 646º n.º 4 do pretérito CPC (o qual considerava não escritas as respostas sobre matéria de direito), é todavia nossa convicção que tal não permite concluir que pode agora o juiz incluir no elenco dos factos provados meros conceitos de direito e/ou conclusões normativas, e as quais, a priori e antecipada e comodamente, acabem por condicionar e traçar desde logo o desfecho da acção ou incidente, resolvendo de imediato o “thema decidendum”.
Ou seja, continua para nós a ser válido o entendimento de que o que importa é que a decisão de direito venha a ser resolvida no momento adequado, e tendo ela por base e objecto a realidade concreta apurada - factos concretos - e revelada nos autos por via da instrução, sendo então e de seguida - após aquela fixada - os subjacentes factos concretos objecto de valoração jurídica”.
No apelo ao defendido por Castanheira Neves [Matéria de Facto-Matéria de Direito», RLJ, Ano 129, pp.162-165], “existe, contudo, um continuum entre matéria de facto e matéria de direito e não uma oposição absoluta entre ambos os conceitos, pois na concreta aplicação do direito acaba por verificar-se uma correlatividade entre ambos os elementos”, mais acrescenta que urge partir “da unidade do caso jurídico decidendo e dos problemas jurídicos por si colocados, devendo distinguir-se dois tipos de questões: uma que se refere aos dados pressupostos pelo problema concreto – questão de facto – e outra que tem a ver com o fundamento e o critério do juízo e com o próprio e concreto juízo decisório – questão de direito. Na matéria de facto concorrem não apenas dados empíricos, mas todos os pressupostos objectivos do problema colocado, por exemplo, elementos sócio-culturais e até jurídicos” [idem, pág. 166 e 167].
Prossegue o distinto mestre, que “a tradição do nosso pensamento jurídico, no seguimento de Alberto dos Reis, considera que a actividade do juiz se circunscreve ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo, apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos”, afirmando que “tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória” [idem, pág.212] ;
Para Teixeira de Sousa [Estudos sobre o Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, p. 312], “a selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”.
Defendendo Abrantes Geraldes [Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 2.ª edição, 1999, p. 147] deverem “ser erradicadas da condensação as alegações com conteúdo técnico-jurídico de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem”.
Por fim, citando Lebre de Freitas [Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 637-638], e convocando o entendimento doutrinário e jurisprudencial, “as respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas e que se equiparam às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados”.
Ora, temos por líquido que a matéria de facto só deve integrar factos concretos e não formulações genéricas, de direito ou conclusivas, mormente quando, como iremos ver o caso, preencham, só por si, a hipótese legal, dispensando qualquer subsunção jurídica ou, dito de outro modo, traduzam uma afirmação ou uma valoração de facto que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta ou componente de resposta àquelas questões.
Aqui chegados, importa, pois, reverter para o caso concreto e verificar se a redacção que foi dada aos pontos questionados contem expressões conclusivas ou que possam ser consideradas como sendo matéria de direito, o que a ocorrer impede a reapreciação da prova propugnada pela Recorrente e a sua recondução aos factos não provados.
Como discorre da sentença sob recurso, a questão dos autos e a responder pelo tribunal é apenas uma “... a Administração Tributária considerou que se verificavam as duas primeiras condições e bem andou, uma vez que resulta dos contratos em causa, que os mesmos vigoram por período inferior a um ano e, por sua vez, existe uma relação de domínio entre a Impugnante e as sociedades com as quais aquela celebrou os contratos de operações financeiras./Assim sendo, apenas restaria ao Tribunal considerar ou não verificável na presente situação a última condição...”o crédito seja destinado exclusivamente à cobertura de carências de tesouraria”.
Questão essa colocada perante o tribunal a qual deverá ser aferida no respectivo contexto alegatório e de prova.
Ora, quer no ponto 6), quer no ponto 8), o Tribunal recorrido ali mencionou factualidade que assume natureza conclusiva e constitui matéria de direito, cujas afirmações por si deram resposta às questões de direito cuja resolução lhe era solicitada.
Não há dúvida que as frases “...única e exclusivamente, para os fins previstos naquele, designadamente, para satisfação de carências de tesouraria” e “a Impugnante procedeu a cedências de fundos, a título de operações financeiras”, têm cumulativamente um carácter conclusivo e contêm conceitos de direito e, por isso mesmo, não podem constar da matéria de facto.
