Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00193/17.8BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/23/2022
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL - ACIDENTE DE VIAÇÃO - ATRAVESSAMENTO DE ANIMAL - PRESUNÇÃO DE INCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES DE SEGURANÇA:
- ARTIGO 12º DA LEI Nº. 24/2007, DE 18.07
Sumário:I- A Lei n.º 24/2007, de 18 de julho, veio definir direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares.

II- A imposição de assegurar as condições de segurança em lanço rodoviário concessionado integra uma obrigação reforçada de meios.

III- Só o “caso de força maior devidamente verificado” exonera a concessionária da sua obrigação de garantir a circulação nas autoestradas em condições de segurança, pelo que, para afastar a presunção de culpa estabelecida no mencionado art. 12º,nº. 1, al. c) da Lei nº 24/2007, terá a concessionária de provar a ocorrência de um acontecimento concreto que integre o conceito de força maior, ou seja, de um “acontecimento imprevisto e irresistível cujos efeitos se produzem independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais da concessionária”.

IV- Não conseguindo a R. a forma como o dito canídeo entrou na autoestrada, por forma a imputar a sua proveniência a terceiros ou a caracterizá-lo como um eventual caso fortuito, e que não podia ter adotado conduta diferente daquela que adotou, isto é, não logrando a R. provar factualidade de onde se possa concluir que cumpriu as exigências de diligência na sinalização e remoção dos obstáculos existentes na via e, por conseguinte, não foi ilidida a presunção de incumprimento que sobre si impendia relativamente ao aludido dever de vigilância, não tendo resultado provados factos suficientes que permitam concluir que a mesma atuou com a diligência que lhe era exigida.*
* Sumário elaborado pelo relato
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO
AA---, S.A., com os sinais dos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que, em 17.01.2022, julgou a presente ação parcialmente procedente, e, em consequência, condenou a Ré AA---, S.A. “(…) a pagar à Autora a quantia de 2.653,74€ (dois mil, seiscentos e cinquenta e três euros e setenta e quatro cêntimos), a que acrescem juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento (…)”.
Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)
I. Na opinião da R., a decisão sobre a matéria de facto fica claramente aquém, quer do ponto até onde deveria ter ido, quer da prova que os autos nos revelam, particularmente quanto aos factos provados n°s. 22, 23 e 25 cuja resposta peca por escassa, mas também porque incorreu em clara omissão de pronúncia no que se refere designadamente à matéria de facto constante dos itens 9°, 10°, 11° e 12° da contestação da R./recorrente;
II. Com efeito, e a não ser que isso não assuma qualquer interesse, nomeadamente pela circunstância de se entender (muito erradamente, no entanto, adianta-se desde já) que a responsabilidade aqui em avaliação (da concessionária) é objetiva, sem culpa, pura e simplesmente não é possível perceber p. ex. que ilações podem ser tiradas dos “singelos” factos provados n°s. 22, 23 e 25 se nem sequer se tem, por assim dizer, um “termo de comparação”uma “unidade de medida” que permita avaliar, no caso concreto, se o “desempenho” da concessionária R. foi ou não o adequado;
III. Ora, do depoimento de LL..., cujas partes relevantes vão transcritas neste recurso (para além do disposto nas Bases XXIX, XXX, e XXXVII do Decreto-Lei n° 248-A/99, de 6 julho, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n° 109/2015, de 18 de junho, diplomas legais estes a que a sentença - muito curiosamente - não faz sequer a mínima menção), é possível desde logo concluir, sem qualquer receio de errar, que aquelas vedações a que p. ex. o ponto n° 23 dos factos provados alude são precisamente aquelas que deviam estar colocadas no local do sinistro e suas imediações;
IV. De modo que, respeitando a prova produzida (e à lei aplicável, já agora), o acervo de matéria de facto provada e a considerar na decisão final deve ser acrescentado com a seguinte:
a) “As vedações daquela auto-estrada A7 merecem a prévia aprovação por parte do concedente (Estado Português) através dos organismos competentes'” (artigo 9° da contestação);
b) “À data do sinistro as vedações que se encontravam colocadas no local do sinistro e suas imediações respeitavam o respectivo projeto e mereceram prévia aprovação por parte dos organismos competentes do Estado Português, designadamente no que se refere às suas características, tais como a sua dimensão e altura, por exemplo, pois se assim não fosse a auto-estrada A7 não teria aberto ao tráfego.” (artigos 10°, 11° e 12° da contestação);
V. Por outro lado, o mesmo depoimento de LL... é também importante para que se possa fazer o devido enquadramento do facto provado n° 26 que é/deve ser incontornavelmente relevante, seja para a defesa da R., seja sobretudo para a boa decisão da causa, sendo claro, aliás, que o ponto provado n° 25 não o permite (além de que, e tal como está, pouco interesse “prático” tem a redação deste referido ponto n°. 25);
VI. Assim, e respeitando a prova dos autos e o manifesto interesse que assume, deve ser alterada a redação do actual facto provado n° 25, para a seguinte redação:
- A R. obrigou-se com o concedente a efetuar passagens de vigilância no mesmo local, em condições normais de tráfego, com o intervalo máximo de 4 (quatro) horas entre as 7 e as 23 horas (turnos diurnos);
VII. Depois, quer com base naquele depoimento de LL..., mas também naqueloutro de AC... igualmente transcrito acima, os factos provados n°s. 22 e 23 devem ser alterados de acordo com a seguinte sugerida redação:
- 22. - provado que “A Ré verifica, anualmente, todas as vedações da concessão e sempre que ocorrem acidentes numa extensão mínima de 500 metros para cada lado do local destes e em ambos os sentidos de trânsito, num total de 4 kms (= 2 kms + 2 kms).”; 
- 23. - provado que “Verificada a vedação numa extensão de 1,5 kms para cada lado do Km 27,050 da auto-estrada A7, e em ambos os sentidos de trânsito, num total de 6 kms (= 3 kms + 3 kms), esta encontrava-se íntegra, sem cortes ou falhas.”;
Posto isto,
VIII. À data actual (para dizer o menos), e considerando quer a publicação da Lei n° 24/2007, de 18 de julho, quer o diploma legal relevante aplicável à concessão da R. (e ao qual, como dito, a sentença do tribunal a quo nem uma referência faz), pensava-se que estava definitivamente arredada qualquer possibilidade de aplicação do artigo 493° n° 1 do Cód. Civil a situações desta natureza, artigo este que, nas certeiras palavras de Carneiro da Frada (“Sobre a responsabilidade das concessionárias por acidentes ocorridos em autoestradas”, R. O. A., Set. 2005), diz claramente respeito danos causados pela coisa (auto-estrada), não sendo suficiente, portanto (e tal como acontece neste caso), que “(...) o evento danoso se tenha dado “com” a coisa, “na” coisa ou com “ocasião” da coisa.
