Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01098/16.5BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/11/2024
Tribunal:TAF de Braga
Relator:ROGÉRIO PAULO DA COSTA MARTINS
Descritores:LEI DA AMNISTIA; APLICAÇÃO AO PROCESSO JUDICIAL; IDADE DO VISADO; SANÇÃO DE SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES;
APRECIAÇÃO DOS PEDIDOS CONDENAÇÃO À PRÁTICA DO ACTO DE ARQUIVAMENTO, DA RESTITUIÇÃO DE SALÁRIOS E PAGAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO E JUROS;
RECONSTITUIÇÃO DA SITUAÇÃO QUE EXISTIRA SE NÃO FOSSE A PRÁTICA DO ACTO PUNITIVO;
ARTIGOS 6º E 14.º DA LEI DA AMNISTIA (LEI N.º 38-A/2023, DE 02.08);
Sumário:
1. A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais.

2. Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08): “Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.”

3. A ideia subjacente a este preceito é a seguinte: competente para aplicar as medidas previstas na Lei da Amnistia é quem aplicou a sanção criminal ou disciplinar.

4. Os juízes, em qualquer instância judicial, não são os juízes do “julgamento” da infracção nem da condenação. E apenas podem aplicar a Amnistia a sanções aplicadas nos processos judiciais, como decorre, a contrario, do citado preceito. Não podem aplicar a Lei da Amnistia, directamente, nos processos administrativos, disciplinares. Fazendo-o, violam o referido artigo 14.º da Lei da Amnistia e, com ele, o princípio constitucional da separação de poderes.

5. Não importa aqui saber se a Lei da Amnistia tem eficácia ex tunc ou ex nunc. Importa extrair da Lei da Amnistia a única solução compatível com a letra da lei: o tribunal não pode aplicar a Lei da Amnistia ao caso concreto em processo administrativo. E sendo certo que retirar efeitos jurídicos para o processo judicial da Lei da Amnistia aplicável ao processo disciplinar é aplicar a Lei da Amnistia no processo administrativo.

6. Os artigos 6º e 14º da Lei da Amnistia de 2023, na interpretação contrária a esta, são inconstitucionais, por violação do princípio constitucional, da separação de poderes.

7. O intervalo etário contemplado pela Lei da Amnistia de 2023 abrange também para as infracções disciplinares –n.º1 do artigo 2º e artigo 6º.

8. O princípio da tutela jurisdicional efectiva impunha no caso concreto o prosseguimento dos autos da acção de impugnação com vista a assegurar o respectivo efeito útil.

9. Sendo certo que foram deduzidos os pedidos de condenação à prática do acto de arquivamento, de restituição de salários e pagamento de indemnização e juros, pedidos de que não houve desistência nos autos apesar da aceitação da aplicação da Lei da Amnistia pelo autor.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

Ministério da Administração Interna veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, de 10.04.2024, proferida na acção administrativa que «AA» moveu contra o Recorrente e que declarou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, por força da recente da Lei da Amnistia - artigo 14° da Lei 38-A/2023, de 02.08.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser revogada a decisão recorrida e ordenado o prosseguimento dos autos.

*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.

*
I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

A. A douta Sentença parte do pressuposto, erróneo, de que, quando haja impugnação contenciosa das decisões disciplinares, o procedimento disciplinar apenas se extingue com o trânsito em julgado da decisão judicial.

B. E, por conseguinte, uma vez que os presentes autos têm por objeto a impugnação contenciosa da decisão disciplinar que aplicou ao aqui recorrido a pena de 60 (sessenta) dias de suspensão, pressupôs que o procedimento não se encontrava extinto, declarando a “amnistia própria” da infração praticada pelo recorrido.

C. Contudo, com a devida vénia, este Ministério considera que a douta Sentença recorrida enferma de erro de julgamento de Direito.

D. Da análise conjugada dos artigos 60.°, n.° 2, 101.°, 102.° e 103.° do EDPSP, é possível concluir que o legislador pretendeu, de forma inequívoca, que o termo final do procedimento disciplinar fosse a decisão final, prevista no artigo 101.° daquele diploma.