Conclusões essas insusceptíveis de serem vertidas, in casu, na decisão sobre a matéria de facto, pois que a alusão a “carências de tesouraria” e “operações financeiras”, constituirão, não factos, pois contem em si o que importa concluir por via de factos que permitam chegar à resposta das questões jurídicas que definem o objecto da acção.
Nesta conformidade, na sequência do exposto, deverá, da matéria de facto, serem considerados como não escritos às menções sempre que o juízo de facto conclusivo traduza juízo de valor sobre a questão de direito, ou seja, quando ele traduza ou implique uma resposta antecipada à questão de direito em controvérsia no caso concreto.
A nível do julgamento da matéria de facto são proibidos os juízos conclusivos que impliquem a apreciação e valorização de determinados acontecimentos à luz de uma norma jurídica, no caso o artigo 7º, n.º 1 al. g) do Código de Imposto de Selo.
Na sequência do exposto, é eliminado da fundamentação de facto os itens 6) e o item 8) passa a ter a seguinte redacção:
8) No seguimento do referido em 5., e 7., a Impugnante procedeu a cedências de fundos;
Ultrapassada esta questão, importaria que o presente tribunal se pronunciasse sobre a impugnação da matéria de facto deduzida pela Recorrente.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões, a Recorrente impugnou a decisão da matéria de facto, tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1, als. a), b) e c) do CPC, pois que faz referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, indica os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ele propugnados, as passagens da gravação em que se funda o recurso, e a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida – não provados (se bem apreendemos o recurso intentado).
Em suma, em sede de erro de julgamento de facto, a pretensão da Recorrente, consistia na não manutenção daqueles segmentos “conclusivos”, a saber os referenciados nos itens 6) e 8) da fundamentação fáctica.
Pelo que, determinada que foi tal a eliminação dos mesmos, a reapreciação solicitada da prova perde qualquer sentido útil, o que se decide e consigna, dando-se por estabilizada a matéria de facto expurgada daquelas conclusões e conceitos jurídicos.
2.2.1. Do erro de julgamento de direito – da existência de uma situação de carência de tesouraria e ónus da prova
C..., S.A. (Impugnante, ora recorrida, que sucede a OT..., SA.) foi objecto de uma acção inspectiva em resultado da qual a AT procedeu a correcções de natureza meramente aritméticas, assente na concessão pela impugnante, no exercício de 2006, de fundos sob a forma de aplicações de tesouraria à sociedade N...,SGPS por entender que estas operações estão sujeitas a imposto do selo, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo e da verba n.º 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, não estando, portanto, a coberto da isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do mesmo Código, por a impugnante não ter comprovado que os fundos concedidos sob a forma de conta corrente se destinavam a cobrir carências de tesouraria.
Impugnante apresentou a presente impugnação invocando, entre outros fundamentos, que os fluxos financeiros em causa foram efectivamente contratados para responder a reais insuficiências de tesouraria da sociedade destinatária dos mesmos, pelo que estão verificadas as condições para a isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.
Em relação ao objecto dos autos, foi a seguinte a decisão proferida pela 1.ª Instância, que aqui transcrevemos atenta a sua singela fundamentação:
«O Imposto de Selo incide sobre todos actos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens – artigo 1º, nº1 Código do Imposto de Selo (CIS), ou seja, o Imposto de Selo incide sobre determinados actos ou contratos, sendo cobrado um valor fixo ou aplicada uma taxa ao valor do acto ou contrato.
Por sua vez, nos termos do artigo º2, nº 1, al. b) do CIS, são sujeitos passivos do imposto as “entidades concedentes do crédito e da garantia ou credores de juros, prémios, comissões e outras contraprestações”, que na presente situação é a Impugnante.
Não se colocando assim a questão de ilegitimidade suscitada pela Impugnante.
No entanto, nos termos do artigo 7º, nº 1, al g) do CIS, as “operações financeiras, incluindo os respectivos juros, por prazo não superior a um ano, desde que exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria e efectuadas por (...) sociedades gestoras de participações sociais a favor de sociedades por elas dominadas ou a sociedades em que detenham participações previstas no nº 2 do artigo 1º e nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 495/88 de 30 de Dezembro, e, bem assim, efectuadas em benefício da sociedade gestora de participações sociais que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo”
São assim condições cumulativas da isenção de Imposto de Selo nas operações financeiras que:
§ O crédito concedido não ultrapasse o prazo de um ano;
§ O crédito concedido pelas sociedades participadas em benefício da SGPS que com ela estejam em relação de domínio ou de grupo ou que o crédito seja concedido por sociedade gestoras de participações sociais a favor das sociedades por elas dominadas ou a sociedades em que detenham participações;
§ O crédito seja destinado exclusivamente à cobertura de carências de tesouraria.