IX. Ora, face ao que decorre das págs. 11 e 12 da sentença - impõe-se afirmar que a ré, atenta a presunção que sobre si impende, teria que demonstrar que o cão se introduziu na autoestrada por um meio que não podia ser evitado, mormente por lá ter sido propositadamente colocado ou (para lá encaminhado) e tal ter ocorrido em momento muito próximo do acidente, o que inviabilizou a sua remoção a tempo de evitar o sinistro aqui em análise. Ora, a Ré, na verdade, provou o cumprimento genérico dos deveres de manutenção e vigilância, mormente porque demonstrou que tem equipas e equipamentos destinados a garantir a circulação segura da via em causa. Contudo, tal não basta para ilidir a presunção decorrente do artigo 12º, n.° 1 da Lei no 24/2007, acima transcrito.” - que resume (melhor: “concentra”) a linha interpretativa seguida na sentença, não sobra nenhuma dúvida, ainda que isso não seja dito de forma expressa, que é de uma presunção de culpa (a do artigo 493°, n° 1 do Cód. Civil, naturalmente) se trata e esta foi claramente a escolha interpretativa da sentença sob recurso;
X. Na verdade, e ainda que neste parágrafo transcrito conste a referência a uma presunção alegadamente “decorrente do artigo 12°, n.° 1 da Lei n° 24/2007” e com isso parecendo (mas só isso) que a “solução” para este caso advirá afinal desse normativo legal, é claríssimo (para lá de, no mínimo, haver muitas reticências e dúvidas quanto à possibilidade de aquele preceito legal encerrar uma qualquer presunção, qualquer que seja, ainda que apenas de mero incumprimento) que a formulação daquele artigo 12° n° 1 é muito, mas muito diferente do também já referido artigo 493° n° 1 do Cód. Civil;
XI. Visto o parágrafo transcrito em que se baseia exclusivamente, como dito, o pensamento da sentença do tribunal a quo, particularmente no que se refere à suposta “obrigação” da concessionária R. de dever demonstrar como ingressou o animal na via ou àqueloutra também putativa (e mais até que subentendida) de dever esta estar em toda a concessão ao mesmo tempo, não há outra forma de olhar para este raciocínio que não seja o de o enquadrar no âmbito da presunção de culpa prevista no artigo 493° n° 1 do Cód. Civil;
XII. Pelo contrário, aquilo que pode resultar da leitura/interpretação do artigo 12° n° 1 da Lei n° 24/2007, de 18 de julho é que as concessionárias de autoestradas não têm de provar que não tiveram culpa no sinistro (isso só seria assim se “navegássemos nas águas” do artigo 493° n° 1 do Cód. Civil), mas têm de demonstrar que cumpriram com as chamadas obrigações de segurança (ainda que - refira-se - os sinistros possam ocorrer), ou seja, trata-se claramente de uma prova “positiva” e não, como se defende na sentença, uma prova de claro pendor “negativo”, como é a de uma presunção de culpa;
XIII. Sucede, porém (e para lá das críticas corretas de Carneiro de Frada a que antes se aludiu), que se não poderá esquecer de forma que existe legislação especial para este “assunto” (e, como sabido, lex specialis derogat legi generali), desde logo aquela Lei n° 24/2007, de 18 de julho, desde que devidamente interpretada e aplicada (o que não foi o caso), mas também (e sobretudo) o Decreto-Lei n° 248-A/99, de 6 de julho, na redação do Decreto-Lei n° 109/2015, de 18 de junho, sobre o qual a sentença nada diz (ou faz sequer a mais pequena menção);
XIV. Ora, este diploma legal que rege a concessão e também, por assim dizer, a atividade (operacional) desta R./concessionária não deixa margem para qualquer dúvida (cfr. Bases LXXIII e LVIII - A) sobre a forma como devem ser encaradas, balizadas e interpretadas as já ditas obrigações de segurança previstas no n° 1 do artigo 12° da Lei n° 24/2007, de 18 de julho;
XV. Efetivamente, no caso de prejuízos causados a terceiros, “a medida da responsabilidade da Concessionária (...) deve aferir-se pelo grau de cumprimento das obrigações que, para a Concessionária, emergem do Contrato de Concessão, incluindo do Plano de Controlo de Qualidade e do Manual de Operação e Manutenção, constituindo causa de exclusão de responsabilidade o seu comprovado cumprimento'”;
XVI. Quer dizer: não se vislumbra onde (d)aqui se possa ir “buscar” o alegado (e defendido pela sentença) “dever” de demonstrar por onde acedeu o animal à via ou então que este tenha sido propositadamente lá colocado por alguém (ou ainda que essa intrusão tenha ocorrido “em momento muito próximo do acidente” e que a R. apenas (a palavra é nossa) “provou o cumprimento genérico dos deveres de manutenção e vigilância”, tudo conclusões que só podem radicar naquele inaplicável artigo 493° n° 1 do Cód. Civil e, naturalmente, no âmbito de uma responsabilidade objetiva (sem qualquer previsão/consagração legal), de uma inaceitável (porque impossível, desde logo) “exigência” de omnipresença e na “remessa” da classificação das referidas obrigações de segurança como obrigações de resultado (e não de meios, como claramente são);
XVII. Mais: a definição destas obrigações de segurança passa essencial e obrigatoriamente (como é até intuitivo), num acidente com animais, pela prova de que as vedações ali instaladas eram aquelas que ali deviam estar e que se encontravam intactas e sem ruturas nas imediações (contiguidade, arredores, etc.) do local do acidente;
XVIII. E a verdade é que essa prova foi claramente feita pela R./recorrente, devendo ainda lembrar-se a este respeito, de acordo, aliás, com o plano de controlo de qualidade que resulta nomeadamente provado do depoimento de LL..., mas também do diploma legal que rege a concessão da R., que a obrigação da R. assumida a tal respeito da verificação das vedações no âmbito do contrato de concessão designadamente é de uma verificação anual de toda a vedação;
XIX. Por outro lado, a R. também demonstrou, sem qualquer espécie de dúvida ou reserva, que desconhecia a presença do animal na via apesar do cumprimento integral (e permanente, no sentido de estar sempre no terreno, embora não esteja, como é evidente, em todo o lado ao mesmo tempo) da sua missão de vigilância e patrulhamento, sendo inequívoco que a última vez que vigiou/patrulhou aquele local antes da deflagração do sinistro fê-lo, quando muito (dado que a hora está longe de ser a exata) cerca de (apenas) 10 minutos antes da hora que consta em 1. dos factos provados, i. e., perfeitamente “enquadrada” e contida dentro do intervalo máximo de 4 horas que o contrato de concessão (e o manual de operação e manutenção em vigor à data) lhe exige;
