Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00258/23.7BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/06/2024
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:PAULO FERREIRA DE MAGALHÃES
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; INFRACÇÃO DISCIPLINAR;
PENA DISCIPLINAR DE REPREENSÃO ESCRITA; APLICABILIDADE DA LEI N.º 38-A/2023, DE 02 DE AGOSTO;
PRAZO; INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE; EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA;
Sumário:
1 - Conforme se extrai do corpo da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, e em torno da amnistia de infracções disciplinares, o legislador dispôs que a mesma deve ser aplicada se as infracções disciplinares, em suma, tiverem sido praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, se não constituírem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei, e caso a sanção aplicável não seja superior a suspensão [Cfr. artigos 2.º, n.º 2, alínea b), 6.º e 7.º do referido diploma legal].

2 - Errou o Tribunal a quo quando julgou pela aplicabilidade do artigo 11.º da Lei
n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, ou seja, de que assiste ao arguido de procedimento disciplinar o direito [e de que o deve fazer em prazo certo] de recusar a aplicação da amnistia.

3 - Dada a superveniência de um diploma legal que por si é determinante da amnistia da pena disciplinar aplicada, extinguiu-se a responsabilidade disciplinar da arguida [a Autora ora Recorrente], o que reveste aptidão para que, em face do patenteado nos autos e na Lei, ser declarada a amnistia da infracção, sem dependência de um prazo de impulso por parte do beneficiário, tornando-se assim inútil, nessa parte, a continuação da lide, não sendo já, porém, fundamento que seja determinante da extinção da instância.

4 - Quando o Tribunal se confronte com uma pena disciplinar que deva ser amnistiada, deve então ponderar, em obediência ao disposto no artigo 130.º do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, atinente ao princípio da limitação dos actos [segundo o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis], por que termos e pressupostos é que se justifica a continuação da sua instrução, no sentido de ser conhecido do mérito do pedido, pois que, convém lembrar, justaposta à aplicação da pena disciplinar está todo um repositório jurídico e factual em que se apoiou o autor do acto sancionatório para efeitos da sua decisão, quanto ao qual o visado não concorda, sendo seu [do Autor] o impulso de vir a Tribunal impugnar a sua validade, e sua pretensão, pelo menos, a sua anulação, fundada em ocorrência de nulidade ou em erro nos pressupostos de facto e/ou de direito.

5 - Enquanto arguida no processo disciplinar, e também enquanto demandante, assiste à Recorrente o direito a que a pretensão por si deduzida na impugnação judicial da decisão punitiva seja apreciada no seu mérito potencial, quando subjacente à sua motivação para efeitos de entender não lhe dever/pode ser aplicada a amnistia, ou declarada a extinção da instância, estiver o pressuposto de que não praticou qualquer ilícito de natureza disciplinar.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:


I - RELATÓRIO


«AA» [devidamente identificada nos autos] Autora na acção que intentou contra o Instituto do Emprego e Formação Profissional, IP [também devidamente identificado nos autos], inconformada com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, pela qual foi julgada amnistiada a infracção disciplinar em que foi condenada e em consequência, extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, veio interpor recurso de Apelação.

*

No âmbito das Alegações por si apresentadas, elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