Ora, a Administração Tributária considerou que se verificavam as duas primeiras condições e bem andou, uma vez que resulta dos contratos em causa, que os mesmos vigoram por período inferior a um ano e, por sua vez, existe uma relação de domínio entre a Impugnante e as sociedades com as quais aquela celebrou os contratos de operações financeiras.
Assim sendo, apenas restaria ao Tribunal considerar ou não verificável na presente situação a última condição.
Ora, como ressalta do vertido no Relatório e da petição Inicial de Impugnação, não existe uma verdadeira discussão jurídica nos presentes autos, mas antes, uma diferente análise dos factos e consequente prova.
Como resulta dos factos considerados provados, o Tribunal da análise dos documentos constantes nos autos e na sua conjugação com a prova testemunhal realizada nos autos, considerou como provado que nos períodos em que a Impugnante procedeu a operações financeiras com a N...,SGPS, o que fez por motivos de carência de tesouraria.
E apenas por este motivo.
Ora, assim se considerando, conclui o Tribunal que a Impugnante fez prova da verificação da terceira condição em causa, de tal forma que as operações financeiras em causa não se encontram sujeitas a tributação em sede de Imposto de Selo.» (fim de citação)
Perscrutado o teor da decisão recorrida, temos que a questão se mostra correctamente apresentada, no entanto não podemos de modo algum concordar com a fundamentação da mesma ao esgrimir a sua posição única e exclusivamente no conteúdo do item 6) da fundamentação fáctica, a qual este tribunal eliminou precisamente porque em si mesma comportava a resposta à questão jurídica. Pelo que cumpre a este tribunal ad quem ir mais longe e apurar da decisão à luz da nova factualidade expurgada dos conceitos jurídicos e factos conclusivos.
No entanto, desde já avançamos, se bem que com fundamentação distinta, o segmento decisório de procedência da sentença sob recurso é de manter.
Vejamos.
De acordo com o relatório de inspeção tributária – que sustentou a emissão da liquidação em causa, os serviços de inspeção concluíram que a Impugnante/Recorrida deveria ter liquidado imposto do selo no crédito concedido sob a forma de operações de tesouraria à N...,SGPS, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo e da verba 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, no montante de €311.677,33, por ter entendido que esta não comprovou que os fundos concedidos sob a forma de conta corrente se destinavam a cobrir carências de tesouraria, nos termos da alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º daquele Código.
Antes de mais importa fazer o respectivo enquadramento legal, anunciando as normas legais aplicáveis.
Nos termos do n.º 1 do artigo 1.º (Incidência Objectiva) do Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de setembro (na redacção dada pela Lei n.º 32-B/2002 de 30 de dezembro), na redação vigente à data dos factos em apreço, prevê que: “O imposto do selo incide sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis, e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.”
Por sua vez, a verba n.º 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto de Selo (TGIS) sujeita a Imposto do Selo as operações financeiras “Pela utilização de crédito, em virtude da concessão de crédito a qualquer título, incluindo a cessão de créditos, o factoring e as operações de tesouraria quando envolvam qualquer tipo de financiamento ao cessionário, aderente, ou devedor, (…) sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, sobre a média mensal da dívida obtida através da soma dos saldos apurados diariamente, durante o mês, divididos pelos dias em que se verificam.”
Decorre da conjugação do n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo e da verba n.º 17.1.4 Tabela Geral do Imposto de Selo (TGIS) que a utilização de crédito, em virtude da concessão de crédito a qualquer título está sujeito ao pagamento do imposto de selo.
Porém, decorre da alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do mesmo Código que ficam isentas do imposto “As operações financeiras, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, desde que exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria e efetuadas por sociedades de capital de risco (SCR) a favor de sociedades em que detenham participações, bem como as efetuadas por sociedades gestoras de participações sociais (SGPS) a favor de sociedades por elas dominadas ou a sociedades em que detenham participações previstas no n.º 2 do artigo 1.º e nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro, e, bem assim, efetuadas bem assim, efetuadas em benefício da sociedade gestora de participações sociais que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo.”
