Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00005/25.9BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/23/2025
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:RICARDO DE OLIVEIRA E SOUSA
Descritores:CONTRATAÇÃO PÚBLICA; CONCURSO PÚBLICO; EXCLUSÃO DE PROPOSTAS;
IMPEDIMENTOS; ELEITOS LOCAIS; PROCURAÇÃO; CONFLITO DE INTERESSES;
IMPARCIALIDADE; ARTIGO 70.º, N.º 2, ALÍNEA F) DO CCP; ARTIGO 4.º, ALÍNEA B), SUBALÍNEA IV) DO EEL;
Sumário:
I- Nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 70.º do Código dos Contratos Públicos, é legítima a exclusão de proposta apresentada por concorrente que, no âmbito do procedimento de formação de contrato, outorga procuração com poderes de representação a titular de cargo autárquico abrangido pelo regime de impedimentos previsto na alínea b), subalínea iv), do artigo 4.º do Estatuto dos Eleitos Locais, ainda que tal mandatário não tenha exercido, de facto, qualquer ato no procedimento.

II- O regime jurídico dos impedimentos dos eleitos locais visa tutelar, não somente situações de parcialidade efetiva, mas também a mera possibilidade de conflito de interesses, bastando para o seu preenchimento a existência de poderes jurídicos de representação atribuídos ao eleito local.

III- A junção de procuração por lapso, a sua não utilização efetiva no procedimento, ou a desatualização dos dados da plataforma eletrónica de contratação pública não obstam à verificação do impedimento, desde que se mantenha a aparência de legitimidade representativa e, por conseguinte, a possibilidade jurídica de intervenção no procedimento.

IV- A cláusula de exclusão constante da alínea f) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP deve ser interpretada como uma norma de salvaguarda da legalidade administrativa, funcionando como remissão para todas as vinculações legais ou regulamentares aplicáveis, incluindo o regime dos impedimentos dos eleitos locais, que tem por finalidade a salvaguarda da imparcialidade, transparência e integridade da contratação pública.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Impugnação Urgente - Contencioso pré-contratual (arts. 100º e segs. CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte - Secção de Contencioso Administrativo, subsecção de Contratos Públicos:

* *

I – RELATÓRIO

1. A sociedade comercial [SCom01...], LDA. [doravante [SCom01...]], Autora nos presentes autos de AÇÃO ADMINISTRATIVA URGENTE DE CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL em que é Entidade Demandada o Município ..., vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL do despacho saneador-sentença promanado pelo T.A.F. de Mirandela, datado de 23 de fevereiro de 2025, que julgou improcedente a presente ação e, consequentemente, absolveu o Réu e o Contrainteressado do pedido.

2. Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)

A) A Recorrente apresentou ação administrativa urgente de contencioso pré-contratual contra o Recorrido com vista à impugnação do ato de adjudicação praticado no âmbito de concurso público lançado para celebração de contrato de empreitada de obras públicas, com a designação de “Requalificação de Troço da E.M. 506 entre ... e ...”, sob a ref.ª 51/DOP/2024.

B) O Júri do Procedimento decidiu pela exclusão da proposta da Recorrente, por entender que houve participação no procedimento de contratação pública do ex-sócio da Recorrente, Sr. «AA», que é atualmente presidente da Junta de Freguesia ..., no concelho ....

C) Invoca nesse sentido o facto de ter havido participação no procedimento concursal pelo Sr. «AA», o que constituiu base para exclusão de acordo com 70.º, n.º 2, alínea f) do CCP e do artigo 4.º, alínea b), subalínea iv) do Estatuto dos Eleitos Locais.

D) Em causa nos autos está determinar se houve de facto participação do Sr. «AA» no procedimento concursal, assente que ficou que o mesmo nunca foi sócio da Recorrente e ocupou o cargo de gerente por um curto período de tempo há mais de oito anos.

E) Entende a Recorrente que não houve qualquer participação do Sr. «AA» no procedimento concursal, uma vez que a Recorrente praticou apenas dois atos no contexto deste procedimento concursal, ambos assinados digitalmente pela gerente «BB»: a apresentação da proposta; a resposta aos esclarecimentos solicitados.

