Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00109/13.0BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/21/2024
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:PAULO FERREIRA DE MAGALHÃES
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; PRODUÇÃO DE PROVA;
AGENTE DA GNR; UTILIZAÇÃO ILÍCITA DE ARMA DE FOGO;
PENA DE SUSPENSÃO AGRAVADA; NECESSIDADE E PROPORCIONALIDADE
Sumário:
1 - Como emerge da instrução do procedimento disciplinar, assim como do julgamento prosseguido pelo Tribunal a quo, está em causa a utilização da arma de serviço que estava distribuída à Autora ora Recorrente no exercício das suas funções policiais de exercício de autoridade e regulação da segurança pública e protecção de pessoas e bens.

2 - Nas condições de tempo e de lugar, a Autora ora Recorrente poderia ter levado a cabo disparos para o ar, como forma e pressuposto de repelir a continuada prática de actos ilícitos por parte do condutor do veículo, e principalmente, no pressuposto de que lhe foi transmitida informação por parte do seu colega de patrulha de que estavam perante alguém que detinha uma arma de fogo.

3 - Porém, atenta a dinâmica que é claramente possível retirar do probatório fixado pelo Tribunal a quo, e que o foi com base ou a partir do processo administrativo que consubstancia o procedimento disciplinar instaurado à Autora ora Recorrente, não se dilucida por que termos e pressupostos é que, mesmo sendo aberto um período de produção de prova para efeitos do que vinha constante dos pontos 12.º a 30.º da Petição inicial, e mesmo a considerar-se que a Autora poderia vir a lograr produzir prova no sentido de ter formado convicção de que o condutor do veículo empunhava uma arma, que a sua actuação fosse de molde a poder ser enquadrada numa óptica de que [a Autora] usou a sua arma (i) para se defender, e (ii) como o único meio de poder repelir uma agressão actual e ilícita seja contra si seja contra o seu colega de patrulha, e (iii) em obediência aos princípios da proporcionalidade e da necessidade.

4 – A efectivar-se a prova da existência de uma arma e bem assim de que a Autora ora Recorrente e o seu colega de patrulha íam ser atropelados pelo condutor, e em obediência ao disposto nos artigos 2.º e 3.º, n.º 1, alíneas a), b) e i) e n.º 2, alíneas a) e b), ambos do Decreto-Lei n.º 457/99, de 05 de novembro, sempre a utilização da arma de serviço que lhe está distribuída nunca poderia ser utilizada nas concretas condições de tempo e lugar, pois que o veículo automóvel e o respectivo condutor se encontravam já em fuga, sendo que foi nessa dinâmica que a Autora e o seu colega de patrulha vieram depois a disparar sobre o veículo, que diz ter sido para os respectivos pneus, mas como veio a resultar provado, foram disparados 2 projecteis na direcção do corpo do condutor, tendo 1 desses projecteis ficado alojado na parte estrutural do assento/encosto do condutor, e o outro projéctil vindo a atingir o condutor na cervical, o que é demonstrativo de que não foram ponderadas as consequências do concreto recurso à arma de fogo.

- É no momento em que a Autora vem a fazer uso da arma de fogo e na direcção do veículo, onde se encontrava o seu condutor e um outro ocupante, que deve ser aferida a proporcionalidade e a necessidade dessa utilização, mostrando-se assim e de forma flagrante, até em face do alega a própria Autora na Petição inicial e pelos factos relativamente aos quais pretendida fosse produzida prova, que inexistia qualquer ameaça real para a vida das suas pessoas ou de outros cidadãos que devesse ser sustida com disparos efectuados na direcção do veículo, e afinal, que o quanto refere que lograram prosseguir, e que foi o de que entraram no seu veículo policial para ir no encalço do veículo em fuga, era procedimento que deveria ter sido adoptado, logo que o outro veículo foi colocado em movimento.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:


I - RELATÓRIO


«AA» [devidamente identificada nos autos], Autora na acção que intentou contra o Ministério da Administração Interna [também devidamente identificado nos autos], inconformada com a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, pela qual julgou improcedente o pedido formulado a final da Petição inicial, atinente à anulação do despacho do Ministro da Administração Interna, datado de 24 de outubro de 2012, que determinou que lhe fosse aplicada a pena disciplinar de suspensão agravada, graduada em 121 dias, e em consequência, absolvida a entidade demandada do pedido formulado, veio interpor recurso de Apelação.

*

No âmbito das Alegações por si apresentadas, elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

“[…]
CONCLUSÕES:
A) A Recorrente não se conforma com a douta decisão recorrida uma vez que alegou na PI (designadamente nos seus arts. 12º a 30º) factos que deveriam ter sido objeto de prova e que, a resultarem provados, conduziriam a uma decisão diferente daquela que veio a ser proferida nos autos;
B) Sendo que da prova desses factos resultaria – ao invés do que consta do acto administrativo recorrido – que não era exigível à Recorrente atuação diversa da que teve, pois que o uso que fez da arma de fogo respeitou os princípios da proporcionalidade e da necessidade contemplados no nº 1 do art. 2º do DL 457/99 de 5.11;
C) Ou, pelo menos, que foi legitimamente criada na Recorrente a convição de que iria ser vítima de uma agressão atual e ilícita contra a sua pessoa e contra a pessoa do outro militar e ainda podendo ofender qualquer outra pessoa que inadvertidamente surgisse no caminho da viatura ..-..-EC;
D) A possibilidade de produção de prova sobre tal matéria de facto foi cerceada pelo Tribunal a quo ao não haver permitido a abertura de um período de produção de prova e ao haver considerado que a prova documental constante do processo administrativo seria suficiente para a decisão na presente ação;
E) Caso a Recorrente tivesse tido a possibilidade de comprovar a factualidade em causa, isso poderia conduzir à prolação de uma decisão favorável à sua pretensão pois que designadamente a existência de uma arma de fogo (ou de algo que, segundo as regras da normalidade e da experiência comum, poderia ter sido assumido como uma arma de fogo) na posse do condutor da viatura “EC” é factualidade que, uma vez provada, indicia que a Recorrente fez uso da arma de fogo que se lhe encontrava distribuída com animus deffendendi e como único meio de poder repelir uma agressão atual e ilícita que contra si e contra o outro militar fôra direcionada;
F) Ou, pelo menos, de que fez uso da arma de fogo na perceção, legítima, de estar a agir em defesa da sua vida e na defesa da vida do outro militar.
G) Ao não haver considerado nem valorado a factualidade que o Recorrente alegou nos supra referidos arts. 12º a 30º da PI, a sentença recorrida apresenta um déficit instrutório, não tendo, no domínio dos factos, suporte suficiente para uma correta decisão de direito, o que constitui um erro de julgamento;
H) Assim, porque se afigura essencial para uma boa decisão da causa a ampliação da matéria de facto a partir de diligências probatórias tendentes à recolha de elementos objetivos que permitam uma conclusão fundamentada sobre a factualidade supra elencada, não pode a sentença recorrida deixar de ser anulada e substituída por uma outra a ser proferida após cumpridas as diligências de instrução que venham a ser requeridas pelas partes;
I) Para o efeito, deve a sentença recorrida proferida com deficiente instrução ser anulada e ordenado ao Tribunal a quo a produção de prova sobre a supra alegada factualidade, designadamente a audiência das testemunhas que sejam arroladas pela Recorrente;
J) Sendo por último de referir que, no entendimento da Recorrente, não foi feita justiça e que a dispensa não fundamentada de produção de prova requerida se traduz numa derrogação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, superiormente consagrado na C.R.P. e a sentença que assim vem proferida também é, nessa medida, inconstitucional.
Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso e, consequentemente, sendo revogada a sentença recorrida, com as legais consequências e com o que se fará douta e sã Justiça.
[…]”

**

O Recorrido Ministério da Administração Interna apresentou Contra Alegações [mas sem que a final tenha formulado as respectivas conclusões] pelas quais sustentou, em suma, que o julgamento prosseguido pelo Tribunal a quo não padece de qualquer erro e que o recurso apresentado tem de ser julgado improcedente.

*

O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto, fixando os seus efeitos.


**

O Ministério Público junto deste Tribunal Superior não emitiu parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional.

**

Por despacho do Relator [Cfr. fls. 983 dos autos], foi ordenada a notificação da Recorrente e do Recorrido para efeitos de emitirem pronúncia, em suma, em torno da aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, quanto ao que apenas a Recorrente veio a emitir pronúncia [Cfr. fls. 993 dos autos], e que no essencial se centrou no entendimento da sua inaplicabilidade, por estar em causa a prática de acto administrativo que aplicou pena disciplinar de suspensão agravada, cuja tipologia jurídica cai fora do âmbito daquele diploma legal [Cfr. artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º, ambos do referido diploma legal], o que assim também ora julgamos.

***

Com dispensa dos vistos legais [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir.

***

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas Alegações - Cfr. artigos 144.º, n.º 1 do CPTA, e artigos 639.º e 635.º n.ºs 4 e 5, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA [sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem deva conhecer oficiosamente], sendo que, de todo o modo, em caso de procedência da pretensão recursiva, o Tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida pois que, ainda que venha a declarar a sua nulidade, sempre tem de decidir [Cfr. artigo 149.º, n.º 1 do CPTA] “… o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito.”, reunidos que estejam os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas.


**

III - FUNDAMENTOS IIIi - DE FACTO
No âmbito da factualidade considerada pelo Tribunal recorrido em sede da Sentença proferida, dela consta o que por facilidade, para aqui se extrai como segue:

“[…]
1 – Factos Provados
Com relevo para a decisão a proferir, está provado que:
1. A autora é guarda da GNR, sendo que à mesma foi instaurado e correu termos nos serviços da Inspeção-Geral da Administração interna, o processo disciplinar n.º ...09 – cf. todo o processo administrativo apenso aos autos;
2. Tal processo disciplinar foi precedido de um processo de averiguações, identificado pelo n.º ...0009, e que correu os seus termos no mesmo serviço – cf. documentos de fls. 2 a 284 do processo administrativo apenso aos autos;
3. Nesse processo de averiguações, em 24.03.2009, foi ouvido como testemunha «BB», constando do respetivo auto de inquirição de testemunha o seguinte, para o que aos autos releva:
“(…)
Cerca 08h30, o depoente apercebeu-se da aproximação de um veículo da GNR, altura em que decide colocar o motor em funcionamento e iniciar a marcha, com vista a encetar a fuga, pois tinha consciência de que se encontrava na posse de uma viatura furtada.
Para encetar a fuga, dado o posicionamento do veículo, o depoente, condutor, teve que engrenar a marcha-atrás e depois a primeira velocidade, com o intuito de contornar a bomba de combustível ali existente, e entrar na estrada nacional, em direcção a Ribeirão.
Contudo, mal iniciou a marcha-atrás, começou a ouvir tiros, sendo que, após engrenar a primeira velocidade, sentiu um dor na zona do pescoço e, a partir daí, não se recorda de mais nada. Só se lembra de acordar, já no Hospital 1..., na manhã de terça-feira, dia 24 de Fevereiro.
Questionado disse não ter, em momento algum, empunhado qualquer arma contra os elementos da GNR; acrescentou que, de facto, se encontrava no chão do carro, atrás dos bancos (tal como outros artigos espalhados), um isqueiro, em forma de arma, de pequena dimensão, o qual nunca utilizou nem teve intenção de usar contra os elementos da GNR.
Questionado referiu que furtou o veículo com o intuito de se deslocar, juntamente com mais três amigos (incluindo o «CC»), a ..., (…)”;
Cf. documento de fls. 69/71 do processo administrativo apenso aos autos;
4. E no mesmo processo de averiguações foi ouvido na qualidade de testemunha «DD», em 24.03.2009, constando do respetivo auto de inquirição de testemunha o seguinte, para o que aos autos importa:
“(…)
Acerca dos acontecimentos ocorridos no pretérito dia 21 de Fevereiro do corrente ano, no Largo ... da localidade de ..., ..., disse o seguinte:
Cerca das 08h15 do dia em apreço, o depoente dirigiu-se ao café “...”, para tomar um café, tendo estacionado a sua viatura, um Ford Escort CL, matricula RA..-.., no Largo ..., nas traseiras das bombas de combustível Avia, mais concretamente junto à esquina da casa sem número (…). Relativamente ao carro em fuga, verifica-se que este se dirige em marcha-atrás, no sentido das traseiras das bombas Avia, em grande velocidade, indo embater com a parte de trás, zona central, na esquina traseira, do lado direito da sua viatura, ali estacionada; seguidamente, o veículo engrenou a primeira velocidade e seguiu, com grande aceleração, sem qualquer alteração da trajectória (a direito), no sentido da casa, sita no outro lado da estrada, a qual corresponde ao nº 80, imobilizando-se junto da parede da residência, depois de ter rebentado o portão da entrada, em ferro, existente no enfiamento do muro exterior.
Relativamente aos elementos da GNR, verificou que ambos se encontravam no exterior da viatura policial, nas proximidades do veículo Honda Civic, lateralmente ao mesmo e em lados opostos, sendo que ambos se encontravam a disparar na direcção da viatura em fuga, acompanhando o seu movimento, ou seja, ambos caminhando no sentido da fuga do carro. Este movimento e prática de tiros por parte dos elementos da GNR, verifica-se ao longo do primeiro trajecto, percorrido em marcha-atrás e, sensivelmente, até cerca de um terço do segundo trajecto, ou seja, entre o carro do depoente e a casa acidentada.
Apercebe-se, claramente, que, ao longo do curto trajecto realizado, várias munições disparadas pelos militares atingem o carro, recordando, em particular, o momento em que o vidro de trás do veículo em fuga se desfaz, presumindo que tal tenha ocorrido por força do impacto de munição, cerca de 6/7 metros após a posição da sua viatura. Todos estes factos desenrolam-se num lapso de tempo muitíssimo curto (segundos) e numa distância de cerca de 30/40 metros.
(…)”;
Cf. documento de fls. 72/74 do processo administrativo apenso aos autos;
5. Foi igualmente ouvido na qualidade de testemunha «EE», em 25.03.2009, e de cujo auto de inquirição de testemunha consta:
“(…)
Encontrava-se no café, propriedade de seu pai, a servir ao balcão, desde as 06H15 da manhã, altura em que procedeu à sua abertura, sendo o único funcionário do estabelecimento que se encontrava ali em funções.
Por volta das 07h00/07h30, tomou conhecimento, por intermédio dos comentários de clientes, da existência do veículo Honda civic preto, com dois tripulantes no seu interior, estacionado ao lado do café, junto a uma cabine telefónica, voltado com a frente para a parede do imóvel lateral à do café “...”.
Lembra-se que o tripulante do carro, pendura, se deslocou ao interior do café, por três vezes, sendo que na primeira tomou um café e comeu um bolo e, nas seguintes, terá bebido um cálice de vinho do ....
(…)
Do balcão do café, onde o depoente se encontrava, permitia-lhe visualizar toda a zona envolvente do local onde o Honda civic se encontrava estacionado, por intermédio de uma janela com cerca de dois metros de comprimento.
Cerca das 08h30, altura em que chegou a viatura da GNR ao local, com dois tripulantes, um do sexo masculino e outro do sexo feminino, conseguiu visualizar o seguinte:
Verificou que o carro da GNR se posicionou no enfiamento do Honda civic, cerca de cinco metros mais atrás, ambos os militares saíram do carro de armas em punho, permaneceram junto às portas (o condutor era o elemento do sexo masculino) e, dirigindo-se para o outro veículo, deram ordens verbais de paragem.
De imediato, verifica que o Honda civic inicia a fuga em marcha-atrás, momento em que, os dois militares começaram a disparar, sendo certo que o fizeram de cima para baixo, pois constatou que as armas apontavam na direcção dos pneus.
O Honda cívica dirigiu-se no sentido das traseiras das bombas Avia, verifica, ainda, que os dois militares seguem atrás da viatura em fuga, disparando na sua direcção, momento a partir do qual perdeu a linha de vista com os acontecimentos e, com receio dos tiros, o depoente adoptou uma posição defensiva, no interior do balcão do café.
(…)
Questionado, referiu que, em nenhum momento, se apercebeu da ostentação de qualquer arma de fogo por parte de qualquer dos ocupantes da viatura em fuga, inclusivamente, no momento em que iniciaram a marcha-atrás não vislumbrou qualquer gesto com os braços, por parte dos ocupantes, que pudesse levar a pressupor tal facto.
(…)”;
Cf. documento de fls. 75/77 do processo administrativo apenso aos autos;
6. Ainda em 25.03.2013, foi ouvido na qualidade de testemunha, sempre no âmbito do mesmo processo de averiguações, «CC», constando do respetivo auto de inquirição de testemunha o seguinte:
“(…)
Cerca das 08h20, encontrando-se no interior do veículo, no lado do passageiro, apercebem-se da viatura da GNR a chegar ao local, sendo que esta se posiciona no enfiamento do Honda civic, embora ligeiramente mais atrás.
No momento em que se apercebem da chegada da GNR, o «BB» liga o motor do carro para fugir, no entanto, para o fazer, numa primeira fase, recua ligeiramente e, para não embater na viatura da Guarda, avança um pouco, para logo depois engrenar, outra vez, a marcha-atrás e saem dali, em direcção às traseiras da Bomba de Combustível Avia, sempre com a mudança de marcha-atrás engrenada. Desta manobra resulta o embate noutra viatura estacionada por trás da bomba.
Instantes depois de iniciarem a marcha de frente para a casa onde foram embater, apercebe-se que as mãos do «BB» descaíram do volante, contudo, ele mantém sempre o pé no acelerador, tomando o veículo uma trajectória rectilínea, o que os levou a embater na residência que se encontrava no outro lado da estrada. Relativamente aos disparos, o depoente observou, quando executavam a manobra de marcha-atrás, depois de terem iniciado a deslocação em direcção às traseiras da bomba, já numa posição diagonal em relação aos agentes de autoridade, o militar do sexo masculino a efectuar um primeiro tiro para o ar, seguindo-se vários disparos, por ambos os militares, mas agora na direcção do veículo em que circulava, altura em que se baixa para se auto-proteger.
Quando iniciam a marcha de frente para a casa onde foram embater, ainda ouviu vários disparos a bater na chapa do carro, deixando tal de acontecer após passarem o primeiro muro da bomba, altura em que se levanta e vê o veículo em que circula a dirigir-se para a casa, onde embateu.
(…)
Questionado disse não ter, em momento algum, empunhado qualquer arma contra os elementos da GNR, nem tal ocorreu por parte do «BB»; acrescentou que, de facto, sabia que o «BB» possuía um isqueiro em formato de pistola, no interior do veículo, em lugar que não sabe precisar, mas que nunca a utilizou.
(…)
Acrescentou, ainda, que, em momento algum, houve a intenção de atropelar os elementos da Guarda, até porque, na fase inicial do movimento, ambos os militares se encontravam próximo das portas da frente do veículo da GNR, pelo que era, de todo, impossível atingi-los.
(…)”;
Cf. documento de fls. 80/82 do processo administrativo apenso aos autos; 7. Por fim, foi também ouvido na qualidade de testemunha, em 25.03.2009, «FF», constando do respetivo auto de inquirição de testemunha:
“(…)
Dado que o depoente é fumador, na altura em que a situação dos tiros e da fuga se inicia, este encontra-se no exterior do café, posicionado próximo da porta de entrada, voltado de costas para a estrada e veículo Honda Civic preto.
De repente, sem sequer se aperceber da chegada da Guarda, observa o carro, Honda Civic, a fazer marcha atrás, a produzir um enorme ruído com a aceleração que realiza e, ao mesmo tempo, ouve tiros e vê os dois militares da GNR a fazer disparos na direcção do veículo em fuga.
Simultaneamente, verificou que os militares seguiam, a pé, atrás da viatura em fuga, enquanto proferiam palavras do tipo “alto”, “parem”.
Seguidamente, o Honda civic embate, com a traseira, num outro carro ali estacionado (parte de trás da bomba Avia, junto a uma casa sem número, sita no lado esquerdo do nº 125), engrena a primeira velocidade e segue na direcção da estrada.
Entretanto, verifica que os elementos da GNR continuam a disparar para o veículo em fuga, sendo que, um pouco mais à frente, aproximadamente 7 metros depois do carro embatido (no enfiamento do muro traseiro da bomba), verificou os estilhaçar do vidro de trás do Honda civic.
(…)
Perguntado referiu não ter visto, em nenhum momento, qualquer arma nas mãos de qualquer dos dois tripulantes do Honda civic.
Questionado respondeu não ter visto, ao longo da trajectória que o Honda civic realiza, qualquer gesto dos tripulantes que possa ser confundido com a presença/manuseamento de arma de fogo.
Perguntado mencionou não se ter apercebido de qualquer movimento, por parte dos dois miliares da GNR, que o pudesse levar a crer que estes estivessem a defender-se de um eventual atropelamento provocado pela trajectória do carro em fuga.
(…)”;
Cf. documento de fls. 83/85 do processo administrativo apenso aos autos;
8. Ainda no mesmo processo de averiguações, em 26.03.2009, foi ouvido o cabo da GNR «GG», na qualidade de visado, constando do respetivo auto de inquirição:
“(…)
Quando se aproximaram do largo, através de uma senhora, recebem a sinalética indicadora da posição em que o dito veículo se encontrava.
Posto isto, localiza o Honda civic e, com o intuito de lhe bloquear a saída, tenta posicionar a viatura policial de forma a alcançar tal objetivo. Porém, ao aperceber-se que o Honda civic já se encontrava em marcha, com receio de ser abalroado, imobiliza a viatura policial um pouco mais atrás, o que permitiu ao outro condutor, numa segunda tentativa, encetar a fuga em marcha-atrás, sem que tivesse atingido a viatura policial.
Nesta altura, o depoente sai da viatura, verbaliza ordens de paragem e, vendo que não era obedecido, avançou, aproximando-se mais da porta do lado do condutor, momento em que viu um movimento, por parte do condutor, com o braço direito na sua direcção, com uma arma empunhada, pelo que, de imediato, grita para a Guarda «AA», dizendo-lhe que os indivíduos estavam armados.
Em acto contínuo, o depoente recua para se auto-proteger, saca da arma de serviço que lhe estava distribuída e, como medida de aviso, efectua um disparo para o ar. Seguidamente, verificando que o veículo enceta a fuga, faz mais dois disparos na direcção do pneu da frente, lado esquerdo.
No momento em que o Honda civic embate com a traseira no carro (Ford escort, matricula RA..-..) estacionado na parte de trás da bomba, o depoente, em passo de corrida, volta a alcançar a viatura em fuga, momento em que, ao verificar que este não cessa a marcha, executa mais dois disparos, agora na direcção da roda da frente, lado direito.
De seguida, com o veículo já em movimento em direcção à estrada, realiza mais dois disparos na direcção do pneu de trás, também, do lado direito.
Verificando que o veículo não para, volta para a viatura policial, em passo de corrida, no sentido de a colocar e movimento e seguir a viatura em causa, sendo que, quando se está a dirigir para o carro da Guarda, pelas traseiras das bombas, ouve um enorme estrondo, constatando, posteriormente, que o veículo em fuga havia embatido contra uma residência, sita no outro lado da estrada.
Nesta altura, dirige-se para o local do embate, verifica que os dois ocupantes se encontram feridos, pelo que providencia pelo accionamento dos meios de socorro.
(…)
Questionado respondeu que, no decurso dos disparos, apesar de ter sido sempre a intenção clara de acertar, em todos os casos, nas rodas do veículo, na verdade não consegue assegurar qual a trajectória que as munições terão realizado.
Questionado, referiu não se recordar de ter visto o vidro de trás do veículo, Honda civic, a partir-se/estilhaçar-se, quando em fuga na direcção à estrada.
Perguntado respondeu que, após o seu primeiro disparo, ambos os militares (depoente e Guarda «AA») terão feitos disparos, conjuntamente, ao longo do percurso, sendo certo que, também, que terão cessado esta acção praticamente em simultâneo, devido ao afastar da viatura em fuga.
(…)”;
Cf. documento de fls. 86/89 do PA apenso aos autos;
9. No mesmo dia 26.03.2009, também a Autora prestou declarações no âmbito do processo de averiguações identificado, constando do respetivo auto de interrogatório o seguinte:
“(…)
Quando se aproximaram do largo, verificou que uma senhora apontava na direcção em que o carro, Honda civic, se encontrava.
É então que localizam o veículo e, com o intuito de lhe obstruir a saída, o Cabo «GG» tenta colocar a viatura policial de forma a alcançar tal objectivo, contudo, com receio de danificar a viatura da Guarda, imobiliza esta um pouco mais atrás, o que permitiu ao outro condutor, encetar a fuga em marcha-atrás.
No momento em que a depoente saiu do carro patrulha, posiciona-se na traseira do Honda civic, altura em que se apercebe que o condutor a vê pelo espelho retrovisor interior e, intencionalmente, recuando a toda a velocidade a tentou atingir. Para evitar ser atingida pela trajectória do veículo, teve que recuar bruscamente, na direcção da viatura policial.
Quase em simultâneo, ouve o seu colega a dizer que os indivíduos se encontram armados e, de seguida, ouve um tiro de advertência para o ar, dado pelo Cabo «GG», isto depois de ambos terem dado, por várias vezes, vozes de paragem aos tripulantes da viatura.
Verificou que o Honda civic seguiu de marcha-atrás, na direcção das traseiras das bombas, em alta aceleração, indo embater numa outra viatura (Ford escort, matricula RA..-..) estacionada na esquina de uma residência S/N, sita ao lado do nº 125. Neste primeiro trajecto do veículo em fuga, realiza dois disparos para o ar, na mesma altura em que segue, a correr, a sua trajectória.
