Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02122/24.3BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/04/2025
Tribunal:TAF do Porto
Relator:RICARDO DE OLIVEIRA E SOUSA
Descritores:ATO ADMINISTRATIVO;
ATO DE EXECUÇÃO;
IMPUGNABILIDADE;
Sumário:
I. O ato de execução só é impugnável quando tenha conteúdo decisório de caráter inovador, não sendo contenciosamente recorrível se se contiver dentro dos limites da definição jurídica estabelecida pelo ato executado.

II. Para que um ato administrativo produza efeitos jurídicos na esfera do particular, deve revestir-se de conteúdo decisório expresso e inequívoco, não bastando manifestações de natureza meramente opinativa ou preparatória.

III. A comunicação que se limita a expressar uma "intenção" de aplicação de penalidades contratuais, seguida de audiência prévia, não constitui ato administrativo final impugnável, mas sim ato preparatório do procedimento administrativo.

IV. Não existindo "ato exequendo" válido e eficaz, a comunicação posterior que, pela primeira vez, torna clara e explícita a decisão de aplicação de sanção não pode ser havida como simples ato executório, revestindo natureza de ato administrativo inovador e definitivo, e, como tal, impugnável.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte - Secção de Contencioso Administrativo, subsecção de Contratos Públicos:

* *

I – RELATÓRIO

1. A sociedade comercial [SCom01...], S.A. [doravante ...], com os sinais dos autos, intentou no T.A.F. do Porto a presente AÇÃO ADMINISTRATIVA contra o Município ..., também com os sinais dos autos, peticionando o provimento do presente meio processual por forma a “(…) ser declarado nulo ou anulado o ato administrativo de aplicação de sanção contratual notificado à Autora em 04.07.2024, por via do ofício n.º 35/DOPM.DOM, de 01.07.2024; ser o Réu condenado a pagar à Autora todos os custos que esta teve e continua a ter com a manutenção das garantias bancárias para lá do que lhe era exigido pelo enquadramento legal aplicável e pelo Contrato; ser o Réu condenado a restituir à Autora todos os valores retidos a título de caução, procedendo à liberação integral desta (…)”.

2. O Réu Município ... contestou pela forma inserta a fls. 61 e seguintes dos autos [SITAF], tendo suscitada matéria excetiva [inimpugnabilidade do ato] e pugnado pela improcedência da presente ação.

3. O T.A.F. do Porto, por despacho saneador-sentença editado em 14.03.2025, julgou procedente a arguida exceção de inimpugnabilidade do ato impugnado e, consequentemente, absolveu o Réu da instância.

4. É deste despacho saneador-sentença que a Autora vem interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL, para o que alegou, apresentando para o efeito as seguintes conclusões: “(…)

a) A Recorrente impugnou judicialmente a decisão de aplicação de sanção contratual com fundamento em atrasos na conclusão dos trabalhos no âmbito do contrato de empreitada de requalificação da Rua ... e ... - ...;

b) O Tribunal a quo julgou procedente a exceção dilatória de inimpugnabilidade do ato administrativo, entendendo que Ofício de 2024 corporiza um mero ato de execução, o que conduziu à absolvição do Réu da instância;

c) De facto, entendeu o Tribunal a quo que a comunicação de 27.12.2018 corresponde ao ato administrativo final impugnável. Mas entendeu também que, “no limite", a comunicação de 22.11.2018 (a Intenção de Aplicação) poderá corresponder, também ela própria, ao ato administrativo final impugnável - o que contradiz frontalmente o que o próprio Recorrido confessa no § 5.° da sua Contestação ("exerceu o seu direito de pronúncia em sede de audiência prévia, sobre aquela intenção”);

d) Tal entendimento resulta de uma errada interpretação e aplicação do Direito, que não poderá subsistir na ordem jurídica;

e) O que a ora Recorrente impugna é o ato administrativo de aplicação de penalidades contratuais, e não a comunicação por via da qual essa decisão lhe é comunicada. Nos seguintes termos:

f) A ora Recorrente) identifica logo no introito da ação apresentada com os seguintes dizeres: "Ação Administrativa de Impugnação de Ato Administrativo.” Tendo, de igual forma, pedido o seguinte: "Termos em que, e nos melhores de Direito cujo douto suprimento de V. Exa. se espera e se invoca, deverá a presente ação ser julgada totalmente procedente, por provada, e, em consequência: (i) ser declarado nulo ou anulado o ato administrativo de aplicação de sanção contratual notificado à Autora em 04.07.2024, por via do ofício n.° 35/DOPM.DOM, de 01.07.2024”;

g) O conceito de ato administrativo não se confunde com a comunicação ou notificação que tem por efeito levar o ato em causa ao conhecimento do seu destinatário. Sendo certo que tal apenas sucedeu pela comunicação de 04.07.2024, e não pelas anteriores comunicações;

h) O objeto da presente lide que é o ato de aplicação de uma multa contratual, independentemente da data em que esta lhe foi efetivamente comunicada;