XX. Acresce ainda dizer (melhor: reiterar), tal como resulta em especial dos n°s. 1 e 2 Base LXXIII do diploma legal em vigor (recorde-se: DL n° 248-A/99, de 6 de julho, na redação do DL n° 109/2015, de 18 de junho), o cumprimento (e a prova dele, naturalmente) por parte da concessionária/R. do contrato de concessão, do manual de operação e manutenção e do plano do controlo de qualidade impõem como “conclusão” a tirar que tal constitui causa de exclusão da responsabilidade, mas necessariamente também - e até porque os acidentes não são todos iguais, nem têm todos os mesmos contornos fácticos - um raciocínio diferente daquele que tem sido seguido noutros casos (em especial referimo-nos àqueles que se reportam a eventos anteriores a 18 de junho de 2015 de que, aliás, é manifesto que a sentença se “serve”);
XXI. Ora, pela prova produzida (por documentos e testemunhal) não sobra a menor dúvida que esse cumprimento por parte da R. ocorreu (porque, evidentemente, essa prova foi feita pela R. nestes autos), sendo certo que a prova desse cumprimento tem evidentes reflexos/repercussões na demais legislação que poderá ser considerada, quer na definição/preenchimento do que são as obrigações de segurança a cargo da R. neste caso, quer, por assim dizer, num âmbito mais “geral” (Cód. Civil e RRCEEP);
XXII. A não ser assim - i. e., a situarmo-nos num plano em que acaba por se colocar (mesmo que de forma pouco esclarecida) a sentença em matéria de exigência probatória (p. ex. de ter de se provar por onde o animal entrou na AE) -, cairíamos necessariamente no âmbito da responsabilidade objetiva, na prova impossível (e não apenas extremamente difícil ou na chamada probatio diabolica) para a concessionária que não se vê onde esteja prevista, nomeadamente na lei citada (cfr. também e a este propósito o ac. da RC de 10.01.2006, www.dgsi.pt e ainda Carneiro da Frada, “Sobre a responsabilidade das concessionárias por acidentes ocorridos em autoestradas”, in R. O. A., ano 65, setembro de 205, págs. 407 - 433, mas também do mesmo autor, agora com a colaboração de Diogo A. Costa Gonçalves, o mais recente “Diligência e prova de cumprimento das obrigações da concessionária em acidentes de viação ocorridos em autoestradas”, págs. 155 - 202, integrado na publicação do Instituto Jurídico da F. D. U. C. intitulada “Responsabilidade Civil. Cinquenta Anos em Portugal, Quinze Anos no Brasil”);
XXIII. É, por isso, visível que o raciocínio seguido pela sentença é nitidamente especulativo, pois que parece partir claramente do princípio (e sem base factual para que o possa fazer) que o animal só poderia ter ingressado na AE devido a uma qualquer anomalia/falha (na vedação?), sem considerar qualquer outra possibilidade/explicação perfeitamente plausível para a presença do animal na via, como p. ex. as próprias “capacidades” deste ou de outros animais de ultrapassarem as vedações ou o abandono de animais na via por utentes da auto-estrada (e a verdade é que essas possibilidades/explicações existem, não se podendo concluir automaticamente que o animal acedeu à via porque p. ex. as vedações apresentavam deficiências ou então que ocorreu uma qualquer anomalia, seja ela qual for);
XXIV. De modo que, e não podendo a recorrente (nem tal lhe sendo exigível) ser omnipresente, não se vislumbra como podia (ou pode) ser responsabilizada pela eclosão deste acidente, tanto mais que nos parece pacífico e totalmente indiscutível, como dito já, que as obrigações a seu cargo são claramente obrigações de meios. E não, portanto, obrigações de resultado (ou então, e como já as apelidaram - o que quer que isso seja -, obrigações reforçadas de meios), como acaba por concluir - sem o dizer, no entanto - a sentença do T. A. F. de Braga (e isto sim, ou seja, a natureza das obrigações da concessionária, merecia uma outra análise bem mais ponderada por parte do tribunal, o que, como se vê, não sucedeu);
XXV. De resto, não sendo possível à recorrente evitar em absoluto que os animais ingressem na AE (cfr. p. ex., e uma vez mais, Carneiro da Frada, nomeadamente no trabalho intitulado “Sobre a Responsabilidade das Concessionárias por acidentes ocorridos em autoestradas” a que antes se aludiu) e, face ao que ficou provado e também ao que decorre do diploma legal que versa sobre a sua concessão, nada mais lhe devendo ser exigível em termos de conduta e de prova, parece claro que se impunha (e isso ainda sucede) a sua absolvição, já que esta demonstrou que cumpriu de forma positiva, em concreto (e não apenas “genericamente” - o que quer que isso signifique) com todas as suas obrigações, concretamente com aquelas de segurança;
XXVI. A sentença violou, salvo o devido respeito, o artigo 12° n° 1 da Lei n° 24/2007, de 18 de julho, mas igualmente o que se dispõe nos n°s. 1 e 2 da Base LXXIII do Decreto-Lei n° 248-A/99, de 6 de julho, na redação do Decreto-Lei n° 109/2015, de 18 de julho e ainda os artigos 7°, 9° e 10° do RRCEEP (Decreto-Lei n° 67/2007, de 31 de dezembro) e os artigos 483° e 487° n° 2 do C. C., devendo, por isso, ser revogada em conformidade com o expendido nestas linhas.
Por último, e por mera cautela de patrocínio,
XXVII. Quanto ao valor (€ 60,00) respeitante ao auto de ocorrência com que a A. instruiu a ação (claramente do âmbito das custas de parte) e a cujo pagamento a R. foi também condenada, temos que não se afigura de forma nenhuma necessário esse “custo” para a propositura da ação, pelo que não tendo absolvido a R. dessa parte do pedido a sentença também violou o disposto no artigo 16° do Regulamento das Custas Processuais (…)”.
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Notificada da interposição do recurso jurisdicional por parte da AA---, S.A, a Recorrida BB... não contra-alegou.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto nos autos, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito a que se alude no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, e concatenadas as conclusões dos recursos interpostos nos autos, as questões essenciais a dirimir são as de saber se a decisão judicial recorrida incorreu em (i) Erro[s] de julgamento de facto e (ii) Erro de julgamento de direito, por (ii.1) ofensa do “(…) artigo 12° n° 1 da Lei n° 24/2007, de 18 de julho, mas igualmente o que se dispõe nos n°s. 1 e 2 da Base LXXIII do Decreto-Lei n° 248-A/99, de 6 de julho, na redação do Decreto-Lei n° 109/2015, de 18 de julho e ainda os artigos 7°, 9° e 10° do RRCEEP (Decreto-Lei n° 67/2007, de 31 de dezembro) e os artigos 483° e 487° n° 2 do C. C. (…)”, bem como (ii.2) por violação do disposto no “(…) artigo 16° do Regulamento das Custas Processuais (…)”.
É na resolução de tais questões que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO
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III.1 – DO[S] ERRO[S] DE JULGAMENTO DE FACTO
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A primeira questão decidenda consubstancia-se em saber se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto nos pontos indicados pela Recorrente.
Vejamos.
A lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria da facto, exige, desde logo, o cumprimento do ónus processual preconizado no artigo 640º do CPC.