Já, praticamente, junto do Honda civic, verifica que este engrena a primeira velocidade e, novamente, com forte aceleração, prossegue a marcha na direcção da estrada.
Neste momento, vendo que, apesar dos disparos também realizados pelo seu colega, o veículo continuava em fuga, decide realizar mais três disparos, na direcção do lado direito, traseiro, do carro, sendo que, neste momento, se verificam, por parte de ambos os militares intervenientes, disparos simultâneos.
Depois disto, dirige-se para a viatura policial, conjuntamente com o Cabo «GG», pelas traseiras das bombas, com o objectivo de entrar no carro patrulha e seguir os fugitivos.
Momentos depois, quando já se encontravam perto do veículo policial, apercebe-se de um enorme estrondo, constatando que o carro em fuga tinha embatido contra uma residência situada do lado poente da estrada.
Dirige-se, de imediato para o local do embate, verifica que os dois ocupantes se encontram feridos, pelo que providencia pelo accionamento dos meios de socorro.
(…)
Questionado respondeu que, nos três últimos disparos, apesar de ter tido a intenção de acertar, apenas e só, no pneu de trás do lado direito, na verdade não consegue assegurar qual a trajectória que as munições terão realizado.
Perguntado, referiu não se recordar de ter visto o vidro de trás do veículo, Honda civic, a partir-se/estilhaçarse, quando em fuga na direcção à estrada.
Perguntado respondeu que, os últimos três disparos foram feitos, quase em simultâneo, com os últimos disparos realizados pelo Cabo «GG».
(…)”;
Cf. documento de fls. 90/93 do processo administrativo apenso aos autos;
10. A 21.04.2009, foi inquirida no processo de averiguações, na qualidade de testemunha, «HH», constando do respetivo auto de inquirição de testemunha o seguinte:
“(…)
Pouco tempo depois, verifica a chegada, ao Largo ..., de uma viatura da GNR, vinda do lado Norte, altura em que a depoente, através de sinaléctica gestual (mantendo-se o veículo da Guarda em movimento), indicou o lugar onde o Honda civic se encontrava.
Apesar do gesto atrás mencionado, a depoente apercebe-se que a viatura policial seguiu um trajecto errado, em sentido contrário àquele em que o Honda civic se encontrava estacionado, pelo que volta a indicar o sitio exacto, momento em que a GNR, faz inversão de marcha e se dirige para o local correcto.
Nesta altura verifica que, quase em simultâneo, a viatura da GNR imobiliza-se na traseira do Honda civic, ligeiramente mais recuada, e este arranca em marcha-atrás, a grande velocidade, no sentido das traseiras da bomba de combustível Avia. Neste entretanto, começa a ouvir vários disparos, contudo não conseguiu ver quem os fez nem sabe descrever em que moldes ocorreram.
Depois disto, só se apercebeu do Honda civic a deslocar-se, com forte aceleração, das traseiras da bomba Avia, já desgovernado, em direção à residência da família ..., na qual embateu com forte estrondo.
Entretanto, apercebe-se que os dois elementos da GNR se estão a deslocar para a viatura policial, pelas traseiras da bomba, sendo que, ao aperceberem-se do despiste do veículo em fuga, dirigiram-se imediatamente para junto dos sinistrados.
(…)”;
Cf. documento de fls. 154/156 do processo administrativo apenso aos autos;
11. Foi também junto ao mesmo processo de averiguações relatório elaborado pela Diretoria do Norte da Polícia Judiciária, identificado com o NUIPC 139/09...., requisição n.º 528/09, e no qual se pode ler, no que aos autos releva:
“(…)
Após a recolha dos elementos municiais que se encontravam junto da PAC, deslocamo-nos à residência onde embateu a viatura já referida, a fim de a mesma ser sujeita ao competente exame (Fotos 34 a 63).
(…)
Do exame preliminar ao seu interior, foram identificadas diversas manchas e salpicos de tom avermelhado, que se presumiram de origem hemática, bem como um isqueiro partido, com uma forma semelhante a uma arma de fogo (Fotos 41 a 45). Porém, por não existirem no local as necessárias condições para se proceder à realização do competente exame, solicitou-se que a viatura fosse rebocada para o parque automóvel desta Polícia, para realização do referido exame.
(…)
Segue o registo fotográfico, do encosto de cabeça do banco frente esquerdo, onde foi possível verificar a existência de duas perfurações, onde se encontrava parte de blindagem de um projéctil (Fotos 119 e 120).
(…)
Ainda durante a realização deste exame, foi solicitado ainda pelo Sr. Insp. «II» da 1.ª Brigada da SICCP, a determinação de eventuais trajectórias dos projecteis na referida viatura.
Assim da observação e localização dos vestígios que se encontravam no veículo, verificou-se que se apresentava uma (1) perfuração no canto inferior esquerdo da porta esquerda (Vestígio 1), duas (2) perfurações no encosto de cabeça do banco frente esquerdo (Vestígios 2 e 3), uma (1) perfuração no lado esquerdo do párachoques traseiro (Vestígio 4), uma (1) perfuração no canto inferior direito da porta da mala (Vestígio 5), uma (1) perfuração no lado direito do pára-choques traseiro (Vestígio 6), uma (1) perfuração no pára-choques traseiro do lado direito da viatura (Vestígio 7) dois (2) danos na jante frente direita (Vestígio 8 e 9) e uma (1) perfuração no canto inferior esquerdo, parte posterior do encosto do banco traseiro direito (Vestígio 10).
(…)
Conclusão
(…)
Na viatura da marca Honda Civic com a matrícula ..-..-EC, foi possível proceder à recolha dos seguintes vestígios:
- Um isqueiro com a forma de arma de fogo, que se encontrava no tapete junto do banco da frente lado esquerdo, (…);
(…)
- Pedaço de blindagem de projéctil recolhido no encosto de cabeça do banco da frente direito,, (…);
(…)”;
Cf. documento de fls. 167/247do processo administrativo apenso aos autos; 12. Em 08.05.2009, foi elaborado o relatório final do processo de averiguações n.º ...0009, do qual consta o seguinte, para o que aos autos interessa:
“(…)
III – Factos Apurados
(…)
A) - Quanto aos motivos que levaram à intervenção policial
(…)
De referir que o carro se encontrava estacionado, com os dois tripulantes no seu interior, mais precisamente, junto à cabine telefónica, do lado direito, com a frente encostada à parede do imóvel ali existente, ficando à sua direita, a alguns metros, o café “....
A patrulha aborda os suspeitos, posicionando a viatura policial perpendicularmente em relação ao veículo alvo, a uma distância de aproximadamente cinco metros da traseira do carro furtado (Fls. 76, 79, 91), facto que permitiu a fuga, em marchaatrás (única forma possível de fugirem), dos visados, sem que tenham tocado/atingido a viatura das autoridades.
A atitude do condutor da GNR, de não bloquear, ostensivamente, o referido veículo, deveu-se, fundamentalmente, ao “receio de ser abalroado” (Fls. 87 dos autos), factor determinante para a consolidação da fuga inicial dos suspeitos à acção policial.
Nesta altura, poder-se-á colocar a seguinte questão:
Terão os militares, do ponto de vista operacional, agido da forma mais adequada? Parece-nos, claramente, que a resposta é negativa, senão vejamos: Os militares, numa primeira fase, são informados da presença de dois indivíduos suspeitos de se poderem relacionar com práticas ilícitas, os quais se faziam transportar numa viatura ligeira de passageiros, facto esse que, só por si, já levava a que a abordagem fosse envolvida por um certo grau de perigosidade (…).
B) – Quanto ao desenrolar da acção policial e autoria dos disparos
(…)
Outro aspecto que merece referência respeita à eventual tentativa de atropelamento da Guarda «AA», conforme o seu depoimento, pelo condutor em fuga, logo na fase inicial da marcha-atrás. Acerca desta referência da Guarda «AA», nenhuma das testemunhas arroladas conseguiu vislumbrar qualquer gesto/movimento que se possa relacionar com o indicado, sendo certo, porém, que o veiculo terá executado a manobra em forte aceleração, produzindo um enorme ruído resultante do motor e do derrapar dos pneus.
Aqui chegados, duas questões, pela importância que podem revestir para a análise do caso, merecem ser levantadas.
Primeira questão:
Terá o condutor do veículo suspeito, «BB», na fase inicial da manobra, apontado a suposta “arma” ao Cabo «GG»?
Parece-nos que tal não terá, de facto, acontecido, pelos seguintes fundamentos:
a) Em primeiro lugar, a manobra que o condutor se encontrava a executar afigura-se de difícil execução, exigindo a utilização das duas mãos, em permanência, uma no volante e a outra no manípulo das mudanças (note-se que a fuga foi feita a dois tempos, pois só à segunda tentativa conseguiu consumar a fuga em marchaatrás), acrescendo ao grau de dificuldade, já elevado, a velocidade com que toda a manobra é levada a efeito;
b) Em segundo lugar, nenhuma das testemunhas presentes faz referência, de forma voluntária, a tal acontecimento, e quando perguntado são unânimes em afirmar não terem visto qualquer arma nas mãos do condutor nem terem vislumbrado qualquer movimento com os braços, por parte dos dois tripulantes que pudesse ser indiciador de tal conduta;
c) Ambos os tripulantes referem nunca ter utilizado o isqueiro em forma de arma, nomeadamente apontando-o na direcção do Cabo «GG», pese embora o facto de, tanto o «BB» (Flls. 77 dos autos), como o «CC» (Fls. 82 dos autos) não esconderem saber da existência do referido isqueiro, no interior do carro;
d) Por último, seria estranho que o Cabo «GG», perante uma ameaça directa, corporizada numa arma apontada na sua direcção, respondesse com um tiro de aviso para o ar, como indicou (Fls. 87 e 88 dos autos).
Segunda questão:
Terá o condutor, «BB», tido a intenção deliberada de atropelar a Guarda «AA», tal como esta refere no seu depoimento?
Também nos parece pouco provável, tendo em conta a análise global dos factos, que tal conduta tenha acontecido nos termos apresentados. Tal como se nos afigura como pouco crível que o condutor, «BB», tenha apontado a arma ao Cabo «GG» (conforme atrás ficou fundamentado), o mesmo acontece relativamente à descrição da Guarda «AA», ao dizer que “no momento em que saiu do carro patrulha posiciona-se na traseira do Honda civic, altura em que se apercebe que o condutor a vê pelo espelho retrovisor interior e, intencionalmente, recuando a toda a velocidade a tentou atingir”.
Esta versão não merece o nosso aval, pelas seguintes razões:
1.ª) Estando o veículo suspeito já em movimento e tendo o Cabo «GG» parado a viatura policial um pouco recuada, relativamente ao veículo suspeito, com receio de vir a ser abalroada pelo mesmo, conforme ambos os militares sustentam (Fls. 87 e 91), seria de uma enorme incúria, para com a sua própria integridade física, colocarse na traseira do carro que se apressava a encetar a fuga – pois, se pretendiam evitar danos numa viatura, mais pretenderiam evitar danos na sua própria integridade física;
2.ª) Encontrando-se o condutor a desenvolver uma manobra de difícil execução (como anteriormente se fundamentou), não nos parece exequível que o mesmo tenha tido a preocupação, o interesse, o discernimento e o tempo suficiente para olhar pelo espelho e, ao ver o hipotético posicionamento da Guarda «AA» na parte de trás do carro, tenha actuado deliberadamente no intuito de a atropelar;
3.ª) Nenhuma das testemunhas presentes faz referência a tal acontecimento, inclusivamente, estas referem que os militares, no primeiro momento da abordagem, encontravam-se junto às portas da viatura policial e, quando questionadas, referem não se ter apercebido de qualquer movimento que pudesse relacionar-se com o perigo de atropelamento decorrente da trajectória realizada pelo carro em fuga.
(…)
1) Tomemos, agora, em consideração a segunda parte da abordagem dos factos (…)
É oportuno, desde logo, referir que a trajectória que o veículo descreve, desde o ponto de arranque até ao local de embate, é totalmente rectilínea, ou seja, o carro segue em frente sem mudar, em momento algum, a respectiva trajetória.
Outro dado importante diz respeito ao facto de terem sido localizados, precisamente, na zona em que o veículo suspeito inicia a marcha de frente, um grande aglomerado de cápsulas/invólucros, merecendo particular atenção a concentração correspondente às letras D, E e G e letras C, F, H e I, do esquema gráfico de Fls. 180 dos autos, complementado pelas fotos 14, 15, 16,17 e 18 de Fls. 176 a 178, também dos autos.
Ora, a correlação destes dois fenómenos, leva-nos a crer que o condutor do veículo em fuga, «BB», terá sido atingido por um projéctil, poucos momentos depois de ter iniciado a marcha de frente, uma vez que, como ficou exposto, nesta altura ocorreu um conjunto vasto de disparos, por parte dos dois militares e, por outro lado, dado o facto de a trajectória não ter sofrido qualquer oscilação ao longo do percurso, afigura-se-nos, como muito provável, que o «BB» tenha perdido o controlo do volante nesta altura.
A propósito destas situações e, em primeiro lugar, no que concerne à vastidão de disparos, os testemunhos recolhidos são inequívocos quanto à intensidade de disparos realizados, conforme atestam, nos respectivos depoimentos, «FF» (Fls. 84 dos autos) e «DD» (Fls. 73 dos autos), local por onde terá entrado o projéctil que iria atingir o condutor, «BB». Acresce, ainda, o facto de que todas as perfurações localizadas no veículo, com excepção de uma, de acordo com os ângulos descritos pelas respectivas trajectórias, terão sido perpetradas nesta fase do movimento do veículo.
Em conjugação com estes factos, temos as declarações do passageiro/tripulante, «CC», o qual alega ter tido “a percepção de que o «BB» terá sido atingido na fase inicial da marcha que os levou a embater na residência, altura em que ele deixou de controlar o volante, pois as mãos caíram para baixo”.
Em relação à forte aceleração que o veículo manteve ao longo deste percurso, tudo leva a crer que a vítima perdeu o controlo dos membros, mas, não obstante, o pé direito ter-se-á mantido fixamente na posição em que se encontrava naquele preciso momento, ou seja, no pedal do acelerador.
Duas notas, sobre esta matéria, merecem, ainda referência:
1.ª) A quantidade de disparos realizada nesta fase, comparada pela respectiva aglomeração, pelo menos 4 por parte do Cabo «GG» e, pelo menos 3, por intermédio da Guarda «AA», e o facto de o veículo visado se encontrar em movimento, leva-nos a crer, convictamente, que o uso das armas de fogo terá sido levado a efeito sem que os autores se tenham, minimamente, assegurado do controlo das trajectórias dos respectivos projécteis, denotando esta prática, uma grande falta de cuidado, uma vez que se lhes impunha que, previamente, representassem a possibilidade de a acção que vieram a praticar potenciasse o risco da lesão da integridade física dos dois tripulantes;
2.ª) Das perfurações existentes no veículo, destacam-se as duas que se localizam no encosto de cabeça do banco do condutor (Fls. 233, foto 132 e Fls. 243, foto 149), identificados como vestígios 2 e 3. Da análise destas duas perfurações, resultam outras tantas conclusões: em primeiro lugar, um dos projécteis que descreveu tais trajectórias terá sido o que foi alojar-se na vítima, «BB»; em segundo lugar, tendo em linha de conta os ângulos descritos pelas duas trajectórias distintas, os disparos correspondentes terão sido desferidos pelos dois militares, ou seja, a cada militar corresponderá a execução de um dos dois disparos que ali foram embater. (…)
VI. Propostas
(…)
Nos termos do Art.º 109º, n.º 4, do Regulamento Disciplinar da Guarda Nacional Republicana, propõe-se a instauração de processos disciplinares aos seguintes militares da Guarda:
- Cabo N.º ...12, «GG»;
- Guarda Nº ...10, «AA».
(…)”;
Cf. documento de fls. 254 a 280 do processo administrativo apenso aos autos; 13. Em 19.05.2009, o Sr. Ministro da Administração Interna proferiu despacho de concordância com as conclusões do relatório final acabado de referir, tendo sido instaurado e corrido termos, sob o n.º ...009, processo disciplinar contra a aqui Autora, já referido em 1 – cf. documentos de fls. 284 e ss. do processo administrativo apenso aos autos;
