Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00384/22.0BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:09/27/2024
Tribunal:TAF de Braga
Relator:LUÍS MIGUEIS GARCIA
Descritores:COMPETÊNCIA;
REIVINDICAÇÃO;
Sumário:
I) – Tratando-se de acção de reivindicação, o TAF é incompetente.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:

«AA» e esposa «BB» (Travessa ..., freguesia ..., ... ...) interpõem recurso jurisdicional de decisão do TAF de Braga, que, em acção administrativa instaurada contra Junta de Freguesia ... (Avenida ..., ..., freguesia ..., ... ...), julgou «este Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga incompetente, em razão da jurisdição, para conhecer da presente acção [cf. arts. 13.º, 14.º, e 89.º, n.º 1, ab initio, n.º 2, ab initio, e n.º 4, alínea a), do CPTA, em articulação com o arts. 1.º e 4.º, ambos a contrario, do ETAF].».

Concluem:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de 23 de fevereiro de 2022, que julgou verificada a exceção dilatória de incompetência do Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, porquanto entendeu que “atenta a causa de pedir e pedidos formulados na presente acção de reivindicação [(i) o reconhecimento do seu direito de propriedade, (ii) a consequente restituição do que lhes pertence, (iii) a reposição do estado do terreno antes da ocupação por parte da Ré, e (iv) uma indemnização pelos prejuízos resultantes da invasão abusiva da parcela de terreno] [cf. factualidade supra julgada provada em §)], dúvidas não subsistem que se trata de um litígio que não se encontra compreendido em nenhuma das alíneas do n.º 1, do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) [na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro]. Cabendo a competência para a apreciação da presente acção de reivindicação aos tribunais da jurisdição comum.”;
2. No entender dos Autores, aqui Apelantes, o Tribunal a quo não fez uma correta interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto, mormente do art.º 4.º, n.º 1, alíneas a), h), i) e o) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e, bem assim, do art.º 37.º, n.º 1, alíneas a), i) e k) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA);
3. Na petição inicial os Autores cumularam três dos objetos das ações administrativas comuns, previstos no art.º 37.º n.º 1 do CPTA, fazendo constar do introito da peça que propõe: “AÇÃO ADMINISTRATIVA de impugnação de atos administrativos e, sem prescindir, de condenação da Administração à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos violados e de responsabilidade civil para efeitos de ressarcimento de danos decorrentes de condutas ilegais, nos termos das als. a), i) e k) do n.º 1 do art.º 37.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante CPTA (...)”;
4. O elenco previsto nas alíneas do n.º 1 do art.º 37.º não constitui um numerus clausus, sendo possível que outras ações com objetos diversos dos elencados possam, também elas, seguir a forma da ação administrativa;
5. Por sua vez, os Apelantes deduziram como pedidos: “(...) deve a ação ser julgada totalmente procedente, por provada, e em consequência ser a Ré condenada a: a). Reconhecer que os Autores são proprietários do prédio rústico denominado “Coutada dos ...”; b) Reconhecer que a faixa de terreno que fora alcatroada constitui uma parcela do prédio rústico denominado “Coutada dos ...”, propriedade dos Autores; c) Remover o alcatrão colocado, deixando a parcela de terreno alcatroado no mesmo estado e com as mesmas condições que existiam antes de o alcatrão ser colocado ou, caso tal seja impossível ou excessivamente oneroso, pagar aos Autores uma indemnização pela utilização da parcela a título de caminho, que se deverá ser arbitrada e calculada em função de um juízo de equidade; d) Indemnizar os Autores a título de danos não patrimoniais nunca inferior a €1.000,00 (mil euros)”;
6. O objeto do processo deve ser considerado bilateralmente, nele participando o pedido e a causa de pedir, sendo que a causa de pedir consiste nos factos concretos, objetivos e individualizados aos quais serão aplicadas normas de direito, que no entender do Autor foram esquecidas ou violadas e que, em virtude dessa violação, tornam os factos juridicamente relevantes; por seu turno, é deste conjunto de factos articulados na petição inicial e a subsequente aplicação das normas de direito violadas ou esquecidas (causa de pedir) que se aferem e se deduzem o(s) pedido(s). O mesmo é dizer que, salvo melhor entendimento, os pedidos não podem ser lidos individualmente, ou seja, separadamente dos factos articulados no corpo da peça processual;