De facto, e no que concerne à sua legal admissibilidade, ressuma com evidência do preceituado no nº. 2 do artigo 640º do CPC que, “sob pena de imediata rejeição do recurso”, deve o Recorrente “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Destaca-se, nesta problemática, o Acórdão produzido por este Tribunal Central Administrativo Norte de 04.12.2015, no processo nº. 418/12.6BEPRT, cujo teor ora parcialmente se transcreve:”(…)
Como resulta do art.º 640, nºs. 1, b) e 2, a), do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar (dá-se aqui uma “ênfase redundante” nas palavras de Cardona Ferreira in Guia de Recursos em Processo Civil, 5º edição, pág. 167), os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, sendo que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Tem por objectivo responsabilizar as partes (princípio da auto-responsabilidade das partes), vedando-lhes a impugnação a decisão da matéria de facto como uma mera manifestação de inconformismo infundado – cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 3ª edição, 2010, Almedina, p. 159 – bem como garantir, para além do contraditório, a cooperação processual entre as partes e o Tribunal.
Cfr. Ac. RL, de 26-03-2015, proc. nº 183/13.0TBPTS.L1-2 [destaque nosso]:
«(…) o art. 640.º do CPC fixa o ónus de alegação a cargo do recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto.
Desse ónus, consta, designadamente, a especificação obrigatória dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação nele realizada e da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640.º, n.º 1, do CPC).
O estabelecimento desse ónus de alegação destina-se, fundamentalmente, a proporcionar o efetivo contraditório da parte contrária e, por outro lado, a facilitar a compreensão e decisão da impugnação pela Relação, que pode modificar a decisão de facto, nos termos do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC.
O incumprimento de tal ónus de alegação implica, sem mais, a rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto (art. 640.º, n.º 1, do CPC).».
Conforme se sumaria no Ac. deste TCAN, de 22-05-2015, proc. nº 132/10.7BEPNF [destaque nosso]:
I) – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente: (i) sob pena de rejeição, especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; (ii) sob pena de imediata rejeição na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados.
De igual forma no Ac. deste TCAN, de 28-02-2014, proc. nº 00048/10.7BEBRG [destaque nosso]:
I. Resulta do art. 685.º-B do CPC que quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve, obrigatoriamente, especificar, sob pena de rejeição do recurso, não só os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, como os concretos meios de prova constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizado, que impunham decisão diversa sobre a matéria de facto impugnada.
Igualmente no Ac. deste TCAN, de 22-10-2015, proc. nº 1369/04.3BEPRT, se lembra [destaque nosso]:
«Como já salientámos em casos idênticos (v. Acórdão do TCAN, de 22.05.2015, P. 1224/06.2BEPRT), as competências dos Tribunais Centrais Administrativos em sede de intervenção na decisão da matéria de facto encontram-se reguladas, por força da remissão do artigo 140.º do CPTA, nos artigos 640.º e 662.º do CPC/2013, que acolheram um regime que, de um lado, assume a alteração da matéria de facto como função normal da 2.ª instância e, do outro, não permite recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas admite a possibilidade de revisão de “concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente” (v. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 2014, 130). Neste contexto, recai sobre o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o ónus de especificar, por um lado, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e, por outro, os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, quanto a cada um dos factos que entende que deviam ter sido dados como provados ou não provados, incluindo a indicação exata das passagens da gravação, no caso de depoimentos gravados (artigo 640.º do CPC) (…)”.
Em reforço deste entendimento, ressalte-se o expendido no Acórdão deste T.C.A.N. de 17.01.2020 [processo n.º 141/09.9BEPNF], consultável em www.dgsi.pt:
“(…) Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes António Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., 2017, pág. 155 sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
O cumprimento dos referidos ónus tem, como adverte Abrantes Geraldes, a justificá-lo a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da Relação, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações.
É que só na medida em que se conhece especificamente o que se impugna e qual a lógica de raciocínio expandido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a parte contrária a poder contrariá-lo em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de autorresponsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo”(…)”.
Deste modo, à luz de tudo o quanto se vem de expender, haverá que se entender que a lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria da facto, exige que o Tribunal Superior seja confrontado com (i) os concretos pontos que, no entender do Recorrente, se mostram como incorretamente julgados; (i.1) a indicação do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida; (i.2) a definição da decisão que, no entender daquele, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; e a (i.3) expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
Cientes do que se vem de expor, importa agora analisar a situação sob apreciação aferindo do cumprimento do ónus processual supra sintetizados, e, mostrando-se necessário, do acerto da matéria de facto sob impugnação.
E, nesse domínio, dir-se-á que a Recorrente faz expressa referência aos pontos de facto que, no seu entender, se mostram como incorretamente julgados, motivando, na exigência de lei, tal entendimento, ou seja, com definição do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida, que define objetivamente, e com expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
O que serve para concluir que a Recorrente cumpre adequadamente o ónus de impugnação preconizado no nº. 2 do artigo 640º do C.P.C, nada obstando, por isso, à reapreciação da matéria de facto impugnada no recurso quanto àqueles concretos factos e com base nos referidos elementos probatórios.
Importa, por isso, aferir do acerto [ou desacerto] da matéria de facto sob impugnação.
Do preceituado no nº.1 do artigo 662º do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, ressuma com evidência que este Tribunal Superior deve alterar a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuser decisão diversa.
Na interpretação desta normação de lei ordinária, decidiu-se no aresto do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02.11.2017, o seguinte:
“(…) o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade. Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem. (...)
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. (...).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância. Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação. Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos não apreensíveis na gravação dos depoimentos.
Em suma, na reapreciação das provas em segunda instância não se procura uma nova convicção diferente da formulada em primeira instância, mas verificar se a convicção expressa no tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos, que a decisão não corresponde a um erro de julgamento (…)”.
Posição que se acolheu no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 27.11.2020, tirado no processo nº. 01291/14.5BEAVR:
“(…) Nesse domínio, impõe-se precisar que da conjugação do regime jurídico previsto nos arts. 637º, n.º 2, 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), 641º, n.º 2, al. b) e 662º do CPC ex vi art. 1º do CPA, é pacífico o entendimento que perante o direito positivo processual vigente, sempre que esteja em causa a impugnação do julgamento da matéria de facto em relação a facticidade cuja prova ou não prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos ao princípio da livre apreciação, a 2.ª Instância tem de efetuar um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, considerando os meios de prova indicados pelo apelante no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da 1ª Instância, formando a sua convicção autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e recorrendo a presunções judiciais ou naturais, embora esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade, “devendo alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência” Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 273 e 274; Acs. STJ de 14/01/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.S1; RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BRGC.C1, in base de dados da DGSI..
No entanto, para que ao tribunal ad quem seja consentido alterar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, nos termos do art. 662º, n.º 1 do CPC, não basta que a prova indicada pelo apelante, conectada com a restante prova constante dos autos, a que o tribunal ad quem, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se, consinta esse julgamento de facto diverso, mas antes que o determine, isto é, que o “imponha”.
Essa exigência legal fixada pelo mencionado n.º 1 do art. 662º decorre da circunstância de se manterem em vigor no atual CPC os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova.