14. Já neste processo disciplinar, em 22.07.2009, a Autora foi inquirida na qualidade de arguida, tendo optado por não prestar declarações – cf. documento de fls. 309/312 do processo administrativo apenso aos autos;
15. Foi junto ao processo disciplinar o relatório de exame pericial identificado pelo n.º ...78-FBA, o qual teve por base a análise das armas usadas pela Autora e pelo Cabo «GG», bem como do isqueiro encontrado na viatura abordada, no qual se lê: “(…)
Isqueiro
O isqueiro enviado constitui-se como um isqueiro a gás, com a forma de uma pistola, não sendo, em condições normais, confundido com uma arma de fogo real por pessoas habituadas a lidar com armas. O acendimento do presente isqueiro é realizado por actuação sobre a tecla do gatilho, apresentando-se, actualmente, inoperante, apresentando alguns componentes ausentes e outros desmontados (…). (…)
Efectuou-se o exame microscópico comparativo entre o fragmento de blindagem referenciado como “…recolhido no encosto de cabeça…” e os elementos relativos às pistolas enviadas, obtidos através dos testes de funcionamento realizados nesta Área, tendo-se observado a existência de concordâncias de vestígios impressos com carácter individualizador na superfície de estriado, entre o referido fragmento e os elementos relativos à pistola por nós referenciada como 1, permitindo considerar que esta pistola foi provavelmente responsável pelo disparo do projéctil correspondente ao referido fragmento (…).
(…)”;
Cf. documento de fls. 346 a 355 do processo administrativo apenso aos autos; 16. Em 19.02.2010, foi deduzida acusação contra a aqui Autora, no âmbito do processo disciplinar ...009 – cf. documento de fls. 358/360 do processo administrativo apenso aos autos;
17. A Autora apresentou a sua resposta à acusação, por documento escrito, em que solicita a inquirição das testemunhas «HH», «DD», e «JJ» – cf. documento de fls. 383/395 do processo administrativo apenso aos autos;
18. As testemunhas «HH» e «JJ» foram inquiridas em 25.05.2010, e a testemunha «DD» em 26.05.2010 – cf. documentos de fls. 421/431 do processo administrativo apenso aos autos;
19. Em 09.04.2012, foi elaborado o relatório final do processo disciplinar n.º ...09, identificado como relatório n.º ...012, no qual consta como capítulo VI a apreciação crítica da prova produzida, e como capítulo VII os factos provados, podendo neste ler-se o seguinte:
”(…)
VII Factos Provados
Pelo exposto, consideram-se suficientemente provados os seguintes factos: 1 – A arguida é soldado de infantaria da GNR, alistada em 3 de Dezembro de 2007, e está colocada no Posto Territorial ... desde Maio de 2009.
2 – No dia 21 de Fevereiro de 2009, cerca das 08h00, no Posto Territorial ..., foi recebida uma comunicação telefónica, que informava que no Largo ..., na localidade de ..., junto a uma cabine telefónica ali existente, se encontrava estacionado um veículo, marca Honda, modelo Civic, com a matrícula ..-..-EC, com dois ocupantes suspeitos no seu interior.
3 – A patrulha adstrita às ocorrências, que no momento se encontrava no interior do Posto, constituída pela ora arguida e pelo Cabo «GG», que conduzia, fazendose transportar na viatura caracterizada da GNR, de marca Skoda, modelo Octavia, dirige-se de imediato para o local indicado, situado a uma distância de cerca de 8,9 Kms.
4 – Entretanto, junto do Destacamento Territorial ..., na base de dados sobre viaturas furtadas, obteve-se a informação que a viatura em causa constava para apreender, e que tinha sido furtada em ..., na tarde do dia anterior, dia 20, informação que de imediato, via rádio, foi transmitida à ora arguida e colega que se deslocavam para o local.
5 – Cerca das 8H20, a patrulha constituída pela arguida e pelo colega, chegou às imediações do local indicado na chamada telefónica, pela lado Norte, onde, por intermédio de sinalética gestual, a senhora que fizera a chamada para o PT, lhes deu indicações da localização do veículo suspeito.
6 – Entretanto os ocupantes do Honda Civic, que estava estacionado de frente e perpendicularmente a uma parede, apercebem-se da aproximação da viatura caracterizada da GNR, pelo que o condutor ligou o motor, pretendendo abandonar o local e pôr-se em fuga.
7 – Nesse momento o Cabo «GG» imobilizou a viatura da GNR sensivelmente na perpendicular em relação ao veículo suspeito, mas um pouco mais atrás, com receio que a mesma viesse a ser abalroada pelo movimento de fuga em marcha atrás do veículo suspeito.
8 – Imediatamente após a imobilização do veículo da GNR a arguida e o Cabo «GG» saíram da mesma empunhando as suas armas de serviço, as duas de marca WALTHER, modelo P 38, calibre 9 mm, respectivamente com os números ...48... e ...52... e, ao aperceberem-se que os suspeitos pretendiam furtar-se à intervenção da autoridade, dirigiram-lhe ordens verbais de paragem, as quais não foram acatadas pelo condutor «BB», identificado a fls. 69.
9 – Este, por sua vez, manobra o veículo para fugir, entre a parede à sua frente e o veículo da GNR posicionado atrás, conseguindo o seu objetivo à segunda tentativa, pois da primeira vez que recuou não conseguiu ângulo suficiente para dar seguimento à marcha.
10. O condutor do veículo suspeito fez marcha atrás, na direcção das traseiras da bomba de combustíveis Avia, em forte aceleração, percorrendo uma distância de cerca de 10 metros, indo embater na esquina traseira de um automóvel ligeiro ali estacionado, de matrícula matricula RA..-.., provocando-lhe danos ligeiros.
11 – Neste percurso em marcha atrás os dois militares seguiram a trajectória do veículo suspeito, a curta distância, a arguida acompanhando-o pelo lado do passageiro e o Cabo «GG» pelo do condutor, fazendo os dois militares uso das respectivas armas de serviço.
12 – Enquanto o veículo suspeito fazia a trajectória em marcha-atrás o Cabo «GG» efectuou um primeiro disparo de intimidação para o ar, com a sua arma de serviço, logo seguido de mais dois disparos na direcção do pneu da frente, lado esquerdo, enquanto a ora arguida efectuou pelo menos dois disparos que atingiram a jante da frente, lado direito, conforme fotos de fls. 211 a 213 que aqui se dão por reproduzidas, enquanto diziam ao condutor para parar.
13 – Um dos disparos efectuados pelo Cabo «GG» perfurou o canto inferior esquerdo da porta esquerda do Honda Civic, com perfuração da embaladeira, em trajectória descendente, da direita para a esquerda, conforme fotos de fls. 228 a 231 que aqui se dão por reproduzidas.
14 – Após embater no veículo matrícula matricula RA..-.. conforme referido no ponto 10 supra, e com os dois militares da GNR já junto dele, o condutor «BB» engrenou a 1ª velocidade e, em forte aceleração, iniciou a marcha de frente em direcção à estrada nacional, numa trajectória rectilínea, deixando atrás de si a arguida e o Cabo «GG», de armas empunhadas.
15 – Nesse preciso instante, já virados para a traseira do veículo em fuga, que acabara de iniciar uma trajectória de afastamento, os dois militares da GNR voltam a apontar as respectivas armas de serviço na direcção da traseira do Honda Civic e efectuam ambos vários disparos, no mínimo num total de 7 (sete), tendo a arguida disparado pelo menos mais 3 vezes e o Cabo «GG» mais 4 vezes.
16 – Desses disparos, efectuados pela arguida e pelo Cabo «GG» em simultâneo, 4 deles atingiram a traseira do veículo em fuga, 3 na zona do para-choques traseiro e 1 o canto inferior direito da porta da mala, conforme fotos de fls. 235 a 239 que aqui se dão por reproduzidas.
17 – Um dos disparos, efectuado quando o veículo em fuga percorrera 6 a 7 metros após iniciar a marcha em frente afastando-se dos militares, quebrou o vidro traseiro, estilhaçando-o, e atingiu o condutor «BB» junto à omoplata direita alojando-se entre a 3.ª e a 4.ª cervical, na transição cervico dorsal intracanalar.
18 – Imediatamente após ser atingido pelo projéctil disparado por um dos militares, o «BB» deixou cair as mãos do volante, perdendo o controle sobre o veículo, mas permaneceu com o pé direito sobre o acelerador, continuando o veículo em aceleração, em trajectória rectilínea, e imobilizando-se após embater numa moradia existente no lado contrário da estrada nacional, conforme fotos de fls. 54 a 58 que aqui se dão por reproduzidas.
19 – Dois dos projectéis disparados pela arguida e colega perfuraram, de trás para a frente, o encosto de cabeça do banco da frente esquerdo, onde seguia sentado o «BB», indiciando os vestígios de um deles uma trajectória descendente da direita para a esquerda, com um ângulo aproximado de 11º em relação ao eixo longitudinal da viatura e o outro uma evolução descendente da direita para a esquerda, com um ângulo aproximado de 13º em relação ao eixo longitudinal da viatura, conforme fotos de fls. 233 e 234 que aqui se dão por reproduzidas.
20 – O veículo em fuga percorreu no tal uma trajectória rectilínea de cerca de 55 metros entre o embate no veículo com a matrícula matricula RA..-.. e o embate dianteiro na moradia.
21 – De um dos disparos efectuados pela arguida e colega Cabo «GG» resultou para o condutor do veículo, «BB», nascido a ../../1981, como consequência directa e necessária paraplegia com sensibilidade até à zona dos mamilos.
22 – Do embate do veículo na moradia resultaram para o passageiro «CC», identificado a fls. 80, que seguia no banco ao lado do condutor, vários ferimentos (hematomas, escoriações, feridas corto-contusas) e fractura do tornozelo direito. 23 – Ambos os feridos foram transportados para o Hospital 2..., no qual o passageiro, ferido menos grave, fica internado.
24 – A arguida e o colega Cabo «GG» pretendiam, com aqueles disparos, imobilizar o veículo conduzido pelo «BB» e proceder à sua captura e do passageiro. 25 – Quer a arguida quer o Cabo «GG» sabiam, no momento em que efectuaram os disparos, que o «BB» apenas pretendia fugir e não punha em risco a vida nem a integridade física quer dos dois militares da GNR quer de terceiros.
26 – E sabiam também, ambos, que nas referidas circunstâncias lhes estava vedada a possibilidade de recorrer à arma de fogo, de acordo com o regime previsto no Decreto-Lei n.º 457/99, de 5 de Novembro, designadamente, o disposto nos artigos 2º e 3º, que conheciam.
27 – Ao dispararem na direcção do veículo, sobretudo quando este iniciou a marcha para a frente em trajectória de afastamento, quer a arguida quer o Cabo «GG» admitiram que dos disparos viessem a resultar, como resultaram, danos irreparáveis para a integridade física ou para a vida quer do condutor quer do passageiro, resultado com que se conformaram.
28 - Arguida e Cabo «GG» actuaram em comunhão de esforços e se intenções. 29 – Com os factos descritos a arguida violou os deveres gerais de obediência, de proficiência, de zelo e de correcção, conforme o preceituado nos artigos 8.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a), c), d) e f), 9º, n.º 1 e n.º 2 alínea a), 11º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 alíneas c) e d), 12.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) e 14º, n.º 2, alínea a), todos do Regulamento de Disciplina da GNR (RDGNR), aprovado pela Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro.
30 – Violou, também, o disposto nos artigos 3º, 7º, 8º e 9º do Código Deontológico do Serviço Policial aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2002, de 7/2, e art.º 272.º da Constituição da República.
31 – Goza das seguintes circunstâncias atenuantes:
- Boa informação de serviço do superior hierárquico;
- O pouco tempo de serviço;
- Bom comportamento anterior (fls. 321).
32 – A arguida angariou a consideração e simpatia de camaradas e de superiores hierárquicos em face do zelo, empenhamento, seriedade e profissionalismo que demonstra.
33 – Agravam a responsabilidade da arguida: - o facto da infracção ter sido cometida em acto de serviço ou por motivo do mesmo, em público e na presença de civis (art.º
40.º, n.º 1, alínea e) do RDGNR). . 34 – A infracção praticada deve ser considerada muito grave, nos termos do disposto nos artigos 18º, 21º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) do RDGNR.
(…)
X Proposta
Em conformidade com o exposto, a nossa proposta vai no sentido:
1 – De se considerar cometida pela arguida Guarda «AA» a infracção disciplinar uso de arma de fogo, distribuída fora das circunstâncias e dos termos legais e regulamentares (cf. art.ºs 2 e 3 do Decreto-Lei nº 457/99, de 5 de Novembro), o que implicou a violação dos deveres gerais de obediência, de proficiência, de zelo e de correcção, nos termos dos art.ºs 8º, n.º 1 e n.º 2 alíneas a), c), d) e f), 9º, nº 1 e nº 2 a), 11º, nº 1, alínea a) e nº 2, alíneas c) e d), 12º, nº 1 e nº 2, alínea b) e 14º, nº 2, alínea a) todos do Regulamento de Disciplina da GNR (RDGNR), aprovado pela Lei nº 145/99, de 1 de setembro e, ainda, o disposto nos art.ºs 3º, 7º, 8º e 9º do Código Deontológico do Serviço Policial, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 37/2002, de 7/2 e art.º 272º da Constituição da República Portuguesa.
2 – De ser aplicada, em consequência, à arguida Guarda «AA» uma pena de Separação de Serviço, nos termos do disposto no art.º 33º, com referência ao disposto na alínea f) do art.º 27º e ao disposto nos n.ºs 1 e 2 c), do art.º 41º do RDGNR.
(…)”;
Cf. documento de fls. 537 a 566 do processo administrativo apenso aos autos; 20. Em 21.05.2012, o Sr. Ministro da Administração Interna proferiu despacho no sentido de o processo disciplinar ser remetido à Guarda Nacional Republicana, para efeitos de emissão de parecer sobre a aplicação da sanção disciplinar proposta – cf. documento de fls. 580 do processo administrativo apenso aos autos;
21. Em 28.06.2012, o Conselho de Ética, Deontologia e Disciplina da Guarda Nacional Republicana deliberou emitir parecer no sentido de não ser aplicada à aqui autora a pena disciplinar de separação de serviço – cf. documento de fls. 589 a 599 do processo administrativo apenso aos autos;
22. Em 24.10.2012, foi proferido despacho pelo Sr. Ministro da Administração Interna, no sentido de ser aplicada à aqui autora a pena disciplinar de suspensão agravada, graduada em 121 dias, retirando-se do despacho em questão, na parte que releva:
“(…)
30 – Tudo visto e ponderado, não obstante os fatos considerados provados no Relatório Final, que acompanho (cfr. fls. 558 a fls. 561);
31 – É certa a apontada gravidade da infração cometida, ainda que as “consequências trágicas” não possam ser concretamente imputadas à arguida (cfr. n.ºs 12 a 14 deste despacho);
32 – Porém, tal não nos impede de valorar as circunstâncias atenuantes identificadas no mesmo Relatório Final;
33 – Nem de enquadrar a realidade dos fatos imputados à arguida, que ocorreram, concretamente, durante uma operação policial;
34 – Acresce, a necessidade de ponderar devidamente o teor das pronúncias do Conselho de Ética, Deontologia e Disciplina, relativas à arguida e ao, então, Cabo, hoje Furriel «GG», que participou na mesma operação policial;
35 – E, ter em devida atenção a linha argumentativa do despacho proferido pelo
Senhor Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana;
36 – Que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
37 – Nestes termos, apesar de a arguida, Guarda n.º ...10, «AA», da Guarda Nacional Republicana, ter disparado em condições de lesar bens jurídicos fundamentais e de a sua conduta ser suscetível de afetar a dignidade e o prestígio da função, bem como da GNR, atendendo aos critérios de proporcionalidade e de adequação na aplicação das medidas sancionatórias, bem como às exigências de prevenção geral e especial, determino a aplicação de uma pena disciplinar de suspensão agravada, que fixo em 121 dias;
(…)”;
Cf. documento de fls. 609 a 611 do processo administrativo apenso aos autos;
23. A aqui autora foi notificada deste despacho em 30.11.2012 – cf. documento de fls. 619 do processo administrativo apenso aos autos.
*
2 – Factos Não Provados
Com relevo para a decisão a proferir, não existem factos que o tribunal tenha considerado como não provados.