“[…]
Cap. III – Conclusões
1. O presente recurso visa pugnar contra o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental de recusa da amnistia, que deriva do basilar princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, que é um corolário do Estado de direito democrático (artigos 2.°, 18.° e 20.°, todos da CRP), e é expressamente reconhecido pelo Tribunal a quo – cfr. decisão recorrida a fls...
2. Para que melhor se compreenda a importância e imprescindibilidade da intervenção deste TCAN para a reposição da justiça material, impera dar conta do pano de fundo em que quadra o recurso que ora se interpõe.
3. Desde logo, não pode ignorar-se que o processo disciplinar que deu origem à decisão que se impugna nos presentes autos surgiu apenas alguns dias depois do ora Recorrido IEFP ter sido vencido numa outra ação judicial intentada pela A. e relativa a um concurso para o cargo de Coordenador do Núcleo de Gestão Administrativa e Financeira, do Centro de Emprego e Formação Profissional de Viseu, a qual corre termos sob o proc. n.° 834/15.1BEVIS – cfr. autos a fls...
4. Por outro lado, muito estranhamente, a participante no sobredito processo disciplinar pelejou, desde logo, pelo despedimento da ora Recorrente, porque alegadamente não cumpriu uma ordem (quando, todos sabemos, a moldura que este tipo de comportamentos convoca em abstrato – cfr. autos a fls...
5. Temos ainda uma distribuição de serviço que é feita contra a regra ate al existente ́ no serviço, quando a suposta alteração da regra da distribuição de serviço não foi dada a conhecer à trabalhadora, sendo, portanto e desde logo, ineficaz.
6. Tudo quanto vimos de referir, comprova, pois, a necessidade imperiosa a bem da Justiça, no caso concreto, de que o direito seja devidamente acertado pelo Tribunal, para que a relação jurídico-administrativa entre a Recorrente e a Recorrida possa, daqui em diante, prosseguir em perfeita legalidade e sem quaisquer resquícios de injustiça.
7. Destarte, a sentença deve ser revogada e o processo deve prosseguir os seus ulteriores trâmites, com todas as suas legais consequências, no sentido de se poder comprovar a sua inocência e a profunda ilegalidade da actuação administrativa – cfr. autos a fls...
8. Sucede, porém, que, para intenso espanto da Recorrente, o Tribunal a quo – inopinadamente e desconsiderando totalmente a posição daquela –, decidiu julgar amnistiada a infração disciplinar e extinta a instância por inutilidade superveniente da lide e ao fazê-lo, salvo o merecido respeito, violou os mais estruturantes princípios de um Estado de Direito Democrático dos cidadãos, mormente os princípios da boa-fé processual, do contraditório, da tutela jurisdicional efetiva (cfr. mormente artigos 2.°,
18.° e 20.° da CRP e artigo 8.° do CPTA) e mobilizou, por meio de uma analogia ensaiada ao arrepio da lei, uma disposição normativa (concretamente, um prazo!) que jamais poderá encontrar aplicação no caso em apreço.
*
9. Importa, desde logo, realçar que em nada se discorda (bem pelo contrário!) do entendimento – também sustentado na decisão recorrida –, segundo o qual também aos arguidos de infrações disciplinares deve ser dada a possibilidade de recusar o “benefício” da amnistia.
10. Sendo certo que, no mesmo sentido, se pronuncia igualmente a doutrina e da jurisprudência consolidadas (inclusive do Tribunal a quo), razão pela qual dúvidas não há de que assiste à Recorrente o direito de recusar a aplicação da amnistia – direito que implica, naturalmente, o prosseguimento do processo onde se discute a legalidade da sanção disciplinar com a hipótese de obtenção dos efeitos inerentes à anulação da decisão condenatória, tudo no sentido de poder comprovar a inocência do arguido no processo disciplinar em apreço (constituindo este valor fundamental do nosso Estado de direito, do due process of law e da igualdade de armas).
11. E foi esta, precisamente, a vontade que a Recorrente manifestou quando foi expressamente notificada, por despacho, para se pronunciar sobre a aplicação da Lei
n.° 38-A/2023, de 2 de agosto – cfr. pa. a fls...
12. Sucede, porém, que, apesar de o Tribunal a quo reconhecer e conceder à Recorrente o direito de recusar a amnistia, esvazia totalmente esse direito de qualquer conteúdo útil ao aplicar, analogicamente, um (o) prazo de 10 dias, referido no sobredito artigo 11.° da Lei n.° 38.°-A/2023, de 2 de agosto e ao iniciar a sua contagem com referência à entrada em vigor deste diploma.
13. Acresce que, ao adotar tal posição, o Tribunal a quo incorre, ressalvado o merecido respeito, na bizarria de ter convidado as partes a pronunciarem-se sobre a aplicação da Lei n.° 38.°-A/2023 num momento em que, de acordo com a sua posição (da qual nos afastamos, é preciso reiterá-lo), aquele prazo teria já expirado (rectius, caducado).
14. Destarte, a decisão recorrida viola, inequívoca e grosseiramente, os princípios fundamentais da cooperação e da boa-fé processual (cfr. art. 8.° do CPTA e arts. 7.° e 8.° do CPC aplicáveis ex vi artigo 1.° do CPTA), pois que, por um lado, a pronúncia da Recorrente foi, grosseiramente, arredada sem qualquer fundamento legal para o efeito e, por outro lado, a diligência promovida pelo digno Tribunal (id est, o despacho que convida as partes a pronunciarem-se sobre a aplicação da Lei em apreço) revela-se, face à decisão que foi proferida e ao entendimento (analógico) sustentado pelo Tribunal a quo, claramente inútil – o que se alega para todos os efeitos e com todas as legais consequências.
15. Razão pela qual, salvo o merecido respeito, a decisão recorrida padece de erro de julgamento, mormente por violação dos princípios da cooperação e da boa-fé processual previstos no artigo 8.°, n.° 1, do CPTA e nos artigos 7.° e 8.° do CPC aplicáveis ex vi artigo 1.° do CPTA, consubstanciando igualmente nulidade processual nos termos do artigo 195.° do CPC.
*
16. A acrescer a tudo quanto vimos de referir, são várias as razões que determinam que a aplicação analógica do prazo de 10 dias (e, decisivamente, o início da sua contagem) não tenha cabimento na situação em apreço.
17. Desde logo, encontramo-nos ante uma analogia expressamente proibida pelo artigo 11.° do Código Civil, pois que, como se explicou no corpo do recurso, o diploma que prevê e regula a amnistia (Lei n.° 38-A/2023, de 2 de agosto) e o artigo 11.° de que ora tratamos são, claramente, normas excecionais e, como tal, não pode quanto a estas operar a analogia pretendida pelo Tribunal a quo.
18. A outro passo, também por força da principiologia que envolve os artigos 29.°, n.° 4 e 32.°, n.°s 1 e 10, todos da CRP, o prazo constante do, já referido, artigo 11.° da Lei n.° 38.°-A/2023, não deve ser aplicado, nesses precisos termos, à Recorrente, que é arguida em processo disciplinar.
19. Antes, e pelo contrário, o sobredito prazo deve – e só pode! – ser aplicado por forma a que a Recorrente possa, efetivamente, beneficiar e usar do direito de recusa da amnistia que inequivocamente lhe assiste, sob pena de inversão total da interpretação mais favorável ao arguido, que se impõe no direito sancionatório – e de ser cometida uma verdadeira violência (típica de eras medievais) contra os direitos dos cidadãos, apenas por decisão do legislador.
20. Resumindo: uma interpretação contrária do artigo 11.° da Lei n.° 38.°-A/2023 (mormente no segmento decisório que aplica analogicamente o prazo de 10 dias contados nos termos do artigo 11.° no âmbito do exercício do direito de recusa), como é a que se encontra vertida na decisão recorrida, revela-se inconstitucional por, entre o mais, obstar ao direito de a Recorrente recusar a amnistia, o que tem como corolário a afronta aos direitos fundamentais daquela, mormente de defesa e de prova da sua inocência, e ao basilar princípio da tutela jurisdicional efetiva (cfr. artigos 2.°, 18.°, 20.°, 32.°, n.° 1 e n.° 10 e 268.°, todos da CRP) – o que se alega para todos os efeitos e com todas as legais consequências.
21. Razão pela qual, salvo o merecido respeito, a decisão recorrida padece de erro de julgamento, mormente por violação dos direitos fundamentais de defesa e de prova da sua inocência do arguido, do princípio da aplicação da lei mais favorável e do princípio da tutela jurisdicional efetiva – cfr. artigos 2.°, 18.°, 20.°, 29.°, n.° 4, 32.°,
n.° 1 e n.° 10 e 268.°, todos da CRP.
*
22. Ademais, o Tribunal a quo ao fazer findar o processo por força da aplicação da amnistia à infração disciplinar em apreço, e bem assim ao impedir a Recorrente de exercício o direito de recusa da amnistia (apesar de lhe reconhecer esse direito) por mor da aplicação analógica do prazo de 10 dias constante do artigo 11.° da Lei n.° 38.°A/2023, viola os princípios estruturantes do contraditório e da proibição das decisões surpresa, mormente previstos no artigo 3.°, n.° 3, do CPC aplicável ex vi artigo 1.° do CPTA.
23. Ora, como se referiu supra, o despacho datado de 16/10/2023 não especificou em lado algum, ou sequer deixou subentendido, que o presente processo poderia findar por força da aplicação da amnistia à infração disciplinar e que a recusa da amnistia não seria admitida por caducidade do respectivo prazo – cfr. pa. a fls...
24. E muito menos daquele despacho se fez constar que a pronúncia (rectius, no sentido da recusa da aplicação da amnistia) da Recorrente poderia, pasme-se, considerar-se inoperante (é dizer, inútil) por força da aplicação analógica de um prazo de10 dias previsto no artigo 11.° da Lei n.° 38.°-A/2023, de 2 de agosto.
25. A não observância deste basilar princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que importe conhecer gera uma nulidade da processual, nos termos do art. 195.° do CPC (ou, caso assim não se entenda, sempre gerará nulidade da própria sentença recorrida, por excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 615.°, n.° 1, alínea d) do CPC aplicável ex vi artigo 1.° do CPTA, tal como decidido em aresto do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 09/02/2021, proferido no âmbito do processo n.° 119458/16.3YIPRT.P1.S1.) dado que a omissão do contraditório influi (ou, pelo menos, – que é o que basta nos termos da lei – pode influir, como é a todas as luzes evidente) no exame ou na decisão da presente causa – o que se alega para todos os efeitos e com todas as legais consequências.
26. Razão pela qual a sentença recorrida violou o art. 3.°, n.° 3 do CPC e o estruturante princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisão-surpresa e da indefesa, sendo que tal omissão infringe os princípios constitucionais da igualdade, do acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa (cfr. art.
2.°, 13.°, 18.° e 20.° da CRP), gerando nulidade. Termos em que,
requer que o presente recurso jurisdicional seja julgado totalmente procedente, por provado, revogando-se a decisão recorrida, para todos os efeitos e com todas as consequências legais, só assim se fazendo JUSTIÇA!
[…]”