7. Para além dos factos enunciados na sentença, a fls. 6 e 7 da mesma, a saber: art. os 1.º, 2.º, 4.º, 5.º, 17.º, 21.º, 31.º, 33.º, 78.º e 79.º da petição inicial, os Autores, alegam causas de pedir suscetíveis de enquadrarem a competência exclusiva da jurisdição administrativa designadamente da não existência de procedimento administrativo e de ato administrativo, consignados, entre outros, no art.º 39.º (“Ora, desconhecem os Autores a existência de qualquer procedimento administrativo, bem como a existência de qualquer ato administrativo que tenha versado sobre a referida obra de alcatroamento da parcela de terreno do seu prédio rústico”); no art.º 40.º (“Todavia, mostra-se impreterível a existência quer de procedimento administrativo um ato administrativo que mais do que decidir sobre a execução da obra, fundamente a mesma, ao abrigo do disposto no art.º 152.º e art.º 153.º do CPA”); e no art.º 41.º (“inexistindo procedimento administrativo nem ato administrativo que legitime a conduta decisória e executória da Ré, sempre a obra em si deve ser declara ilegal, e a Ré ser condenada a remover a mesma, repondo o estado em que a parcela de terreno se encontrava aquando do início dos trabalhos.”);
8. Do mesmo modo, os Autores, aqui Apelantes, alegam, ainda, na sua petição inicial a falta de notificação de qualquer ato administrativo (a ter existido), a saber: no art.º 42.º (“A ter existido procedimento administrativo e ato administrativo, nunca o mesmo fora comunicado aos Autores.”); no art.º 45.º (“Contudo, os Autores nunca foram notificados, ainda que imperfeitamente, de qualquer ato administrativo.”); no art.º 48.º (“sucede que, no caso em concreto, não estamos perante um caso de falta de elementos da notificação (maxime de decisão), mas sim perante a total omissão da mesma.”); no art.º 49.º (“Ora, não tendo o ato administrativo sido comunicado aos Autores, sempre será perante estes ineficaz.”);
9. Ademais, os Autores, alegam, ainda, factos tendentes a consubstanciar uma violação do exercício do direito de audiência prévia e do princípio da legalidade, consignados, entre outros, no art.º 50.º (“A existir ato administrativo que determinasse a colocação de alcatrão na faixa de terreno dos Autores o mesmo não foi, como se viu, comunicado aos Autores, estando os mesmos impedidos de exercer o direito de audiência prévia, ou seja, de pronúncia sobre a decisão versada no (eventual) ato administrativo.”); no art.º 57º (“Ora, foi vedada total e completamente aos Autores a possibilidade de pronúncia acerca da decisão (que inicialmente deveria ter sido uma proposta de decisão) administrativa.”); no art.º 58.º (“Nestes termos, outra não pode ser a conclusão senão a de que, no caso em apreço, não foram cumpridas as exigências legais tendentes a respeitar os interesses legítimos dos Autores, concretamente, pela preterição do exercício de direito de audiência prévia”); no art.º 59.º (“Do mesmo modo, sempre se dirá que foi violado o princípio da legalidade, previsto no art.º 3.º, n.º 1 do CPA e que refere que “os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins.””); no art.º 61º (“De facto, se a Ré pretendia apropriar-se daquela faixa de terreno dos Autores para dela fazer um caminho, sempre teria de seguir um procedimento específico para tal (designadamente e por exemplo, através do instituto da expropriação).”); no art.º 62.º (“Todavia, jamais foi adotado qualquer procedimento legal que confira validade ao ato praticado pela Junta de Freguesia Ré”);
10. Com o devido respeito, entendem os Apelantes que o Tribunal a quo fez tábua rasa de, pelo menos, 32 artigos da petição inicial, alguns deles acabados de citar, e cuja formulação, conteúdo e objeto estão intrinsecamente ligados aos pedidos e à consequente procedência ou improcedência destes, e fazem com que a análise e decisão da causa seja da competência absoluta da jurisdição administrativa;
11. Assim, salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal quando refere na douta sentença, a fls. 8: “Inexistem outros factos provados ou não provados com relevância para a decisão a proferir quanto à questão decidenda, sendo que a restante matéria foi desconsiderada por não ser relevante, por respeitar a conceitos de direito, por consistir em alegações de facto ou de direito, por encerrar opiniões ou conter juízos conclusivos”, uma vez que os factos vindos de citar, integram a causa de pedir a que correspondem os pedidos formulados sob as alíneas c) e d) da inicial;
12. Do mesmo modo, entende-se que a transcrição dos factos acima elencados é suficiente para se compreender que os Autores não se baseiam apenas na existência de um direito de propriedade que fora violado, peticionando a reposição do mesmo, mas baseiam-se, acima de tudo, na preterição de procedimento administrativo e na falta de ato administrativo que deveria ser emanado previamente a qualquer ato praticado pela Ré. Tais factos (que o Tribunal a quo se absteve de considerar), mormente todo o subcapítulo plasmado na petição inicial onde os Autores se referem à inexistência de procedimento administrativo, à não existência e/ou falta de notificação do ato administrativo e à preterição do direito de audiência prévia, mostra-se imprescindível para a decisão da causa, e, inclusive, mostra-se suscetível de alterar a decisão que julgou o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga incompetente, em razão da jurisdição, para conhecer da presente ação;