Deste modo, apesar de serem de rejeitar as teses que defendem que a modificação da decisão de matéria de facto apenas está reservada para os casos de “erro manifesto” e, bem assim aquelas que sustentam não ser permitido à 2.ª Instância contrariar o juízo formulado pela 1ª Instância relativamente a meios de prova que são objeto do princípio da livre apreciação da prova, importa ter presente que os princípios da livre apreciação da prova, da imediação, da oralidade e da concentração se mantêm vigorantes e que como decorrência dos mesmos e da consideração que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, não se pode aniquilar, em absoluto, a livre apreciação da prova que assiste ao juiz da 1ª Instância, sequer desconsiderar totalmente os princípios da imediação, da oralidade e da concentração da prova, que tornam percetíveis a esse julgador, que intermediou na produção da prova, determinadas realidades relevantes para a formação da sua convicção, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem através da mera audição da gravação áudio dos depoimentos pessoais prestados em audiência final. Como tal, os poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, isto é, quando depois de proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova produzida que entenda pertinente, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Deriva do que se vem dizendo que após a 2.ª Instância ter feito esse seu julgamento autónomo em relação à matéria de facto impugnada pela apelante, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso”Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609 (…)”.
Reiterando esta linha jurisprudencial, tem-se, portanto, por assente que, perante a impugnação do tecido fáctico fixado em 1ª instância, impede sobre o Tribunal Superior a realização de um novo julgamento, encontrando-se a alteração da tecido fáctico fixado em 1ª instância apenas reservada para as situações em que a prova produzida imponha decisão diversa, o que não sucede quando o Tribunal ad quem, apreciada essa prova, propende antes para uma diferente convicção, contudo, não imposta pela prova produzida.
Realmente, inexistindo uma convicção inevitável quanto à prova produzida, o Tribunal Superior terá que conceder na prevalência da decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
Cientes destes considerandos de enquadramento, importa, então, analisar a situação sob apreciação aferindo do acerto da matéria de facto sob impugnação.
Efetivamente, veio a Recorrente pugnar pela alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma permitiria que se desse como demonstrados factos omitidos no elenco dos provados, importando por isso proceder à alteração do probatório coligido nos autos por forma a que sejam aditados os seguintes factos:
(a) “As vedações daquela auto-estrada A7 merecem a prévia aprovação por parte do concedente (Estado Português) através dos organismos competentes.”;
(b)À data do sinistro as vedações que se encontravam colocadas no local do sinistro e suas imediações respeitavam o respectivo projeto e mereceram prévia aprovação por parte dos organismos competentes do Estado Português, designadamente no que se refere às suas características, tais como a sua dimensão e altura, por exemplo, pois se assim não fosse a auto-estrada A7 não teria aberto ao tráfego.”;
De igual modo, e pelas mesmas razões, veio a Recorrente pugnar pela alteração da redação dos factos provados sob os nº.s 22, 23 e 25 para a seguinte redação:
22. “A Ré verifica, anualmente, todas as vedações da concessão e sempre que ocorrem acidentes numa extensão mínima de 500 metros para cada lado do local destes e em ambos os sentidos de trânsito, num total de 4 kms (= 2 kms + 2 kms)”;
23. “Verificada a vedação numa extensão de 1,5 kms para cada lado do Km 27,050 da auto-estrada A7, e em ambos os sentidos de trânsito, num total de 6 kms (= 3 kms + 3 kms), esta encontrava-se íntegra, sem cortes ou falhas”;
25. “A R. obrigou-se com o concedente a efetuar passagens de vigilância no mesmo local, em condições normais de tráfego, com o intervalo máximo de 4 (quatro) horas entre as 7 e as 23 horas (turnos diurnos)”;
Contudo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, são os factos ora pretendidos aditar ou alterar inócuos e insuficientes para - de per se, conjugados um com o outro, ou conjuntamente com os demais provados - alteraram a decisão da causa.
Com efeito, tal materialidade, ainda que aditada e alterada nos termos propostos pela Recorrente, seria inócua para alterar a decisão de mérito proferida, que repousa, fundamentalmente, no circunstancialismo emergente de não se mostrar elidida a presunção de culpa de incumprimento das obrigações de segurança que impedia sobre esta relativamente a acidente de viação decorrente de atravessamento de canídeo ocorrido no dia 09.06.2016, na A7.
Efetivamente, nada ali nos permite concluir no sentido da elisão da referida presunção de culpa, ou seja, o sentido (i) do apuramento da responsabilidade exclusiva ou concorrencial da condutora na verificação do acidente; (ii) da determinação das circunstâncias que determinaram a presença do animal na via, nomeadamente a sua proveniência, por forma a imputar a sua proveniência a terceiros ou a caracterizá-lo como um caso fortuito; e, bem assim, do (iii) real cumprimento da obrigação por parte da Ré do dever de assegurar das condições de circulação em segurança, que, no caso particular de atravessamento de canídeos, - como veremos mais pormenorizadamente de seguida -, não se basta com a aquisição processual da eventual (iii.1) realização por parte da Ré de patrulhamento da via de circulação com cadência regular e/ou da (iii.2) verificação do estado de conservação das vedações.
E nesta impossibilidade de “apropriação” da alegação da Recorrente com recurso ao aditamento do quadro fáctico pretendido reside o “punctum saliens” distintivo da falta de préstimo à boa decisão de causa.
Nestes termos, e com os fundamentos acima expendidos, improcedem o invocados erros de julgamento de facto.
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Ponderado o acabado de julgar e o que demais se mostra fixado na decisão judicial recorrida temos, então, como assente o seguinte quadro factual: “(…)

1. No dia 09.06.2016, perto das 8h30m, na Autoestrada A7, no sentido Porto- Guimarães, junto ao km 27,050, na localidade e freguesia de Ruivães, concelho de Vila Nova de Famalicão e distrito de Braga, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente, o veículo de matrícula (...) - cfr. doc. 1 junto com a petição inicial;
2. O veículo acima identificado, à data dos factos, era conduzido pela sua proprietária BB..., a aqui Autora - cfr. doc. 1 junto com a petição inicial;
3. A via caracteriza-se por ser uma via com duas hemifaixas de rodagem em cada sentido, divididas por um separador central;
4. No dia, hora e local supra mencionados, a condutora do veículo acima identificado circulava no sentido Porto-Guimarães;
5. Pela hemifaixa de rodagem mais à direita da via;
6. A uma velocidade inferior a 100 Km/h;
7. Ao chegar junto ao quilómetro 27,050, de forma totalmente inopinada, a Autora foi surpreendida pelo súbito aparecimento na via de um cão;
8. Provindo o mesmo do separador central, ou seja, da esquerda para direita, atento o seu sentido de marcha;
9. Embatendo na parte frontal do seu veículo;
10. Em consequência do referido embate, o veículo da Autora ficou sem poder circular já que a sua parte dianteira ficou parcialmente destruída;
11. Também, após o embate em questão, várias luzes e avisos de perigo do veículo se acenderam e acesos permaneceram;
12. A Autora imobilizou o seu veículo na berma da via, junto ao km 27,300 - cfr. doc. 3 junto com a petição inicial;
13. Na sequência do embate, o animal faleceu e foi retirado da via por um funcionário da Ré - cfr. doc. 3 junto com a petição inicial;
14. Na sequência do embate acima descrito, o veículo da Autora ficou com a sua dianteira parcialmente destruída, apresentando os seguintes danos:
- capot;
- para-choques dianteiro;
- farol;
- reforço para-choques;
- grelha;
- frente em fibra;
- radiador;
- tubo de intercooler;
- tubo do ar condicionado.