Da conjugação do n.º 1 do artigo 1.º, da alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo e da verba n.º 17.1.4 Tabela Geral do Imposto de Selo permite, concluir, que estão isentas de imposto, as operações financeiras, quando verificadas as seguintes condições:
(i) - A existência de operações financeiras (incluindo os respetivos juros), por um prazo não superior a um ano;
(ii) - Que as operações financeiras se destinem exclusivamente a suprir carências de tesouraria;
(iii) - Que as referidas operações sejam realizadas por sociedades de capital de risco (SCR) a favor de sociedades em que detenham participações, bem como as efetuadas por sociedades gestoras de participações sociais (SGPS) a favor de sociedades por elas dominadas ou a sociedades em que detenham participações previstas no n.º 2 do artigo 1.º e nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro, e, bem assim, as efetuadas em sentido inverso, ou seja, em benefício da sociedade gestora de participações sociais que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo.
No caso em apreço, como disso deu nota a sentença sob recurso, não estando em causa o preenchimento dos demais requisitos de aplicação da isenção, por se verificarem demonstrados e não serem controversos os (i) e (iii), importava e importa tão só aferir se as operações financeiras em contenda se destinam à cobertura de (ii) carências de tesouraria.
Na situação em apreço, resulta do probatório (item 4) que a N...,SGPS, a 31 de dezembro de 2006 detinha 50.94% do capital da Recorrida C..., S.A. (a época OT..., SA.), sendo que a N...,SGPS detém, ainda, 100% da St..., S.A., que por sua vez detém a parte restante da, C..., S.A. (a época OT..., SA.) ou seja, 49.06%, verificando-se preenchido o terceiro (iii) requisito supracitado, aliás sobre o qual não existe controvérsia.
Mais decorre do probatório que estamos na presença de denominados «contratos de operação financeira» que subjazem às operações financeiras em apreço, resulta do respectivo teor que por aqueles instrumentos as partes, estabelecem linhas de crédito, na modalidade de conta-corrente, por prazos inferiores a um ano, sendo estes improrrogáveis. A conta-corrente comercial é um negócio típico e nominado (cf. artigo 344º, do Código Comercial), a qual implica, antes de mais, uma obrigação, assumida pelas partes contratantes de manter uma determinada relação de negócios sob a forma contabilística de uma conta-corrente, a qual tem, ínsita, uma função de crédito: consoante o sentido do saldo e até ao encerramento da conta, as partes podem ficar, reciprocamente, na situação de credor e de devedor. No caso presente, a disponibilização de quantias monetárias em forma de conta corrente assume o carácter de uma operação de cariz financeiro, ou seja, monetário. Estando assim verificado o primeiro (i) requisito supra enunciado, o qual não foi igualmente colocado em questão pela AT e Impugnante.
Temos, pois, como já se referiu, que apurar do único ponto em discórdia, qual seja o segundo (ii) requisito enunciado, que se prende com o destino das verbas resultantes dos acordos financeiros terem que se destinar a “operações de tesouraria para suprir carências”.
In casu, cabe aferir se perante os dados concretos e presentes na fundamentação fáctica, nomeadamente aqueles que decorrem do aditamento oficioso, e tendo em conta as regras referentes ao ónus da prova, se se encontram demonstrados os pressupostos que condicionam o efetivo direito à isenção invocada pela Recorrida, ou o dever de tributação das operações financeiras em causa – pretensão da Recorrente.
Assim, nos termos do n.º 1 do art.º 74.º da LGT “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.”
Como decorre dos factos dados como provados, discorre do teor literal dos contratos em análise que os mesmos se destinam exclusivamente à cobertura de carências de tesouraria corrente, por força do qual se considera cumprido o requisito legal de acesso à isenção invocada pelo contribuinte não tendo a Administração Tributária logrado infirmar a prova daquele requisito, limitando-se a invocar a falta de demonstração de tal requisito sem a apresentação dos mapas de tesouraria e das demonstrações financeiras da entidade beneficiária, conforme invoca no relatório de inspecção, sem que resulte do procedimento administrativo que antecedeu aquele relatório que a impugnante tenha sido notificada expressamente para o efeito.