i) A Recorrente desconhecia até essa comunicação de 04.07.2024 que lhe tinha sido aplicada uma sanção, e tal confusão não lhe é de todo imputável;

j) Aliás, o próprio Tribunal a quo reconhece que nem a comunicação de 22.11.2018, nem a de 27.12.2018, têm a capacidade de comunicar ao particular (a Autora, aqui Recorrente) a existência de um ato de aplicação de sanção contratual, num determinado montante pecuniário, quando expressamente menciona na decisão sob recurso que apenas com um exercício de "(...) concatenação do teor das duas missivas, aquela de Novembro de 2018, e aquela de Dezembro de 2018(..)”, é que se afigura "claro” para um destinatário médio, ou mesmo, para um empreiteiro de obras públicas que foram aplicadas penalidades contratuais;

k) O que comporta uma errada aplicação do Direito, violando desde logo o artigo 268.° da CRP e artigos 3.°, 5.°, 8.° e 11.°, do CPA, que exigem que os atos administrativos sejam notificados aos interessados na forma prevista na lei e com uma fundamentação expressa e acessível. E não sujeitos a um exercício interpretativo de vários documentos, que o tribunal no exercício das suas competências e atribuições certamente fará, mas que não se exige a um particular - sujeito a um ato lesivo dos seus interesses - que o faça;

l) O própria Recorrido reconhece na sua Contestação, nos artigos 3.° e 4.° que a comunicação de 22.11.2018 corresponde a uma “intenção” de aplicação de penalidades. Sendo certo que, por sua vez, a comunicação de 27.12.2018 não é clara, nem expressa, quanto a uma decisão definitiva de aplicação de penalidades, não juntando qualquer deliberação municipal nesse sentido;

m) Não consta do P.A. qualquer outra deliberação, decisão ou despacho que decida pela aplicação da penalidade no valor de € 52.155,24, além da menção da informação técnica junta à própria notificação de 22.11.2018, assinada pelo Presidente da Câmara: “Concordo com o proposto. Notifique-se.”;

n) A questão centra-se, antes de mais e pelo menos, na deficiente notificação do ato ainda que se entenda que tenha sido praticado em 22.11.2018 ou em 27.12.2018, deficiência esta que só foi expurgada com a notificação de 04.07.2024;

o) Sem prescindir, a existir um ato administrativo de aplicação de penalidades, esse ato foi notificado pelo Ofício de 2024, ou, deve considerar-se corporizado por esse ofício;

p) Conforme se pode facilmente concluir pelo teor da Resposta à Pronúncia, dele não se retira qualquer sentido decisório, o que vale por dizer que em causa não está qualquer ato administrativo de aplicação de penalidades;

q) Refere expressamente o Tribunal a quo que o sentido decisório resulta da “concatenação entre as informações datadas de Novembro e Dezembro de 2018” e que “os argumentos aduzidos [pela Recorrente] em sede de audiência prévia não foram considerados atendíveis”;

r) Um ato administrativo final impugnável tem de conter em si mesmo um sentido decisório expresso e inequívoco, sem necessidade de se recorrer a outras comunicações (designadamente anteriores);

s) Da missiva remetida à Recorrente (i.e., a Resposta à Pronúncia), o que se retira é exatamente o entendimento do Recorrido sobre alegados atrasos, e nada mais que isso. Não descurando a natureza de ato, o mesmo é meramente opinativo - por oposição a administrativo (nos termos e para os efeitos do artigo 148.° do CPA);

t) No mundo do Direito a emissão desse ato (opinativo) vale como se nada se tivesse passado, porque não se produziram “efeitos externos, positivos ou negativos”. Está aqui em causa um ato administrativo inexistente (ou a inexistência de um ato administrativo);

u) Por se estar no âmbito da execução de uma empreitada de obra pública, o nível de clareza numa comunicação como esta deve ser outro. Até porque, como se sabe, muitas vezes os donos de obra concedem ao empreiteiro prorrogações graciosas, apesar de estarem preenchidos todos os pressupostos para aplicação de penalidades contratuais;

v) Na altura do envio da Resposta à Pronúncia estava em vigor a versão original da Lei n.° 6/2004, de 6 de janeiro, que estabelecia expressamente no seu artigo 13.°, n.°s 2 e 3 a possibilidade de o dono da obra prorrogar graciosamente o prazo de execução dos trabalhos;

w) Resulta então claro que não se pode aceitar o entendimento do Tribunal a quo de que, uma vez que os argumentos constantes da Pronúncia apresentada pela Recorrente não foram atendíveis, é de se concluir que foram aplicadas as multas;

x) Pois mesmo que esses argumentos não fossem considerados atendíveis, mesmo assim o Recorrido podia decidir não aplicar as multas - tinha, também por isso, o Recorrido de ser claro e inequívoco na sua decisão;

y) O Recorrido não respeitou os princípios basilares da atividade administrativa constantes dos artigos 3.°, 5.°, 8.°, 11.° do CPA. E o despacho em recurso veio de alguma forma sanar essas violações e colocar a Recorrente numa posição de grande fragilidade, em clara violação dos direitos e garantias que lhe são constitucionalmente reconhecidos pelo artigo 268.° da CRP;