**

O Recorrido apresentou Contra Alegações, a final das quais enunciou as conclusões que para aqui se extraem como segue:

“[…]
IV - DAS CONCLUSÕES
A. A Autora é trabalhadora em funções públicas.
B. A sua relação jus laboral é enquadrada pela Lei n.° 35/2014, de 20 de Junho (LGTFP).
C. Por força deste vínculo a Autora está adstrita aos deveres elencados no artigo 73.° da LGTFP.
D. Nomeadamente, adstrita a observar os deveres de zelo e de obediência.
E. Traduzidos, respectivamente, numa obrigação de actualização e numa obrigação de concretização dos objectivos do serviço e em acatar e cumprir as ordens dos legítimos superiores hierárquicos dadas em objecto de serviço e com a forma legal. F. A Autora recebeu ordens perceptíveis e claras no seu conteúdo.
G. Ordens emanadas pela legítima superior hierárquica.
H. Uma ordem dada em objecto de serviço, porquanto se insere no quadro das atribuições e competências do serviço, durante o período de efectivo exercício de funções da trabalhadora e em conformidade com as suas habilitações e capacidades. I. A Autora recusou cumprir tais ordens.
J. Com esta conduta cometeu uma infracção disciplinar. Com efeito,
K. A Autora assumiu um comportamento voluntário que resultou de vontade própria, livre e esclarecida.
L. Assumiu um comportamento culposo, porquanto podia e devia ter actuado em conformidade com os seus deveres.
M. O comportamento é transgressor de um dever que representa, por isso, um acto ilícito e antijurídico.
N. Da omissão do cumprimento da ordem resultou a produção de dano ao interesse público, porquanto atrasou o tratamento de duas ofertas de emprego.
O. Esta conduta imputada à trabalhadora revela uma má compreensão dos seus deveres funcionais.
P. Não se verifica no caso circunstâncias dirimentes, ou seja, não há lugar a exclusão de culpa ou exclusão de ilicitude no comportamento assumido pela trabalhadora. Q. Esta conduta é censurável com sanção de multa.
R. No entanto, da instrução resultou que a instrutora designada entendeu existirem circunstâncias especiais para aplicar sanção inferior. S. Nesse sentido propôs a repreensão escrita.
T. Aquela sanção tem um efeito de prevenção geral na medida em que dissuade comportamentos de desobediência insustentáveis numa organização hierárquica.
U. Para a visada serve para não passar incólume o comportamento ilícito e configurar um aviso em forma de reparo para que a trabalhadora tenha noção de que desrespeitou uma obrigação e que isso foi anotado e que futuramente deve cumprir correcta e adequadamente os seus deveres.
V. Na verdade, o que se verifica é tão só a necessidade de reacção e punição disciplinar para garantir a operacionalidade duma estrutura hierarquizada organizada desse modo para prosseguir o interesse da colectividade.
W. Ora tal configuração exige naturalmente disciplina traduzida no dever de obediência.
Em suma,
X. O acto administrativo atacado está fundamentado e não enferma de qualquer dos vícios invocados.
Não obstante,
Y. O Recorrido não ficou surpreendido com o desfecho da lide, ou seja, ter sido amnistiada a infracção disciplinar em que foi condenada a Autora e, em consequência, extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Z. Na verdade, a partir do momento em que o Recorrido foi convidado pelo douto tribunal a quo para se pronunciar relativamente à aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, e realizada a devida análise do diploma já antecipava que a Ilustre Recorrente haveria de beneficiar da amnistia, malgrado o desejo da ED de ver apreciada a questão de facto e de direito.
AA. Diga-se, desde já, que a tese de interpretação do artigo 11.º da Lei da amnistia, sufragada pela Ilustre Recorrida, é incompreensível. Porquanto,
BB. A Ilustre Recorrente aceita a interpretação segundo a qual se aplique a possibilidade de recusar a amnistia no âmbito disciplinar, ou seja, aplicação do artigo 11.º. Mas já não aceita a articulação do artigo 11.º com o artigo 4.º.
CC. Ora é verdade, conforme advoga a Ilustre Recorrente, que o artigo 11.º do Código Civil proíbe a aplicação analógica a normas excepcionais.
DD. E é igualmente verdadeiro que as normas consagradas na lei da amnistia são de caracter excepcional.
EE. No entanto, sabemos que se admite o recurso à interpretação extensiva para interpretar as normas excepcionais. No caso, com apelo ao argumento a fortiori.
FF. E tal foi concretizado, de modo irrepreensível, pelo douto tribunal a quo para alcançar as infracções disciplinares que não encontravam suporte gramatical na norma.
GG. Ora sucede que a Ilustre Recorrente aceita a interpretação extensiva para uma parte do artigo, mas rejeita-a para outra parte do mesmo artigo.
HH. Em termos práticos temos a seguinte solução dada pela Ilustre Recorrente: Tem o direito de recusar a amnistia nos termos do artigo 11.º porque é aplicável às infracções disciplinares (por interpretação extensiva) mas para efeito de determinação de prazo para o exercício desse direito de recusa (que obteve graças àquela interpretação extensiva) já o artigo 11.º não é aplicável às infracções disciplinares, ou seja, as infracções disciplinares para este efeito - e só para este efeito - já não se alcançam por interpretação extensiva.
II. Ora esta solução advogada pela Ilustre Recorrente levanta muitas dúvidas.
JJ. Quer do ponto de vista da melhor hermenêutica, quer no confronto com princípios constitucionais.
KK. Na verdade, existem na balança outros princípios constitucionais, para além dos alegados pela Ilustre Recorrente, que não são de menor valor, nomeadamente, os princípios da certeza e segurança jurídicas e o princípio da confiança e que não se alcançam com a tese propugnada pela mui Ilustre Recorrente.
Nestes termos, e pelo muito que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, mui doutamente suprirão, deverão ser tidas por improcedentes as alegações da ilustre Recorrente e deverá a douta Sentença recorrida ser mantida na íntegra, fazendo-se, assim, a costumada.
JUSTIÇA!
[…]”

