Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00199/24.0BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:09/13/2024
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:MARIA FERNANDA ANTUNES APARÍCIO DUARTE BRANDÃO
Descritores: MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA;
AGENTE POLICIAL/DEMISSÃO;
PROVIDÊNCIA CAUTELAR; PEDIDO DE SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DO DESPACHO QUE APLICOU AO REQUERENTE A PENA DISCIPLINAR DE DEMISSÃO;
CONDENAÇÃO DO AGENTE POLICIAL PELO CRIME DE RECEPTAÇÃO (DE VEÍCULO AUTOMÓVEL FURTADO);
DISCRICIONARIEDADE DA ENTIDADE DEMANDADA (NÃO CONFUNDIR COM ARBÍTRIO);
PENA BEM DOSEADA, ADEQUADA E PROPORCIONAL;
PROVIMENTO DO RECURSO DO MAI/REJEIÇÃO DA PROVIDÊNCIA CAUTELAR SOLICITADA;
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte -Subsecção Social-:

RELATÓRIO
«AA» requereu contra o MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, ambos melhor identificados nos autos, o decretamento de providência cautelar de suspensão da eficácia do despacho de 2 de fevereiro de 2024 que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.
Alegou, sucintamente, que estão preenchidos os pressupostos para o decretamento da providência cautelar.
Terminou deduzindo o seguinte pedindo: “(n)estes termos e nos mais que V. Exa doutamente suprirá, deve ser julgado provado e procedente o presente Procedimento Cautelar e, consequentemente, ser ordenada a suspensão do ato praticado pelo Ministério da Administração Interna que determinou a demissão do requerente”.
Por sentença proferida pelo TAF de Penafiel foi decretada a providência requerida e determinada a suspensão da decisão que aplicou a sanção disciplinar de demissão ao Requerente.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, o Réu formulou as seguintes conclusões:

I. A douta sentença recorrida decidiu suspender a eficácia do despacho punitivo, porque “(...) não se retirando da fundamentação do ato de demissão (por remissão) o motivo de não ser ponderado o juízo de prognose positivo, a aplicação da medida mais gravosa, após 7 anos desde a prática dos factos, e nos quais o requerente exerceu as suas funções com classificação de muito bom, sem que tenha existido uma suspensão provisória ou alteração de funções, afigura-se desproporcional, ultrapassando as necessidades de prevenção especial e geral, pelo que existe uma probabilidade de o ato suspendendo ser anulado na decisão principal (...)”.

II. A douta sentença afirma que a circunstância de o Requerente ter obtido classificações de “muito bom” nos sete anos posteriores à prática dos factos “é representativo de não estar inviabilizada a manutenção da relação funcional” (cf. pág. 30). Mas não é verdade.

III. O Conselho de Deontologia e Disciplina, o Diretor Nacional da Corporação e o Ministro da Administração Interna – que são o topo da hierarquia – tiveram um entendimento diferente, tendo aliás tido oportunidade de ponderar sobre a circunstância invocada pelo Tribunal a quo (que era anterior e constava do processo).

IV. O despacho punitivo fundamentou a sua decisão: as faltas praticadas pelo Requerente foram muito graves, o exato oposto do que se exige a um elemento policial; e a sua prática e a circunstância de ter ocorrido uma condenação criminal puseram de tal modo em causa o “prestígio” e o “bom nome” da Corporação que inviabilizavam a manutenção da relação funcional.

V. Acresce que o Conselho de Deontologia e Disciplina deliberou, fundamentadamente, que das duas penas expulsivas previstas no RD/PSP só a aplicação da pena mais grave – a Demissão – se mostrava correspondente ao prejuízo causado pela conduta do Requerente.

VI. O que acontece no presente caso é que a douta sentença discordou do detentor do poder disciplinar acerca da adequação da pena disciplinar aplicada.

VII. Mas, de acordo com o ordenamento jurídico português, a mera discordância do juiz administrativo não constitui fundamento para ele anular a avaliação do detentor do poder disciplinar, e para substituir o entendimento deste pelo seu.

VIII. Para o detentor do poder disciplinar os motivos que o conduziram a considerar que ocorrera a inviabilização da manutenção da relação funcional prendem-se com a gravidade das infrações cometidas e com o prejuízo causado no prestígio e no bom nome da Corporação.

IX. Para julgar preenchido o pressuposto do nº 1 do artigo 120º do CPTA – “seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente” –, a douta sentença tinha de identificar uma manifesta desproporcionalidade, ou uma evidente injustiça, ou a adoção de critérios manifestamente desacertados, inaceitáveis ou grosseiros. E não o fez.

X. Em síntese, a douta sentença não teve em devida conta que a lei confiou à ponderação do detentor do poder disciplinar o juízo sobre a gravidade da falta cometida pelo Requerente, em ordem à escolha da sanção que se mostra adequada à manutenção da disciplina na Corporação. Assim,

XI. A douta sentença também incorreu em erro de direito em matéria de avaliação do exercício do poder disciplinar (discricionário) e consequente erro na interpretação do nº 1 do artigo 120º do CPTA, quanto ao preenchimento do pressuposto relativo à previsibilidade de a pretensão do ora Requerente vir a ser julgada procedente no processo principal.

XII. E incorreu no mesmo erro, quando considerou favorável ao Requerente a “ponderação” referida no nº 2 do mesmo artigo do CPTA.

Termos em que, com o suprimento, deve o Tribunal Central Administrativo Norte admitir o presente recurso jurisdicional e julgá-lo procedente, anulando em consequência a douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, datada de 11 de julho de 2024.
Não foram juntas contra-alegações.
A Senhora Procuradora Geral Adjunta notificada, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.

Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:

1. O Requerente é o agente N/...60, da Polícia de Segurança Pública, da divisão de ..., a efetuar serviço na esquadra ..., em funções de patrulhamento (cf. “ficha biográfica Individual”, documento junto com o requerimento inicial, a fls. 32 do SITAF).
2. A 11/05/2017, por despacho do Comandante Metropolitano do Porto, foi instaurado contra o Requerente o procedimento disciplinar ...28... (cf. “despacho” a fls. 2 do processo administrativo, a fls. 59 a 153 do SITAF).
3. Pelo ofício datado de 13/12/2017, o Ministério Público comunicou ao Comandante do Núcleo de deontologia e Disciplina Comando Metropolitano do Porto que ao abrigo do processo 520/17.... corria inquérito contra o Requerente (“ofício referência ...73”, fls. 50 do processo administrativo, a fls. 59 a 103 do SITAF).
4. A 14/12/2017, por despacho do Comandante Metropolitano do Porto, foi ordenada a suspensão do procedimento disciplinar identificado em 2, até à conclusão do processo crime (cf. “notificação”, fls. 49 do processo administrativo, a fls. 59 a 153 do SITAF).
5. Em 19/04/2022, no âmbito do processo n.º 520/17.... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Matosinhos, foi proferida sentença a condenar o Requerente pela prática, em autoria material a forma consumada de crime de recetação, com condenação a 1 ano e 6 meses de prisão, com execução da pena suspensa (cf. Sentença do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, processo n.º 520/17...., a fls. 63 do processo administrativo, a fls. 156 do SITAF).
6. A sentença identificada em 3, julgou como provada a seguinte matéria de facto:
Factos provados
1) Em hora não concretamente apurada, mas situada entre as 00h00m e as 09h30m do dia 18 de março de 2016, na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., desconhecidos abeiraram-se do veículo automóvel de marca Mini, modelo Cooper S, de cor preta, com a matrícula ..-CO-.., que ali se encontrava aparcado e, de forma não concretamente apurada, levaram-no para parte incerta, fazendo-o seu.
2) Em hora não concretizada, mas entre as 00h30m e as 02hl5m do dia 17 de agosto de 2016, na Rua ..., união das freguesias ..., ... e ..., concelho ..., desconhecidos abeiraram-se do veículo automóvel de marca BMW, modelo 1J8, de cor preta, com a matricula ..-RQ-.., que ali se encontrava aparcado e, de forma não concretamente apurada, levaram-no para parte incerta, fazendo-o seu.
3) No dia 17 de agosto de 2016, pelas 03h00m, na Rua ..., concelho ..., desconhecidos abeiraram-se do veículo automóvel de marca Mini, modelo Cooper S, de cor cinza, com a matrícula ..-HJ-.., que ali se encontrava aparcado e, de forma não concretamente apurada, levaram-no para parte incerta, fazendo-o seu.
4) Em data não concretamente apurada, mas situada entre as 20h45m do dia 02 de janeiro de 2097, e as 06h30m do dia 03 de janeiro de 2097, na Rua ..., ..., concelho ..., desconhecidos abeiraram-se do veículo automóvel de marca Renault, modelo Z (Megane GT Line), de cor preta, com a matrícula ..-OS-.., que ali se encontrava aparcado e, de forma não concretamente apurada, levaram-no para parte incerta, fazendo-o seu.
5) No dia 29 de abril de 2097, em hora não apurada, mas entre as 99h30m e as 22h30m, no parque de estacionamento sito na Avenida ..., união de freguesias ... e ..., concelho ..., desconhecidos abeiraram-se do veículo automóvel de marca BMW, modelo série 2 (294), de cor cinza, com a matrícula ..-SO-.., que ali se encontrava aparcado e, de forma não concretamente apurada, levaram-no para parte incerta, fazendo-o seu.
Acresce que,
6) Em data e durante período não concretamente apurado, mas posterior a 29 de abril de 2097 e anterior a 27 de abril de 2097, o arguido «AA» deteve o veículo automóvel de marca BMW, modelo série 2 (294), de cor cinza, com a matrícula ..-SO-...
7) Ora, o arguido «AA» é Agente da Polícia de Segurança Pública, pertencendo ao efetivo da Esquadra da PSP ....
8) Com efeito, o arguido «AA» encontrava-se de serviço de patrulhamento na qualidade de motorista no dia 29 de abril de 2097, tendo realizado o turno entre as 06h45m e as 93h00m daquele dia.
9) O arguido «AA» sabia que o veículo automóvel identificado em 5) não lhe pertencia e que havia sido retirado ao respetivo legítimo proprietário.
10) Sabia, por isso, o arguido «AA» que tal veículo tinha origem ilícita, mas mesmo assim, manteve-o na sua posse.
11) Ao deter o veículo mencionado em 5), agiu o arguido «AA» livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo, atentas as condições em que o mesmo se encontrava, que aquele veículo havia sido subtraído ao respetivo proprietário.
12) Mais sabia o arguido «AA» que, com a sua detenção, agia em seu próprio benefício.
13) E, bem assim, bem sabendo que, ao atuar da forma descrita, agia em prejuízo dos legítimos proprietários e, não obstante, não se coibiu de levar a cabo os seus intentos.
14) Agiu ainda com o escopo concretizado de deter o veículo referido em 5), que sabia ser furtado para posteriormente vendê-lo - integralmente ou desmantelando-o em peças - a particulares ou a oficinas por preço superior,
15) Alcançando dessa forma proveito económico.
16) Mais sabia o arguido «AA» que a sua conduta era proibida e punida por lei.
17) Na verdade, estava o arguido «AA» obrigado, atentas as funções que desempenhava, a zelar pela recuperação e consequente entrega de veículos furtados aos respetivos proprietários.
18) E que estava adstrito ao estrito cumprimento da Lei, devendo perseguir os autores dos ilícitos e tentar recuperar os objetos do crime.
19) No entanto, neste caso, não o fez.
Ficou também assente relativamente ao arguido «AA»:
20) É agente da Polícia de Segurança Pública.
21) É proprietário de quatro veículos, sendo o último veículo automóvel, de marca BMW, modelo 3K, de 2020 e por si registado em 2029.
22) Não tem antecedentes criminais.
(...)
(cf. Sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto, processo n.º 520/17...., a fls. 63 do processo administrativo, a fls. 156 do SITAF).
7. Em sede de recurso da decisão identificada em 5, o Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão a negar provimento ao recurso (cf. Acórdão do Tribunal da Relação, processo n.º 520/17...., a fls. 149 do processo administrativo, a fls. 243 a 317 do SITAF).
8. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23/11/2022, teve trânsito em julgado em 09/12/2022 (cf. Acórdão do Tribunal da Relação, processo n.º 520/17...., a fls. 149 do processo administrativo, a fls. 243 a 317 do SITAF).
9. A 10/05/2023, foi proferida acusação no processo disciplinar identificado em 2, (cf. “acusação” a fls. 154 do processo administrativo, a fls. 243 a 317 do SITAF).