z) Não se pode de todo aceitar - desde logo por razões de segurança jurídica dos destinatários das decisões da Administração - que o Tribunal a quo considere: i) por um lado, que a Intenção de aplicação de penalidades é, ela própria, o ato administrativo final - o que contradiz frontalmente o que o próprio Recorrido confessa no § 5.° da sua Contestação (“exerceu o seu direito de pronúncia em sede de audiência prévia, sobre aquela intenção”); ou caso se considere aquele como o ato final, este sempre teria sido praticado com preterição do direito de audiência prévia, pois esta teve só lugar posteriormente; e, i) por outro lado, que a Resposta à Pronúncia é também o ato administrativo final;

aa) Em conclusão: a Resposta à Pronúncia constitui um ato administrativo inexistente (ou em causa está a inexistência de um ato administrativo); ainda que se considere que existe um ato administrativo, este será sempre nulo, pois o seu conteúdo ou objeto é ininteligível, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 161.°, n.° 2, alínea c), do Código do Procedimento Administrativo;

bb) Posto isto, por a Resposta à Pronúncia corporizar um ato administrativo inexistente, o Ofício de 2024 não é um ato de mera execução. Só com o Ofício de 2024 ficou a Recorrente a conhecer a decisão final de aplicação de penalidades, o que quer dizer que, a existir um ato administrativo final de aplicação de penalidades, esse ato corresponde ao Ofício de 2024 - o que o torna um ato impugnável;

cc) Ainda sem prescindir: em rigor, no procedimento tendente à aplicação de penalidades contratuais não se identifica qualquer ato administrativo final de aplicação de penalidades;

dd) Desde logo por mera cautela, não podia a Recorrente deixar de impugnar judicialmente, a existir, o ato administrativo consubstanciado no Ofício de 2024; mas, em rigor, deverá levantar-se a questão de saber se, afinal, no procedimento tendente à aplicação de penalidades, se identifica um qualquer ato administrativo final de aplicação de penalidades;

ee) É que, i) por um lado, e como se viu, não existe qualquer decisão - logo, qualquer ato administrativo - na Resposta à Pronúncia (muito menos na Intenção de Aplicação); mas, ii) por outro lado, o Ofício de 2024 não contém em si mesmo uma decisão, já que se refere a uma “sanção contratual aplicada anteriormente”;

ff) Estamos em crer que é também por isto que o Tribunal a quo se “deixa levar” pela ideia de que o Ofício de 2024 é um ato de mera execução, pois sugere a ideia de que se está a reportar a uma decisão anteriormente tomada;

gg) Parece que através do Ofício de 2024 o Recorrido quer atribuir um sentido decisório a uma comunicação anterior que não o tinha em si mesmo. Ou seja, veio o Recorrido, a posteriori e de forma artificiosa, tentar dar dignidade de ato administrativo de aplicação de penalidades à Resposta à Pronúncia - o que não é legalmente admissível;

hh) Ora, não existindo uma decisão anterior (designadamente na Resposta à Pronúncia), e estando o Ofício de 2024 a remeter para uma decisão anterior que não existe, “no final das contas” somos levados a concluir que não existe durante todo este procedimento um ato administrativo final;

ii) Além disso, não houve qualquer deliberação sobre a aplicação das penalidades contratuais. Compulsadas todas as comunicações remetidas pelo Recorrido a propósito das penalidades, consta-se que são omissas quanto a elementos constitutivos do próprio conceito de ato administrativo;

jj) É flagrante a falta de elementos essenciais do ato administrativo e a falta de clareza da comunicação datada de 01.07.2024. O mesmo se diga, mutatis mutandis, do conteúdo da notificação do ato administrativo, cujo regime se encontra regulado nos artigos 111.° a 114.°, do CPA;

kk) Não foi feita referência (nem muito menos foi dado conhecimento) a uma qualquer deliberação dos dois órgãos legalmente competentes para praticarem o ato de aplicação da sanção;

ll) Deve este Digno Tribunal declarar a inexistência de um ato administrativo de aplicação de penalidades. (…)”.


*

5. Notificado que foi para o efeito, o Recorrido apresentou contra-alegações, que rematou com o seguinte quadro conclusivo: “(…)

1° A tese interpretativa dos factos invocada no presente recurso não tem qualquer suporte na matéria de facto julgada como assente nos autos, decisão essa que já transitou em julgado;

2° A decisão final que aplicou a sanção contratual identificada nos autos, foi notificada à Recorrente através do ofício n.° 300/DOPM.OM, de 27-12-2018;

3° A Recorrente reclamou sobre aquela decisão, mas não a impugnou judicialmente no prazo legal, pelo que aquele ato consolidou-se na ordem jurídica;

4° A identificada notificação do ato de aplicação da sanção contratual cumpre todos os requisitos legais aplicáveis, integrando o teor do ato administrativo final, nos termos do previsto no art.° 308.° CCP;

5° O ato impugnado nos autos pela Recorrente é assim um mero ato de execução da decisão anterior que aplicou a sanção contratual à Recorrente, com fundamento na violação do prazo contratual da obra, não contendo qualquer conteúdo decisório inovador face ao ato anterior;

6° O ato impugnado nos autos limita-se a notificar a Recorrente para promover o pagamento voluntário do valor da sanção contratual anteriormente aplicada;

7° Sendo um ato meramente executório, o ato impugnado é inimpugnável à luz do disposto no n° 3 do art.° 53.° CPTA;

8° A douta sentença “a quo” faz uma correta interpretação e aplicação do Direito, não merecendo qualquer censura. (…)”.