*

O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto, fixando os seus efeitos.

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O Ministério Público junto deste Tribunal Superior não emitiu parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional.

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Com dispensa dos vistos legais [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir.



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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas Alegações - Cfr. artigos 144.º, n.º 1 do CPTA, e artigos 639.º e 635.º n.ºs 4 e 5, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA [sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem deva conhecer oficiosamente], sendo que, de todo o modo, em caso de procedência da pretensão recursiva, o Tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida pois que, ainda que venha a declarar a sua nulidade, sempre tem de decidir [Cfr. artigo 149.º, n.º 1 do CPTA] “… o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito.”, reunidos que estejam os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas.

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III - FUNDAMENTOS IIIi - DE FACTO
Do processado nestes autos, resultam as seguintes incidências processuais:

1 – Finda a fase dos articulados, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo proferiu o despacho - Cfr. fls. 571 dos autos, SITAF - que para aqui se extrai como segue:

“Notifique as partes para se pronunciarem sobre a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, à responsabilidade disciplinar em causa no presente processo.”

2 – Nessa sequência, o Réu IEFP, IP veio a emitir pronúncia - Cfr. fls. 576 dos autos, SITAF - que para aqui se extrai como segue:

“[…]
O Instituto de Emprego e Formação Profissional, IP., Réu nos Autos à margem referenciados e mais bem identificado nos mesmos, notificado do douto despacho de Vossa Excelência, de 16 de Outubro de 2023, que invita à pronuncia sobre a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, à responsabilidade disciplinar em causa no presente processo vem cumprir o determinado o que faz nos seguintes termos
O Réu, salvo melhor e mais douto entendimento, considera que o referido dispositivo legal abrange a situação em apreço nos autos.
Termos em que, se requer seja considerado cumprido na íntegra o douto Despacho […]”

3 – Por seu requerimento a fls. 585 dos autos, SITAF – a Autora também veio emitir pronúncia, que para aqui se extrai como segue:

“[…]
1. Entre o mais e resumindo razões, temos que o processo disciplinar, que deu origem à decisão impugnada, surgiu dias depois do R. IEFP ter perdido uma ação judicial com a A., relativa a um concurso para cargo dirigente (Coordenador do Núcleo de Gestão Administrativa e Financeira, do Centro de Emprego e Formação Profissional de Viseu) – proc. n.º 834/15.1BEVIS, que corre agora termos no TCA Norte.
2. Temos ainda uma participante a pelejar, desde logo, pelo despedimento de uma funcionária (a A.), porque alegadamente não cumpriu uma ordem (ou 2, mas com a mesma génese), quando todos sabemos a moldura que este tipo de comportamentos em abstracto determina, sendo que, a final, veio a ser aplicada uma repreensão escrita.
3. Temos ainda uma distribuição de serviço que é feita contra a regra até aí existente no serviço, quando a suposta alteração da regra da distribuição de serviço não foi dada a conhecer à trabalhadora, sendo, portanto, ineficaz.
4. Como se pode constatar, o processo disciplinar e a decisão impugnada são profundamente injustos e manifestamente ilegais e, além disso, acarretam sérios prejuízos para a normal e diária execução das funções da A..
5. Por tudo isto, há necessidade imperiosa de que o direito seja devidamente acertado pelo Tribunal, para que a relação jurídico-administrativa entre a trabalhadora e o IEFP possa, daí em diante, prosseguir em perfeita legalidade.
6. Como tal, embora a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações) seja aplicável ao caso concreto, pelos motivos referidos, a Autora, em lisura e equilíbrio, não pode deixar de recusar a aplicação do perdão de penas e de amnistia de infracções no caso concreto, mormente nos termos do art. 11.º do mencionado diploma legal. Termos em que, atento as razões expostas, recusa a aplicação do perdão de penas e de amnistia de infracções previstos na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, requerendo que o presente processo prossiga, com todas as legais consequências.
[…]”

4 - Nessa sequência, no dia 18 de dezembro de 2023 foi proferida a Sentença recorrida, pela qual, a final, foi julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide – Cfr. fls. 594 dos autos, SITAF.

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IIIii - DE DIREITO

Está em causa a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que precedendo a audiência prévia da Autora e do Réu, e tendo subjacente a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, veio a julgar amnistiada a infracção disciplinar imputada à Autora no procedimento disciplinar de que foi alvo, e bem assim, a julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, quanto ao que a Autora ora Recorrente não se conforma, sendo que a final das Alegações de recurso peticionou a revogação da Sentença com todas as consequências legais.

Como assim deflui da Sentença recorrida, o Tribunal a quo não conheceu do mérito do pedido formulado pela Autora, por ter julgado nada se opor/justificar à aplicação da amnistia prevista naquela diploma legal, ocorrendo dessa forma a cessação da execução da pena e os seus efeitos, o que tornou assim inútil o prosseguimento da lide, com fundamento em que já não se impunha discutir a legalidade da pena disciplinar aplicada.