13. Dir-se-á, ainda, que não cabe na competência dos tribunais comuns a apreciação de existência ou não de procedimentos administrativos; a existência ou não e notificação de atos administrativos aos interessados e, a ter existido, a validade e perfeição de tais atos; a preterição ou salvaguarda do direito de audiência prévia e as formalidades que a todos estão subjacentes;
14. Ademais, a sentença de que agora se recorre invoca dois Acórdãos do Tribunal dos Conflitos a fls. 10 a 18 (a saber: Acórdão n.º 41/19, de 23 de Janeiro de 2020 e o Acórdão n.º 48/18, de 23 de Maio de 2019) que apesar de descreverem duas situações em que os pedidos formulados foram semelhantes dos pedidos neste processo formulados, jamais se colocou, naqueles, as questões da preterição de princípios e normas administrativas como sendo a apreciação de existência ou não de procedimentos administrativos; a existência ou não e notificação de atos administrativos aos interessados e, a ter existido, a validade e perfeição de tais atos; a preterição ou salvaguarda do direito de audiência prévia e as formalidades que a todos estão subjacentes;
15. Aliás, diga-se mais, a própria fundamentação do Acórdão n.º 48/18, de 23 de Maio de 2019, citando JORGE PAÇÃO, «Novidade em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três novas alíneas do artigo 4º, nº 1 do ETAF», Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, refere que “podem colocar-se dúvidas sobre se a competência dos tribunais administrativos está apenas prevista para as situações em que a Administração exerce operações materiais sem que exista decisão administrativa prévia que a sustente, ou se são também situações de “via de facto” os casos em que esses atos jurídicos foram praticados e são juridicamente existentes mas que padecem de uma ilegalidade gravosa (v.g. indiscutível nulidade do ato de declaração de utilidade pública), bem como os casos em que a lei não outorga à entidade administrativa qualquer atribuição ou competência na matéria.”;
16. Ou seja, de uma forma direta e explícita, o próprio Acórdão n.º 48/18, de 23 de Maio de 2019 - aplicado, também ele, de forma errada em relação ao caso em concreto - reconhece competência à jurisdição administrativa para as situações em que a Administração exerce operações materiais sem que exista decisão administrativa prévia que a sustente (como é o caso dos autos!);
17. Sem prescindir, o art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) estipula os litígios cujo objeto é da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, elencando-os em 15 alíneas;
18. Entendem os Apelantes que não pode, senão, considerar-se que o caso em apreço integra, de facto, a competência da jurisdição administrativa, designadamente as als. a), h), i) e o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF. Aliás, nem de outra forma poderia ser: em virtude das causas de pedir e dos pedidos formulados pelos Autores, jamais os tribunais comuns seriam competentes para analisar a totalidade da questão, designadamente a apreciação de existência ou não de procedimentos administrativos; a existência ou não de notificação de atos administrativos aos interessados e, a ter existido, a validade e perfeição de tal; a preterição ou salvaguarda do direito de audiência prévia e as formalidades que a todos estão subjacentes, porquanto a competência para decidir tais questões está reservada à competência absoluta dos tribunais administrativos e fiscais, pelo que deverá a sentença ser anulada, conferindo-se competência ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, e os autos prosseguir os termos processuais subsequentes, designadamente, ordenar-se a citação da Ré;
19. Sem prescindir, ainda que se considere que as causas de pedir não influem nos pedidos formulados pelos Autores - o que apenas se coloca por uma questão de patrocínio - continua a ser competente para dirimir o presente litígio o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga;
20. Ora, a formulação dos pedidos é, de per se, suscetível de enquadrar a al. i) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF (a saber: “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;”) e, bem assim, a al. i) do n.º 1 do art.º 37.º do CPTA (a saber: “Seguem a forma da ação administrativa, com a tramitação regulada no capítulo III do presente título, os processos que tenham por objeto litígios cuja apreciação se inscreva no âmbito da competência dos tribunais administrativos e que nem neste Código, nem em legislação avulsa sejam objeto de regulação especial, designadamente: i) Condenação da Administração à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo em situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime;”;
21. O Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, de 30/11/2016, proferido no proc. n.º 00975/16.6BEPNF, em que foi relatora Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão e disponível em www.dgsi.pt plasma que: Com a revisão de 2015, o ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respetiva expropriação. No passado, como a competência para as ações de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n° 1 do artigo 4° do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objeto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo”.;