*

6. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.

*

7. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito vertido no n.º1 do artigo 146.º do C.P.T.A.

*

8. Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.

* *


* *

II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR

9. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

10. Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se o despacho saneador-sentença recorrido errou no seu julgamento de direito quanto à decidida inimpugnabilidade do ato posto em crise nos autos.

11. É na resolução de tal questão que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.


* *

III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO

12. O quadro fáctico apurado na decisão recorrida foi o seguinte:

A) A 26/05/2017, entre a Autora e o Réu foi celebrado um designado “contrato de empreitada de Requalificação da Rua ... e ... - ...”, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido, e do qual consta, designadamente, o seguinte: “(...) Cláusula 5ª Prazo de execução. O prazo para a execução da empreitada é de 150 dias, contados nos termos do disposto no nº. 1 do artigo 362.° do Código dos Contratos Públicos. (...) Cláusula 7ª Penalidades. Se a adjudicatária não executar a obra no prazo estabelecido na cláusula 5ª do presente contrato, ficará sujeita ao pagamento da multa estabelecida na cláusula 11ª do referido Caderno de Encargos, salvo motivo de força maior, como tal reconhecido pela Câmara. Cláusula 8ª Garantia. Para garantia da execução do presente contrato, a adjudicatária apresentou a Garantia Bancária n.° ...60, emitida pela Banco 1..., C.R.L., em 03.05.2017, no valor de 13.239,01 €, conforme decorre do n.° 1 do art.° 23.° do Programa do Procedimento, conjugado com os art°s 88.° e 89.° do referido código. (...) ” (cf. pasta designada “Parte III” do PA);

B) A 19/06/2017, foi lavrado o auto de consignação da empreitada (cf. idem);

C) Ainda a 03/05/2017, a Autora prestou uma garantia bancária à primeira solicitação (cf. idem);

D) A 22/11/2018, o Réu enviou à Autora uma missiva, sob o ofício n° 268/DPOM.OM, e com a epígrafe “Aplicação de multa por violação do prazo contratual. Notificação de pagamento/Audiência Prévia”, da qual consta o seguinte: “Em cumprimento do despacho de 21/11/2018 exarado pelo Sr. Presidente da Câmara, à margem da informação técnica n.° 415/DPOM.OM/2018, comunico a V. Exª. que a obra em questão terminou a 22.12.2017 o que se traduz num atraso de 223 dias na conclusão da execução da obra, depois de consideradas as prorrogações aprovadas. Perante a violação do prazo contratual e considerando que o Caderno de Encargos estabelece na cláusula 11ª, ponto 1 que o dono da obra pode aplicar uma sanção contratual, por cada dia de atraso, em valor correspondente a 1% do preço contratual, foi efetuado o cálculo da multa contratual, com vista ao apuramento do montante a aplicar. Face ao exposto, comunico a V. Exa. que foi aprovada a aplicação da multa, no valor total de 52.155,24 € (233,88 €/dia x 223 dias), ficando desde já notificado a proceder ao seu pagamento junto da DFA.Contabilidade, no prazo de 10 dias úteis, ou, caso entenda de se pronunciar sobre o assunto, o faça no referido prazo. (...) ” (cf. fls. 81 da pasta “Parte VII” do PA);