E. Essa opção legislativa está, aliás, em conformidade com o regime do CPA, em que o ato administrativo (de caráter substantivo) é a decisão administrativa, tomada pela entidade que disponha de competência, que põe termo ao procedimento administrativo (cf. artigos 127.° e 148.° do CPA);

F. Após esta fase, poderão existir as fases de impugnação graciosa e contenciosa, mas a decisão final, que decidiu pela absolvição ou condenação do arguido, já se encontra tomada e o procedimento disciplinar já se encontra extinto.

G. É por isto que a execução da pena disciplinar - o seu cumprimento -, se inicia logo que decorra o prazo de impugnação graciosa ou, quando ela exista, da decisão do recurso, conforme o n.° 1 do artigo 50.° do EDPSP, e a responsabilidade disciplinar extingue-se com o cumprimento da pena, nos termos da alínea c) do artigo 47.° do EDPSP.

H. A impugnação contenciosa das decisões da Administração é posterior e totalmente autónoma do procedimento administrativo, não se incluindo no procedimento administrativo, nem com ele se confundindo.

I. Nesta apreciação assistem aos Tribunais, como órgãos de soberania, todos os poderes legais para anular ou declarar nulo o ato, incluindo todos os efeitos que este já tenha produzido (cf. artigo 173.°, n.° 1 e 2 do CPTA).

J. Por conseguinte, encontrando-se extinto o procedimento disciplinar que conduziu à aplicação ao recorrido da pena disciplinar de 60 (sessenta) dias de suspensão, apenas pode ser aplicada ao caso vertente a chamada “amnistia imprópria” - com efeitos ex nunc. Isto,

K. Sem prejuízo de o Ministério entender que deverá questionar-se a posição adotada pela douta Sentença, e distinguir-se entre “amnistia própria” e “amnistia imprópria”, em ordem a retirar desse distinguo efeitos jurídicos diversos (veja-se, por todos, Eduardo Correia/Taipa de Carvalho, Direito Criminal III, Coimbra, 1980, p. 18).

L. Relembramos o voto de vencido ao acórdão do STA de 07/12/2023, proferido no processo n.° 02460/19.7BELSB, que se acompanha integralmente, bem como as conclusões I e II do acórdão do STA de 29/02/2024, proferido no processo n.° 03008/14.5BELSB.

Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossa Excelências doutamente suprirão, deve o presente recurso de apelação ser admitido e julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser a douta Sentença proferida pelo de TAF de Braga revogada, declarando-se que os efeitos da amnistia são os que resultam da aplicação do disposto na segunda parte do n.° 2 do artigo 128.° do Código Penal (amnistia imprópria).

*

II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1. O Autor foi condenado, no âmbito de processo disciplinar, por despacho de 30.06.2009 - cfr. doc. 1 junto com a petição inicial;

2. Ao Autor foi aplicada pena de suspensão por 60 dias - cfr. doc. 1 junto com a petição inicial;

3. A factualidade, subjacente a tal condenação, ocorreu antes das 00.00horas de 19.06.2023 - o presente processo foi instaurado em 01.06.2016;

4. Não houve condenação penal nem há nota quanto a reincidência - cfr. doc. junto com a contestação;

5. O Autor é GNR e a infração não foi praticada no exercício das funções.

*

III - Enquadramento jurídico.

A decisão recorrida procedeu ao seguinte enquadramento jurídico, na parte aqui relevante:

“(…)

Decorre da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto que:
Perdão de penas e amnistia de infrações
[...]
Artigo 2.º
Âmbito
1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.' e 4.'2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:

2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
[…]

b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.'
[…]

Artigo 6.'
Amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares
São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.

Daqui decorre que, em sede de infrações disciplinares, são amnistiadas as que hajam sido praticadas até às 00.00horas do dia 19.06.2023 e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.