10. A 24/07/2023, o instrutor do procedimento disciplinar elaborou o relatório com o seguinte teor:
“I INTRODUÇÃO
Por despacho do Exmo. Sr. ' Comandante Metropolitano, lavrado em 11 de maio de 2017, que constitui a fl. (2) destes autos, foi instaurado procedimento disciplinar, sob o NUP: ..., ao Agente ...60 - «AA». Procedimento disciplinar, que foi suspenso, em 14 de dezembro de 2017, até á conclusão do processo-crime. Por despacho lavrado em 02 de maio de 2023, que constitui a fl. (46) destes autos, foi determinada a continuação do procedimento disciplinar.
O presente processo disciplinar, teve origem na informação de serviço n.º 9999/GAC/2017, datada de 2017MAI09, pela Divisão de Investigação Criminal (DIC) do Porto, onde era referido que o arguido, poderia estar conivente com o furto/recetação de veículos automóveis, peças e acessórios, pois, no dia 27 de abril de 2017, após diligências através do sistema de localização celular do veículo de matrícula ..-SO- .., marca BMW, modelo série 2 (214) - furtado no dia 2017ABR22 - verificou-se que este veículo, entre outras peças e acessórios de viaturas (descriminadas na informação, e apreendidas), se encontravam no interior da garagem denominada pela Fração E (propriedade do arguido), com entrada pelo n.º ...78 da Rua ... - .... Situação, que no Ministério Público, iniciou trâmites sob o inquérito n.º 520/17.....
II
INSTRUÇÃO
A-OBJETO DO PROCESSO
As diligências instrutórias visaram no essencial, aguardar pela conclusão do processo-crime para apurar/avaliar a responsabilidade disciplinar, atribuível ao arguido. A instrução foi realizada com observância de todas as normas legais aplicáveis e integram-na os seguintes elementos de prova considerados como relevantes.
B - PROVA DOCUMENTAL
1. Comunicação de serviço n.° 9999/GAC, datada de 2017MAI09, da Divisão de Investigação Criminal (DIC) do Porto, com informação anexada, referente ao NUIPC 520/17...., às fls. (4 a 11) dos autos.
2. Informação/proposta n.º ...17/SIP5/2017, relativa á suspensão do procedimento disciplinar, às fls. (45 e 45-v) dos autos.
3. Certidão de acórdão/sentença enviada pelo Juízo Local Criminal de Matosinhos - Juiz ... - ... 520/17...., transitado em 09-12-2022, conforme as fls. (103 a 150) dos autos.
C-PROVA TESTEMUNHAL
Chamado a depor, o Agente ...60 - «AA» (arguido), o mesmo não desejou prestar declarações, conforme a fl. (27) dos autos.
III
ACUSAÇÃO
Nos termos do disposto nos artigos 79.º n.º 2 e 80.º do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela lei 7/90, de 20 de fevereiro, em 10 de maio de 2023, foi deduzida acusação ao arguido, que consta de fls. (154 e 154-v) dos autos.
O arguido foi notificado da acusação de acordo com o disposto no artigo 81.º do RD/PSP e fixado o prazo de vinte dias para a apresentação da sua defesa, conforme consta na fl. (155) dos autos. De igual modo, para se pronunciar, querendo, sobre a aferição do regime que se lhe revele em concreto mais favorável, pois os factos ocorreram na vigência do Regulamento Disciplinar da PSP, a Lei n.º 7/90, de 20 de fevereiro, anterior ao atual Estatuto Disciplinar da PSP, a Lei n.º 37/2019 de 30 de maio.
IV
DEFESA
O arguido, em 19 de junho de 2023, apresentou defesa escrita, dentro do prazo, a qual consta de fls. (160 a 169-v) dos autos. De igual modo pronunciou-se, que lhe seja aplicado o regime disciplinar em vigor á data dos factos, a Lei n.º 7/90, de 20 de fevereiro.
A - ALEGAÇÕES DA DEFESA
Na defesa escrita, em suma, o arguido refere o seguinte: Que, a prova disciplinar não se encontra carreada nos autos, os quais se limitam a juntar a decisão judicial. Decisão judicial, que decorre de factos mal julgados e apurados em sede de Discussão de julgamento, cuja condenação, não implica necessariamente a aplicação de uma pena em processo disciplinar.
E, que a pena disciplinar proposta ao arguido, uma das duas mais graves sanções disciplinares admissíveis, se revela desproporcionada, o que em consciência, se revelará imerecido para o arguido.
Bem como, requereu a inquirição da seguinte prova testemunhal:
1. Da «BB», Chefe aposentada da PSP, que foi inquirida às fls. (213- 213-v) dos autos.
2. Do Chefe ...44 - «CC», que foi inquirido às fls. (212-212-v) dos autos.
3. Do Agente Principal ...91 - «DD», que foi inquirido às fls. (214-214-v) dos autos.
4. Do Agente Principal ...07 - «EE», que foi inquirido às fls. (215-215-v) dos autos.
B - ANÁLISE DA DEFESA
Analisada a defesa, dir-se-á o seguinte: O arguido sustenta que a decisão judicial se sustentou em factos mal julgados e apurados. Mas não é em sede disciplinar que terá de se dirimir essa decisão, essa decisão já teve o tempo e local para próprios para ser dirimida. No processo disciplinar está em causa a infração disciplinar, que como refere o artigo 4.º do Regulamento Disciplinar (Lei n.º 7/90, de 20 de fevereiro), sucede quando existe um ato, por ação ou omissão, do qual resulta a violação de determinado dever disciplinar. Ora, o arguido, ao ser punido criminalmente, e por estar vinculado ao regulamento disciplinar da profissão da qual faz parte, entre outros deveres, gerais e especiais, está obrigado a acatar as leis, o que não sucedeu, porque foi punido criminalmente. Quanto à pena disciplinar aplicada ser considerada exagerada, é compreensível que assim pense, mas o arguido apresentou quatro testemunhas de defesa, inquiridas às fls. (212 a 215-v) dos autos, que efetivamente são claras em referir o excelente comportamento/desempenho quotidiano do arguido, quer ao nível interpessoal, quer ao nível profissional, achando todas elas, que efetivamente o arguido é uma mais-valia na atividade policial.
Contudo, deveremos ter sempre presente, que o arguido é polícia e foi condenado por decisão judicial, em autoria material na forma consumada, por ter cometido o crime recetação, previsto e punido pelo artigo 231.°, n.° 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
Por fim, embora o arguido se tenha manifestado relativamente ao conteúdo do n.° 6 do artigo 6.° do preâmbulo do ED/PSP, conforme as fls. (158 a 158-v) dos autos, importa efetuar um comparativo entre o regulamento disciplinar da PSP à altura dos factos (a Lei n.° 7/90, de 20 de fevereiro), constante na acusação, com o estatuto disciplinar da PSP (ED/PSP) atualmente em vigor (a Lei n.° 37/2019 de 30 de maio), para avaliação, em concreto, do regime mais favorável ao arguido. Assim, e comparando as normas violadas pelo arguido, não se vislumbra qualquer diferença no descritivo entre ambos os diplomas, exceção feita ao número de cada artigo, pelo que se mantém o regime em vigor á data dos factos, como pretendido pelo arguido.
V
CONCLUSÃO
A - FACTOS NÃO PROVADOS
- Nenhum.
B - FACTOS PROVADOS