15. Para proceder à reparação dos danos acima identificados, a Autora adquiriu peças, num total de 2.443,74€ (€ 1.986,78 + IVA € 456,96) - cfr. doc. 4 junto com a petição inicial;
16. Ao valor acima mencionado, acresce, ainda, o custo que a Autora teve com a obtenção da Certidão da Participação do Acidente de Viação, no montante de 60,00€ - cfr. doc. 3 junto com a petição inicial;
17. O veículo ficou impedido de circular entre mês e meio a três meses;
18. A reparação foi efetuada por um amigo e pelo marido da Autora, nos tempos livres de ambos;
19. O tempo efetivo total gasto na reparação foi de cerca de duas semanas;
20. A Autora teve que procurar, junto da sua mãe, ajuda financeira para poder adquirir as peças para a reparação do veículo;
21. O veículo era utilizado diariamente, de forma indiferenciada, quer pela Autora, quer pelo seu cônjuge, tanto nas deslocações de casa para o trabalho, como para todas as deslocações necessárias no dia a dia de ambos (como sejam idas ao supermercado, médicos e farmácias, para além de visitas a amigos e familiares e demais momentos de lazer);
22. A Ré verifica, anualmente, todas as vedações da concessão e sempre que ocorrem acidentes, no local onde os mesmos ocorrem;
23. Verificada a vedação no local, esta encontrava-se íntegra, sem cortes ou falhas;
24. O acidente deu-se a cerca de 2km da saída da autoestrada de Seide;
25. A Ré tem equipas de vigilância que fazem patrulhamentos frequentes, ao longo das 24horas do dia;
26. No dia do acidente, a equipa que patrulha o local, onde aquele se deu, foi chamada para outro acidente ao km 41,50, perto das 8.20 horas - cfr. doc. 4 junto com a oposição;
27. Quando passou pelo local do acidente da Autora em direção ao acidente referido no ponto anterior, a patrulha não verificou o acidente da Autora nem qualquer animal à solta na via;
28. O funcionário da Ré AC..., da manutenção civil, por ser o que estava mais próximo, foi ao local do acidente da Autora e constatou a existência do animal morto na berma e um veículo parado mais à frente;
29. A petição inicial, que motiva estes autos, deu entrada neste Tribunal, em 30.01.2017 - cfr. registo SITAF.
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III.2- DO ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO
A decisão judicial recorrida considerou que, estando em causa um acidente de viação decorrente de atravessamento de canídeo na A7, recaía sobre a Ré a presunção de incumprimento da obrigação de assegurar das condições de circulação em segurança.
Mais considerou que a Ré, não obstante ter provado “(…) o cumprimento genérico dos deveres de manutenção e vigilância, mormente porque demonstrou que tem equipas e equipamentos destinados a garantir a circulação segura da via em causa não logrou elidir tal presunção, porquanto, provou o cumprimento genérico dos deveres de manutenção e vigilância, mormente porque demonstrou que tem equipas e equipamentos destinados a garantir a circulação segura da via em causa (…)”, não logrou ilidir a presunção decorrente do artigo 12º, n.º 1 da Lei 24/2007, pois que, para além de não se ter provada qualquer responsabilidade da condutora na verificação do acidente, ficaram por demonstrar as circunstâncias que determinaram a presença do animal na via, nomeadamente a sua proveniência, por forma a imputar a sua proveniência a terceiros.
A Recorrente censura a sentença recorrida, no mais essencial, por manter a firme convicção que (i) “(…) as concessionárias de autoestradas não têm de provar que não tiveram culpa no sinistro (isso só seria assim se “navegássemos nas águas” do artigo 493º nº 1 do Cód. Civil), mas têm de demonstrar que cumpriram com as chamadas obrigações de segurança (ainda que – refira-se – os sinistros possam ocorrer), ou seja, trata-se claramente de uma prova “positiva” e não, como se defende na sentença, uma prova de claro pendor “negativo”, como é a de uma presunção de culpa (…)”; (ii) “(…) não se vislumbra onde (d)aqui se possa ir “buscar” o alegado (e defendido pela sentença) “dever” de demonstrar por onde acedeu o animal à via ou então que este tenha sido propositadamente lá colocado por alguém (ou ainda que essa intrusão tenha ocorrido “em momento muito próximo do acidente” e que a R. apenas (a palavra é nossa) “provou o cumprimento genérico dos deveres de manutenção e vigilância”, tudo conclusões que só podem radicar naquele inaplicável artigo 493º nº 1 do Cód. Civil e, naturalmente, no âmbito de uma responsabilidade objetiva (sem qualquer previsão/consagração legal), de uma inaceitável (porque impossível, desde logo) “exigência” de omnipresença e na “remessa” da classificação das referidas obrigações de segurança como obrigações de resultado (e não de meios, como claramente são)”; (iii) “(…) definição destas obrigações de segurança passa essencial e obrigatoriamente (como é até intuitivo), num acidente com animais, pela prova de que as vedações ali instaladas eram aquelas que ali deviam estar e que se encontravam intactas e sem ruturas nas imediações (contiguidade, arredores, etc.) do local do acidente (…) XVIII. E a verdade é que essa prova foi claramente feita pela R./recorrente (…)”.
A alegação da Recorrente, porém, não é minimamente persuasiva, carecendo, inclusivamente, de substrato validatório e legitimador.
Para explicitação do juízo que se vem de expor, mostra-se útil começar por deixar um breve enquadramento teórico necessário para a apreciação da questão.
À data do acidente em causa nos autos [09.06.2016], vigorava já o regime jurídico dos direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas e outros tipo de rodovias ali determinadas, aprovado pela Lei nº 24/2007, de 18 de julho [cf. respetivo art.º 14º].
Tal diploma, independentemente da existência de portagens e do pagamento de taxa pela utilização da autoestrada concessionada, e considerando também os itinerários principais e os itinerários complementares, estabeleceu as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis para os utentes, sem prejuízo de regimes mais favoráveis estabelecidos ou a estabelecer [respetivo art.º 1º].
Nos termos do art.º 12º da citada Lei nº 24/2007, “1- Nas autoestradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respetiva causa diga respeito a: a) Objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem; b) Atravessamento de animais; c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança. 3 - São excluídos do número anterior os casos de força maior, que diretamente afetem as atividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de: a) Condições climatéricas manifestamente excecionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; c) Tumulto, subversão, atos de terrorismo, rebelião ou guerra”.
Desta previsão legal resulta que a concessionária de autoestrada em que se verifique um sinistro rodoviário causado por objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem, atravessamento de animais e líquidos na via, neste último caso quando não resultantes de condições climatéricas anormais, está onerada com uma presunção de incumprimento das obrigações de segurança que lhe cabe observar.