*
3 – Motivação Na determinação do elenco dos factos considerados provados, o tribunal considerou e analisou criticamente os documentos que se encontram juntos ao processo administrativo apenso aos autos, os quais não foram objeto de impugnação ou mero reparo por qualquer das partes, inexistindo motivos que façam duvidar da sua genuinidade ou da fidedignidade do seu conteúdo, razão pela qual foram merecedores de crédito para efeitos probatórios.
Para melhor elucidação, ficou identificado, a propósito de cada facto elencado, o documento que, em concreto, alicerçou a convicção do tribunal. […]”

**

IIIii - DE DIREITO

Está em causa a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, que em sede da Sentença por si proferida e por via da qual apreciou o mérito da pretensão da Autora a final da Petição inicial, no sentido da anulação do despacho do Ministro da Administração Interna, datado de 24 de outubro de 2012, que determinou que lhe fosse aplicada a pena disciplinar de suspensão agravada, graduada em 121 dias, julgou a acção improcedente, tendo em consequência absolvido a entidade demandada do pedido contra si formulado

Como assim deflui das conclusões das Alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, o imputado erro de julgamento à Sentença recorrida assenta essencialmente, na consideração de que ao ter sido dispensada a produção de prova, por ter julgado que inexistia matéria de facto controvertida, que o Tribunal a quo, não tendo assim levado em consideração a factualidade por si alegada sob os pontos 12.º a 30.º da Petição inicial, que cerceou desse modo o seu direito a uma tutela jurisdicional efectiva na vertente da produção da prova.

Como assim resulta do processado nos autos, em momento antecedente da prolação da Sentença [no dia 30 de maio de 2013 – a Sentença recorrida foi proferida em 27 de dezembro de 2017], o Tribunal a quo proferiu o despacho que, por facilidade para aqui se extrai como segue:

“Face à inexistência de matéria facto controvertida com reflexo para a decisão a proferir nos autos, dado os termos em que [a] presente acção administrativa foi configurada pelas partes […] afigura-se desnecessária a elaboração de despacho saneador – art. 87.º n.º 1 alínea c) do C.P.T.A. – pelo que, nos termos do art. 91.º n.º 4 do mencionado C.P.T.A., ordena-se a notificação da A. para, querendo, apresentar alegações no prazo de 20 dias, devendo, após o decurso do referido prazo, ser notificada a entidade demandada para o mesmo fim. […]”

A Autora ora Recorrente veio a apresentar as Alegações escritas a que se reporta o artigo 91.º, n.º 4 do CPTA, das quais para aqui se extrai o que segue:

“[…]
QUESTÃO PRÉVIA:
Na óptica da A, pelo menos os factos infra descritos em 7º, 9º a 11º, 14º a 19º, 31º e 35º a 38º (e que igualmente já se encontram plasmados na PI), constituem matéria controvertida susceptível de influenciar a decisão a vir ser proferida no âmbito presentes autos.
Pelo que, salvo melhor opinião, impõe-se pois que tal factualidade venha a ser objecto de prova.
[…]”

Neste patamar.

O que se extrai do que vem sustentado pela Recorrente nas conclusões das suas Alegações de recurso, é que em face do que foi por si vertido na causa de pedir subjacente ao pedido formulado a final da Petição inicial, o Tribunal a quo devia ter proferido despacho saneador, com fixação do objecto do litigio e dos temas da prova, tendo subjacente, como assim sustenta/va, a existência de matéria de facto assente e de matéria de facto controvertida, que impunha a abertura de um período de produção de prova.

Ou seja, que em face do que alegou sob os pontos 12.º a 30.º da Petição inicial, e por contraponto ao que apresentou o Réu em sede de Contestação, que mostrando-se existir matéria de facto controvertida, que se impunha que o Tribunal a quo levasse a cabo uma audiência contraditória em ordem a prosseguir pela adequada instrução dos autos para efeitos dessa matéria.