Neste conspecto, para aqui extraímos a essencialidade da fundamentação de direito aportada pelo Tribunal a quo na Sentença recorrida, como segue:

Início da transcrição
“[…]
A Entidade Demandada apresentou contestação na qual pugna pela improcedência da acção administrativa.
Por despacho fls. 571 dos autos (por referência à numeração do SITAF), foi ordenada a notificação das partes para se pronunciarem, querendo, sobre a aplicação da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de Agosto que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, à responsabilidade disciplinar em causa nos presente processo.
A Entidade Demandada pronunciou-se pela aplicação da aplicação da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, aos presentes autos.
A Autora recusou a aplicação da amnistia nos termos do artigo 11° Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, requerendo o prosseguimento dos autos.
II. DA AMNISTIA
A Lei n.° 38-A/2023, de 2 de Agosto, estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, a qual, abrange igualmente as infracções disciplinares praticadas até às 00.00 de 19 de Junho de 2023, desde que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei e cuja sanção aplicável não se já superior a suspensão (cfr. alínea b) do n.° 2 do artigo 2° e artigo 6° da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de Agosto).
No caso dos autos, esta em causa a declaração de nulidade ou anulação da deliberação do Conselho Directivo da Entidade Demandada, de 22 de Fevereiro de 2023, que aplicou à Autora uma pena de repreensão escrita.
Assim, seja pela data da prática dos factos, seja por não se verificar qualquer das causas de exclusão previstas no artigo 6.° da referida Lei, entende o Tribunal que a Autora está em condições de beneficiar da amnistia da pena disciplinar em que foi condenada condenado, amnistia que implica a cessação da execução da pena aplicada e dos respectivos efeitos (n.° 2 do artigo 128° do Código Penal em conjugação com o artigo 6° da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de Agosto).
No entanto, apesar de potencialmente aplicável, a Autora veio recusar a aplicação da amnistia, invocando para tanto o disposto no artigo 11° da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de Agosto.
Estabelece o artigo 11° da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de Agosto que “independentemente da aplicação imediata da presente lei, os arguidos por infracções previstas no artigo 4.º podem requerer, no prazo de 10 dias a contar da sua entrada em vigor, que a amnistia não lhes seja aplicada, ficando sem efeito o despacho que a tenha decretado.”
A amnistia traduz-se num benefício concedido pelo Estado (medida de graça), sendo uma medida excepcional que visa impedir a normal produção de efeitos das normas sancionatória, cuja concreta extensão e amplitude cabe ao legislador desenhar.
No entanto, uma leitura adequada da lei da amnistia em conjugação com os direitos e garantias constitucionais, nomeadamente no que respeita ao princípio da tutela jurisdicional prevista no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, impõe uma leitura que em que o arguido, por livre opção e enquanto potencial beneficiário, possa requerer que a mesma não lhe seja aplicada.
Há autores que consideram que não estando legalmente prevista a possibilidade de recusa da amnistia para as infracções disciplinares, não é possível a recusa da amnistia (cfr. nesse sentido, anotação ao artigo 128° do Código Penal, in Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, 1° Volume, 1997, Reis dos Livros), doutrina que transposta ao caso concreto implicaria que a Autora não possa recusar a aplicação da amnistia, como o fez, por tal não estar previsto para as infracções disciplinares.
Tal entendimento afastaria a possibilidade a Autora de discutir a legalidade da decisão, o que, na perspectiva Tribunal, poderia implicar a violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, constante do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, direito fundamental que não pode ser afastado pela medida de graça que constitui a amnistia (cfr. o Acórdão nº 301/97, de 16 de Abril - inédito; cf. também os Acórdãos nºs 444/97, de 25 de Junho - D.R., II, de 22 de Julho de 1997, e 510/98 D.R., II, de 20 de Outubro de 1998).
Fazendo uma leitura adequada ao princípio da tutela jurisdicional efectiva com o disposto na Lei n.º 38A/2023, de 2 de Agosto, haverá que considerar que o artigo 11º também é aplicável às infracções disciplinares. O que quer dizer que o arguido poderia recusar a aplicação da amnistia o que implica, naturalmente, o prosseguimento do processo onde se discute a legalidade da sanção disciplinar com a hipótese de obtenção dos efeitos inerentes à anulação da decisão condenatória. No entanto, nos termos do artigo 11º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, o arguido dispõe de uma janela temporal para recusar a aplicação da amnistia – dez dias a contar da entrada em vigor da Lei da Amnistia, finda a qual, deixa de o poder fazer, interpretação que encontra arrimo na Jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 460/02, de 8 de Novembro de 2002).
No caso concreto, a Autora não recusou a aplicação da amnistia no prazo de dez dias da entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, ou seja, nos dez dias a contar do dia 1 de Setembro de 2023, mas mais de um mês depois, quando foi confrontada com o despacho de fls. 571 dos autos, no qual as partes foram convidadas a pronunciar-se sobre a sua aplicação aos presentes autos.
É de salientar que o Tribunal Constitucional, no acórdão já citado, não considera que o prazo de dez dias seja de tal forma reduzido que possa ser considerado uma lesão ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, atendendo que “acresce que se trata de um prazo para praticar um acto num processo em que o eventual interessado é parte, sendo razoável que o legislador admita a sua especial atenção para a amnistia que pode ser aplicável”.
Por último cabe referir que, por ter sido aplicada uma repreensão escrita à Autora, tal implica a cessação de todos os seus efeitos, tudo se passando como se a mesma não existisse.
Face ao exposto, nada se opõe a aplicação da amnistia à infracção disciplinar aplicada, sendo a recusa da sua aplicação inoperante, com todas as consequências legais daí decorrentes quanto à cessação da execução da pena e os seus efeitos, o que torna superveniente inútil o prosseguimento da presente lide, na qual se pretenda discutir da legalidade da pena disciplinar aplicada, entretanto extinta por efeitos da amnistia, nos termos da alínea e) do artigo 277º do Código de Processo Civil.
[...]

III Decisão:
Assim, face ao exposto, julga-se amnistiada a infracção disciplinar em que foi condenado a Autora e, em consequência, julga-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
[…]”

Cumpre decidir.

Como assim se extrai do requerimento da Autora ora Recorrente [Cfr. ponto 3 do probatório], a mesma recusou a aplicação da amnistia por considerar, entre o mais, que “… o processo disciplinar e a decisão impugnada são profundamente injustos e manifestamente ilegais e, além disso, acarretam sérios prejuízos para a normal e diária execução das funções da A..”