E) A 12/12/2018, a Autora pronunciou-se quanto à notificação indicada no ponto anterior, o que fez nos seguintes termos: “(...) Acusamos a recepção da Vossa carta ref 268/DPOM.OMde 22/11/2018, e ao abrigo e nos termos da audiência prévia prevista no n.° 2 do artigo 308°, somos pela presente registar a nossa total discordância sobre o teor da mesma. Efectivamente não reconhecemos a legitimidade da multa aplicada e consideramos a mesma totalmente extemporânea e descabida. De facto, a prorrogação do prazo verificada ficou a dever-se a modificações objectivas introduzidas pelo Dono de Obra, nomeadamente no que se refere a: - Trabalhos a mais de natureza imprevista, ordenados e aprovados pelo Dono de Obra de modo a garantir a adaptação do projecto à realidade efectiva verificada em obra, de acordo com o previsto no art° 370 do CCP. - Foi transmitida desde o início da obra pelo Dono de Obra a instrução de não execução de todos os trabalhos contratados na zona compreendida entre os perfis P1 e P5, por inexistência de expropriação da ou das parcelas interferidas. Esta factualidade configura uma suspensão tácita dos trabalhos referidos, não sendo por tal possível que a Entidade Executante pudesse ter concluído a totalidade dos trabalhos contratados. Os trabalhos suspensos acabaram por ser suprimidos da empreitada em 05 de Junho de 2018, de acordo com o Vosso Ofício ...5..., tendo o empreiteiro, após execução dos ajustes necessários no local, concluído os trabalhos em 09 de Junho de 2018, tendo o Empreiteiro solicitado a realização da vistoria para efeitos de recepção provisória em 18 de Junho de 2018. Complementarmente, regista-se que em Maio e Julho de 2018, foram assinados contratos adicionais em que o Dono de Obra autoriza o Empreiteiro a execução de trabalhos a mais, concedendo ainda um prazo de 20 e 15 dias respectivamente, para a execução dos mesmos. Atendendo a esta realidade, como pode agora o Dono de obra pretender aplicar multas por violação dos prazos contratuais? Importa também referir, sem prejuízo do exposto anteriormente, que nem o procedimento, nem os pressupostos de cálculo referentes à aplicação de multa enviada, cumpre com o previsto no contrato, nem com a demais legislação que regula os contratos públicos. Considera o Empreiteiro que o Dono de Obra praticou ou deu causa a factos que provocaram dificuldade acrescida na execução da obra, introduzindo assim o agravamento dos encargos inerentes à sua execução, conferindo por isso ao Empreiteiro o direito à correspondente reposição do equilíbrio financeiro da Empreitada. De facto, os dois pedidos de prorrogação de prazo atempadamente remetidos pelo Empreiteiro ao Dono de Obra resultaram de um conjunto de factos alheios ao Empreiteiro, tendo-se verificado a necessidade de prorrogar o prazo de execução da empreitada, o que provocou sobrecustos consideráveis ao Empreiteiro, que terão imperativamente que ser ressarcidos de modo a repor a economicidade do contrato. (...)” (cf. documento junto com o requerimento inicial da providência cautelar apensa sob o n° 18);
F) A 27/12/2018, através do Ofício n.° 300/DPOM.OM, e sob a epígrafe “Pagamento da multa aplicada. Audiência prévia - contestação da V/empresa”, o Réu comunicou à Autora o seguinte: “(...) No uso das competências que me foram conferidas pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal, através do despacho n.° ...18, de 28/03, e relativamente ao assunto em epígrafe, objecto da v/carta acima referenciada, cumpre-me comunicar que não foi considerada suspensão tácita porque os trabalhos que não foram executados, não interferiram na execução dos restantes, tendo-se inclusive mantido o prazo total da obra para executar esses restantes trabalhos, ou seja não foi deduzido no prazo total o prazo inerente aos trabalhos que não foram executados entre o Perfil P1 e P5. Também é do V/conhecimento que parte dos trabalhos entre o perfil P1 e P5 foram posteriormente suprimidos da empreitada conforme notificado. Essa empresa foi alertada de que a obra não seria recebida enquanto não se fizessem as limpezas das redes de infra-estruturas conforme «mails» trocados com a directora técnica da obra e fossem rectificados alguns trabalhos nomeadamente ao nível da pavimentação uma vez que se detectaram zonas de empoçamentos. Os trabalhos a mais só foram assinados após negociação dos valores pelo que não se poderia fazer a recepção provisória com trabalhos a decorrer e em falta. Informamos ainda que o cálculo referente à aplicação da multa foi feito em função do atraso na execução dos trabalhos, derivado essencialmente pela falta de meios por parte dessa empresa; o número de funcionários em obra resumia-se a 3 a homens diariamente. Com os meus melhores cumprimentos, (...)” (cf. documento junto com a oposição do Réu, em sede de providência cautelar apensa, sob o n° 2);

G) A 21/05/2024, a empreitada em causa foi recebida definitivamente pelo Réu (cf. documento junto com o requerimento inicial da providência cautelar apensa sob o n° 22);

H) A 01/07/2024, sob o ofício n° 35/DOPM.DOM, e com a epígrafe “Pagamento do valor da sanção contratual aplicada. Pagamento do crédito a favor desta Edilidade no valor de 944,81 € + IVA (revisão de preços definitiva)”, o Réu comunicou à Autora o seguinte: “No uso dos poderes que me foram conferidos por subdelegação de competências, expressa pelo Sr. Presidente da Câmara, através do despacho n.° 26/GAP/2023, de 04 de Outubro, notifico essa empresa para, no prazo máximo de 30 dias, a contar da data da recepção do presente ofício promover ao pagamento voluntário do valor de 52.155,24 €, relativo à sanção contratual aplicada anteriormente, assim como à liquidação do crédito a favor desta Edilidade, no valor de 944,81 € + IVA, resultante do cálculo da revisão de preços de carácter definitivo da obra em apreço, sob pena de aplicação do estabelecido na alínea a) do n.° 1 do art.° 296.° do Código dos Contratos Públicos, na sua actual redacção.” (cf. documento junto com o requerimento inicial sob o n° 1);

I) A petição inicial foi apresentada neste Tribunal a 03/10/2024 (cf. fls. 1 e seguintes dos presentes autos).