1. Em hora não concretamente apurada, mas situada entre as 00h00m e as 09h30m do dia 18 de março de 2016, na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., desconhecidos abeiraram-se do veículo automóvel de marca Mini, modelo Cooper S, de cor preta, com a matrícula ..-CO-.., que ali se encontrava aparcado e, de forma não concretamente apurada, levaram-no para parte incerta, fazendo-o seu.
2. Em hora não concretizada, mas entre as 00h30m e as 02hl5m do dia 17 de Agosto de 2016, na Rua ..., união das freguesias ..., ... e ..., concelho ..., desconhecidos abeiraram-se do veículo automóvel de marca BMW, modelo 118, de cor preta, com a matrícula ..-RQ-.., que ali se encontrava aparcado e, de forma não concretamente apurada, levaram-no para parte incerta, fazendo-o seu.
3. No dia 17 de Agosto de 2016, pelas 03h00m, na Rua ..., concelho ..., desconhecidos abeiraram-se do veículo automóvel de marca Mini, modelo Cooper S, de cor cinza, com a matrícula ..-HJ-.., que ali se encontrava aparcado e, de forma não concretamente apurada, levaram-no para parte incerta, fazendo-o seu.
4. Em data não concretamente apurada, mas situada entre as 20h45m do dia 02 de Janeiro de 2017, e as 06H30m do dia 03 de Janeiro de 2017, na Rua ..., ..., concelho ..., desconhecidos abeiraram-se do veículo automóvel de marca Renault, modelo Z (Megane GT Line), de cor preta, com a matrícula ..-OS-.., que ali se encontrava aparcado e, de forma não concretamente apurada, levaram-no para parte incerta, fazendo-o seu.
5. No dia 21 de Abril de 2017, em hora não apurada, mas entre as 19H30m e as 22H30m, no parque de estacionamento sito na Avenida ..., união de freguesias ... e ..., concelho ..., desconhecidos abeiraram-se do veículo automóvel de marca BMW, modelo série 2 (214), de cor cinza, com a matrícula ..-SO- .., que ali se encontrava aparcado e, de forma não concretamente apurada, levaram-no para parte incerta, fazendo-o seu.
Acresce que,
6. Em data e durante período não concretamente apurado, mas posterior a 21 de abril de 2017 e anterior a 27 de abril de 2017, o arguido, deteve o veículo automóvel de marca BMW, modelo série 2 (214), de cor cinza, com a matrícula ..-SO- ...
7. Ora, o arguido é Agente da Polícia de Segurança Pública, pertencendo ao efetivo da Esquadra da PSP ....
8. Com efeito, o arguido encontrava-se de serviço de patrulhamento na qualidade de motorista no dia 21 de Abril de 2017, tendo realizado o turno entre as 06h45m e as 13h00m daquele dia.
9. O arguido, sabia que o veículo automóvel identificado em 5) não lhe pertencia e que havia sido retirado ao respetivo legítimo proprietário.
10. Sabia por isso, o arguido, que tal veículo tinha origem ilícita, mas mesmo assim, manteve-o na sua posse.
11. Ao deter o veículo mencionado em 5), agiu o arguido, livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo, atentas as condições em que o mesmo se encontrava, que aquele veículo havia sido subtraído ao respetivo proprietário.
12. Mais sabia o arguido, que com a sua detenção, agia em seu p ró p rio benefício.
13. E, bem assim, bem sabendo que, ao atuar da forma descrita, agia em prejuízo dos legítimos proprietários e, não obstante, não se coibiu de levar a cabo os seus intentos.
14. Agiu ainda com o escopo concretizado de deter o veículo referido em 5), que sabia ser furtado para posteriormente vendê-lo - integralmente ou desmantelando-o em peças - a particulares ou a oficinas por preço superior.
15. Alcançando dessa forma proveito económico.
16. Mais sabia o arguido, que a sua conduta era proibida e punida por lei.
17. Na verdade, estava o arguido, atentas as funções que desempenhava, obrigado a zelar pela recuperação e consequente entrega de veículos furtados aos respetivos proprietários.
18. E que estava adstrito ao estrito cumprimento da Lei, devendo perseguir os autores dos ilícitos e tentar recuperar os objetos do crime.
19. No entanto, neste caso, não o fez.
C-APRECIAÇÃO JURÍDICO-DISCIPLINAR DOS FACTOS PROVADOS
Toda a factualidade supramencionada foi dada como provada no processo n.º 520/17...., pelo Juízo Local Criminal de Matosinhos - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto (Decisão ratificada pelo Tribunal da Relação do Porto, conforme Decisão proferida em 23/11/2022) e transitada em julgado em 09/12/2022, tendo o arguido sido condenado pela prática, em autoria material na forma consumada, de um crime de recetação, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.? 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, e sujeita à obrigação de o arguido, no decurso do primeiro ano de suspensão, entregar à associação particular de solidariedade social, sem fins lucrativos, APPACDM de Matosinhos - Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental de Matosinhos, a quantia de €2.000.00 (dois mil Euros).
Com a conduta descrita, face ao conteúdo do Artigo 4.º (Conceito de Infração Disciplinar), o arguido cometeu uma infração disciplinar, infringindo o Artigo 6.º (Princípio Fundamental), [com referência ao artigo 231.º do Código Penal] e o Artigo 16.º (Dever de Aprumo), n.ºs 1 e 2, alínea f), todos do RD/PSP.
D - MEDIDA E GRADUAÇÃO DA PENA
Uma pena deve ser adequada e justa.
A infrações praticadas pelo arguido são suscetíveis de inviabilizar a manutenção da relação funcional impossibilitando a conservação da sua condição enquanto agente policial, por ofender de forma muito grave a dignidade e o prestígio da função que exerce, quebrando a confiança que deve existir entre a Corporação e os seus elementos. Porque o arguido foi condenado por decisão judicial, em autoria material na forma consumada, por ter cometido o crime recetação, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
O arguido não goza de nenhuma das circunstâncias dirimentes da responsabilidade disciplinar previstas no artigo 51.º do RD/PSP. Beneficia das circunstâncias atenuantes da responsabilidade disciplinar reguladas na alínea b) - o bom comportamento anterior - na alínea g) - o facto de ter louvor ou outras recompensas - e na alínea h) - a boa informação de serviço do superior de que depende - todas do n.º 1, do artigo 52.º, do RD/PSP. Tem como circunstância agravante da responsabilidade disciplinar a prevista nas alíneas f) - ser a infração comprometedora da honra, do brio e do decoro profissional - do n.º l do artigo 53.º do RD/PSP.
VI
PROPOSTA DA PENA
Atento o facto de o arguido não ter cumprido qualquer suspensão preventiva de funções, às circunstâncias atenuantes que beneficia, e ao facto de ter havido bom comportamento posterior á infração, conforme depoimentos abonatórios das testemunhas de defesa, tudo indica um juízo de prognose póstuma positiva.
Assim, deverá tudo ser considerado na medida da pena disciplinar, apesar da infração poder, objetivamente, ser enquadrada numa pena expulsiva”.