Caso haja, simultaneamente, ilícito penal, a amnistia só opera, na infração disciplinar, se operar no referido ilícito. Neste domínio, quanto à expressão “ilícitos penais não amnistiados pela presente lei”, entende o Tribunal que tal referência abarca, apenas, situações fácticas, em que, a par da infração disciplinar, houve processo crime com aplicação de sanção penal (note-se que, no artigo 2°, n.° 1, o legislador refere-se a “sanções penais” e não a processos ou ilícitos penais). Verificando-se que, além da infração disciplinar, houve aplicação de sanção penal, ter-se-á que aferir dos pressupostos do artigo 2°, n.° 1 e também do artigo 7°.

Neste artigo 7°, afasta-se a amnistia, nas situações em que houve condenação pelos crimes e situações ali elencados, quando há reincidência e, quanto a membros das forças policiais e de segurança, em caso de infrações praticadas no exercício das suas funções, que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos; repete-se, aqui, prevêem-se exceções ao regime da amnistia decorrente da lei que se analisa, mas à exceção da reincidência e do caso das forças policiais e de segurança, só quando houver condenação, pois que a norma refere “os condenados”.

Portanto, o raciocínio a empreender passa, num primeiro momento, por verificar se a infração disciplinar constitui ilícito penal; em caso negativo, aplica-se o regime do artigo 2°, n.° 2, al. b) e artigo 6° e análise da reincidência e, em caso de membros das forças policiais e de segurança, análise da infração (se praticada no exercício das suas funções e se constitui violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos). Igual raciocínio será de seguir, caso a infração disciplinar constitua ilícito penal, mas não tenha havido condenação.

Num segundo momento, caso a infração disciplinar constitua ilícito penal, com condenação, ter-se-á que aferir, tanto do disposto no artigo 2°, n.° 2, al. b), como do previsto no artigo 2°, n.° 1 (que contém um critério temporal e um limite de idade do agente infrator) e do artigo 7°. Caso se conclua que a amnistia opera quanto ao ilícito penal, quanto à infração disciplinar caberá, verificar se a mesma foi praticada até às 00.00horas do dia 19.06.2023, se a sanção aplicável é superior a suspensão ou prisão disciplinar e, bem assim, analisar a eventual reincidência e, em caso de membros das forças policiais e de segurança, analisar a infração (se praticada no exercício das suas funções e se constitui violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos).

Vertendo sobre o presente processo, resulta, com interesse para a decisão que se empreende, que:

1. O Autor foi condenado, no âmbito de processo disciplinar, por despacho de 30.06.2009 – cfr. doc. 1 junto com a petição inicial;

2. Ao Autor foi aplicada pena de suspensão por 60 dias – cfr. doc. 1 junto com a petição inicial;

3. A factualidade, subjacente a tal condenação, ocorreu antes das 00.00horas de 19.06.2023 – o presente processo foi instaurado em 01.06.2016;

4. Não houve condenação penal nem há nota quanto a reincidência – cfr. doc. junto com a contestação;

5. O Autor é GNR e a infração não foi praticada no exercício das funções.

Cotejados estes aspetos com as disposições legais, acima transcritas, conclui-se que a situação, em crise, se subsume ao critério temporal, a pena disciplinar não é superior a suspensão, não há reincidência nem aplicação de sanção penal. Quanto à circunstância de o Autor ser militar da GNR, impõe-se verificar se a infração foi praticada no exercício de funções (que não foi, como se referiu).

Cumpre, ainda, chamar à colação o disposto nos artigos 127.° e 128.°, n.° 2 do Código Penal, dos quais se extrai que a amnistia é uma causa de extinção da responsabilidade criminal, que “(...) extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança”.

Na senda da doutrina e jurisprudência que se debruçaram sobre este tema, refira-se que que amnistia pode ser própria, quando, aplicada antes da condenação definitiva, extingue o crime, operando, em consequência, a extinção do procedimento criminal e imprópria, quando opera após a condenação definitiva e faz cessar a execução da pena principal e penas acessórias (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.° 046137, de 18.05.1994).

Relativamente às infrações disciplinares, na linha do entendimento expresso no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.° 0262/12.0BELSB, de 16.11.2023: “I - A amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, tem eficácia ex-tunc, e faz desaparecer o objeto da ação que visa a anulação ou declaração de nulidade do ato que aplicou a pena disciplinar, determinando a inutilidade da respetiva lide. [...].