F) O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 2/2020, de 5 de março, que se juntou inclusive em anexo com o Relatório Preliminar, não contém a resposta para a questão destes autos, porque se refere a uma norma diferente - a subalínea v) e não a subalínea iv) - e a uma circunstância bem diferente - a de um presidente de junta que é gerente e único sócio de uma empresa concorrente.

G) Este Acórdão refere que nesses casos não será necessário demonstrar a real possibilidade de o autarca influenciar a celebração do contrato de empreitada com o município, bastando-lhe a coincidência de funções: a de integrar a assembleia municipal e a de ser sócio e gerente da sociedade concorrente.

H) É também nesse sentido que vai a sentença recorrida, quanto refere que apesar de não ser gerente de direito, nem detendo quotas da sociedade Autora, a verdade é que a seu favor foi outorgada procuração a atribuir-lhe poderes de representação da A. no âmbito do procedimento concursal em causa”

I) A verdade, porém, é que no presente caso nada disso sucede: o Sr. «AA» não é sócio da Recorrente, tendo deixado a sua gerência, que ocupou por curto período de tempo, há mais de oito anos, não tendo o estatuto de interessado nos termos em que o referido Acórdão discute.

J) Não tendo o Sr. «AA» esse estatuto de interessado, pode ainda assim aquela procuração junta por lapso ao procedimento e a sua menção desatualizada e incorreta no portal Vortal serem considerados atos de intervenção no procedimento?

K) Não vemos qualquer razoabilidade em tal interpretação. Até porque da procuração junta aos autos, contrariamente ao que refere a sentença recorrida, não resultam quaisquer poderes específicos para este procedimento concursal. Ou seja, daquela procuração emitida há vários anos, não resulta uma declaração de vontade que o habilitasse a representar a Recorrente neste procedimento em particular.

L) Não é justificável prejudicar os legítimos interesses da Recorrente à participação no procedimento concursal.

M) A Recorrente não é detida nem gerida por qualquer eleito local, não está sob o mencionado labéu de desconfiança, nem existe qualquer justificação para que esteja.

N) A procuração que se juntou ao procedimento, mas não se usou no procedimento, é um ato sem qualquer relevância jurídica. A desatualização e a incorreção de dados de identificação da Recorrente no portal Vortal não tem também qualquer relevância jurídica. Nenhum deles é um facto jurídico e de nenhum deles se pode extrair consequências jurídicas (…)”.


*
3. Notificado que foi para o efeito, o Recorrido apresentou contra-alegações, que rematou com o seguinte quadro conclusivo: “(…)

A. Vem dado como provado na sentença que Senhor «AA» surge na plataforma Vortal como gerente da Recorrente e ainda que existe uma procuração passada a seu favor para representar a sociedade, e que é Presidente da Junta de Freguesia ..., concelho ..., o que não foi objecto e recurso.

B. Os presidentes das juntas integram por inerência a assembleia municipal, e fazem parte da autarquia que é o município

C. A função de cujo exercício se refere o art. 4, al. b), subalínea iv) do Estatuto dos Eleitos Locais é de membro da Assembleia Municipal.

D. O membro da assembleia municipal que é gerente da sociedade ou procurador dessa sociedade está impedido de intervir ou participar nas situações previstas no art. 4, al. b), iv) do Estatuto dos Eleitos Locais.

E. O impedimento a que alude a dita norma, verifica-se mesmo em caso de conflito meramente potencial, sem que exista qualquer acto concreto para beneficiar os seus interesses ou de terceiros.

F. O fundamento deste impedimento é a vinculação do eleito à prossecução do interesse público, a sua finalidade e assegurar a imparcialidade, a isenção, a transparência no exercício das suas funções autárquicas (cfr. Ac. Uniformizador de Jurisprudência do STA de 12.12.2019, Proc. nº 88/18.8BEPNF (…)”.


*

4. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.

*

5. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior não exerceu a competência prevista no n.º1 do artigo 146.º do CPTA.

*

6. Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.

* *

II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR

7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

8. Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir, é a de saber se o despacho saneador-sentença recorrido incorreu em erro de julgamento ao concluir pela legalidade da exclusão da proposta da Recorrente, por alegada violação do regime de impedimentos do Estatuto dos Eleitos Locais, por referência ao artigo 70.º, n.º 2, alínea f), do Código dos Contratos Públicos.