Apreciou o Tribunal a quo, que a Autora podia ter recusado a aplicação da amnistia ao abrigo do disposto no artigo 11.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, e que os autos podiam então seguir para conhecimento da invalidade apontada ao acto administrativo datado de 22 de fevereiro, consubstanciado na deliberação do Conselho Directivo do Réu por via do qual lhe foi aplicada a pena de repreensão escrita, tendo em vista a obtenção dos efeitos inerentes à anulação da decisão condenatória, tendo enfatizado porém [o Tribunal a quo] que só o poderia fazer [a Autora] dentro do prazo de 10 [dez] dias após a entrada em vigor daquela Lei, e que quando o fez já tinha decorrido mais de um mês.

Apreciou assim o Tribunal a quo que a Autora não cumpriu um prazo de natureza substantiva, de 10 [dez] dias, para efeitos de se opor à aplicação da Lei da amnistia, tempo em que, se assim o tivesse feito, ela não seria aplicada à sua situação concreta, podendo então, nessa eventualidade, os autos continuar termos para efeitos de conhecimento do seu mérito, em concordância com o princípio da tutela jurisdicional efectiva, sendo assim que, por ter manifestado a sua oposição à aplicação dessa amnistia de forma extemporânea, que a consequência dessa sua actuação tardia tem de derivar, a final, na aplicação da amnistia, no que vem a derivar a cessação de todos os efeitos da pena disciplinar aplicada, tudo se passando como se a mesma não existisse, ocorrendo assim uma inutilidade superveniente da lide, e a sua consequência extinção da instância.

Mas o julgamento prosseguido pelo Tribunal a quo, no que reputamos de essencial para a tomada da decisão não pode manter-se.

Vejamos.

Desde logo, porque não se pode partir da análise da jurisprudência de tribunais superiores e do Tribunal Constitucional tirada no contexto de outras Leis que aprovaram outras amnistias e perdões a penas disciplinares e a penas criminais, para concluir de igual modo em torno da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, pela razão de que a mens legislatoris é diversa, no tempo e no espaço, com diferentes termos e pressupostos de aprovação.

Depois porque sendo uma lei de amnistia considerada uma providência de excepção, deve ser interpretada e aplicada nos seus precisos termos, sem que dela se possam fazer ampliações ou restrições que nela não venham expressas, não sendo admitida por isso o recurso a interpretação extensiva, restritiva ou analógica.

Ora, errou o Tribunal a quo quando julgou, desde logo, da aplicabilidade do artigo 11.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, ou seja, de que assiste ao arguido de procedimento disciplinar o direito [e de que o deve fazer em prazo certo] de recusar a aplicação da amnistia.

Como se retira, sem esforço interpretativo adicional, do disposto no referido artigo 11.º, a Lei é imediatamente aplicável [Cfr. artigo 14.º], sendo que é quanto às infrações previstas no artigo 4.º do mesmo diploma [infrações de natureza penal cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa] que o legislador veio dispor sobre os termos e pressuposto em que o arguido pode requerer a não aplicação da amnistia.

Esse dispositivo legal não é assim aplicável à amnistia das infracções disciplinares, por assim não o ter dito de forma expressa o legislador, o que deriva a final em que, a amnistia de infracções disciplinares, nos termos expressamente fixados pelo legislador é de aplicação imediata [reunidos que sejam os devidos requisitos], sem dependência de manifestação de vontade do visado, o que não significa, de todo o modo, que a lide deixa de ter utilidade e que a instância deva ser extinta.

Conforme se extrai do corpo da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, e em torno da amnistia de infracções disciplinares, o legislador dispôs que a mesma deve ser aplicada se as infracções disciplinares, em suma, tiverem sido praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, se não constituírem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei, e caso a sanção aplicável não seja superior a suspensão [Cfr. artigos 2.º, n.º 2, alínea b), 6.º e 7.º do referido diploma legal].

Como assim apreciou o Tribunal a quo, na situação em apreço nos presentes autos, é claro que atenta a data da pática da infracção, e não estando em causa qualquer situação de exclusão das que estão previstas nos artigos 6.º e 7.º da referida Lei, a amnistia da pena disciplinar deve ser declarada pela instância de julgamento, sem necessidade de audiência contraditória dos intervenientes processuais, porque se trata, a final de uma graça concedida pelo legislador ordinário, por Lei da Assembleia da República.

Nessa medida, a pena de reprensão escrita aplicada à Autora, está efectivamente amnistiada, sem que a essa amnistia a Autora pudesse deduzir alguma oposição, e nessa parte a Sentença recorrida tem de manter-se.

Aqui chegados.

Situação diversa é a de saber se por ocorrência da amnistia, e assim, se por efeito da cessação de todos os efeitos da pena de repreensão escrita, se a lide deixou de manter utilidade, e se dessa forma a instância deve ser extinta.

Nos termos do artigo 202.º da CRP, enquanto órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbe aos Tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, e aos Tribunais Administrativos em particular [Cfr. artigo 212.º também da CRP] cabe efectuar o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes, designadamente, os que decorram das relações jurídicas administrativas, com o âmbito definido pelo artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, para o que ora convocamos a sua competência material para a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais [Cfr. n.º 1, alínea b)], tudo em ordem a efectivar o direito de acesso à justiça, na busca de uma tutela jurisdicional efectiva, prosseguindo numa interpretação das normas processuais no sentido de promover a emissão de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas, quando como é o caso dos autos, assiste à Autora o direito de ver apreciada a validade do acto administrativo que lhe foi dirigido, nos seus termos e pressupostos, em ordem a obter a sua remoção da ordem jurídica administrativa [o que é alcançável, tendo por pressuposto essencial, a existência de um pedido de anulação ou a declaração de nulidade ou de inexistência de actos administrativos – Cfr. artigo 2.º do CPTA] assim julgando se, independentemente da declarada amnistia, para efeitos da prolação do acto administrativo impugnado - Cfr. artigo 148.º do CPA], se a Administração deu cabal cumprimento às normas e princípios jurídicos que a vinculam.