Sem prejuízo dos efeitos de facto que, entretanto, se tenham consumado, nomeadamente os relativos ao cumprimento da pena, é entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina que a amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, determina o «esquecimento» da infração, extinguindo os respetivos efeitos com eficácia ex-tunc.
Daqui decorre, necessariamente, que a amnistia faz desaparecer também – retroativamente - o objeto da ação que visa a anulação ou declaração de nulidade do ato que aplicou a correspondente pena disciplinar.

Ora, se cessou a responsabilidade disciplinar do arguido, extinguindo-se os efeitos do ato que a efetivou, não subsiste nenhum interesse em determinar se o poder disciplinar prescreveu ou não antes da prática daquele ato, porque não existem outros efeitos jurídicos a extinguir para além daqueles que são extintos pela própria amnistia.

[...]”.

Na mesma linha de raciocínio, o acórdão do mesmo Tribunal de 20.12.2023, proferido no processo 0699/23.0BELSB, refere que:

“Desde logo porque a atribuição do efeito «ex tunc» à presente declaração de amnistia, única questão vertida nas conclusões da revista, aparenta estar bem decidida, até porque já tem a seu favor um recente aresto deste Supremo Tribunal - AC STA de 16.11.2023, processo nº0262/12.0BELSB - que se pronunciou sobre a «questão» no âmbito da aplicação da mesma lei de amnistia - Lei nº38-A/2023, de 02.08 - e segundo o qual, citamos, [...] sem prejuízo dos efeitos de facto que, entretanto, se tenham consumado, nomeadamente os relativos ao cumprimento da pena, é entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina que a amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, determina o esquecimento da infracção, extinguindo os respectivos efeitos com eficácia ex-tunc. Daqui decorre, necessariamente, que a amnistia faz desaparecer também - retroactivamente - o objecto da acção que visa a anulação ou declaração de nulidade do acto que aplicou a correspondente pena disciplinar. Ora, se cessou a responsabilidade disciplinar do arguido, extinguindo-se os efeitos do acto que a efectivou, não subsiste nenhum interesse em determinar se o poder disciplinar prescreveu ou não antes da prática daquele ato, porque não existem outros efeitos jurídicos a extinguir para além daqueles que são extintos pela própria amnistia [...]. A interpretação e aplicação da lei que foi feita no ponto 14 do acórdão recorrido tem, portanto, consistência jurídica, e não pode ser vista como manifestamente errada, de modo a «justificar» a admissão da presente revista com base na clara necessidade de uma melhor aplicação do direito.

Sem menosprezar a importância da questão trazida à revista, nomeadamente na sua «vertente paradigmática», constatamos, todavia, que ela se encontra suficientemente trabalhada pela doutrina e pela jurisprudência, não configurando actualmente questão particularmente complexa, de tratamento jurisprudencial obscuro, a necessitar de uma abordagem clarificadora pelo tribunal de revista, neste caso concreto. Ademais, e como já salientamos, a bem recente prolação de aresto, sobre o assunto, por este Supremo Tribunal, satisfaz não só a dita vertente paradigmática como concede à decisão que foi tomada no acórdão recorrido uma auréola de bom direito.

[...].

Com interesse, mencione-se, ainda, o acórdão, também, do STA, de 28.11.1995, proferido no processo n.° 036683, que estabelece que “[n]o caso de amnistia que abranja infracção disciplinar pela qual já exista pena aplicada, aquela não destrói os efeitos já produzidos”. E, ainda, a recomendação do Provedor de Justiça de 03.09.1997, a propósito das consequências da amnistia, destacando-se “a amnistia (seja ela própria ou imprópria) atinge o acto praticado, não na sua materialidade, mas nas suas consequências. Ou seja, o que se pretende na amnistia (própria ou imprópria) é só impedir que o agente agraciado sofra sanção em que poderia vir a ser ou em que já foi condenado, não apagando por isso mesmo o facto na sua materialidade naturalística”.