9. É na resolução de tal questão que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.


* *

* *


III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

10. O quadro fáctico [positivo e negativo] apurado na decisão judicial recorrida foi o seguinte: “(…)

1. Através do Anúncio de procedimento n.º 19802/2024, publicado no DR n.º 185, de 24-09-2024, 2.ª Série, o Município ... publicitou o concurso público para celebração de contrato de empreitada de obras públicas atinente à “Requalificação de Troço da E.M. 506 entre ... e ...” – cfr. doc. 2 junto com a p.i.;

2. O critério de adjudicação foi o da “proposta economicamente mais vantajosa, determinado na modalidade do preço mais baixo – cfr. ponto 9 do programa do procedimento;

3. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à seguinte atividade: “Terraplanagens e transporte de desaterros. Construção civil e obras públicas.” – cf. certidão permanente a fls. 375 e ss., do PA;

4. Consta da certidão permanente que a gerência da A., desde 13-06-2016, é exercida por «BB» – cfr. certidão permanente a fls. 375 e ss. do PA;

5. As quotas da A., no valor global de 36.000 €, são detidas por «BB» e «CC» – cfr. certidão permanente a fls. 375 e ss. do PA;

6. A Autora apresentou proposta no âmbito do procedimento aludido em 1. – cfr. fls. 317 e ss., do PA;

7. A proposta foi submetida através da plataforma Vortal, no dia 11.10.2024, pelas 10:03, assinada pela gerente «BB» – cfr. documento n.º 3 junto com a p.i.;

8. No âmbito da proposta apresentada pela A., foi junta procuração, outorgada por «BB» a favor de «AA», com o seguinte teor:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. fls. 371 a 373 do PA;

9. O mencionado «AA» é presidente da Junta de Freguesia ..., do concelho ... e, por essa mesma razão, membro da Assembleia Municipal ... – Acordo;

10. O termo de autenticação da procuração aludida em 8., tem data de 02-07-2020 – cfr. fls. 373 do PA;

11. No dia 28-10-2024, o Júri do Procedimento reuniu para proceder à análise das candidaturas, tendo notificado a A. do seguinte:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. doc. 6 junto com a p.i.;

12. A A. respondeu à missiva aludida em 10., referindo o seguinte:

“(…)

1. A junção da Procuração mais bem identificada na referida ATA no âmbito do presente procedimento resulta de um manifesto lapso, uma vez que nenhum ato foi ou será praticado no âmbito do presente procedimento concursal ao abrigo dos poderes conferidos na aludida Procuração.

2. Ademais, esclarece-se que consiste numa procuração que foi passada a favor do Sr.

«AA» com um propósito muito específico e delimitado no tempo, no período do COVID, para fazer face a alguns constrangimentos de deslocação e de gestão da própria gerente da [SCom01...], LDA. à data, com vista à prossecução da sua atividade noutras localidades da zona de Trás-os Montes, que nada têm a ver com ....

3. A gerente da sociedade concorrente precisou do apoio do Sr. «AA» naquela altura, que foi um período difícil e de grande adaptação para todos em geral, pessoa por quem nutre amizade e de sua confiança, e o qual se mostrou disponível para a auxiliar nesse período em atos muito limitados, que nada tiveram que ver com o Município ...,

4. E muito menos na atualidade, passados mais de quatro anos, encontrando-se, como bem refere o Júri, desatualizada.

5. Reitera-se que nenhum ato foi praticado no presente procedimento a coberto de quaisquer poderes de tal Procuração, independentemente do teor da sua declaração (desatualizada),

6. Pelo que, a nosso ver, não há qualquer vício nos autos ou violação do regime jurídico das incompatibilidades.

7. Mantém-se disponível para qualquer outra questão.

8. Pelo exposto, requer-se que o Júri do Procedimento se digne relevar o manifesto lapso da Concorrente ao proceder à junção de documento (Procuração) no presente procedimento, absolutamente superveniente e inútil, e que, por conseguinte, o considere não escrito e desentranhado destes autos de concurso.