Esta presunção, porque presume o incumprimento de um certo dever, constitui, simultaneamente, uma presunção da ilicitude de certo facto e uma presunção de culpa, na medida em que revela a inobservância do especial dever de diligência que onera a concessionária [artigo 487º, nº 2, do Código Civil].
Cientes destes considerandos de enquadramento legal, e volvendo ao caso recursivo em análise, cabe notar que se mostra provado, de entre outro tecido fáctico, que, perto das 08h30m, do dia 09.06.2016, verificou-se na Autoestrada A7 um acidente de viação decorrente do atravessamento de um canídeo em que foi interveniente o veículo automóvel de matrícula (...).
Ora, é ponto assente [até porque as partes não discutem tal questão] que a manutenção e fiscalização da segurança rodoviária competem aos concessionários, nas vias concessionadas, o que serve para dizer que era sobre a Ré Ascendi, aqui Recorrente, que impendia a obrigação de manutenção da via pública em condições de segurança de circulação.
Na verdade, enquanto concessionária, são impostas à Ré, aqui Recorrente, múltiplas obrigações no sentido de manter padrões de qualidade rodoviária elevados, bem como o dever de assegurar boas condições de segurança.
E se assim é, em face da factualidade apurada nos autos, resulta claro que a Ré, aqui Recorrente, incumpriu a sua função de regulação e controlo, incorrendo, por omissão, na prática de um ato ilícito por omissão, de modo que, verificado está o pressuposto relacionado com a ilicitude.
Esta ilicitude, porém, só é relevante se estiver associada a uma conduta censurável, isto é, estiver associada à culpa, o que significa que a violação das referidas normas, dos princípios gerais ou do dever geral de cuidado não é, por si só, suficiente para fazer nascer a obrigação de indemnizar já que esta só nascerá quando essa violação for culposa, isto é, quando decorrer de um comportamento que podia e devia ter sido evitado e que só não o foi por razões merecedoras de censura.
E isto porque “agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.” [A. Varela, “Das Obrigações em Geral, 3.ª ed., vol. I, pg. 571]
A qual “(…) deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor”, “ sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de atos jurídicos ilícitos” [v. artigo 10º da Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro].
A culpa será aferida, pois, pela diligência exigível a um funcionário ou agente típico, ou seja, um funcionário ou agente zeloso que atua com respeito pela lei, sendo que, sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de atos jurídicos ilícitos.
Não se podendo, pois, falar de autonomização da ilicitude relativamente à culpa em sede de responsabilidade civil extracontratual, importa analisar se o comportamento da Ré infringiu as normas legais ou regulamentares e as regras de cuidado a que devia obediência e, ocorrendo essa infração, se ela se deveu a razões juridicamente reprováveis.
Examinado o probatório coligido, verifica-se que, em substância, ocorreu a colisão do veículo automóvel visado nos autos que circulava contra um cão que se atravessou na via onde aquela circulava pela direita da hemifaixa da rodagem.
No quadro em apreço, é evidente que, no plano naturalístico, a causa direta do acidente descrito nos autos foi o aparecimento súbito, na faixa de rodagem, do apontado canídeo.
Convém realçar que a Ré não conseguiu demonstrar que a culpa na verificação do acidente se tivesse ficado a dever ao comportamento da condutora do veiculo automóvel sinistrado, não legitimando a matéria de facto dada como provada a referência a qualquer elemento nesse sentido.
Permanece, por isso, intocável, a presunção de culpa da Ré estabelecida por força do estatuído no nº. 3 do art. 10º da Lei 67/2007.
Cumpre, todavia, apurar se terá a Recorrente Ascendi logrado ilidir tal presunção de culpa.
Neste domínio, ressalte-se que a Ré, aqui Recorrente, tratar-se a imposição de assegurar as condições de circulação em segurança no lanço concessionado de uma obrigação de meios, que não uma obrigação de resultados.
Mas será mesmo assim?
Esta questão, não sem algumas dificuldades, foi já também objeto de pronúncia pelos Tribunais Superiores.
Na verdade, e conforme já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça [Acórdão de 14/03/2013, P. 201/06.8TBFAL.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt], não se trata de uma mera obrigação de meios, mas antes de uma obrigação reforçada de meios.
Afirma o aresto que “(…) Sem embargo aquele dever de cuidado que incide sobre condutores de veículos, importa não olvidar também que à permissão genérica de, em tais rodovias, se poder conduzir, em regra, até à velocidade máxima de 120 km/h subjaz o cumprimento da obrigação de assegurar a manutenção das condições de segurança estruturais e operacionais que permitam a condução segura à velocidade consentida, integrando o sinalagma do pagamento de uma taxa de portagem. (…) São os concessionários que dispõem de maior facilidade de identificação dos perigos ou de apuramento das circunstâncias que rodeiam acidentes devido a obstáculos existentes na via, tarefa que naturalmente é dificultada ou praticamente impossibilitada aos utentes e terceiros. (…)”.
Baseia-se assim o Supremo Tribunal de Justiça no nível de exigência no cumprimento das obrigações de segurança para apontar a existência de uma obrigação reforçada de meios, não considerando legítima a argumentação pela concessionária da impossibilidade de prever todos e quaisquer acidentes.
Deverá aqui operar uma avaliação razoável das circunstâncias concretas apuradas.
Procurando fixar o padrão de diligência exigível a uma concessionária pela especificidade das situações elencadas no nº 1 do artigo 12º da Lei nº 24/2007, observaremos que o funcionamento da presunção aí estabelecida apenas é afastado nas circunstâncias especificadas nos n.º 2 e 3 do mesmo, ou seja, em “casos de força maior, que diretamente afetem as atividades da concessão e não sejam imputáveis ao concessionário, resultantes de: a) Condições climatéricas manifestamente excecionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; c) Tumulto, subversão, atos de terrorismo, rebelião ou guerra”.
Com o propósito de esclarecer o teor da expressão “caso de força maior” em matéria de acidentes de viação decorrentes do atravessamento de animais na faixa de rodagem, convoca-se para a questão decidenda o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.10.2033, tirado no processo nº. 04A1299: “(…)
O aparecimento de um cão de elevado porte na faixa de rodagem da autoestrada constitui reconhecido perigo para quem ali circula. Cabe à Brisa evitar essa (e outras) fonte de perigos, essa anormalidade. Não pode pôr-se a cargo do automobilista a prova da negligência da Brisa ou da origem do cão porque não foi a prestação dele que falhou nem ele tem a direção efetiva, o poder de facto sobre a autoestrada (como um todo, incluindo vedações, ramais de acesso e áreas de repouso e serviço.
Como acima ficou dito, só o «caso de força maior devidamente verificado» exonera o devedor (a concessionária) da sua obrigação de garantir a circulação em condições de segurança e, na hipótese de inexecução, do dever de reparar os prejuízos causados.
Isto significa, no essencial, que «não será suficiente (ao devedor, a Brisa) mostrar que foi diligente ou que não foi negligente: terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que não lhe deixou realizar o cumprimento».
Essa prova só terá sido produzida quando se conhecer, em concreto, o modo de intromissão do animal. A causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente (…)”.