Como assim julgamos, quando o Tribunal se confronte com uma pena disciplinar que deva ser amnistiada, deve então ponderar, em obediência ao disposto no artigo 130.º do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, atinente ao princípio da limitação dos actos [segundo o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis], por que termos e pressupostos é que se justifica a continuação da sua instrução, no sentido de ser conhecido do mérito do pedido, pois que, convém lembrar, justaposta à aplicação da pena disciplinar está todo um repositório jurídico e factual em que se apoiou o autor do acto sancionatório para efeitos da sua decisão, quanto ao qual o visado não concorda, sendo seu [do Autor] o impulso de vir a Tribunal impugnar a sua validade, e sua pretensão, pelo menos, a sua anulação, fundada em ocorrência de nulidade ou em erro nos pressupostos de facto e/ou de direito.

Nestas situações, tendo subjacente o disposto no artigo 7.º-A do CPTA [assim como do artigo 3.º, n.º 3 do CPC] justifica-se que o Tribunal a quo ouça as partes, não no domínio a que se reporta o artigo 11.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, antes porém, e principalmente o demandante [pois que é seu o impulso processual da vinda a Tribunal em busca de tutela jurisdicional], a fim se saber por que termos e pressupostos é que ainda entende [o Autor] que a lide se mantém válida e deve prosseguir os seus termos.

E numa situação como a dos autos, em que depois de ouvida a Autora ora Recorrente expressou firmemente a sua vontade de o processo continuar termos, pelas razões que invocou, tal não podia deixar de assim acontecer, sob pena de violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva na vertente do acesso aos Tribunais a quem compete, em conformidade com o disposto no artigo 20.º da CRP e 2.º do CPTA, a apreciação de litígios da natureza jurídica, como o que aqui ora está em apreço.

Em torno da continuação dos autos para efeitos de ver apreciada a legalidade do acto que aplicou à Autora a pena disciplinar, embora já amnistiada, essa prossecução ganha acuidade quando a demandante invoca que o processo disciplinar e a decisão impugnada são profundamente injustos e manifestamente ilegais e que além disso acarretam sérios prejuízos para a normal e diária execução das suas funções, apreciação esta que não pode ser retirada dos Tribunais, quando a interessada continua, no fundo, a confirmar o seu interesse em agir, peticionando por uma tutela jurisdicional, que abstractamente considerada, não lhe pode ser recusada, ou cerceada por via da interpretação da lei, de ver julgada a sua pretensão anulatória por um Tribunal.

Atenta a posição vertida nas suas Contra alegações, julgamos que a Autora ora Recorrente continua a ser titular de um concreto interesse em agir, e que passa pela continuação dos autos tendo em vista a apreciação da/s invalidade/s que vêm por si apontadas ao acto administrativo sob impugnação.

E mais acuidade ganha essa sua posição de interesse, quando nas suas Contra alegações, o Recorrido continua a pugnar, em suma e a final, no sentido de que a pena foi correctamente aplicada.

Em face do que deixamos expendido supra, a amnistia devia ter sido aplicada pela 1.ª instância, como o foi, enquanto instância de julgamento, e assim o consignando em sede do dispositivo, declarando amnistiada a pena disciplinar de repreensão escrita aplicada à Autora [Cfr. artigo 14.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto], e declarando a inutilidade superveniente da lide [Cfr. artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA], na parte em que a amnistia abarca todos os efeitos da pena aplicada.

Ou seja, dada a superveniência de um diploma legal que por si é determinante da amnistia da pena disciplinar aplicada, na situação concreta dos autos, extinguiu-se a responsabilidade disciplinar da arguida [a Autora ora Recorrente], o que reveste aptidão para que, em face do patenteado nos autos e na Lei, ser declarada a amnistia da infracção, sem dependência de um prazo de impulso por parte do beneficiário, tornando-se assim inútil, nessa parte, a continuação da lide, não sendo já, porém, fundamento que seja determinante da extinção da instância.

Tendo cessado a responsabilidade disciplinar da Autora, por vontade, ou graça do legislador, e assim também a pena que lhe foi aplicada e que a Autora pretendia ver sindicada judicialmente por via da impugnação judicial do acto administrativo que a fixou, quanto aos efeitos que a mesma atingiria, desde logo a sua inscrição no registo biográfico, esse foi já neutralizado, deixando de ter qualquer valor ou eficácia, impondo-se a reposição da condição jurídica ao tempo em que não lhe tinha sido aplicada a pena, ou melhor, ainda antes de lhe ter sido instaurado o processo disciplinar.

A lide já mantém utilidade, e deve prosseguir os seus termos, tendo subjacente a apreciação da ocorrência da invocada invalidade imputada ao acto administrativo, para a final ser formada a convicção [se disso for o caso] de que, não padecendo dessa invalidade, e devendo manter-se o acto nos seus termos e apenas para esse efeito, embora já sem qualquer finalidade ou propósito administrativo, e em sentido inverso, caso seja formada a convicção de que ocorre a invalidade imputada ao acto administrativo, tem o Tribunal a quo que apreciar e decidir em conformidade.

Como assim julgamos, assiste à Autora ora Recorrente, enquanto arguida no processo disciplinar, e também enquanto demandante, o direito a que a pretensão por si deduzida na impugnação judicial da decisão punitiva seja apreciada no seu mérito potencial, quando subjacente à sua motivação para efeitos de entender não lhe dever/pode ser aplicada a amnistia, estiver o pressuposto de que não praticou qualquer ilícito, seja de natureza disciplinar ou penal.

Determinar a extinção da instância, quando tenha sido requerida a sua continuação, por não se conformar a interessada com a pena disciplinar que lhe aplicada, constitui a final uma limitação do direito da Autora e a consagração de uma absoluta impossibilidade de ver revertida essa decisão, ficando sempre a pairar sob a sua figura o véu da eventualidade do cometimento dos factos integradores do ilícito, mas que veio a ser amnistiado.

Em face do que assim resulta da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, não constituindo os factos imputados à arguida infração disciplinar ou infração disciplinar militar, simultaneamente ilícito penal não amnistiado pela Lei e cuja sanção aplicável, e em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar, e tendo sido impugnada a decisão que aplicou a pena, sempre a infracção deve ser amnistiada pela instância de julgamento, sendo certo que, quando o demandante pretenda a continuação dos autos, seja para efeitos de ser feito julgamento em torno de que não cometeu qualquer infracção passível, seja para efeitos de serem restaurados na sua esfera jurídica os efeitos já produzidos pela pena aplicada [é o caso da pena de suspensão, que implica a perda de vencimento], nessa eventualidade, e assim querendo o interessado, a lide não pode ser extinta por manter a sua utilidade, no que seja remanescente.