Destarte, mostrando-se preenchidos os pressupostos de que depende a amnistia, deve a mesma operar, o que se determina, nos termos do artigo 14° da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto.

Notifique.

*

Na sequência do juízo empreendido, verifica-se que o presente processo, em que se discute a legalidade da decisão que aplicou pena disciplinar ao Autor, perdeu o seu objeto.

Como ensina o Professor Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil Anotado, volume III, pág. 373, a inutilidade superveniente da lide tem lugar quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não tem qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o fim visado com a ação foi atingido por outro meio.

A impossibilidade da lide “dá-se quando o efeito jurídico pretendido através do processo se tornou lógica, natural ou juridicamente irrealizável durante a instância” (cfr. acórdão do TCA Sul, de 30.06.2011, proferido no processo n.° 06515/10), ou seja, a lide torna-se impossível por extinção do sujeito, no âmbito das relações jurídicas estritamente pessoais, por extinção do objeto, quando se verifique a revogação do ato administrativo ou o perecimento da coisa que constituem especificamente o objeto do litígio, ou por extinção de um dos interesses em conflito (v. Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Dicionário do Contencioso Administrativo, Almedina, 2006, pág. 280).

“A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio” [cfr. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 1 a pág. 512].

A inutilidade ou a impossibilidade superveniente da lide determinam a extinção da instância nos termos consignados no artigo 277°, alínea e) do C.P.C., aplicável ex vi do artigo 1° do C.P.T.A..

Ante a situação exposta, face à amnistia da infração disciplinar, sindicada nos presentes autos, deixa o presente processo de ter objeto, verificando-se uma impossibilidade superveniente da lide, o que conduz à extinção da instância.

*

Fixo o valor da causa em 6.000,00€ (seis mil euros), nos termos dos artigos 305°, 306° e 308° (a contrario) do C.P.C. e 31°, n.° 4 do C.P.T.A. .

**
Por ter ocorrido amnistia no decurso do presente processo, a qual levou à impossibilidade superveniente da lide, são ambas as partes responsáveis, em partes iguais, pelo pagamento das custas, nos termos dos artigos 536°, n° 2, al. c), do Código de Processo Civil e 6° e 13° do Regulamento das Custas Processuais.

***

DECISÃO

Nestes termos, determino a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide. Condeno ambas as partes no pagamento das custas.

(…)”.

Discordamos do entendimento sufragado na decisão recorrida.

Não importa saber se a Lei da Amnistia tem eficácia ex tunc ou ex nunc.

Importa determinar se o Tribunal podia ou não aplicar a Lei da amnistia ao caso concreto, encontrando-se verificados todos os seus pressupostos, e se podia, com esse fundamento, não conhecer, no todo ou em parte, do objecto da acção, com fez.

Entendemos que não.

Os tribunais não são segunda instância administrativa sob pena de violação do princípio da separação de poderes consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

O objecto da decisão do Tribunal de Primeira Instância não é processo disciplinar em si – a que possa pôr termo por aplicação da Lei da Amnistia ou outra razão qualquer -, mas a decisão punitiva que pode, por exemplo, ter recusado a aplicação da Lei da Amnistia.

A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais.

Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08):

“Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.”

A ideia subjacente a este preceito é a seguinte: competente para aplicar as medidas previstas na Lei da Amnistia é quem aplicou a sanção criminal ou disciplinar.

Os juízes, em qualquer instância judicial, não são os juízes do “julgamento” da infracção nem da condenação. E apenas podem aplicar a amnistia a sanções aplicadas nos processos judiciais, como decorre, a contrario, do citado preceito. Não podem aplicar a Lei da Amnistia, directamente, nos processos administrativos, disciplinares. Fazendo-o, violam o referido artigo 14.º da Lei da Amnistia e, com ele, o princípio constitucional da separação de poderes.

Precisamente face ao teor desta norma não vale como argumento trazer aqui à colação nem a Lei n. 16/86, de 11.06, nem a jurisprudência produzida ao abrigo desta Lei, porque esta Lei não tem uma norma igual ou semelhante à do artigo 14.º da Lei da Amnistia de 2023.