É disso peculiar as partes do RIT em que se alude à posição de beneficiário da conta corrente aludindo que “As cedências de fundos sob análise configuram aplicações de tesouraria de curto prazo e remuneradas, de qualquer forma não sendo possível na esfera da OT..., SA. aferir do requisito da existência de carências de tesouraria na N...,SGPS, resta-nos então avaliar a situação na esfera desta entidade.”, ou seja, AT está ciente de que o requisito deve ser verificado na esfera da beneficiária, que não na Recorrida, mas daí não retira as devidas ilações, a quem competia confirmar a verificação da utilização da linha de créditos na beneficiária e atestar que o foi por carências de tesouraria.
Acresce que, como bem alega a Impugnante, a informação que a inspecção tributária considera relevante para o reconhecimento da isenção em causa não está – ou pode não estar – na disponibilidade desta na medida em que respeita a sociedade terceira. Assim, decorrendo dos contratos aquela situação de carência, se dúvidas se levantassem à inspecção tributária, impunha-se à mesma que averiguasse, por sua própria iniciativa, a situação de modo a poder infirmá-la ou confirmá-la, o que não fez.
Assim, resultando verificados os requisitos legais para a isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, errou a Administração Tributária ao sujeitar a imposto do selo as operações financeiras consubstanciadas nos contratos celebrados entre a impugnante e a N...,SGPS, sem considerar que tal enquadramento é afastado por aquela isenção.
A decisão da contenda, ao contrário do que foi preconizado na sentença sob recurso, que tout court atestou as “carências de tesouraria”, passa por averiguar a quem compete o ónus da prova dos pressupostos da norma em questão.
O n.º 1 do artigo 75.º do Lei Geral Tributária (LGT) determina que “Presumem-se verdadeiras de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando este tiverem organizada de acordo com a lei comercial e fiscal.”
Preceitua o n.º 1 do artigo 74.º da Lei Geral Tributária, relativamente ao ónus da prova, que a prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.
Assim, por força do citado artigo, no procedimento de liquidação da iniciativa da Administração Tributária, terá de demonstrar a ocorrência dos factos de que deriva o direito à liquidação (os factos, pressupostos da sua existência, qualificação e quantificação do facto tributário) e o sujeito passivo terá o ónus de demonstrar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito.
E como a doutrina e a jurisprudência têm afirmado, “actuando a Administração Tributária no uso de poderes estritamente vinculados, submetida ao princípio da legalidade, cabe-lhe o ónus de prova da existência de todos os pressupostos do acto de liquidação adicional, designadamente a prova da verificação dos pressupostos que a determinaram a efectuar as correcções técnicas que suportam essa liquidação”. – Cf., por todos, acórdão do STA de 28/9/2011, Processo 0494/11.
A actuação da Administração Tributária é também condicionada pelo princípio do inquisitório, previsto no artigo 58.º da LGT segundo o qual deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.
Do relatório de inspeção – constante do facto provado em 11. (aditado oficiosamente) - resulta no ponto c.2) análise da situação financeira na esfera do beneficiário, ali se conclui, no que aqui importa, que “(...)não demonstrou o sujeito passivo o pressuposto da isenção, designadamente através da apresentação de mapas de tesouraria da N...,SGPS, que comprovassem a insuficiência de meios financeiros face às obrigações a que tinha que incorrer.”, e relativamente à verificação de existência da carência de tesouraria, que importava avaliar se os fundos concedido à referida sociedade se destinava a carências de tesouraria da mesma, as quais deviam ser aferidos relativamente à natureza das operações e à situação financeira da beneficiária.
Mais discorre o Relatório que “(...) uma vez que a condição sob análise “existência de carências de tesouraria” se verifica em sede do beneficiário do crédito, então parece lógico que só perante as Demonstrações Financeiras e elementos relacionados da N...,SGPS, entidade que tem o encargo do imposto e beneficiar de uma eventual isenção, o sujeito passivo estaria apto a comprovar à Administração Fiscal, o pressuposto da isenção.”
Em suma, conclui AT que as cedências de fundos configuram aplicações de tesouraria de curto prazo e remuneradas, no entanto não era possível na esfera da Recorrida aferir dos requisitos da existência de carência de tesourarias na beneficiária, e que lhe restava avaliar a mesma na esfera da beneficiária mediante elementos que a cedente lhe fornecesse, o que a Recorrida não fez para beneficiar da isenção.