22. É explícito o douto aresto, na resolução da questão que, diga-se desde já, é idêntica à dos presentes autos, perfilhando-se o mesmo entendimento sufragado pelo douto Tribunal: “De facto não se compreende outro conteúdo e alcance a dar às alíneas i) do nº. 1 do artigo 4º do ETAF e do nº. 2 do artigo 2º do CPTA, que não a da atribuição de jurisdição aos tribunais administrativos para as acções de reivindicação em que a Administração ocupa um terreno de um particular sem para o efeito estar munida do competente título que a habilite, conforme foi interpretado pelos referidos autores, tanto mais que, tais casos mereciam usualmente, no foro, o epíteto de "atuações em vias de facto".”;
23. No caso dos autos: os pedidos formulados pelos Autores integram e consubstanciam um só objeto: o pedido de condenação da Ré à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime maxime, a remoção do alcatrão colocado, deixando a parcela de terreno alcatroado no mesmo estado e com as mesmas condições que existiam antes de o alcatrão ser colocado ou, caso tal seja impossível ou excessivamente oneroso, pagar aos Autores uma indemnização pela utilização da parcela a título de caminho.;
24. JORGE PAÇÃO, «Novidade em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três novas alíneas do artigo 4º, nº 1 do ETAF», Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, 2ª ed., 2016, pág. 197: “(…) com a revisão do contencioso administrativo português de 2015, os tribunais administrativos são os tribunais competentes para apreciação das situações de “via de facto”, de apropriação irregular e, consequentemente, de expropriação indireta, visto ser uma mera “ramificação” da figura da apropriação irregular, e que, aliás, traz à colação o princípio da intangibilidade da obra pública, de natureza puramente administrativa, devendo este último ser trabalhado e aplicado pelos tribunais administrativos desde 1 de dezembro de 2015, em detrimento da jurisdição comum.”;
25. Em sentido semelhante, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual do Processo Administrativo, 2ª ed., pág. 171: “Com a revisão de 2015, o ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respetiva expropriação. No passado, como a competência para as ações de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n° 1 do artigo 4° do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objeto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo.”;
26. Conforme se pronunciou o Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 25/03/2021, no proc. 3802/20.8T8GMR.G1, em que foi relatora Maria Cristina Cerdeira, disponível para consulta em www.dgsi.pt: e que, igualmente, espelha uma situação idêntica à dos presentes autos: III- Os tribunais administrativos são materialmente competentes para decidir a ação de reivindicação, sendo de configurar o litígio como emergente de uma relação jurídica administrativa, se o autor alega que o terreno de que é proprietário foi ilegal e ilicitamente tomado, em parte, por uma pessoa coletiva de direito público - no caso em apreço uma Junta de Freguesia, (...) – de que terá resultado, simultaneamente, o impedimento de acesso ao mesmo, em termos que deva o terreno ser reposto na situação anterior e restituído ao seu legítimo proprietário.”
27. Ou seja, ainda que os aqui Apelantes tenham formulado os pedidos: “(...) deve a ação ser julgada totalmente procedente, por provada, e em consequência ser a Ré condenada a: a). Reconhecer que os Autores são proprietários do prédio rústico denominado “Coutada dos ...”; b) Reconhecer que a faixa de terreno que fora alcatroada constitui uma parcela do prédio rústico denominado “Coutada dos ...”, propriedade dos Autores; c) Remover o alcatrão colocado, deixando a parcela de terreno alcatroado no mesmo estado e com as mesmas condições que existiam antes de o alcatrão ser colocado ou, caso tal seja impossível ou excessivamente oneroso, pagar aos Autores uma indemnização pela utilização da parcela a título de caminho, que se deverá ser arbitrada e calculada em função de um juízo de equidade; d) Indemnizar os Autores a título de danos não patrimoniais nunca inferior a €1.000,00 (mil euros)”, tal não significa que se esteja perante, automaticamente, perante uma ação de reivindicação da competência absoluta dos tribunais comuns;
28. Pelo exposto, considera-se que andou mal o Tribunal a quo ao ter considerado que a presente ação é da competência dos tribunais comuns. De facto, entende-se, com o devido respeito, que o Tribunal fez uma interpretação errada das alíneas contidas no art.º 4.º, n.º 1 do ETAF, em especial, a al. i) e, bem assim, do art.º 37.º, n.º 1, al. i) do CPTA, devendo a sentença ser anulada, conferindo-se competência ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, e os autos prosseguir os termos processuais subsequentes, designadamente, ordenar-se a citação da Ré.