*




Nos termos do artigo 662.º do CPC, aplicável ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA, adita-se a seguinte factualidade:

J) O ato impugnado na presente ação é a “(…) Decisão de aplicação de sanção contratual com fundamento em atrasos na conclusão dos trabalhos da empreitada de requalificação da Rua ... e ... – ..., no valor de EUR 52.155,24 (cinquenta e dois mil, cento e cinquenta e cinco euros e vinte e quatro cêntimos), notificada à ... em 04.07.2024 por via do Ofício n.º 35/DOPM.DOM, de 01.07.2024 (cfr. Documento n.º 1, junto com o requerimento inicial apresentado no processo cautelar n.º 441/24.8BEPNF) (…)” [cfr. rosto da petição inicial];

K) Reproduz-se na íntegra o documento n.º 1 junto com o requerimento inicial apresentado no processo cautelar n.º 441/24.8BEPNF: “(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]


* *

IV- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO

13. Pela decisão judicial apelada, como sabemos, foi julgada procedente a exceção dilatória de inimpugnabilidade do ato administrativo arguida pelo Município ... e, em consequência, foi o mesmo absolvido da instância, sem que o tribunal tivesse conhecido do mérito da causa.

14. Perlustrando a fundamentação de direito vertida na sentença recorrida, assoma evidente que o juízo de procedência da matéria excetiva em questão mostra-se estribado, no mais essencial, no entendimento nuclear de que "(…) da concatenação do teor das duas missivas, aquela de Novembro de 2018, e aquela de Dezembro de 2018, resulta claro para um destinatário médio (e de forma mais acentuada quando o destinatário é uma pessoa colectiva que actua em empreitadas de obras publicas...) que este último ofício consubstancia uma pronúncia final sobre a aplicação da sanção, por rejeição dos argumentos expendidos em sede de pronúncia prévia (…) " e que "(…) o acto praticado a 01/07/2024 limita-se a solicitar o pagamento da sanção contratual 'aplicada anteriormente', nada inovando relativamente ao analisado acto praticado em 2018", concluindo ser "manifesta a inimpugnabilidade do acto impugnado, situação que configura uma excepção dilatória, e que acarreta a absolvição do Réu da instância (…)".

15. Inconformada com o assim decidido, a Recorrente interpõe o presente recurso de apelação, deduzindo conclusões nas quais articula, substantivamente, vícios fundamentais na qualificação jurídica operada pelo Tribunal a quo.

16. Prima facie, clama que o Tribunal a quo laborou em erro de direito ao considerar que o ato impugnado seria insuscetível de impugnação por configurar ato de execução, refutando tal entendimento e pugnando que o ato de 2024 encerra inovação decisória, constituindo a primeira comunicação em que se torna inequívoca a decisão de aplicar a coima.

17. A anterior "intenção de aplicação" e a subsequente "resposta à pronúncia" revelam-se, no seu entender, insuficientes para corporizar um verdadeiro ato administrativo definitivo, porquanto desprovidas de conteúdo decisório claro e inequívoco, traduzindo-se somente em manifestações de natureza opinativa ou preparatória, juridicamente inócuas.

18. Ademais, argumenta que, ainda que se considerasse praticado o ato de aplicação da penalidade em 2018, tal ato jamais lhe foi regularmente notificado, por vício de forma e ausência de deliberação do órgão competente, sendo, consequentemente, ineficaz, defendendo que o prazo de impugnação somente teve início com a notificação do ofício de 2024.

19. Sublinha que a incerteza gerada pelo próprio Município quanto à existência e ao conteúdo do alegado ato violou os princípios da clareza, da segurança jurídica e da tutela jurisdicional efetiva.

20. Conclui requerendo a revogação do despacho recorrido, com o consequente prosseguimento da ação de impugnação, por estar em causa um verdadeiro ato administrativo definitivo e executório [o ofício de 2024], ou, subsidiariamente, que se declare a inexistência jurídica de qualquer ato administrativo de aplicação de penalidades contratuais, por inobservância dos requisitos legais de validade e eficácia.

21. Espraiadas as considerações pertinentes da constelação argumentativa da Recorrente, adiante-se, desde já, que o presente recurso irá vingar, por falta de certeza jurídica das premissas em que se estribou o sentido decisório do despacho saneador-recorrido.

22. Explicitemos pormenorizadamente esta nossa convicção, sublinhando, desde já, que não oferece controvérsia que, por intermédio da presente ação, a Autora, aqui Recorrente, ataca a validade do ato administrativo de aplicação de sanção contratual notificado à Autora em 04.07.2024, por via do ofício n.º 35/DOPM.DOM, de 01.07.2024, melhor patenteado no alínea K) do probatório coligido nos autos.