Em reforço deste entendimento, ressalte-se o expendido no teor do aresto do S.T.J., de 09.09.2008, tirado no processo 08P1856, em que se afirma: “(…)
Para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, deveria pois a R. provar, em concreto, que o canídeo surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na autoestrada, negligente ou intencionalmente, por outrem.
Isto é, sempre que há um acidente devido a um cão (ou outro animal) que se introduziu numa autoestrada, presume-se o incumprimento da concessionária. Esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via, não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem (…)”.
Bem como o teor do jurisprudência firmada no Acórdão da Relação do Porto, 11.01.2011, proc. Nº 4196/08.5TBSTS.P1, em que se refere:“(…)
Em causa estão, (…), certas vias especiais, destinadas ao trânsito rápido, proporcionando a quem as utiliza uma expectativa de circulação em segurança a velocidades até 120 kms/hora, sem que lhe seja exigível um estado de alerta permanente perante a possibilidade de repentino surgimento de obstáculos na via, provocando perigo de despiste, tais como animais a atravessá-la.
Quando, apesar da existência de vedações, um cão se introduz na autoestrada, existe, em princípio, um incumprimento concreto por parte da concessionária, porquanto, nos termos do contrato que celebrou com o Estado, ela se comprometeu, além do mais, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas autoestradas.
E tal presunção de incumprimento subsistirá sempre que, como no caso vertente, seja ignorada a razão da introdução do animal na via. É manifesto que a entrada de um cão na autoestrada pode acontecer por qualquer meio, incluindo ser aí largado por um utente.
Mas, enquanto não for conhecida a efetiva razão do sucedido, é a favor do lesado/utente, e não da concessionária que a respetiva dúvida terá de resolver-se, de acordo com o preceituado no n.º 1 do art.º 12º da Lei n° 24/2007, conjugado com o n.º 1 do art.º 350.º do C.Civil”.
Posição que se acolheu no recentíssimo aresto deste Tribunal Central Administrativo Norte de 17.04.2020, no Procº. n.º processo nº. 01952/15.1BEPRT: “(…)
A presença de um qualquer animal, nomeadamente de um cão, numa autoestrada é sempre um fator de grande risco, já que aos veículos é permitido, em regra, atingir a velocidade de 120 Km/h, ainda que no local em questão o limite fosse de 100km/h, quando é certo que a Recorrente também não demonstrou que a autoestrada estava efetivamente vedada em condições de segurança, ou seja, que tivesse procedido à instalação de mecanismos que permitissem evitar situações como a dos autos.
Não sendo conhecida a efetiva razão determinante do inusitado atravessamento do animal na faixa de rodagem, é a favor do lesado, e não da concessionária, que a respetiva dúvida terá de resolver-se, de acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, conjugado com o n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil (cfr. neste sentido o Acórdão do TRP, de 04.07.2013, P. 3238/11.1TBGMR.P1).
(…)
Como se sumariou no Acórdão deste TCAN, de 03.05.2007, no Processo n.º 00814/04.2BEBRG, “(…) a ilisão de uma presunção "juris tantum" só é feita mediante a prova do contrário, não sendo bastante a mera contraprova, pelo que o "non liquet" prejudica a pessoa/parte contra quem funciona a presunção.
Sobre o R. impende o ónus de provar a adoção de todas as providências que, segundo a experiência comum e as regras técnicas aplicáveis, fossem suscetíveis de evitar o perigo, prevenindo o dano, o qual não se teria ficado a dever a culpa da sua parte, ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Para se ter como ilidida a presunção de culpa do R. não basta a simples prova, em abstrato, de que o mesmo desenvolve ou dispõe de funcionários ou dum corpo técnico que têm por função proceder à fiscalização e reparação das vias sob sua jurisdição, pois tem de ser demonstrado quais são as providências desencadeadas em relação à via pública em questão, a fim de que o Tribunal possa aferir se aquele «organizou os seus serviços de modo a assegurar um eficiente sistema de prevenção e vigilância de anomalias previsíveis», exercendo uma «adequada e contínua fiscalização».
Aliás, se dúvidas houvesse, já o Tribunal Constitucional se pronunciou relativamente à interpretação do artigo 12.º/1 da Lei n.º 24/2007, no sentido da sua não inconstitucionalidade, afirmando que “na aceção segundo a qual em caso de acidente rodoviário em autoestradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento” (Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 596/2009 e n.º 629/2009) (…)”.
Reiterando toda esta linha jurisprudencial, e cotejando o tecido fáctico coligido nos autos, entendemos ser forçosa a conclusão de que não foi ilidida a presunção de culpa que impendia sobre a Ré Ascendi no que concerne à produção do sinistro dos autos.
Na verdade, não conseguiu a R. provar a forma como o dito animal entrou na autoestrada, por forma a imputar a sua proveniência a terceiros ou a um caso fortuito e que não podia ter adotado conduta diferente daquela que adotou, isto é, não logrou a R. provar factualidade de onde se possa concluir que cumpriu as exigências de diligência na sinalização e remoção dos obstáculos existentes na via, e, por conseguinte, não foi ilidida a presunção de incumprimento que sobre si impendia relativamente ao aludido dever de vigilância.
Outrossim é de relevar a circunstância da matéria de facto [incluindo a proposta aditar e/ou alterar pela Recorrente] nada dispor e/ou definir em matéria dos (i) concretos meios técnicos e humanos alocados à vigilância e garantia da verificação das condições de circulação em segurança, (ii) da eventual existência de meios de captação de imagem no local, bem como da (iii) suficiência das vedações obstaculizar a entrada de animais na faixa de rodagem, o que também contribuiu para a posição ora assumida por este Tribunal no sentido de que a Ré não logrou ilidir a presunção de culpa que sobre si impendia, e, qua tale, deve responder pelos danos que comprovadamente tenham sido causados pelo sinistro dos autos.
Deste modo, tendo sido este também a posição trilhada na sentença recorrida, é mandatório concluir, no particular conspecto em análise, que esta fez correta subsunção do tecido fáctico apurado nos autos ao bloco legal e jurisprudencial aplicável, não sendo merecedora da censura que a Recorrente lhe dirige.
Derradeiramente, saliente-se que não assiste razão à Recorrente na alegada violação do artigo 16º do Regulamento de Custas Processuais.
De facto, o artigo 16º do RCP é relativo às despesas que vão se produzindo ao longo do processo, resultantes da condução do mesmo, requeridas pelas partes ou ordenadas pelo tribunal.
Como tal, entende-se que a situação da certidão emitida por uma autoridade policial [auto de ocorrência] com vista à instrução da propositura da presente ação “não cai na reserva” da referida normação, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão em relação à demonstração da tese da Recorrente no plano do erro de julgamento em análise.
Assim deriva, naturalmente, que se impõe negar provimento ao presente recurso, devendo-se manter a decisão judicial recorrida.
Ao que se provirá no dispositivo.
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IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional, e manter a decisão judicial recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
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Porto, 23 de junho de 2022,

Ricardo de Oliveira e Sousa
Rogério Martins
Luís Migueis Garcia