(cf. “relatório” a fls. 216 do processo administrativo, a fls. 243 a 317 do SITAF).
11. A 04/01/2024, o Conselho de Deontologia e Disciplina da Polícia de Segurança Pública deliberou no sentido de aplicar a pena de demissão ao Requerente no âmbito do processo disciplinar identificado em 2 (cf. “ata n.º ...24” da Reunião do Conselho de Deontologia e Disciplina, a fls. 221 do processo administrativo, e fls. 243 a 317 do SITAF).
12. A 01/02/2024, a Direção de Serviços de Assessoria Jurídica, Contencioso e Política Legislativa, no âmbito do procedimento disciplinar identificado em 2 prestou o seguinte parecer:
1. Por determinação de Vossa Excelência, foi remetida a esta Direcção de Serviços o “ofício n° ...24, ... Polícia de Segurança Pública sobre o assunto referido em epígrafe, para os devidos efeitos”.
2. Do processo disciplinar consta uma certidão da ata da reunião de 4 de janeiro de 2024, do Conselho de Deontologia e Disciplina (cf. fls. 221 e sgs.)
O processo disciplinar foi mandado instaurar em 11 de maio de 2017, tendo sido suspenso em 14 de dezembro de 2017, “até à conclusão do processo-crime’'. O processo disciplinar foi retomado em 2 de maio de 2023. Depois de junta aos autos a Nota de Assentos, foi elaborada a Acusação de 10 de maio de 2023, tendo-se observado todos os trâmites legais relativos à sua notificação ao arguido. O arguido apresentou defesa escrita (cf. fls. 161 e segs.). Foi-lhe garantido o direito de defesa, tendo sido realizadas as diligências requeridas. Foi elaborado o Relatório Final (de fls. 216 e seguintes), que se mostrou atento relativamente à prova dos factos - “Toda a factualidade (...) foi dada como provada no processo n 520/17.... (...)", confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, “conforme decisão proferida em 23/11/2022 e transitada em julgado em 9/12/2022” - e dos depoimentos das testemunhas ouvidas na fase da defesa. Assim, foram consideradas as circunstâncias atenuantes do artigo 51°, n° 1, do RD/PSP das alíneas b) (o bom comportamento anterior), g) (existência de registo anterior de outras recompensas) c h) (a boa informação de serviço do superior hierárquico de quem depende).
O processo foi remetido ao Conselho de Deontologia e Disciplina da DN/PSP. O Conselho de Deontologia e Disciplina reuniu-se em 4 de janeiro de 2024, tendo analisado todos os factos constantes do processo disciplinar.
Finda a discussão, procedeu-se à votação, tendo sido apurados os seguintes votos: 10 votos a favor da aplicação da pena de demissão e 3 votos a favor da aplicação da pena de aposentação compulsiva.
4. Consultado o processo, verifica-se que o arguido foi condenado em 1ª instância pelo Juízo Local Criminal de Matosinhos - Juiz ..., no âmbito do processo n° 520/17...., e que essa decisão foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23/11/2022, com trânsito em julgado em 09/12/2022, pela prática de um crime de recetação, previsto e punido pelo artigo 231°, n° 1, do Código Penal.
O arguido foi punido na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos, condicionada ao pagamento da quantia de 2.000 euros à APPACDM de Matosinhos.
5. Não se suscitam dúvidas sobre os factos considerados censuráveis, em face da norma do artigo 6.º, n° 5, do RD/PSP: “A decisão judicial final condenatória transitada em julgado vincula o instrutor do processo disciplinar à verificação da existência material dos factos e dos seus autores, para efeitos de valoração e enquadramento jurídico em sede disciplinar”.
Na sua defesa, o arguido defende que os factos “foram mal julgados" no tribunal criminal, mas essa arguição não colhe perante o trânsito em julgado da decisão.
Para uma tal arguição ser relevante, teria o arguido de conseguir (antes) que o tribunal judicial, em processo de revisão, alterasse os factos dados como provados.
Não se questiona a qualificação jurídico-disciplinar operada: foram indicadas as normas jurídicas violadas e os deveres funcionais infringidos, com indicação das penas disciplinares aplicáveis. Foram ponderadas, com rigor, as circunstâncias atenuantes da responsabilidade do arguido, em face dos depoimentos das testemunhas de defesa.
Também não procede a arguição do arguido sobre a não verificação da inviabilização da relação funcional. A materialidade provada é indiscutivelmente muito grave, uma vez que o arguido desenvolveu uma conduta que se afasta radicalmente das exigências da “condição policial”. O Conselho de Deontologia e Disciplina fundamentou com rigor a aplicação ao arguido da pena de demissão, tendo em conta a “gravidade” atribuída às faltas cometidas.
6. Em face do que se disse, constata-se que a proposta do Conselho de Deontologia e Disciplina e do Senhor Diretor Nacional (cf. fls. 226) merece acolhimento.
As faltas foram muito graves: o exato oposto do que se exige a um elemento policial. E a consideração de que essas faltas inviabilizam a manutenção da relação funcional também não sofre
contestação. Foi devidamente ponderada a aplicação da pena disciplinar mais gravosa.
7. Em face do exposto, caso decida concordar, poderá Vossa Excelência aplicar ao arguido, «AA»
«AA», a pena de demissão, tal como vem proposto”.
(...)
(cf. “parecer n.º 57-D/2024” da Direção de Serviços de Assessoria Jurídica, Contencioso e Política Legislativa, a fls. 229 do processo administrativo, a fls. 243 a 317 do SITAF).
13. A 02/02/2024, no âmbito do processo disciplinar ...28..., o Ministério da Administração Interna aplicou ao Requerente a pena disciplinar de demissão, com fundamentação por remissão para o relatório do instrutor do processo, para a ata do Conselho Deontológico, para o despacho do Diretor Nacional da PSP de 10/01/2024, e o parecer n.º 57-D/2024 da Direção de Serviços de Assessoria Jurídica, Contencioso e Politica Legislativa (cf. despacho do Ministro da Administração Interna, a fls., 228 do processo administrativo, a fls. 320 a 416 do SITAF).
14. A 06/03/2024, o Requerente foi notificado da decisão identificada em 13 (cf. declaração de conhecimento, a fls. 231 do processo administrativo, a fls. a fls. 243 a 317 do SITAF).
Mais se provou que:
15. O Requerente é casado e tem um filho de 9 anos (cf. declarações de partes, depoimento de «FF», «DD» e «EE»).
16. A esposa do Requerente trabalha por conta próprio como esteticista (cf. declarações de partes, «DD»).
17. O Requerente é considerado, por alguns colegas como bom profissional e com bom relacionamento interpessoal (cf. depoimento de «FF», «DD» e «EE»).
18. Desde os anos de 2018 a 2022, o Requerente, nas avaliações de desempenho, teve a menção de “muito bom” (cf. “ficha biográfica”, documento 4 junto com o requerimento inicial, a fls. 32 a 33 do SITAF).