Por julgarmos com interesse para a decisão a proferir, para aqui se extraem os pontos 12.º a 30.º da Petição inicial, como segue:

“[…]
12º
Pois que, no dia 21 de Fevereiro de 2009, pelas 8h20, e em cumprimento de um serviço de patrulha realizado pela A. e por um outro militar (o então Cabo «GG»), os militares foram informados pelo operador de serviço de que, no Largo ..., em ..., ... de a para a GNR) indicou aos militares a exacta localização da viatura EC.
13º
De imediato se deslocaram para o local e aí chegados, a senhora que os aguardava (e que havia efectuado a denúncia telefónica para a GNR) indicou aos militares a exacta localização da viatura EC.
14º
O Cabo «GG» (que seguia ao volante) posiciona a viatura caracterizada da Guarda sobre a traseira da viatura EC e sendo que deixou algum espaço em relação a esta por se ter apercebido de que o respectivo condutor se preparava para iniciar a manobra de marcha-atrás.
15º
Actuação que, note-se, deu exacto cumprimento ao que fora superiormente determinado no capítulo de Abordagem a Viaturas (fls. V-8 a V-10) constante do Manual de Operações da GNR, onde se encontra expresso que a viatura da Guarda deve parar à retaguarda da viatura a fiscalizar e a uma distância considerada de segurança.
16º
Sendo que, no mesmo momento em que o Cabo «GG» imobilizou a viatura policial, a viatura EC iniciou a manobra de marcha-atrás e, saindo da viatura de serviço, a A. e o Cabo «GG» identificaram-se como agentes da GNR e ordenaram aos ocupantes da viatura EC que saíssem da mesma com as mãos à vista.
17º
O que porém não foi acatado e tendo o condutor da viatura EC persistido na brusca manobra de marcha-atrás.
18º
O Cabo «GG» aborda a viatura EC (já em movimento) pelo lado do condutor e a A. posiciona-se sobre a traseira da mesma e em posição de segurança, de modo a controlar a movimentação dos respectivos ocupantes e mais conferir segurança ao Cabo «GG».
19º
Sendo que a actuação da A deu exacto cumprimento ao estipulado a fls. V-2 a V-7 do já citado capítulo de Abordagem de Viaturas, onde se encontra estabelecido que, no caso de a força ser composta por dois militares, o imediato se deve colocar em local que permita controlar o interior da viatura abordado e os respectivos ocupantes e mais conferindo segurança ao comandante da força.
20º
O Cabo «GG» entra em contacto visual com os dois ocupantes da viatura EC e vê que o condutor empunha uma arma de fogo na mão direita e a direcciona contra si, 21º
Pelo que recua e grita para a A o aviso de "Arma", isto ao mesmo tempo que saca da sua arma de serviço e com a qual efectua um disparo de intimidação para o ar.
22º
O condutor da viatura EC é porém indiferente ao aviso e persiste na brusca manobra de marcha-atrás em direcção da A, a qual só não é colhida pela viatura EC porque agilmente consegue saltar para o lado.


23º
E, recuperando a sua posição, a A efectua então dois disparos de intimidação para o ar.
24º
Sendo que estes disparos de advertência para o ar (quer os efectuados pela A quer os efectuados pelo Cabo «GG») deram exacto cumprimento ao estipulado no Capítulo I (utilização de armas de fogo) do Título II do Manual de Operações da GNR, onde se encontra estipulado que o recurso a arma de fogo deve ser precedido de advertência, claramente perceptível, sempre que a natureza do serviço e as circunstâncias o permitam e sendo que esta advertência pode consistir num tiro para o ar desde que seja de supôr que ninguém venha a ser atingido.
25º
E sendo ainda que ficou suficientemente demonstrado, no âmbito das diligências de prova realizadas no processo disciplinar, que o condutor da viatura EC efectuou um conjunto de manobras perigosas e até desesperadas e com perfeita indiferença pela integridade física dos militares e até pela própria integridade física.
26º
E sendo que a brusca manobra de marcha-atrás vai terminar com o violento embate da viatura EC numa outra viatura (com a matrícula matricula RA..-..) que se encontrava estacionada nas traseiras da bomba de combustível existente no local.
27º
E após o que o condutor da viatura EC volta a arrancar (desta vez de frente e em grande velocidade) para tentar fugir à captura,
28º
Mas depara com os dois militares na sua frente – que tentam lhe cortar a fuga – e infecte então para a esquerda para, 30 ou 40 metros mais à frente, inflectir sobre a direita e desaparecer da vista dos presentes, em direcção à estrada.
29º
Sendo que, logo que a viatura EC inflecte para a esquerda e tentando impedir a sua fuga, a A e o Cabo «GG» correm atrás da viatura EC ao mesmo tempo que efectuam vários disparos na direcção dos pneus traseiros da mesma.


30º
Não logrando porém interromper a marcha da viatura EC, a A e o Cabo «GG» correm então para a viatura policial (com o objectivo de iniciarem a respectiva perseguição) e ouvem logo a seguir um grande estrondo.
[...]“

Neste patamar.

Resulta da instrução corrida nos autos, que o Tribunal a quo dispensou a prolação de despacho saneador, tendo por pressuposto a esse seu julgamento que inexistia matéria de facto controvertida que carecesse de instrução adicional, tendo a Autora o Réu sido notificados para apresentarem as respectivas Alegações escritas a que se reporta o artigo 91.º, n.º 4 do CPTA,

No quanto é o cerne das conclusões das Alegações de recurso apresentadas pela Autora ora Recorrente, sustenta a mesma que com a produção de prova que entende ser devida, ser-lhe-ía possível prosseguir na feitura de prova que levaria a decisão judicial de sentido diverso da que se encontra sob recurso, com fundamento, em suma, de que:

(i) não era lhe era exigível uma actuação diversa da que teve, pois que o uso que fez da arma de fogo respeitou os princípios da proporcionalidade e da necessidade contemplados no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 457/99 de 05 de novembro, ou que, pelo menos, que foi criada em si e de forma legítima a convicção de que iria ser vítima de uma agressão actual e ilícita contra a sua pessoa e contra a pessoa do outro militar e que ainda podia ofender qualquer outra pessoa que inadvertidamente surgisse no caminho da viatura ..-..-EC;
(ii) a possibilidade de produzir prova visando a factualidade em causa, poderia conduzir à prolação de uma decisão favorável à sua pretensão pois que designadamente a existência de uma arma de fogo (ou de algo que, segundo as regras da normalidade e da experiência comum, poderia ter sido assumido como uma arma de fogo) na posse do condutor da viatura “EC” é factualidade que, uma vez provada, indicia que a Recorrente fez uso da arma de fogo que lhe encontrava distribuída com animus deffendendi e como único meio de poder repelir uma agressão actual e ilícita que contra si e contra o outro militar fora direcionada, ou pelo menos, de que fez uso da arma de fogo na percepção, legítima, de estar a agir em defesa da sua vida e na defesa da vida do outro militar;
(iii) não tendo o Tribunal a quo considerado, nem valorado a factualidade por si alegada sob os pontos 12.º a 30.º da Petição inicial, que a Sentença recorrida apresenta um déficit instrutório, por não ter no domínio dos factos suporte suficiente para uma correcta decisão de direito, o que constitui um erro de julgamento, e bem assim, que a dispensa não fundamentada de produção de prova requerida se traduz numa derrogação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, superiormente consagrado na CRP, e que a Sentença recorrida também é, nessa medida, inconstitucional.

A factualidade invocada pela Recorrente, em torno de saber se o condutor do veículo Honda Civic de cor preta, matrícula ..-..-EC, empunhava uma arma, consubstancia a final a alegação de que essa matéria [na compaginação dos articulados apresentados pelas partes] se mostra como não admitida por acordo, e que a Autora ora Recorrente reputa de essencial à sua actuação e que aí radica toda a sua relação com a arma que lhe está distribuída e o seu manuseio, incluindo o seu disparo, e quanto à qual não a tendo o Tribunal a quo dado como provada, também não a deu como não provada, deriva a final, no seu entendimento de que existe um défice de instrução, e que ao não ter prosseguido nesse sentido, o Tribunal a quo incorreu assim na prática de uma nulidade que por si tem a virtualidade de influir no conhecimento do mérito dos autos, mormente, em torno da apreciação da invalidade apontada à decisão proferida pelo Ministro da Administração Interna.

Neste conspecto, tendo presente, por um lado, o teor do despacho pelo qual foi dispensada a produção de prova, depois, a matéria de facto que o Tribunal a quo deu como provada e relativamente à qual a Recorrente não assaca nenhum erro de julgamento, cumpre para aqui extrair a essencialidade da fundamentação de direito aportada pelo Tribunal recorrido, como segue:

Início da transcrição
“[…]
Cotejando o articulado apresentado pela autora, constata-se que esta se limita a descrever os factos de modo diferente do apurado em sede de averiguações e de processo disciplinar, procurando desse modo justificar a utilização da arma de fogo nas circunstâncias do caso, e, assim, anular o despacho punitivo com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto.
Desta forma, e num primeiro momento, a autora alega que, juntamente com o seu colega de patrulha, abordaram a viatura em que se encontravam dois ocupantes, sendo que “no mesmo momento em que o Cabo «GG» imobilizou a viatura policial, a viatura EC iniciou a manobra de marcha-atrás” – cf. art.º 16.º da PI. Adiante, refere a autora que o seu colega, cabo «GG», terá gritado “Arma” na medida em que o condutor do veículo lhe terá apontado uma arma. Ato contínuo, o cabo «GG» fez uso da sua arma de serviço, disparando para o ar. Por seu lado, a autora, após evitar ser atropelada pelas manobras realizadas pelo condutor da viatura, efetuou depois dois disparos para o ar. Porém, não logrando os dois guardas deter a viatura em questão, correram atrás da viatura EC ao mesmo tempo que efetuam vários disparos na direção dos pneus traseiros da mesma – cf. art.º 29.º da PI.
No entender da autora, o uso das armas de fogo (por si e pelo colega) não se mostrou desadequado ou excessivo, nem comportamento diverso lhe era exigido, sendo que fez disparos de aviso para o ar e, em seguida, disparos para a parte inferior da viatura, tendo em vista a sua imobilização, inexistindo outro meio que o permitisse. Mais, foi o comportamento do condutor da viatura que colocou em risco a sua integridade física.
Em segundo lugar, a autora invoca ainda que é evidente que não foi ela quem efetuou o disparo em questão, leia-se, o disparo que atingiu o condutor da viatura que se pôs em fuga.
Vejamos.
No âmbito da impugnação de decisões de aplicação de sanções disciplinares, e quando se pretende impugnar a factualidade dada por provada, ou pelo menos demonstrar que essa factualidade não pode produzir o efeito jurídico pretendido (v.
g., que não suporta qualquer infração disciplinar), o autor encontra-se numa posição em certa medida semelhante à do recorrente que pretende impugnar uma decisão judicial com base em erro quanto ao julgamento de facto.
Com efeito, o processo judicial em que se pretende discutir a legalidade da sanção disciplinar não se pode resumir a uma mera repetição do processo disciplinar. Pelo contrário, é ao autor da ação que cabe o ónus de, pelo menos, invocar os meios de prova que não foram produzidos, e que teriam influência na decisão, ou aqueles que foram erradamente valorados. Ou, ainda, invocar a preterição de qualquer garantia ou formalidade que se revelasse essencial à sua defesa e ao apuramento da verdade factual.
[...]
Portanto, incumbe ao autor da ação imputar à decisão insuficiências probatórias, ou erros manifestos na sua apreciação, de tal modo que, pelo menos, se coloca a dúvida razoável sobre a prática dos factos pelo arguido. Cumpre, com efeito, não esquecer que o ónus da prova dos factos constitutivos da infração disciplinar cabe, em primeira linha, ao órgão que aplica a sanção. Ao tribunal cabe, apenas, averiguar se esse juízo de facto se revela probatoriamente sustentado e se a prova carreada é suficiente para sustentar a punição.
Pois bem, no caso concreto regista-se que a atuação da entidade demandada, e o juízo que a mesma fez, se revela ausente de qualquer erro grosseiro ou manifesto na apreciação da prova. Pelo contrário, e como do probatório resulta, foram colhidos diversos meios de prova, desde logo em sede de processo de averiguações, sendo que algumas das testemunhas foram novamente inquiridas em sede de processo disciplinar, a requerimento da própria autora, então arguida.
Pois bem, sobre a utilização da arma de fogo pela autora, e para saber se a mesma foi ou não ajustada, cumpre ter presente o disposto no Decreto-Lei n.º 457/99, de 05.11, diploma que estabelece o regime do recurso a arma de fogo em ação policial. Sobre o recurso a arma de fogo por parte de agentes policiais, pode ler-se no art.º 3.º do diploma em questão:
1 - No respeito dos princípios constantes do artigo anterior e sem prejuízo do disposto no n.º 2 do presente artigo, é permitido o recurso a arma de fogo:
a) Para repelir agressão atual e ilícita dirigida contra o próprio agente da autoridade ou contra terceiros;
b) Para efetuar a captura ou impedir a fuga de pessoa suspeita de haver cometido crime punível com pena de prisão superior a três anos ou que faça uso ou disponha de armas de fogo, armas brancas ou engenhos ou substâncias explosivas, radioativas ou próprias para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes;
c) Para efetuar a prisão de pessoa evadida ou objeto de mandado de detenção ou para impedir a fuga de pessoa regularmente presa ou detida;
d) Para libertar reféns ou pessoas raptadas ou sequestradas;
e) Para suster ou impedir grave atentado contra instalações do Estado ou de utilidade pública ou social ou contra aeronave, navio, comboio, veículo de transporte coletivo de passageiros ou veículo de transporte de bens perigosos;
f) Para vencer a resistência violenta à execução de um serviço no exercício das suas funções e manter a autoridade depois de ter feito aos resistentes intimação inequívoca de obediência e após esgotados todos os outros meios possíveis para o conseguir;
g) Para abate de animais que façam perigar pessoas ou bens ou que, gravemente feridos, não possam com êxito ser imediatamente assistidos;
h) Como meio de alarme ou pedido de socorro, numa situação de emergência, quando outros meios não possam ser utilizados com a mesma finalidade;
i) Quando a manutenção da ordem pública assim o exija ou os superiores do agente, com a mesma finalidade, assim o determinem.
2 - O recurso a arma de fogo contra pessoas só é permitido desde que, cumulativamente, a respectiva finalidade não possa ser alcançada através do recurso a arma de fogo, nos termos do n.º 1 do presente artigo, e se verifique uma das circunstâncias a seguir taxativamente enumeradas:
a) Para repelir a agressão atual ilícita dirigida contra o agente ou terceiros, se houver perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física;
b) Para prevenir a prática de crime particularmente grave que ameace vidas humanas;
c) Para proceder à detenção de pessoa que represente essa ameaça e que resista à autoridade ou impedir a sua fuga.
3 - Sempre que não seja permitido o recurso a arma de fogo, ninguém pode ser objecto de intimidação através de tiro de arma de fogo.
4 - O recurso a arma de fogo só é permitido se for manifestamente improvável que, além do visado ou visados, alguma outra pessoa venha a ser atingida.”.
Mas ainda que se verifique alguma destas situações, o art.º 2.º do Decreto-Lei em causa exige que o agente policial observe os princípios da necessidade e da proporcionalidade, dispondo no seu n.º 1: o recurso a arma de fogo só é permitido em caso de absoluta necessidade, como medida extrema, quando outros meios menos perigosos se mostrem ineficazes, e desde que proporcionado às circunstâncias.
Torna-se particularmente impressiva a redação da norma quando se refere a absoluta necessidade e a medida extrema, pretendendo significar, de modo explícito, que o recurso a arma de fogo constitui a ultima ratio da intervenção policial.
Portanto, mesmo que o agente policial se depare com alguma das situações previstas no art.º 3.º, tem ainda de ponderar se o recurso à arma de fogo é necessário e proporcional, no sentido de inexistir qualquer outro meio de força ou coercitivo que permita acautelar a situação sem que exija uma medida que a própria lei diz ser extrema.
Além disso, o recurso a arma de fogo tem ainda de ser precedido de advertência claramente percetível, de acordo com o art.º 4.º do diploma em análise:
1 - O recurso a arma de fogo deve ser precedido de advertência claramente percetível, sempre que a natureza do serviço e as circunstâncias o permitam.
2 - A advertência pode consistir em tiro para o ar, desde que seja de supor que ninguém venha a ser atingido, e que a intimação ou advertência prévia possa não ser clara e imediatamente percetível.
3 - Contra um ajuntamento de pessoas a advertência deve ser repetida.
Ora, perante este quadro legal, nenhuma censura nos merece o juízo que foi formulado em sede de processo disciplinar. Em primeiro lugar, note-se que em sede de averiguações ou processo disciplinar, e como decorre do probatório, nunca foi demonstrado que o condutor do veículo em questão dispusesse de uma arma – apenas de um isqueiro em forma de arma.
Também não se provou que, ao contrário das primeiras declarações prestadas pela aqui autora, ainda em sede de averiguações, o condutor da viatura a tenha tentado atropelar, de modo intencional. Mas ficou provado no processo disciplinar, o que a autora confirma, que o condutor realizou manobras bruscas, no sentido de encetar a fuga, o que propicia eventuais situações de ferimento dos agentes envolvidos. Note-se, porém, que qualquer abordagem, para mais deste tipo, implica sempre risco, desde logo por ser incerto se as pessoas em questão acatarão, ou não, a ordem de paragem.
Certo é que, quer a autora quer o colega, mesmo depois de o veículo em questão ter logrado encetar a fuga, realizaram disparos contra a mesma. Não se questiona – nem foi esse o caminho seguido em processo disciplinar – se existiu ou não intenção de alvejar outras partes do veículo que não as necessárias para conseguir a sua imobilização (designadamente, através da danificação dos pneus). Apenas releva saber se, nessas circunstâncias, o uso da arma de fogo se revelou legal/admissível. Como dizíamos, a conclusão havida em processo disciplinar mostra-se adequada. A única alternativa que legitimaria a utilização da arma de fogo seria a prevista na al.
b) do n.º 1 do art.º 3.º do Decreto-Lei em análise, ou seja, para efetuar a captura ou impedir a fuga de pessoa suspeita de haver cometido crime punível com pena de prisão superior a três anos ou que faça uso ou disponha de armas de fogo, armas brancas ou engenhos ou substâncias explosivas, radioativas ou próprias para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes.
Mas como também se disse, não basta que se preencha alguma destas alíneas para ser legítimo o recurso a arma de fogo. Essa utilização deveria assumir-se como absoluta necessidade e medida extrema, quando outros meios menos perigosos se mostrem ineficazes.
E a autora não teve em mente essas condicionantes quando fez uso da arma de serviço. Depois de o veículo ter logrado a fuga, e independentemente das razões pelas quais o conseguiu, o recurso à arma de fogo poderia mostrar-se o meio mais rápido de tentar travá-lo e, desse modo, capturar os seus ocupantes. Mas, seguramente, não era o único, nem sequer o mais proporcional, tão-pouco o mais seguro. Para mais quando, tal como se retira da leitura dos depoimentos das testemunhas, toda a situação foi presenciada por diversas pessoas. Além disso, dizse que o carro se encontrava estacionado nas traseiras de um posto de abastecimento de combustível, o que aumenta de modo muito sensível o risco da utilização de armas de fogo.
Ainda que a versão da autora se provasse – ou seja, que quase foi atropelada pelo veículo e que o seu colega terá gritado “arma”, tal nunca seria suficiente para justificar a utilização da arma de fogo no caso concreto, a partir do momento em que o veículo se pôs em movimento. Não foram ponderadas, pela autora e colega, as eventuais consequências do recurso a arma de fogo, não apenas quanto aos ocupantes do veículo, mas igualmente em relação aos transeuntes e às circunstâncias concretas do local.
Ou seja, a autora não logrou levar a cabo a ponderação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, tendo feito um uso precipitado da arma de fogo para travar o veículo – o meio que devia ser o último a ser utilizado, revelou-se aquele que a autora decidiu logo utilizar.
O que vem de dizer-se vale igualmente para a alegação de que não foi a autora quem efetuou o disparo que veio a atingir o condutor da viatura.
Antes de mais, e a propósito desta questão, importa dizer que em momento algum resulta do processo disciplinar que a decisão punitiva se funde na circunstância de a autora ter alvejado, ou procurado alvejar, os ocupantes da viatura. Pelo contrário, a infração disciplinar reside, apenas e unicamente, na utilização ilícita da arma de serviço. Noutros termos, apenas se discute a utilização da arma, não as suas consequências. Por outro lado, de nenhum modo se retira do processo disciplinar que as consequências da utilização da arma de fogo constituíram um elemento fulcral da decisão punitiva, referindo-se unicamente, e uma vez mais, à mera utilização da arma de serviço, fora dos casos legalmente admissíveis.
A própria versão da autora é, em si mesma, contraditória. Afirma que apenas utilizou a arma de fogo para repelir uma agressão atual e ilícita que foi dirigida contra si (procurando assim aplicar o disposto na al. a) do n.º 2 do art.º 3.º do Decreto-Lei em mérito), e que poderia colocar em causa o colega; mas, e por outro lado, afirma que disparou contra a viatura quando essa ameaça já não existia, na exata medida em que o veículo já se encontrava em marcha de fuga. Neste sentido, que é o da própria autora, dir-se-á que a utilização da arma de fogo aconteceu quando a ameaça já não era atual – e, como a própria diz, a utilização da arma surgiu da necessidade de parar a viatura em fuga, já não de repelir qualquer ameaça atual – o que afasta a possibilidade de ser aplicado o disposto no artigo citado, ou de considerar que existe in casu qualquer das circunstâncias dirimentes da responsabilidade invocadas pela autora (ou seja, a inexigibilidade de conduta diversa ou o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever – alíneas d) e e) do art.º 37.º do Regulamento Disciplinar da GNR, aprovado pela Lei n.º 145/99, de 01.09, na redação vigente à data dos factos).
Deste modo, verifica-se que a prova carreada para o processo de averiguações e, ulteriormente, para o processo disciplinar mostra-se congruente, suficiente e bastante para firmar as conclusões factuais a que chegou o órgão instrutor, e que o decisor aproveitou, não logrando a autora abalar essa prova de modo a, pelo menos, conseguir criar dúvida razoável sobre essa conclusão.
Aliás, o que se denota da análise dos factos provados é a correta instrução do processo e a amplitude dos meios de prova produzidos, nada havendo a apontar à decisão final, que aliás se mostra ponderada e proporcionada, fundada em juízos de facto e de Direito assertivos.
[…]”
Fim da transcrição

Este julgamento do Tribunal a quo é para manter, e de ser assim confirmada a Sentença recorrida.

Vejamos.

É inquestionável que nas condições de tempo e de lugar, a Autora ora Recorrente poderia ter levado a cabo disparos para o ar, como forma e pressuposto de repelir a continuada prática de actos ilícitos por parte do condutor do veículo, e principalmente, no pressuposto de que lhe foi transmitida informação por parte do seu colega de patrulha de que estavam perante alguém que detinha uma arma de fogo.

Porém, atenta a dinâmica que é claramente possível retirar do probatório fixado pelo Tribunal a quo, e que o foi com base ou a partir do processo administrativo que consubstancia o procedimento disciplinar instaurado à Autora ora Recorrente, não se dilucida por que termos e pressupostos é que, mesmo sendo aberto um período de produção de prova para efeitos do que vinha constante dos pontos 12.º a 30.º da Petição inicial, e mesmo a considerar-se que a Autora poderia vir a lograr produzir prova no sentido de ter formado convicção de que o condutor do veículo empunhava uma arma, que a sua actuação fosse de molde a poder ser enquadrada numa óptica de que a Autora usou a sua arma (i) para se defender, e (ii) como o único meio de poder repelir uma agressão actual e ilícita seja contra si seja contra o seu colega de patrulha, e (iii) em obediência aos princípios da proporcionalidade e da necessidade.