23. Ora, desde há muito que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo vem afirmando que, em regra, os atos de execução não são contenciosamente recorríveis se se contiverem dentro dos limites da definição jurídica definida pelo ato executado, isto é, se não alterarem uma situação jurídica já definida pelo ato que executam, só sendo passíveis de recurso contencioso autónomo quando sejam inovatórios, por alterarem, excederem ou modificarem a situação definida naquele ato.

24. De facto, os atos de execução que se limitam a pôr em prática o já decidido no ato exequendo são, em regra, irrecorríveis, por serem meramente confirmativos, não assumindo autonomamente a natureza de atos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos, lesão essa que, a existir, deriva do ato que anteriormente definiu a situação do interessado.

25. O fundamento da irrecorribilidade dos atos de execução, idêntico ao que justifica a irrecorribilidade dos atos meramente confirmativos, radica na consolidação da definição jurídica estabelecida em ato anterior, exigida pelo interesse público da estabilidade dos atos administrativos, presumindo-se "jure et de jure" a concordância dos seus destinatários através da respetiva inércia contenciosa durante certo período de tempo [Vd. acórdão do STA de 16-3-95, proferido no recurso n.º 34830, publicado em Apêndice ao Diário da República de 18-7-97, página 2736].

26. Esta posição jurisprudencial encontra respaldo expresso no n.º 3 do art. 53º do CPTA, que estabelece que « Os atos jurídicos de execução de atos administrativos só são impugnáveis por vícios próprios, na medida em que tenham um conteúdo decisório de caráter inovador. ».

27. Desta normação infere-se que os atos de execução não são, por natureza, sempre recorríveis nem sempre irrecorríveis, dependendo a sua recorribilidade da ilegalidade que lhes é imputada.

28. De facto, se é imputada ao ato que dá execução a um ato anterior uma ilegalidade própria do ato de execução, este é contenciosamente impugnável.

29. Mas, se a ilegalidade do ato de execução derivar de alguma ilegalidade que já afetava o ato executado, é este último que deve ser impugnado, não o podendo ser autonomamente o de execução [Neste sentido, podem ver-se MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J. PACHECO DE AMORIM, em Código do Procedimento Administrativo Comentado, volume II, 1.ª edição, página 245].

30. Assim, só são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos de execução (i) que excedam os limites do ato exequendo ou (ii) arguidos de ilegalidade, desde que esta não seja consequência da ilegalidade do ato exequendo.

31. Cientes dos considerandos caracterizadores do ato de execução, e volvendo ao caso concreto, cabe notar que a questão essencial a decidir no presente recurso de apelação prende-se com a natureza jurídica do ato impugnado – o ofício n.º 35/DOPM.DOM, de 01 de julho de 2024, em concreto, apurar se este constitui [ou não] um ato de execução de uma decisão anterior [inimpugnável nos termos do artigo 53.º, n.º 3, do CPTA] ou, pelo contrário, o primeiro ato administrativo final com conteúdo decisório que afeta a esfera jurídica da Recorrente e, como tal, passível de impugnação judicial.

32. O despacho saneador-sentença recorrido estribou o seu sentido decisório na tese de que a “pronúncia” decisória resultava da “concatenação” do teor das comunicações de 22 de novembro de 2018 [ofício n.º 268/DPOM.OM] e de 27 de dezembro de 2018 [ofício n.º 300/DPOM.OM].

33. De facto, o Tribunal Recorrido considerou que o primeiro ofício comunicou a decisão de aplicar a sanção, e o segundo, a “resposta à pronúncia”, informou que os argumentos da Recorrente não foram atendidos, confirmando a aplicação da multa, interpretando este encadeamento como um “verdadeiro ato administrativo, imediatamente impugnável”, qualificando, consequentemente, o ofício de julho de 2024 como meramente executório.

34. E é, precisamente, aqui que entroncam as objeções da Recorrente.

35. Realmente, a Recorrente sustenta, ab initio, que as comunicações de 2018 carecem de um sentido decisório expresso e inequívoco, qualificando-as como meramente opinativas ou, na pior das hipóteses, como atos inexistentes ou nulos.

36. Outrossim, clama que a ausência de uma deliberação formal do órgão colegial competente para a aplicação da sanção, o que afetaria a validade e a eficácia do ato.

37. Tudo isto determinando que o ofício de 2024 não possa ser havido como simples ato executório, antes revestindo natureza de ato administrativo inovador e definitivo.

38. Esta teia argumentativa não é despicienda ou bizantina, bem pelo contrário, encontra-se dotada de sólida certeza jurídica.

39. De facto, percorrendo a factualidade assente, verificamos que o ofício de 22 de novembro de 2018 [ponto D dos factos provados] comunicou à Autora a “aprovação da aplicação da multa, no valor total de 52.155,24 €”, mas simultaneamente a notificou para “proceder ao seu pagamento (…) ou, caso entenda de se pronunciar sobre o assunto, o faça no referido prazo”.

40. Embora inclua a expressão “foi aprovada a aplicação da multa”, a formulação é ambígua, pois não se apresenta como uma decisão final e irrevogável, mas antes como uma proposta de aplicação de sanção, abrindo explicitamente a porta à audiência prévia do interessado, o que denota um carácter não definitivo.