Em sede de factualidade não provada o Tribunal fez constar:
De relevo para a decisão da causa inexistem factos por provar.

DE DIREITO
Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Sem embargo, por força do artigo 149.º do CPTA, o Tribunal, no âmbito do recurso de apelação, não se quedará por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decidirá “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
Assim,
É objecto de recurso a sentença que concluiu nos seguintes termos: “Atendendo aos fundamentos de facto e de direito expostos, decreta-se a providência requerida e determina-se a suspensão da decisão que aplicou a sanção disciplinar de demissão ao Requerente”.
Na óptica do Ministério/Recorrente a sentença incorreu na violação do artigo 120º, nº 1, do CPTA, quando apreciou o pressuposto relativo à previsibilidade de a pretensão do Requerente vir a ser julgada procedente no processo principal.
Cremos que lhe assiste razão.
Vejamos,
Os fundamentos da sentença recorrida constam de fls. 24 a 34.
Em síntese, a sentença entendeu que “(...) não se retirando da fundamentação do ato de demissão (por remissão) o motivo de não ser ponderado o juízo de prognose positivo, a aplicação da medida mais gravosa, após 7 anos desde a prática dos factos, e nos quais o requerente exerceu as suas funções com classificação de muito bom, sem que tenha existido uma suspensão provisória ou alteração de funções, afigura-se desproporcional, ultrapassando as necessidades de prevenção especial e geral, pelo que existe uma probabilidade de o ato suspendendo ser anulado na decisão principal (...)”.
O Tribunal a quo entende que o ora recorrido sempre teve boas classificações de serviço dos seus superiores hierárquicos, nos sete anos posteriores à prática dos factos (que foram punidos pelo tribunal criminal). Porém, a esse propósito, convém lembrar que também foram superiores hierárquicos do Requerente/Recorrido que entenderam que a pena de demissão se mostrava a sanção adequada a censurar disciplinarmente o mesmo.
Como alegado, a sentença não consegue indicar em que medida o despacho punitivo violou a lei e desrespeitou os poderes com que, enquanto entidade com competência disciplinar, o legislador a habilitou.
No fundo, afirma a sua discordância e procura justificá-la, mas ao fazê-lo, extravasou o âmbito da jurisdição administrativa.
É que, a discordância do tribunal administrativo sobre a aplicação da pena disciplinar escolhida pelo detentor do poder disciplinar não “chega” para que o juiz tenha o poder de anular o despacho punitivo.
A sentença diz que a circunstância de o Requerente ter obtido
classificações de “muito bom” nos sete anos posteriores à prática dos factos “é representativo de não estar inviabilizada a manutenção da relação funcional” (cf. pág. 30).
Mas não é assim.
Com efeito, o Diretor Nacional da Corporação e o Ministro da Administração Interna - que são o topo da hierarquia - tiveram um entendimento diferente, tendo aliás tido oportunidade de ponderar sobre a circunstância invocada pelo Tribunal a quo (que era anterior e constava do processo).
De facto, quer o Conselho de Deontologia e Disciplina, quer o Diretor Nacional da Corporação e o Ministro da Administração Interna afirmaram, ponderadamente, que as faltas foram muito graves: o exato oposto do que se exige a um elemento policial. E que a sua prática e a circunstância de ter ocorrido uma condenação criminal punham de tal modo em causa o “prestígio” e o “bom nome” da Corporação que inviabilizavam a manutenção da relação funcional.
Mais: o Conselho de Deontologia e Disciplina deliberou, fundamentadamente, que das duas penas expulsivas previstas no RD/PSP só a aplicação da pena mais grave - a Demissão - se mostrava correspondente ao prejuízo causado pela conduta.
Como é sabido, o exercício do poder disciplinar é uma das matérias essenciais em que se revela o poder discricionário da Administração.
“A discricionariedade não é uma liberdade (..). A Administração não é remetida para um arbítrio, ainda que prudente, não pode fundar na sua vontade as decisões que toma. A decisão administrativa tem de ser racional (..), tem de corresponder à solução que melhor sirva o interesse público que a lei determinou”, ensina Vieira de Andrade (cf. “O ordenamento jurídico administrativo”, em “Contencioso Administrativo”, Braga, 1886, p. 46 e 47). E precisa, a seguir: “É claro que a melhor solução do ponto de vista do agente não é necessariamente uma única decisão possível deduzível em abstrato da lei: sempre há de ficar para a Administração uma margem de apreciação e de decisão, sob pena de se negar o poder discricionário”.
Por seu turno, Freitas do Amaral enuncia os aspetos em que essa discricionariedade se pode revelar na atuação administrativa: o momento da prática do ato; a decisão de praticar ou não o ato administrativo; a determinação dos factos e interesses relevantes para a decisão; a determinação do conteúdo concreto da decisão (“trata-se daquilo que é designado por «discricionariedade de escolha» de uma entre várias condutas positivas possíveis”); a forma a adotar e as formalidades a observar na preparação ou na prática do ato administrativo; e a fundamentação da decisão; (em “Curso de Direito Administrativo”, Almedina, 3ª edição, vol. II, págs. 81 e 82).
Este Autor defende que “a legalidade de um ato administrativo - ou seja, a conformidade dos aspetos vinculados do ato com a lei aplicável - pode ser sempre controlada pelos tribunais administrativos, e pela Administração. O mérito de um ato administrativo - ou seja, a conformidade dos aspetos discricionários do ato com a conveniência do interesse público - só pode ser controlado pela Administração” (cf. ob. cit., pág. 90).
É, pois, nesse particular poder de encontrar a solução que no caso concreto melhor sirva o interesse público - de manter a disciplina na Corporação - que radica o cerne do exercício do poder disciplinar.
Um ato administrativo punitivo (discricionário) pode ser atacado por erro manifesto e por desvio de poder - vícios típicos dos momentos discricionários do ato administrativo - e por incompetência, vício de forma, violação de lei (por violação dos princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade, boa fé, justiça e imparcialidade) e por erro de facto sobre os pressupostos (cf. Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, Almedina, 3ª edição, volume II, págs. 90 e 91).
Como decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 11 de março de 2021 (Proc. nº 57/2019): “(..) VI- Significa isto que a margem de livre decisão é sindicável nos tribunais perante situações de erro manifesto, em que os critérios adotados pela Administração se mostram manifestamente desacertados, inaceitáveis ou grosseiros, bem como erros de facto, isto é, de inexistência material de pressupostos de facto (..)”.
Na mesma linha a decisão do TCA Sul, de 10 de maio de 2001 (Proc. nº 3898/2000), sobre a “inviabilidade de manutenção da relação funcional” salientou: “(..) 4- Mas é a Administração quem tem de estabelecer o nexo causal entre os factos e a inviabilidade da relação funcional, não cabendo a este tribunal substituir-se à Administração no exercício dos seus poderes disciplinares, não obstante tal qualificação seja contenciosamente sindicável”.
Ora, para considerar preenchido o pressuposto do nº 1 do artigo 120º do CPTA, relativo à previsibilidade de a pretensão do Requerente vir a ser julgada procedente no processo principal, a sentença teria de identificar no despacho punitivo uma manifesta desproporcionalidade, ou uma evidente injustiça, ou a adoção de critérios manifestamente desacertados, inaceitáveis ou grosseiros.
Todavia não o fez; e não o fez porque isso não aconteceu.
O Tribunal recorrido limitou-se a considerar que fora violado o princípio da proporcionalidade por não se ter atendido ao comportamento do ora requerente no tempo que mediou entre a conduta censurada e a punição.
Tal equivale a dizer que o Tribunal se limitou, afinal, a manifestar a sua discordância com a avaliação da Administração. Mas, como se apontou, estava-lhe vedado substituir o juízo do detentor do poder disciplinar pelo seu.
A sentença não teve em devida conta que a lei confiou à ponderação do detentor do poder disciplinar o juízo sobre a gravidade da falta cometida pelo Requerente na economia da disciplina da Corporação.
Desse modo, a sentença incorreu em erro de direito sobre a interpretação do nº 1 do artigo 120º do CPTA, ao considerar preenchido o pressuposto “seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”. E também incorreu nesse erro, ao executar a “ponderação” referida no nº 2 do mesmo preceito.
Em suma,