Enfatizamos porém, que naquelas situações, o cidadão a quem foi aplicada pena disciplinar pode ter por certo que a infracção pode ser amnistiada de forma imediata e se assim for sua vontade, ser determinada a extinção da instância, desaparecendo da ordem jurídica por pressuposto dela, os efeitos que ainda não tenham sido produzidos, e nesse patamar, não mais se sabendo se os termos e os pressupostos em que a Administração se ancorou para lhe imputar o cometimento da infracção disciplinar eram válidos, isto é, se sempre ocorrerem e pelos termos e pressupostos fixados na decisão administrativa condenatória, ou então, pode prosseguir no pedido de apreciação do mérito da impugnação judicial do acto administrativo, como por si impulsionado, sendo certo que, na eventualidade de vir a ser julgada da validade do acto administrativo, e de assim vir a ficar patenteado numa Sentença proferida por um Tribunal, pese embora sempre a infracção disciplinar se ter por amnistiada, passa a ficar certo e firmado em sede da relação jurídica administrativa controvertida, que atenta a ilicitude da acção assacada ao arguido, que a actuação da Administração se tem por correcta, por isenta de qualquer crítica e a final de invalidade que seja determinante da sua nulidade ou anulação, com as legais consequências, e desde logo, patenteadas em documento público.

Como assim julgamos, será sempre uma opção do demandante, que tem de fazer o balanceamento entre os resultados possíveis, e em que medida, um ou outro melhor se compaginam com a sua perspectiva hedonística da realidade.

Em face da aplicação positiva da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto, e devendo ser declarada amnistiada a infracção disciplinar, a Autora ora Recorrente tem direito a fazer prova da sua inocência tendo por referência a factualidade que lhe foi imputada pela Administração e que esteve na base da aplicação da sanção disciplinar.

Em suma, sendo certo que o Tribunal a quo podia aplicar a Lei da Amnistia como assim constante dos artigos 11.º e 14.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, e sempre tendo essa aplicação de ser casuística, com ponderação dos termos e pressupostos de que depende a sua aplicação, na situação em apreço nos autos a Autora ora Recorrente tem interesse na apreciação do mérito do pedido deduzido, e que a final passará por saber se, pese embora a interposta amnistia, o acto administrativo deve ser expurgado da ordem jurídica, por via do conhecimento do mérito do pedido na sua vertente anulatória.

A pretensão recursiva da Recorrente tem assim de ser julgada procedente, e estando já declarada a amnistia pela Sentença recorrida, que nessa parte não foi objecto de recurso, devem os autos baixar ao TAF de Viseu para efeitos de ser conhecido do mérito dos autos, tendo subjacente a causa de pedir imanente ao pedido deduzido a final a Petição inicial, e no fundo, se padece a decisão impugnada de invalidade determinante da sua nulidade/anulabilidade, que a final levasse a que não fosse aplicada a concreta pena disciplinar à Autora ora Recorrente.

*

E assim formulamos as seguintes CONCLUSÕES/SUMÁRIO:


DESCRITORES: Processo disciplinar; Infracção disciplinar; Pena disciplinar de repreensão escrita; Aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto; Prazo; Inutilidade superveniente da lide; Extinção da instância.

1 - Conforme se extrai do corpo da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, e em torno da amnistia de infracções disciplinares, o legislador dispôs que a mesma deve ser aplicada se as infracções disciplinares, em suma, tiverem sido praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, se não constituírem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei, e caso a sanção aplicável não seja superior a suspensão [Cfr. artigos 2.º, n.º 2, alínea b), 6.º e 7.º do referido diploma legal].

2 - Errou o Tribunal a quo quando julgou pela aplicabilidade do artigo 11.º da Lei
n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, ou seja, de que assiste ao arguido de procedimento disciplinar o direito [e de que o deve fazer em prazo certo] de recusar a aplicação da amnistia.

3 - Dada a superveniência de um diploma legal que por si é determinante da amnistia da pena disciplinar aplicada, extinguiu-se a responsabilidade disciplinar da arguida [a Autora ora Recorrente], o que reveste aptidão para que, em face do patenteado nos autos e na Lei, ser declarada a amnistia da infracção, sem dependência de um prazo de impulso por parte do beneficiário, tornando-se assim inútil, nessa parte, a continuação da lide, não sendo já, porém, fundamento que seja determinante da extinção da instância.

4 - Quando o Tribunal se confronte com uma pena disciplinar que deva ser amnistiada, deve então ponderar, em obediência ao disposto no artigo 130.º do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, atinente ao princípio da limitação dos actos [segundo o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis], por que termos e pressupostos é que se justifica a continuação da sua instrução, no sentido de ser conhecido do mérito do pedido, pois que, convém lembrar, justaposta à aplicação da pena disciplinar está todo um repositório jurídico e factual em que se apoiou o autor do acto sancionatório para efeitos da sua decisão, quanto ao qual o visado não concorda, sendo seu [do Autor] o impulso de vir a Tribunal impugnar a sua validade, e sua pretensão, pelo menos, a sua anulação, fundada em ocorrência de nulidade ou em erro nos pressupostos de facto e/ou de direito.

5 - Enquanto arguida no processo disciplinar, e também enquanto demandante, assiste à Recorrente o direito a que a pretensão por si deduzida na impugnação judicial da decisão punitiva seja apreciada no seu mérito potencial, quando subjacente à sua motivação para efeitos de entender não lhe dever/pode ser aplicada a amnistia, ou declarada a extinção da instância, estiver o pressuposto de que não praticou qualquer ilícito de natureza disciplinar.

***

IV – DECISÃO
Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Social da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em conferência:
A) em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso de Apelação deduzido por «AA»;
B) em determinar a baixa dos autos ao Tribunal de 1.ª instância, para efeitos de aí serem prosseguidos os termos de processo que se mostrem devidos, em ordem a ser apreciada a invalidade apontada à decisão impugnada atinente ao acto administrativo que aplicou a pena disciplinar à Autora ora Recorrente, se nada mais a tanto obstar.

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Custas a cargo do Recorrido - Cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

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Notifique.
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Porto, 06 de junho de 2024.

Paulo Ferreira de Magalhães, relator
Maria Fernanda Brandão
Isabel Costa