41. Na sequência, a Recorrente exerceu o seu direito de audiência prévia [ponto E dos factos provados], contestando a legitimidade e extemporaneidade da multa e apresentando os seus argumentos.

42. O ofício de 27 de dezembro de 2018 [ponto F dos factos provados], a chamada “Resposta à Pronúncia”, comunicado após a audiência prévia, cumpriu o dever de o contraente público se pronunciar sobre os argumentos aduzidos.

43. Contudo, a sua formulação carece manifestamente de um sentido decisório expresso e inequívoco.

44. O documento explica porque é que a suspensão tácita não foi considerada, as razões para a obra não ter sido recebida, e como foi feito o cálculo da multa, “derivado essencialmente pela falta de meios por parte dessa empresa”.

45. Não existe, em momento algum, uma declaração expressa de que, ponderados os argumentos da Recorrente, se decide manter a aplicação da multa ou confirmar a decisão anteriormente proposta.

46. Como bem salienta a Recorrente, a resposta à pronúncia “(…) mais não faz do que responder à argumentação (...) sem concluir por nenhuma decisão (…)”.

47. A sua natureza é meramente opinativa, não configurando uma “estatuição” ou “comando” que produza efeitos jurídicos externos na esfera do particular.

48. Mesmo a “concatenação” a que o despacho saneador recorrido recorreu não é suficiente para suprir a flagrante falta de clareza e de conteúdo decisório expresso que se exige de um ato administrativo que onera o particular.

49. Exigir de um particular um “exercício interpretativo de vários documentos” para apurar se uma sanção lhe foi efetivamente aplicada viola o princípio da segurança jurídica e o direito a uma fundamentação expressa e acessível.

50. É, pois, de concluir que as comunicações de 2018, quer analisadas isoladamente, quer no seu conjunto, carecem dos requisitos essenciais de ato administrativo final, válido, eficaz e inequivocamente decisório, não se revelando aptas a produzir efeitos jurídicos na esfera da Recorrente nem, por conseguinte, a dar início à contagem do prazo de impugnação judicial.

51. Tal convicção é particularmente potenciada pela evidência da inexistência de uma deliberação formal do órgão colegial competente para a aplicação da multa.

52. Se não houve uma deliberação neste sentido, devidamente reduzida a ata e com os requisitos legais de forma e notificação, não se pode falar na existência de um ato administrativo válido e eficaz.

53. O ofício de 22.11.2018 refere um “(…) despacho de 21/11/2018 exarado pelo Sr. Presidente da Câmara (…)”, e o ofício de 27.12.2018 refere competências delegadas, mas as fontes não confirmam a existência e notificação de uma deliberação formal do órgão colegial competente para a aplicação da multa, em conformidade com as regras para órgãos colegiais.

54. Donde resulta inequívoca a inexistência de ato administrativo final, válido, eficaz e inequivocamente decisório, capaz de produzir efeitos na esfera jurídica da Recorrente e, consequentemente, de dar início ao prazo de impugnação judicial.

55. A falta de um ato administrativo formal e validamente praticado e com o conteúdo decisório inequívoco leva à conclusão de que o ofício de julho de 2024 não é um ato de execução, mas sim a primeira comunicação clara e explícita de uma decisão de aplicação de sanção que se tornava, nesse momento, lesiva e impugnável.

56. Com efeito, não existindo "ato exequendo" válido e eficaz, o ofício de 2024 não pode ser havido como simples ato executório, revestindo, ao invés, natureza de ato administrativo inovador e definitivo.

57. Ao qualificar o ofício de 2024 como mero ato de execução, o Tribunal a quo não procedeu à necessária análise substantiva que distingue entre atos meramente executivos e atos com conteúdo decisório inovador, procedendo a uma qualificação jurídica incorreta dos atos em apreço, dessa sorte, incorrendo em erro de julgamento ao considerar que o ato impugnado era inimpugnável e, consequentemente, ao absolver o Réu da instância.

58. A exceção dilatória de inimpugnabilidade do ato, acolhida pelo despacho saneador-sentença a quo, carece, portanto, de fundamento legal e fáctico sólido, não podendo, por isso, subsistir em juízo, circunstância que assume natureza prejudicial relativamente ao conhecimento dos demais fundamentos de recurso.

59. Em tais termos, impõe-se conceder provimento ao presente recurso, revogar a sentença recorrida, e determinar a baixa dos presentes autos para prosseguimento dos respetivos trâmites, se nada mais a tal obstar.

60. Ao que se proverá em sede de dispositivo.


* *


V – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da CRP, em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, e, em consequência, revogar a decisão judicial recorrida e determinar a baixa dos presentes autos para prosseguimento dos respetivos trâmites, se nada mais a tal obstar.

Custas do recurso pelo Recorrido.

Registe e Notifique-se.


* *

Porto, 04 de julho de 2025,


Ricardo de Oliveira e Sousa

Tiago Afonso Lopes de Miranda
Clara Ambrósio