Como é sabido, os critérios de decisão tendo em vista a adoção de providências cautelares foram profundamente alterados com a reforma do CPTA operada pela entrada em vigor do DL 214­G/2015, de 02/10.
Desde logo, porque foi abandonada a distinção estrutural em que assentava a anterior redação do art.º 120.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPTA, sendo hoje irrelevante determinar a natureza da providência a decretar (se de natureza antecipatória ou conservatória).
Depois, porque desapareceu igualmente o critério de decisão baseado na manifesta evidência da pretensão formulada ou a formular no processo principal, consagrada na al. a) do n.º 1 do art.º 120.º do CPTA, na redação anterior à reforma ocorrida em 2015.
Assim, e tendo-se presentes estas notas temos que, sob a epígrafe “critérios de decisão”, estabelece-se atualmente no art.º 120.º, n.º 1, do CPTA:
“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.
Retiram-se deste preceito dois pressupostos cumulativos, de cujo preenchimento depende o decretamento da providência requerida: (i) em primeiro lugar, o periculum in mora, consubstanciado no risco de a demora na resolução definitiva do litígio conduzir a uma situação de facto consumado ou de causar ao requerente prejuízos de difícil reparação; (ii) depois, o fumus boni iuris, aqui consubstanciado pela probabilidade de o requerente vir a obter a procedência da pretensão por si formulada no processo principal.
A estes dois requisitos soma-se um terceiro, previsto no n.º 2 do mesmo artigo 120.º, e que diz respeito à necessidade de ponderar os interesses públicos e privados em presença. Assim se lê na norma referida: “Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências”.
Deste modo, são três os requisitos de que depende o decretamento da providência requerida. E sublinhe-se de novo que tais requisitos têm natureza cumulativa.