Termos em que deve o Júri do Procedimento ordenar o prosseguimento da marcha normal do procedimento, admitindo a final proposta da Concorrente e lhe proceda à adjudicação da empreitada.”

- cfr. doc. 7 junto com a p.i.;

13. Aos 11-11-2024, o Júri do procedimento lavrou relatório preliminar, de onde consta, entre o mais, o seguinte:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

(…)

(…)

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. fls. 47 a 50 do PA;

14. Aos 26-11-2024, o Júri elaborou documento denominado “relatório final”, do qual consta, entre o mais, o seguinte:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

(…)

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. fls. 78 a 81 do PA;

15. «AA» surgia, á data da apreciação das propostas, identificado como responsável da empresa no portal Vortal – Acordo;

16. No dia 06-01-2025, deu entrada em juízo a presente ação – cfr. fls. 1 sitaf.

17. No dia 15-01-2025, foi outorgado o contrato de empreitada de “REQUALIFICAÇÃO DE TROÇO DA E.M. 506 ENTRE ... E ...”, entre o Município ... e a sociedade [SCom02...], S.A. – cfr. fls. 48 a 53 do PA.

* *

IV- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO

* *


11. A Autora [SCom01...] intentou a presente ação administrativa urgente de contencioso pré-contratual, tendo formulado o seguinte petitório: “(…) Nestes termos e nos demais de direito que V. Ex.ª doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente, por provada, e assim:

a) Declarar anulável o ato de adjudicação praticado pela entidade adjudicante no âmbito do concurso público lançado para celebração de contrato de empreitada de obras públicas, “Requalificação de Troço da E.M. 506 entre ... e ...”, sob a ref.ª 51/DOP/2024, nos termos e para efeitos no disposto no artigo 163.º, n.º 1, do CPA, por violação dos princípios gerais respeitantes à formação e execução dos contratos públicos, em especial o princípio da legalidade, por ter sido excluída indevidamente a proposta da Autora, ao abrigo da alínea f) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP;

b) Devem também ser declarados anuláveis todos os atos subsequentes, incluindo o respetivo contrato se, entretanto, celebrado; e

c) Condenar o Réu à emissão de novo ato de adjudicação, com vista a adjudicar à Autora a presente empreitada, por a proposta por si apresentada ser a economicamente mais vantajosa (na modalidade de preço mais baixo) para a entidade adjudicante à luz do critério de adjudicação previsto no ponto 9.1.1. do PP e demais peças procedimentais, em respeito pelo disposto no artigo 74.º, n.º 1, alínea b) do CCP, e pelo princípio da prossecução do interesse público (…)”.

12. Fundamentou as suas pretensões, brevitatis causae, no entendimento de que a decisão de exclusão da sua proposta encerra[va] uma interpretação errónea da lei de incompatibilidades dos eleitos locais, considerando como "intervenção" ou situação de potencial conflito de interesses factos [a procuração junta por lapso e os dados desatualizados no Vortal] que, no seu entender, não possuem relevância jurídica para justificar a exclusão de um concorrente válido e com a proposta economicamente mais vantajosa, mostrando-se, por isso, inquinada de vício de violação de lei.

13. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, como sabemos, julgou improcedente a presente ação, validando a exclusão da proposta da Autora com base no artigo 70.º, n.º 2, alínea f) do Código dos Contratos Públicos, por considerar que a celebração do contrato violaria o regime de impedimentos dos eleitos locais [artigo 4.º, alínea b), subalínea iv) do Estatuto dos Eleitos Locais].

14. De facto, o Tribunal recorrido determinou ser irrelevante que «AA», Presidente da Junta de Freguesia ... e membro da Assembleia Municipal ..., não tenha praticado atos no procedimento, bastando a existência de procuração a seu favor e a sua designação como responsável da empresa na plataforma Vortal para configurar impedimento potencial, sendo suficiente a possibilidade abstrata de conflito de interesses para justificar a exclusão, sem necessidade de demonstrar intervenção concreta.