Sendo certo que retirar efeitos jurídicos para o processo judicial da Lei da Amnistia aplicável ao processo disciplinar mais não é do que aplicar a Lei da Amnistia no processo judicial.

Os artigos 6º e 14º da Lei da Amnistia de 2023, na interpretação feita na decisão recorrida, são inconstitucionais, por violação deste princípio constitucional, da separação de poderes.

Pelo que não cabia ao Tribunal recorrido aplicar à acção judicial a Lei da Amnistia, antes se impunha conhecer de mérito, logo por aqui.

Olhando para o caso concreto, de qualquer modo, sempre seria de não aplicar a recente Lei da Amnistia de 2023.

Dispõe o artigo 6º da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08):

“São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.

Por seu turno dispõe o n.º 1 do artigo 2º do mesmo diploma:

“Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.

Desde logo, o requisito da idade é um pressuposto essencial para a aplicação desta Lei da Amnistia de 2023, ao contrário do decidido.

Esta lei estabelece uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – artigo 1º da Lei 38-A/2023, de 02.08.

Neste contexto é que se compreende o requisito da idade, para as pessoas imputáveis em razão da idade, a partir dos 16 anos, mas com idade inferior a 30 anos à data da prática do facto.

Por isso carece de fundamento a distinção entre infracções disciplinares e infracções penais para afastar das primeiras o requisito da idade.

No caso de infracção disciplinar que constitui, em simultâneo, ilícitos criminais estão excluídos do seu âmbito, expressamente, ilícitos disciplinares que sejam também ilícitos criminais não amnistiados – artigo 6º.

Ora os crimes praticados por pessoas com mais de 30 anos à data da prática dos factos não estão amnistiados.

Em concreto não foi apurada a idade do Autor, requisito essencial para a aplicação desta Lei da Amnistia. Pelo que, logo por aqui, não deveria ter sido aplicada a amnistia.

Assim como o princípio da tutela jurisdicional efectiva impõe no caso os autos da acção de impugnação prossigam os seus termos com vista a assegurar o respectivo efeito útil.

Entendimento sufragado:

- No voto de vencido no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 03.11.2023, processo 951/23.4 PRT;

- No voto de vencido no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 17.05.2024, processo 72/23.0 PRT;

- No acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 17.05.2024, no processo 1778/15.2 BRG (com duas declarações de voto);

- No acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 17.05.2024, no processo 269/17.1 MDL (com uma declaração de voto e um voto de vencido);

- No acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 17.05.2024, no processo 95/22.6 AVR (com duas declarações de voto);

- No voto de vencido no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 06.06.2024, no processo 302/17.7 MDL;

- No voto de vencido no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 06.06.2024, no processo 516/18.2 PNF;

- No acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 21.06.2024, no processo 704/20.1 PNF (com duas declarações de voto);

- No acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 05.07.2024, no processo 47/24.1 PNF;

- No acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 05.07.2024, no processo 94/22.8 VIS (com duas declarações de voto).

- No acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 13.09.2024, no processo 773/21.7 PRT (com um voto de vencido).

- No voto de vencido no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 13.09.2024, no processo 282/20.1 VIS;

- No acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 13.09.2024, no processo 27/21.9 MDL (com duas declarações de voto).

Admitindo que a amnistia tem por efeito fazer desaparecer da ordem jurídica o acto impugnado, perdendo a acção o seu objecto principal, no caso concreto é evidente, quanto a nós, que a lide não perde a sua utilidade, ipso facto.