Aqui chegados, e uma vez que atualmente a pedra de toque do contencioso cautelar reside na aferição do requisito do fumus boni iuris, o Tribunal a quo julgou-o presente.

Mas, como alegado, indevidamente.

O despacho punitivo fundamentou a sua decisão: as faltas praticadas pelo Requerente foram muito graves, o exato oposto do que se exige a um elemento policial; e a sua prática e a circunstância de ter ocorrido uma condenação criminal puseram de tal modo em causa o “prestígio” e o “bom nome” da Corporação que inviabilizavam a manutenção da relação funcional.

Revemo-nos nesta leitura.

Acresce que o Conselho de Deontologia e Disciplina deliberou, fundamentadamente, que das duas penas expulsivas previstas no RD/PSP só a aplicação da pena mais grave - a Demissão - se mostrava correspondente ao prejuízo causado pela conduta do Requerente.

O que acontece no caso concreto é que a sentença discordou do detentor do poder disciplinar acerca da adequação da pena disciplinar aplicada.

Porém, de acordo com o ordenamento jurídico português, a mera discordância do juiz administrativo não constitui fundamento para ele anular a avaliação do detentor do poder disciplinar, e para substituir o entendimento deste pelo seu.

Para o detentor do poder disciplinar os motivos que o conduziram a considerar que ocorrera a inviabilização da manutenção da relação funcional prendem-se com a gravidade das infrações cometidas e com o prejuízo causado no prestígio e no bom nome da Corporação.

Para julgar preenchido o pressuposto do nº 1 do artigo 120º do CPTA - “seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente” -, a sentença tinha de identificar uma manifesta desproporcionalidade, ou uma evidente injustiça, ou a adoção de critérios manifestamente desacertados, inaceitáveis ou grosseiros. E não o fez; pelo contrário, no caso posto, analisados os autos, temos para nós que não houve desproporção entre a sanção aplicada e as faltas cometidas pelo Requerente.
O artigo 2.° da CRP tem ancorado o princípio da proporcionalidade que se encontra concretizado e densificado no artigo 18.°, n.° 2 da CRP.
Este princípio desdobra-se em três subprincípios: i) idoneidade ou adequação; ii) necessidade; e iii) racionalidade ou proporcionalidade stricto sensu.
O princípio da idoneidade ou adequação traduz-se na aptidão objetiva ou formal de um meio para realizar um fim.
O princípio da necessidade significa que é ele, entre os que poderiam ser escolhidos in abstrato, aquele que melhor satisfaz in concreto - com menos custos, nuns casos, e com mais benefícios, noutros - a realização do fim; e, assim, é essa providência, essa decisão que deve ser adotada.
A racionalidade ou proporcionalidade strictu sensu equivale a justa medida. Implica que o órgão procede a uma correta avaliação da providência em termos quantitativos (e não só qualitativos), de tal jeito que ela não fique além ou aquém do que importa para se alcançar o resultado devido - nem mais, nem menos - cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, Vol. I, 2ª ed. Revista, Universidade Católica Editora, pág. 80.
Por força do citado princípio terá de existir uma proporção adequada entre os meios usados e o fim que se pretende atingir, aplicando-se a sanção que se deva ter por consentânea com a gravidade dos factos apurados, devendo essa sanção apresentar-se como a menos gravosa para o trabalhador.
O princípio da proporcionalidade tem, pois, assento constitucional no artigo 18º da CRP e no artigo 7º do CPA, sendo um princípio basilar da atuação da Administração Pública, impondo-lhe, nomeadamente que com a prossecução do interesse público provoque a menor lesão possível aos interesses privados.
Segundo Luís Moncada (Código do Procedimento Administrativo anotado, 2ª ed., Quid Juris, pág. 95), “a proporcionalidade é utilizada como critério jurídico defensivo das limitações aos direitos fundamentais pelo legislador e pela Administração, de acordo com o regime do artº 18º da CRP. Mas pode e deve ser utilizada fora daí como critério geral de toda a atividade administrativa”.
Conforme se enuncia no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo datado de 01/04/2003 e proferido no processo 1228/02:

“I-Nos termos do artº 26º nº 1 do Estatuto Disciplinar as penas de aposentação compulsiva e de demissão aplicam-se a comportamentos que, imputados ao arguido atinjam um grau de desvalor que quebre, definitiva e irreversivelmente, a confiança que deve existir entre o serviço e o agente.

II-O juízo de inviabilização da relação funcional como elemento típico e essencial da cláusula geral punitiva do artº 1 do artº 26º do ED deve resultar, como conclusão fundada, no despacho punitivo, a denotar a devida ponderação dos juízos de desvalor face aos atinentes critérios de aplicação das penas, sobretudo quando a aplicação daquela norma resulte de comportamentos não tipificados nos nºs 2 a 4 daquele artigo 26º.

III-A valoração das infracções disciplinares como inviabilizantes da manutenção da relação funcional tem de assentar não só na gravidade objectiva dos factos cometidos, mas ainda no reflexo dos seus efeitos no desenvolvimento da função exercida e no reconhecimento, através da natureza do acto e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções.”

In casu, decorre do Despacho punitivo que, em 19/04/2022, no âmbito do processo n.º 520/17.... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Matosinhos, foi proferida sentença a condenar o Requerente pela prática, em autoria material, a forma consumada de crime de recetação, com condenação a 1 ano e 6 meses de prisão, com execução da pena suspensa.

Como sublinhado, uma pena deve ser adequada e justa.

Sucede que as infrações praticadas pelo arguido são suscetíveis de inviabilizar a manutenção da relação funcional impossibilitando a conservação da sua condição enquanto agente policial, por ofender de forma muito grave a dignidade e o prestígio da função que exerce, quebrando a confiança que deve existir entre a Corporação e os seus elementos. Porque o arguido foi condenado por decisão judicial, em autoria material na forma consumada, por ter cometido o crime de recetação, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
Ademais, o arguido não goza de nenhuma das circunstâncias dirimentes da responsabilidade disciplinar previstas no artigo 51.º do RD/PSP.
Beneficia das circunstâncias atenuantes da responsabilidade disciplinar reguladas na alínea b) - o bom comportamento anterior - na alínea g) - o facto de ter louvor ou outras recompensas - e na alínea h) - a boa informação de serviço do superior de que depende - todas do n.º 1, do artigo 52.º, do RD/PSP.
E tem como circunstância agravante da responsabilidade disciplinar a prevista nas alíneas f) - ser a infração comprometedora da honra, do brio e do decoro profissional - do n.º l do artigo 53.º do RD/PSP.
A sentença não teve em devida conta que a lei confiou à ponderação do detentor do poder disciplinar o juízo sobre a gravidade da falta cometida pelo Requerente, em ordem à escolha da sanção que se mostra adequada à manutenção da disciplina na Corporação.
Assim, incorreu em erro de direito em matéria de avaliação do exercício do poder disciplinar (discricionário) e consequente erro na interpretação do nº 1 do artigo 120º do CPTA, quanto ao preenchimento do pressuposto relativo à previsibilidade de a pretensão do ora requerente vir a ser julgada procedente no processo principal.
E incorreu no mesmo erro, quando procedeu à “ponderação” referida no nº 2 do mesmo artigo do CPTA.
Procedem as Conclusões das alegações.

DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, revoga-se a sentença e rejeita-se a providência cautelar solicitada.
Custas pelo Requerente e, nesta instância, sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.
Notifique e DN.

Porto, 13/9/2024

Fernanda Brandão
Paulo Ferreira de Magalhães
Rogério Martins