15. A Recorrente manifesta o seu dissentimento face ao entendimento proferido pelo Tribunal a quo, alicerçando o epicentro da sua argumentação jurídica na circunstância de que o Senhor «AA», que presentemente exerce as funções de Presidente da Junta de Freguesia ..., encontrar-se completamente desvinculado de quaisquer funções societárias na entidade em apreço desde período superior a oito anos, não tendo, em momento algum, interferido no procedimento administrativo sub judice, sendo que os únicos atos de relevo procedimental foram exclusivamente praticados pela gerente, Senhora «BB», mediante aposição da sua assinatura digital qualificada.

16. Considera, outrossim, destituídos de relevância jurídico-processual a junção inadvertida de instrumento procuratório extemporâneo, bem como a menção efetuada na plataforma Vortal, sustentando que tais elementos, quando devidamente contextualizados, não constituem, per se, atos de intervenção procedimental dotados de eficácia jurídica suscetível de determinar a verificação do impedimento em litígio nos presentes autos.

17. Aduz, ademais, a inaplicabilidade do Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal Administrativo n.º 2/2020, porquanto este versa sobre factualidade substancialmente distinta, na qual o titular do órgão autárquico ostentava, em simultâneo, as qualidades de sócio e gerente da sociedade concorrente ao procedimento concursal.

18. Em tais termos, propugna que a hermenêutica jurídica perfilhada pelo Tribunal a quo configura uma interpretação manifestamente desproporcionada das normas aplicáveis, em flagrante violação dos princípios estruturantes da legalidade administrativa e da igualdade de tratamento dos operadores económicos, requerendo, em consequência, a revogação da sentença recorrida e o consequente reconhecimento do seu direito à participação no procedimento concursal em causa.

19. Espraiadas as considerações expendidas na constelação argumentativa da Recorrente, e após cuidada análise do alcance e substância das mesmas, impõe-se, em sede preliminar, antecipar, por um lado, que não se antolha a existência de qualquer fio condutor lógico-jurídico que justifique a reversão da sentença recorrida.

20. De facto, o epicentro da controvérsia em causa centra-se, fundamentalmente, na determinação se a apresentação de uma procuração conferida pela gerente da Recorrente a favor de «AA», atual Presidente da Junta de Freguesia ..., e membro da Assembleia Municipal ..., configura [ou não] fundamento legítimo para a exclusão da proposta, nos termos das disposições normativas invocadas, não obstante o referido mandatário não haver, in concreto, praticado qualquer ato material no procedimento administrativo em apreço.

21. Esta quaestio juris convoca, pela sua particular complexidade, uma análise minuciosa não somente dos factos concretos do caso, mas também uma ponderação aprofundada dos princípios estruturantes do direito administrativo e da contratação pública, designadamente os princípios da imparcialidade, da transparência, da boa administração e da integridade pública.

22. O artigo 70.º do CCP estabelece o regime jurídico da análise das propostas no âmbito dos procedimentos de contratação pública.

23. Nos termos do seu n.º 1, "(…) as propostas são analisadas em todos os seus atributos, representados pelos fatores e subfatores que densificam o critério de adjudicação, e termos ou condições (…) ".

24. O n.º 2 do mesmo preceito enumera, taxativamente, as causas de exclusão das propostas, estatuindo na sua alínea f) que são excluídas as propostas cuja análise revele "(…) que o contrato a celebrar implicaria a violação de quaisquer vinculações legais ou regulamentares aplicáveis (…)".

25. Esta norma reveste-se de natureza residual, constituindo uma cláusula de salvaguarda que permite à entidade adjudicante excluir propostas que, não se subsumindo em nenhuma das outras causas de exclusão expressamente previstas, impliquem, ainda assim, a violação de vinculações normativas que impeçam a celebração do contrato ou a sua execução em conformidade com o ordenamento jurídico.

26. No caso em apreço, a alínea f) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP funciona como dispositivo de remissão para o regime dos impedimentos dos Eleitos Locais, plasmado no Estatuto dos Eleitos Locais.

27. O artigo 4.º do Estatuto dos Eleitos Locais estabelece, na sua alínea b), subalínea iv), que "(…) no exercício das suas funções, os eleitos locais estão vinculados ao cumprimento dos seguintes princípios: (...) b) Em matéria de prossecução do interesse público: (...) iv) Não intervir em processo administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha reta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum (…)".