Salientamos que em torno da identificada matéria da Petição inicial, como assim visado pela Autora ora Recorrente, para além da referência à arma de que o condutor seria portador [mas sem que tenha alegado em momento algum que dessa arma foi proferido algum disparo, em que direcção fosse], a mesma refere [cfr. ponto 25.º a 29.º da Petição inicial], que “… ficou suficientemente demonstrado, no âmbito das diligências de prova realizadas no processo disciplinar, que o condutor da viatura EC efectuou um conjunto de manobras perigosas e até desesperadas e com perfeita indiferença pela integridade física dos militares e até pela própria integridade física.”, e que “… a brusca manobra de marcha-atrás vai terminar com o violento embate da viatura EC numa outra viatura (com a matrícula matricula RA..-..) que se encontrava estacionada nas traseiras da bomba de combustível existente no local.”, e mais ainda, de que “… após o que o condutor da viatura EC volta a arrancar (desta vez de frente e em grande velocidade) para tentar fugir à captura”, mas que ela e o seu colega de patrulha tentam cortar-lhe a fuga, o que leva o que o condutor do veículo prossiga na inflexão da marcha do veículo “… para a esquerda para, 30 ou 40 metros mais à frente, inflectir sobre a direita e desaparecer da vista dos presentes, em direcção à estrada.”, referindo ainda que, “… logo que a viatura EC inflecte para a esquerda e tentando impedir a sua fuga, a A e o Cabo «GG» correm atrás da viatura EC ao mesmo tempo que efectuam vários disparos na direcção dos pneus traseiros da mesma.”

Ou seja, é por reporte ao processado no procedimento administrativo, à prova aí produzida, que a Autora quer justificar toda a sua actuação, e que em torno dos disparos que efectuou com a arma de fogo que lhe está distribuída, que tal adveio da existência de uma arma empunhada pelo condutor do veículo, e que sobre esta parte da matéria [a utilização de arma pelo condutor], sendo feita prova e a dar-se essa factualidade como provada, que outra seria a decisão, desde logo diferente daquela que foi proferida em processo disciplinar e que em recurso hierárquico por si intentado, o Ministro da Administração Interna veio a indeferir a sua pretensão, e que o Tribunal a quo veio a manter, em face da inverificação de qualquer erro nos pressupostos de facto e de direito.

Mas como assim julgamos e aqui reiterando o julgamento tirado pelo Tribunal a quo, que prosseguiu numa correcta concatenação dos factos e do direito, a efectivar-se a prova da existência de uma arma e bem assim de que a Autora ora Recorrente e o seu colega de patrulha íam ser atropelados pelo condutor, a partir desta alegação e, aqui enfatizamos, que vem feita logo em sede da Petição inicial e que em si encerrava factualidade que reputava [a Autora] de relevo para efeitos da prova dos factos cujo ónus de prova sobre si impendia [Cfr. artigo 78.º, n.º 2, alíneas g) e l) do CPTA e artigos 341.º e 342.º do CC], em obediência ao disposto nos artigos 2.º e 3.º, n.º 1, alíneas a), b) e i) e n.º 2, alíneas a) e b), ambos do Decreto-Lei n.º 457/99, de 05 de novembro, sempre a utilização da arma de serviço que lhe está distribuída nunca poderia ser utilizada naquelas concretas condições de tempo e lugar, pois que o veículo automóvel e o respectivo condutor se encontravam já em fuga, e foi nessa dinâmica que a Autora e o seu colega de patrulha vieram depois a disparar sobre o veículo, que diz ter sido para os respectivos pneus, mas como veio a resultar provado, foram disparados 2 projecteis na direcção do corpo do condutor, tendo 1 desses projecteis ficado alojado na parte estrutural do assento/encosto do condutor, e o outro projéctil vindo a atingir o condutor na cervical, o que é demonstrativo de que não foram ponderadas as consequências do concreto recurso à arma de fogo [Cfr., em especial, os n.ºs 21, 22, 23, 24, e 25 do ponto 19 do probatório].

Conforme bem sinalizou o Tribunal a quo na Sentença recorrida, a Autora ora Recorrente proferiu disparos com a arma que lhe está distribuída quando essa ameaça já não existia, por se encontrar o veículo Honda Civic já em fuga, não existindo assim qualquer ameaça actual que por si fosse determinante da utilização da arma para o cumprimento de um qualquer dever ou para o exercício de um qualquer direito.

Ao momento em que foram disparados tiros em direcção ao veículo automóvel, estava o mesmo já em movimento, e a Autora e o seu colega de patrulha, estando apeados, viram assim esse veículo em fuga, portanto, ficaram para trás e sem perspectiva alguma de o condutor do veículo poder exercer ou direccionar sobre si qualquer conduta agressiva que pusesse de forma instante em causa a sua integridade física, em termos de apenas com recurso a arma de fogo poder repelir [a Autora] a iminência dessa agressão, sendo que, de resto e como assim refere a Autora sob o ponto 30.º da Petição inicial, foi com tiros de arma de fogo que quis provocar a imediata paragem do veículo automóvel que se encontrava em fuga, e não o tendo conseguido, só então se autodeterminou/aram por correr então para a viatura policial com o objectivo de iniciarem a respectiva perseguição.

Efectivamente, o veículo Honda Civic de cor preta, onde seguia o condutor e o ocupante, está já em processo dinâmico de fuga, deixando a Autora e o outro policial pela rectaguarda, tendo nessa constância sido produzidos disparos, quanto ao que um deles se alojou no corpo do condutor e um outro na estrutura do assento/encosto do condutor [Cfr., em especial, os n.ºs 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20 do relatório final, a que se reporta o ponto 19 do probatório; Cfr. ainda o ponto 11 do probatório].

Ou seja, e a final, essa perseguição de carro e ao carro sempre poderia ter sido prosseguida, logo a partir do momento em que o condutor, não obedecendo aos disparos para o ar, e tendo o mesmo incrementado a velocidade que imprimia ao veículo, seja em marcha à ré, seja para a frente, pois eram sinais mais que evidentes de que a motivação do condutor não era a de suster a marcha do veículo.

Em suma, nunca houve confronto físico com armas, entre a agente policial [e também o seu colega de patrulha] e o condutor do veículo que fosse justificante que a mesma tivesse de utilizar a sua arma e direccionar disparos na direcção do veículo, principalmente quando o mesmo se encontrava em fuga, em movimento e em sentido viário que provocaria uma cada vez maior distância física entre a Autora e o veículo e respectivo condutor, sendo assim manifesta a falta de proporcionalidade dos meios de defesa e repressão por si utilizados, para além da manifesta desnecessidade na sua utilização.

Está assim em causa, como emerge da instrução do procedimento disciplinar, assim como do julgamento prosseguido pelo Tribunal a quo, a utilização ilícita da arma de serviço que estava distribuída à Autora ora Recorrente no exercício das suas funções policiais de exercício de autoridade e regulação da segurança pública e protecção de pessoas e bens.

Os recursos jurisdicionais são os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, por via dos quais os recorrentes pretendem alterar as sentenças recorridas, nas concretas matérias que os afectem e que sejam alvo da sua sindicância, é necessário e imprescindível que no âmbito das alegações de recurso os recorrentes prossigam de forma clara e objectiva as premissas do silogismo judiciário em que se apoiou a decisão recorrida, por forma a evidenciar os erros em que a mesma incorreu.

O julgado pelo Tribunal a quo, seja em torno do despacho pelo qual dispensou a realização do despacho saneador e a produção adicional de prova para além da constante do processo administrativo apenso aos autos, seja em torno da apreciação do mérito do pedido deduzido na Petição inicial, não padece da censura jurídica que lhe aponta a Recorrente, porquanto, mesmo em face do alegado sob os pontos 12.º a 30.º da Petição inicial se retira a desnecessidade e a desproporcionalidade no uso da arma de fogo quando o veículo automóvel se encontrava já em fuga.

O ponto não se centra, como assim parece resultar da pretensão recursiva ora em apreço, em saber se mesmo existindo uma concreta arma de fogo e que tivesse sido empunhada pelo condutor do veículo, e sempre no seu interior com o mesmo em movimento, se outra seria a sanção disciplinar ou mesmo a inaplicação de qualquer sanção à Autora ora Recorrente, pois que, é no momento em que a Autora vem a fazer uso da arma de fogo e na direcção do veículo, onde se encontrava o seu condutor e um outro ocupante, que deve ser aferida a proporcionalidade e a necessidade dessa utilização, tendo ficado demonstrado e por termos firmes, até em face do alega a própria Autora na Petição inicial e pelos factos relativamente aos quais pretendida fosse produzida prova, que inexistia qualquer ameaça real para a vida das suas pessoas ou de outros cidadãos que devesse ser sustida com disparos efectuados na direcção do veículo, e afinal, que o quanto refere que lograram prosseguir, e que foi o de que entraram no seu veículo policial para ir no encalço do veículo em fuga, era procedimento que deveria ter sido adoptado, logo que o outro veículo foi colocado em movimento.

Termos em que, face ao que deixamos expendido supra, a pretensão recursiva da Recorrente tem assim de improceder, por se confirmar, na integra, o julgamento prosseguido pelo Tribunal recorrido.

*

E assim formulamos as seguintes CONCLUSÕES/SUMÁRIO:

Descritores: Processo disciplinar; Produção de prova; Agente da GNR; Utilização ilícita de arma de fogo; Pena de suspensão agravada; Necessidade e proporcionalidade.

1 - Como emerge da instrução do procedimento disciplinar, assim como do julgamento prosseguido pelo Tribunal a quo, está em causa a utilização da arma de serviço que estava distribuída à Autora ora Recorrente no exercício das suas funções policiais de exercício de autoridade e regulação da segurança pública e protecção de pessoas e bens.

2 - Nas condições de tempo e de lugar, a Autora ora Recorrente poderia ter levado a cabo disparos para o ar, como forma e pressuposto de repelir a continuada prática de actos ilícitos por parte do condutor do veículo, e principalmente, no pressuposto de que lhe foi transmitida informação por parte do seu colega de patrulha de que estavam perante alguém que detinha uma arma de fogo.

3 - Porém, atenta a dinâmica que é claramente possível retirar do probatório fixado pelo Tribunal a quo, e que o foi com base ou a partir do processo administrativo que consubstancia o procedimento disciplinar instaurado à Autora ora Recorrente, não se dilucida por que termos e pressupostos é que, mesmo sendo aberto um período de produção de prova para efeitos do que vinha constante dos pontos 12.º a 30.º da Petição inicial, e mesmo a considerar-se que a Autora poderia vir a lograr produzir prova no sentido de ter formado convicção de que o condutor do veículo empunhava uma arma, que a sua actuação fosse de molde a poder ser enquadrada numa óptica de que [a Autora] usou a sua arma (i) para se defender, e (ii) como o único meio de poder repelir uma agressão actual e ilícita seja contra si seja contra o seu colega de patrulha, e (iii) em obediência aos princípios da proporcionalidade e da necessidade.

4 – A efectivar-se a prova da existência de uma arma e bem assim de que a Autora ora Recorrente e o seu colega de patrulha íam ser atropelados pelo condutor, e em obediência ao disposto nos artigos 2.º e 3.º, n.º 1, alíneas a), b) e i) e n.º 2, alíneas a) e b), ambos do Decreto-Lei n.º 457/99, de 05 de novembro, sempre a utilização da arma de serviço que lhe está distribuída nunca poderia ser utilizada nas concretas condições de tempo e lugar, pois que o veículo automóvel e o respectivo condutor se encontravam já em fuga, sendo que foi nessa dinâmica que a Autora e o seu colega de patrulha vieram depois a disparar sobre o veículo, que diz ter sido para os respectivos pneus, mas como veio a resultar provado, foram disparados 2 projecteis na direcção do corpo do condutor, tendo 1 desses projecteis ficado alojado na parte estrutural do assento/encosto do condutor, e o outro projéctil vindo a atingir o condutor na cervical, o que é demonstrativo de que não foram ponderadas as consequências do concreto recurso à arma de fogo.

5 - É no momento em que a Autora vem a fazer uso da arma de fogo e na direcção do veículo, onde se encontrava o seu condutor e um outro ocupante, que deve ser aferida a proporcionalidade e a necessidade dessa utilização, mostrando-se assim e de forma flagrante, até em face do alega a própria Autora na Petição inicial e pelos factos relativamente aos quais pretendida fosse produzida prova, que inexistia qualquer ameaça real para a vida das suas pessoas ou de outros cidadãos que devesse ser sustida com disparos efectuados na direcção do veículo, e afinal, que o quanto refere que lograram prosseguir, e que foi o de que entraram no seu veículo policial para ir no encalço do veículo em fuga, era procedimento que deveria ter sido adoptado, logo que o outro veículo foi colocado em movimento.

***

IV – DECISÃO

Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Social da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em conferência em NEGAR PROVIMENTO ao recurso interposto pela Recorrente «AA», confirmando a Sentença recorrida.

*

Custas a cargo da Recorrente – Cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

**

Notifique.


*
Porto, 21 de junho de 2024.

Paulo Ferreira de Magalhães, relator
Isabel Costa
Maria Fernanda Brandão