Sem contra-alegações.
*
A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta foi notificada nos termos do art.º 146º, nº 1, do CPTA, não emitindo parecer.
*
Dispensando vistos, vêm os autos a conferência, cumprindo decidir.
*
Os factos:
A) - Fixou o tribunal “a quo”:
§) Em 22 de Fevereiro de 2022, os Autores deram entrada da presente acção, neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, cuja petição inicial se reproduz, na parte que importa, a saber: “…
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
B) - Tem-se aqui presente tudo o articulado na dita petição inicial.
*
A apelação:
Os Autores pediram que a ré fosse condenada a: a) Reconhecer que os Autores são proprietários do prédio rústico denominado “Coutada dos ...”; b) Reconhecer que a faixa de terreno que fôra alcatroada constitui uma parcela do prédio rústico denominado “Coutada dos ...”, propriedade dos Autores; c) Remover o alcatrão colocado, deixando a parcela de terreno alcatroado no mesmo estado e com as mesmas condições que existiam antes de o alcatrão ser colocado ou, caso tal seja impossível ou excessivamente oneroso, pagar aos Autores uma indemnização pela utilização da parcela a título de caminho, que se deverá ser arbitrada e calculada em função de um juízo de equidade; d) Indemnizar os Autores a título de danos não patrimoniais nunca inferior a €1.000,00 (mil euros).
Alegaram, em suma: são donos e legítimos proprietários do prédio rústico denominado “Coutada dos ...”, sito no Lugar ..., freguesia ..., do concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 536 e com a área de 1.450m2; tal propriedade adveio à esfera jurídica dos Autores através de documento particular autenticado, de compra e venda, celebrado em 23 de maio de 2017, mediante o qual os Autores adquiriam a «CC» e a «DD» o referido prédio, pelo preço de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros); antes da outorga do referido contrato, já os Autores vinham usufruindo do aludido prédio rústico, encontrando-se a explorar o mesmo por via de um arrendamento rural, para fins agrícolas; puderam sempre zelar pelas suas culturas, antes e depois dos seus horários de trabalho retirando, desse modo, os frutos do mencionado prédio rústico; em 16 de Agosto de 2021, o Autor marido apercebeu-se da existência de uma obra, no seu prédio rústico, tendo-se dirigido ao local e, viu que se encontrava, no referido prédio rústico, a empresa de construções [SCom01...], com sensivelmente 10 trabalhadores e uma máquina de limpeza, camiões e uma máquina de estender alcatrão; o Autor referiu que tais trabalhadores estavam numa faixa de terreno que lhe pertencia, pelo que não poderiam estar a executar quaisquer trabalhos sem a sua autorização; tendo ligado para o posto da Guarda Nacional Republicana de ... e solicitado a deslocação de dois agentes ao seu prédio rústico denominado “Coutada dos ...”, sito no Lugar ..., freguesia ..., do concelho ...; na sequência das referidas obras, os Autores ficaram, como actualmente estão, privados de usufruir de uma parcela do seu terreno, que se computa, sensivelmente, em 52metros, em toda a extensão do terreno por 2,60 metros de largura; estão impedidos de usufruir de parte do seu prédio rústico e, consequentemente, de usufruir da sua utilidade económica (cultura agrícola), o que computa um dano patrimonial na esfera destes; sentindo-se angustiados e revoltados com a atitude da Ré, que, à sua revelia, decidiu apropriar-se da parcela de terreno propriedade dos Autores; ao ordenar alcatroar, à revelia dos Autores, a parcela de terreno destes, actuou a Ré ilicitamente, em clara violação do direito de propriedade dos Autores - o que justifica o recurso à presente demanda.