28. Esta norma, constituindo emanação direta do princípio da imparcialidade consagrado no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa [CRP], visa prevenir situações de conflito de interesses no exercício de funções públicas, garantindo a isenção e objetividade na atuação dos titulares de cargos eletivos locais.

29. À luz do quadro normativo acima exposto, importa analisar se a junção de uma procuração outorgada pela gerente da Recorrente a favor de «AA», atual presidente da Junta de Freguesia ... configura [ou não] uma violação do disposto no artigo 4.º, alínea b), subalínea iv) do Estatuto dos Eleitos Locais.

30. A Recorrente sustenta, como argumento nuclear, que não houve qualquer intervenção efetiva do Sr. «AA» no procedimento concursal, uma vez que os atos praticados [apresentação da proposta e resposta aos esclarecimentos] foram assinados digitalmente pela gerente «BB».

31. Argumenta, ainda, que a procuração foi junta por lapso, que nunca foi utilizada no procedimento e que, por isso, seria um ato sem relevância jurídica.

32. Contudo, como acertadamente salientou a sentença recorrida, o que está em causa não é a intervenção efetiva do Presidente da Junta de Freguesia no procedimento, mas sim a mera possibilidade de intervenção, decorrente da procuração outorgada e da circunstância de constar como responsável da empresa no portal Vortal.

33. Com efeito, o regime jurídico dos impedimentos aplicável aos eleitos locais visa salvaguardar não somente as situações de parcialidade efetiva e materializada, mas igualmente as situações de parcialidade aparente ou meramente potencial, nas quais a simples possibilidade de conflito entre interesses públicos e privados afigura-se suficiente para comprometer a integridade, imparcialidade e transparência do processo decisório administrativo, valores estes que constituem pilares fundamentais do Estado de Direito Democrático.

34. Neste diapasão, e em completa harmonia com o sobredito entendimento, o impedimento consagrado no artigo 4.º, alínea b), subalínea iv) do Estatuto dos Eleitos Locais não pressupõe, para a sua verificação e consequente aplicação, que o eleito local tenha efetivamente intervindo no procedimento administrativo em causa, sendo bastante, para o preenchimento da previsão normativa, a mera possibilidade jurídica de intervenção, a qual, no caso sub examine, materializa-se inequivocamente através da procuração que lhe outorga poderes representativos perante a entidade adjudicante.

35. No caso em apreço, constata-se que a gerente da Recorrente outorgou procuração em que confere poderes de representação a quem é Presidente de Junta de Freguesia e, simultaneamente, por inerência [artigos 24.º n.º 1, e 42.º n.º 1, da Lei n.º 169/99, de 18.09], membro da Assembleia Municipal ....

36. Tal facto, por si só, gera uma situação de conflito potencial entre os interesses da Recorrente [nomeadamente de ordem financeira] e o interesse público do Município de cuja assembleia municipal é membro o procurador.

37. Esta situação é exacerbada pelo facto de o Sr. «AA» surgir identificado como responsável da empresa no portal Vortal, reforçando a aparência de intervenção no procedimento concursal.

38. A identificação de um representante numa plataforma eletrónica de contratação pública cria uma aparência jurídica de legitimidade representativa que não pode ser ignorada, mesmo que não exista um exercício efetivo dos poderes de representação.

39. A Recorrente argumenta que a junção da procuração ao procedimento foi efetuada por lapso, que esta nunca foi utilizada e que, por isso, seria um ato sem relevância jurídica.

40. Este argumento não pode proceder, desde logo, porque a procuração, uma vez outorgada e não revogada, produz todos os seus efeitos jurídicos, independentemente de ter sido utilizada ou não no procedimento.

41. De facto, a procuração, enquanto negócio jurídico unilateral, produz efeitos desde o momento da sua outorga, conferindo ao procurador a possibilidade jurídica de intervir no procedimento, o que é suficiente para configurar uma situação de impedimento, nos termos do artigo 4.º, alínea b), subalínea iv) do Estatuto dos Eleitos Locais.

42. Por outro lado, a eventual junção por lapso da procuração não afasta a sua relevância jurídica, uma vez que, estando junta ao procedimento, cria uma aparência jurídica de legitimidade representativa que, como se viu, é suficiente para configurar uma situação de impedimento, independentemente de ter existido uma intenção consciente de a utilizar.