Como se sustenta no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20.10.2011, no processo nº 0941/10 (com sublinhados nossos):

«A jurisprudência deste STA entende que só se verifica a inutilidade superveniente da lide quando essa inutilidade for uma inutilidade jurídica e que, por ser assim, não se pode considerar actividade inútil o prosseguimento do processo quando ele se destine a expurgar da ordem jurídica um acto ilegal e a proporcionar a tutela efectiva dos direitos daqueles a quem o mesmo atinge. A utilidade da lide correlaciona-se, assim, com a possibilidade da obtenção de efeitos úteis pelo que a sua extinção só deve ser declarada quando se conclua, ‘com a necessária segurança, que o provimento do recurso em nada pode beneficiar o Recorrente, não o colocando, de todo o modo, numa situação vantajosa, e que, sendo a anulação de um acto um imperativo do princípio da legalidade, continua; sempre a haver utilidade no prosseguimento da lide que visa anular acto ferido de ilegalidade, ainda que esteja em causa acto de adjudicação de obra que se diz já estar concluída.’ - Acórdão de 18/1/01, (rec. n.º 46.727)». Cfr. neste sentido, entre outros, os Acórdãos de 30/9/97 (rec. 38.858), de 23/9/99 (rec. 42.048), de 19/12/00 (rec. 46.306) e de 9/1/02 (rec. 46.557).)

Deste modo, e porque o recurso contencioso era o meio processualmente adequado para assegurar a tutela judicial efectiva dos direitos e interesses legítimos dos interessados a extinção da instância por inutilidade da lide só podia declarada quando fosse certo que o seu provimento não traria quaisquer consequências para o Recorrente, designadamente não o colocando numa situação vantajosa. Sendo que esta tanto se podia traduzir na possibilidade da reconstituição natural da situação hipotética como na atribuição de uma indemnização pelos danos decorrentes da prática do acto ilegal como ainda, conjuntamente, pelas duas quando a referida reconstituição fosse insuficiente para a reparação integral dos prejuízos».

No caso concreto o Autor formulou os seguintes pedidos, reproduzidos na decisão recorrida.

“(…)

Nestes termos e, nos melhores de direito aplicável, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente e provada e, em consequência:

a) Ser anulado o despacho impugnado;

b) Ser o Réu condenado à prática do ato (despacho de arquivamento do processo disciplinar);

c) Ser o Réu condenado, a pagar ao Autor, as perdas dos vencimentos resultantes da aplicação e cumprimento da sanção disciplinar, no montante de € 2.000,00 (dois mil euros).

d) Ser condenado o Réu, no pagamento dos juros, à taxa legal e anual, sobre a referida quantia, desde o respetivo vencimento, até efetivo e integral pagamento;

e) Ser, também, o Réu condenado a pagar ao Autor a indemnização de Euros €4.000,00 (quatro mil euros), a título de reparação pelos danos morais que lhe causou como consequência necessária e direta da sua atuação ilegal e ilegítima, acrescida dos juros à taxa legal e anual desde a citação até efetivo e integral pagamento;

f) Ser o Réu condenado nas custas e no mais legal.

(…)”.

Ainda que admitindo, por hipótese, que seria de aplicar no presente processo judicial a amnistia e que, por efeito desta se tornava inútil ou impossível a instância quanto ao primeiro pedido, claramente o mesmo não se verifica em relação aos restantes pedidos.

Isto sendo certo que o Autor veio declarar que aceitava a aplicação da Lei da Amnistia ao presente processo, mas não declarou expressamente desistir dos pedidos que formulou para além do pedido de anulação do acto.

O que determina a procedência do recurso, por erro da decisão recorrida, de determinar a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, face à Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08).

Termos em que, na revogação da decisão recorrida, seja imperioso que os autos prossigam os seus normais termos na Primeira Instância para conhecimento de mérito, se nada mais a tal obstar.

*

IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO pelo que:

1. Revogam a decisão recorrida.

2. Determinam a baixa dos autos para que prossigam os seus normais termos para conhecimento de mérito se nada mais a tal obstar.

Não são devidas custas no presente recurso por não terem sido apresentada contra-alegações.
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Porto, 11.10.2024


Rogério Martins
Fernanda Brandão
Isabel Costa, com a declaração de voto que se segue:

Declaração de voto:

Voto a decisão, e os fundamentos apenas quanto à última parte, ou seja, por persistirem efeitos negativos produzidos pelo ato impugnado (que os pedidos cumulados formulados pelo Autor pretendem debelar), o que justifica a continuação da lide.