Neste seguimento refira-se que, uma vez que a condição sob análise “existência de carências de tesouraria” se verifica em sede de beneficiário do crédito, é certo e parece lógico que só perante a Demonstrações Financeiras e elementos relacionados de cada uma das empresas o sujeito passivo estaria apto a comprovar à Administração Fiscal, o pressuposto da isenção, o que não se aceita é o convocar de seguida o art.º 74.º da LGT para sustentar que esse encargo está a cargo do sujeito passivo, como vimos.
Mais, os serviços inspeção tributária, na tentativa de abalar o efeito dos documentos apresentados pelo sujeito passivo, que consubstanciam os referidos contratos concluíram que os mesmos não se destinavam a satisfazer as necessidades financeiras, sustentando tal entendimento num conjunto de juízos abstendo-se de demonstrar que, o que a si competia, de que a situação não configurava uma situação de isenção. Transferindo para a Recorrida (sujeito passivo) o ónus de comprovar a existência das carências de tesouraria por parte da beneficiária.
Mais se diga, que apesar de ter sido ouvido em momento prévio a elaboração do Relatório final, não resulta do procedimento administrativo que a Impugnante/Recorrida tenha sido notificada para concretamente demonstrar as “carências de tesouraria” na pessoa da beneficiária e também não resulta qualquer atividade inspetiva junto da beneficiária do crédito com vista atestar a tese da AT.
Acresce ainda o facto, da informação relativa à beneficiária a que alude AT poder não estar na disponibilidade da Recorrida, ser extensa e de difícil obtenção.
Deste modo, e em função da prova colhida em sede inspetiva, não se pode concluir que os serviços da AT tenham colhido prova documental que fosse idónea ou suficiente para demonstrar a tese de que os contratos de financiamento a que se faz referência nos presentes autos, não se destinassem a suprir carências de tesouraria a que neles se alude ou, se preferirmos, se destinassem a situações de falta de liquidez na sociedade beneficiária
Neste sentido os acórdãos deste TCAN n.º 2827/06.0BEPRT de 07.02.2021, 2031/07.0BEPRT de 29.04.2021, e 1678.2BEPRT de 03.02.2022 onde se discute questão idêntica à dos autos.
Nesta conformidade, terá que improceder o recurso apresentado, confirmando-se a sentença recorrida, se bem que assente em fundamentação completamente distinta, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas pela Recorrida nas respetivas contra-alegações.
2.3. Conclusões
I. Ainda que o actual CPC não inclua uma disposição legal com o conteúdo do artigo 646º n.º 4 do pretérito CPC (o qual considerava não escritas as respostas sobre matéria de direito) o princípio subjacente ao preceito não desapareceu, devendo hoje continuar a entender-se que, na fundamentação (de facto) da sentença, só os factos interessam, desprovidos de juízos conclusivos e/ou matéria de direito.
II. Da conjugação do n.º 1 do artigo 1.º, da alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo a da verba n.º 17.1.4 Tabela Geral do Imposto de Selo permite, concluir que estão isentas de imposto, as operações financeiras, incluindo os respetivos juros, quando verificadas as seguintes condições: (i) a existência de operações financeiras (incluindo juros), por um prazo não superior a um ano; (ii) que as operações financeiras se destinem exclusivamente a suprir carências de tesouraria; (iii) que as referidas operações sejam realizadas por sociedades de capital de risco (SCR) a favor de sociedades em que detenham participações, bem como as efetuadas por sociedades gestoras de participações sociais (SGPS) a favor de sociedades por elas dominadas ou a sociedades em que detenham participações previstas no n.º 2 do artigo 1.º e nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro, e, bem assim, as efetuadas em sentido inverso, ou seja, em benefício da sociedade gestora de participações sociais que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo.
III. A verificação do requisito (ii) atestar que as operações financeiras se destinavam a suprir carências de tesouraria ocorre na esfera do beneficiário do crédito.
IV. Sobre a Administração Tributária recai o ónus de prova da existência de todos os pressupostos do acto de liquidação adicional, designadamente a prova de que não se verificava aquele pressuposto de isenção que o sujeito passivo se arroga.
3. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida no seu segmento decisório embora com fundamentação distinta
Custas pela Recorrente.
Porto, 03 de novembro de 2022
Irene Isabel das Neves
Ana Paula Santos
Margarida Reis |