43. Os documentos juntos a um procedimento de formação de contratos produzem os seus efeitos jurídicos independentemente da intenção do proponente, sendo irrelevante o argumento de que a sua junção resultou de um lapso ou de uma confusão.

44. Acresce que, no caso concreto, a procuração foi outorgada em data posterior [02.07.2020] à cessação das funções de gerência do Sr. «AA» na sociedade Recorrente [que ocorreu em 13.06.2016], o que fragiliza o argumento de que a sua junção resultou de um mero lapso.

45. Igualmente improcedente é o argumento da Recorrente de que o procurador não interveio efetivamente no procedimento, uma vez que, como já se demonstrou, o regime de impedimentos dos eleitos locais não exige uma intervenção efetiva, bastando-se com a mera possibilidade de intervenção.

46. O impedimento verifica-se independentemente da concretização efetiva do conflito de interesses, bastando a mera possibilidade abstrata de tal conflito, sendo essa a ratio legis da norma que visa prevenir, e não somente reprimir, situações de potencial parcialidade.

47. Por sua vez, cumpre assinalar que a jurisprudência uniformizada no Acórdão n.º 2/2020 do STA, embora não se aplique diretamente ao caso concreto [por não estarmos perante um sócio-gerente], deve inspirar a solução jurídica a adotar, numa aplicação analógica fundada na identidade de razão subjacente às duas situações.

48. Realmente, uma análise profunda da ratio decidendi do acórdão uniformizador revela que o princípio fundamental subjacente - a proteção da imparcialidade objetiva e aparente da Administração Pública - é igualmente aplicável à situação em apreço.

49. Com efeito, o aresto uniformizador fundamenta-se essencialmente na necessidade de evitar situações de conflito potencial entre os interesses privados do eleito local e o interesse público que está vinculado a prosseguir.

50. O que se protege, em última análise, é a confiança dos cidadãos na atuação imparcial da Administração, evitando situações que, mesmo potencialmente, possam suscitar dúvidas quanto a essa imparcialidade.

51. Ora, a outorga de uma procuração com amplos poderes de representação a favor de quem é Presidente de Junta de Freguesia e, por inerência, membro da Assembleia Municipal do Município onde se realiza a obra, cria precisamente o mesmo tipo de aparência de conflito potencial de interesses que a jurisprudência uniformizada visou prevenir.

52. Enquanto o acórdão uniformizador dirige-se ao caso específico de um sócio-gerente, a sua fundamentação jurídica, centrada no princípio da imparcialidade e na prevenção de situações de conflito potencial de interesses, é inteiramente aplicável, por maioria de razão, ao caso do procurador com poderes de representação, que, no plano jurídico, atua como se fosse o próprio representado.

53. Não seria coerente com os princípios subjacentes ao acórdão uniformizador permitir que se contornasse a proibição de contratar mediante o simples expediente de outorgar uma procuração a favor do eleito local, em vez de atribuir-lhe formalmente a qualidade de sócio ou gerente da sociedade.

54. Em face de todo o exposto, conclui-se que a gerente da Recorrente outorgou procuração em que confere poderes de representação a quem é presidente de junta de freguesia e, simultaneamente, por inerência, membro da Assembleia Municipal ..., o que configura uma violação do disposto no artigo 4.º, alínea b), subalínea iv) do Estatuto dos Eleitos Locais.

55. Esta violação, por sua vez, enquadra-se na causa de exclusão prevista no artigo 70.º, n.º 2, alínea f) do CCP, uma vez que o contrato a celebrar implicaria a violação de uma vinculação legal aplicável, designadamente o regime de impedimentos dos eleitos locais.

56. Assim deriva, naturalmente, que se não antolha a existência de qualquer fio condutor lógico jurídico que justifique a reversão da sentença recorrida, com que fica negada a procedência de todas as conclusões de recurso.

57. Donde se atinge que o presente recurso não merece provimento, devendo ser mantida a sentença recorrida.

Assim se decidirá em sede dispositiva.


* *


V – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e Notifique-se.


* *

Porto, 23 de maio de 2024,


Ricardo de Oliveira e Sousa

Tiago Afonso Lopes de Miranda

Clara Ambrósio