Cfr. Ac. do STJ, de 26-05-2015, proc. nº 1798/09.6TBCSC.L1.S1:
I. – O momento processual em que se fixa o pressuposto processual da competência do tribunal em razão da matéria é o da instauração da acção, com a modelação da causa de pedir e do respectivo pedido da acção;
II. – A recensão da relação jurídica plasmada na causa de pedir reverbera e recorta o imo em que se alberga a jurisdição – comum ou administrativa – para conhecer do litígio proposto.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais - que se fixa no momento da propositura da causa -, é delimitada pelo seu objeto: são competentes os tribunais administrativos quando estejam em causa litígios emergentes de relações jurídico-administrativas e fiscais- artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º e 4º do ETAF e 144.º, n.º 1 da LOSJ.
O tribunal “a quo” entendeu “que os Autores visaram, com o presente processo, a instauração de uma acção de reivindicação”, vindo a concluir pela incompetência.
Com razão.
«A competência do Tribunal afere-se pelo pedido formulado pelo A e pelos fundamentos que invoca, pelo que a análise da petição dos AA é determinante (Ac. do Trib. de Conflitos, de 27-01-2010, proc. nº 017/09).
No caso, oferece o desenho de uma apropriação de parcela alegadamente de propriedade dos Autores, que a Ré ordenou que fosse alcatroada, ficando eles privados de dela usufruir, conquanto a Ré assim terá actuado no pressuposto de tal faixa se tratar de um caminho público, o que os Autores têm em erro, e antecipadamente impugnam semelhante titularidade de domínio, pretendendo de primeira linha o reingresso à sua esfera jurídica.
Emana dos próprios termos da demanda que a controvérsia do litígio se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado (uma sua parcela), face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito de propriedade invocado pelos autores; de que, a título principal, e na dependência do qual tudo mais vem, pretendem reconhecimento.
À semelhança do equacionado pelo Tribunal de Conflitos, no seu Ac. de 08-11-2022, proc. n.º 036/21, citando sua anterior jurisprudência:
«Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i) do art. 4°, nº 1 do ETAF abrange, ou não as ações reais como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito de propriedade invocado pelo autor.
Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9° do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2).
Atente-se ainda que, conforme se determina naquele dispositivo legal, «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (nº3).
Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que a competência apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração.
Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.».
Acresce ainda que «(…) a circunstância de o pedido indemnizatório formulado poder ser enquadrado no âmbito da responsabilidade civil extracontratual não obsta a este juízo, já que este pedido, tal como formulado na acção, não tem autonomia, sendo simplesmente decorrente da invocada violação do direito de propriedade, não relevando, como tal, para a determinação da competência material do tribunal (cfr. neste sentido o Ac. deste Tribunal de 23.01.2020, Proc. nº 041/19 e os arestos nele indicados).» - in Ac. do Trib. Confl., de 18-04-2023, proc. n.º 022/22.
Cfr., com similitude, o Ac. do Trib. Confl., de 14-07-2022, proc. n.º 016/21:
«Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais. Com efeito, o Autor alega que a Ré violou o seu direito de propriedade, já que sem qualquer autorização ou consentimento, invadiu o seu prédio, ocupando parte do mesmo com a pavimentação do caminho com o qual ele confronta, daí resultando um alargamento daquele caminho à custa da perda de área do seu prédio, que canalizou indevidamente águas pluviais para o seu prédio e cobriu parte de uma represa sua propriedade, causando-lhe prejuízos que pretende ver indemnizados. Invoca no seu requerimento inicial que tem “o direito de ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre parte do prédio que foi ocupada pela pavimentação e de exigir a restituição do que lhe pertence, por força do disposto no artigo 1311.º do Código Civil”.
Por sua vez, a Ré defende que não existe “nenhuma ocupação indevida do terreno do Autor”.
A jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19 e de 02.12.2021, Proc.03802/20.8T8GMR.G1.S1 (todos consultáveis in www.dgsi.pt).
A apreciação do pedido indemnizatório mostra-se dependente do que vier a ser decidido quanto ao pedido principal, trata-se pois de pedidos que, na economia da acção não têm autonomia, “sendo uma mera decorrência da pretensa violação do direito de propriedade e que, por isso, não relevam para a determinação da competência material do tribunal” (cfr. Ac. Tribunal dos Conflitos de 23.01.2020, Proc. 041/19 e jurisprudência nele citada, disponível em www.dgsi.pt).
É esta jurisprudência que se reitera, pelo que a competência para apreciar a pretensão do Autor cabe aos tribunais judiciais.».
*
Acordam, pelo exposto, em conferência, os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
Custas: pelos autores/recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário.
Porto, 27 de Setembro de 2024.

Luís Migueis Garcia
Ana Paula Martins
Alexandra Alendouro