Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 01720/23.7BEPRT |
Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
Data do Acordão: | 10/25/2024 |
Tribunal: | TAF do Porto |
Relator: | MARIA CLARA ALVES AMBROSIO |
Descritores: | REVISÃO EXTRAORDINÁRIA DE PREÇOS; DL Nº36/2022, DE 20 MAIO; ACTO ADMINISTRATIVO; DECLARAÇÃO NEGOCIAL; PRINCÍPIO PRO ACTIONE; |
Votação: | Unanimidade |
Meio Processual: | Acção Administrativa Comum |
Decisão: | Conceder provimento ao recurso. |
Aditamento: |
Parecer Ministério Publico: |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Administrativa, subsecção de Contratos Públicos, do Tribunal Central Administrativo Norte, I. RELATÓRIO No Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto correu termos acção administrativa, movida por [SCom01...], S.A. contra o MUNICÍPIO ..., na qual formulou o pedido de anulação de ato administrativo, consubstanciado na decisão do Município de indeferimento do pedido de revisão extraordinária de preço, datada de 30 de maio de 2023, com a consequente obrigação do Município de emitir novo ato administrativo que defira a revisão extraordinária de preço nos termos peticionados pela Autora. O Município apresentou contestação, na qual se defendeu por impugnação, pugnado pela improcedência da acção. O Tribunal a quo proferiu despacho do seguinte teor: “Considerando que a decisão que recai sobre o pedido de revisão extraordinária de preço não consubstancia, nos termos do art. 307.º, n.º 2 do CCP, um ato administrativo contratual, antes revestindo a natureza de mera declaração negocial, notifique as partes para, em 5 dias, se pronunciarem quanto à inimpugnabilidade do despacho do Presidente da Câmara Municipal ... de 31.5.2023 e, consequente, verificação de exceção dilatória inominada traduzida na falta do pressuposto para a condenação à prática de ato administrativo devido nos termos do art. 67.º, n.º 1 al. b) do CPTA”. A Autora pronunciou-se, alegando, entre o mais que: - A decisão administrativa sob a aplicabilidade de um regime legal excecional, admissibilidade de um particular requerimento ao abrigo desse regime legal excecional, correspondência entre esse requerimento e os requisitos estabelecidos pelo regime legal excecional e concretização do valor da revisão face aos critérios definidos imperativamente por esse regime legal excecional, corresponde a um exercício típico de poderes administrativos, vinculados por regras legais, estabelecidos com base em preocupações de interesse público do legislador e que veiculam, não um juízo particulares de conveniência do contraente público, mas antes a sua decisão autoritária da aplicação do regime legal decorrente do Decreto-Lei n.º 36/2022. - Mesmo que o ato impugnado fosse considerado inimpugnável, os presentes autos correriam na parte em que a Autora peticiona a condenação da entidade demandada a rever o preço contratual conforme requerido em sede graciosa. * O Tribunal a quo proferiu despacho saneador- sentença, no qual julgou verificada a exceção dilatória inominada de falta de verificação do pressuposto para a condenação à prática de ato administrativo devido, concretamente, que tenha sido praticado um ato administrativo de indeferimento, e, em consequência, absolveu o MUNICÍPIO ..., da instância. Inconformada com a decisão recorre a A., apresentando as seguintes conclusões de recurso: “A. A Recorrente apresentou à Recorrida um requerimento ao abrigo do regime excecional do Decreto-Lei n.º 36/2022, o qual foi indeferido por meio de despacho proferido em 31/5/2023. B. A Recorrente intentou ação de anulação de ato administrativo contra o referido despacho. C. Porém, em sede de saneador-sentença ora recorrido, o tribunal a quo considerou a petição inicial improcedente e absolveu a Recorrida da instância, invocando erro na forma de ação e no pedido. D. De acordo o tribunal a quo o despacho impugnado foi proferido no âmbito de uma relação contratual pública e não consta do elenco de atos administrativos do n.º2 do artigo 307.º CCP, pelo que é uma mera declaração negocial, inimpugnável para efeitos do disposto no artigo 50.º CPTA. E. Desde logo, o tribunal a quo ignora que, a regra geral em direito administrativo é a de que as decisões proferidas por entidades administrativas que visem produzir efeitos externos constituem atos administrativos (cfr. artigo 148.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA)). F. A norma do artigo 307.º, n.º1 CCP é uma norma excecional face a essa regra geral. G. Com efeito, as decisões proferidas pelos contraentes públicos face a pedidos de revisão de preços apresentados pelos contraentes privados têm sido entendidas pela jurisprudência como constituindo atos administrativos impugnáveis enquanto tal – por exemplo, nos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 28/03/2012, Proc. 045/12, do Supremo Tribunal Administrativo de 08/04/2021, Proc. n.º 02427/19.5BELSB-A e do Tribunal Central Administrativo Norte, de 27/09/2019, Proc. 02044/16.1BEPRT, os quais se debruçaram sobre impugnações de decisões de revisão de preços, enquanto atos administrativos. H. A caracterização de manifestações de vontade administrativa em sede contratual como constituindo meras declarações negociais decorre também da própria natureza da função administrativa na medida em que, durante a execução de um contrato, incumbe à Administração Pública fazer juízos técnicos e de oportunidade sobre essa mesma execução contratual, no âmbito da prossecução do interesse público. I. Ora, precisamente por se tratar de juízos técnicos e de oportunidade, decorrentes da margem de discricionariedade da Administração Pública, não são enquanto tal sindicáveis pelos tribunais – os quais podem apenas reconhecer direitos de cada uma das partes no contrato, mas não substituir-se à Administração na execução contratual propriamente dita. J. Porém não é isso que está aqui em causa. K. A Recorrida não tomou a sua decisão impugnada com base em critérios técnicos ou de oportunidade, mas antes com base em argumentos de legalidade sobre a aplicabilidade das normas imperativas do regime legal exceciona do Decreto-Lei n.º 36/2022. L. A decisão ora impugnada é vinculada aos critérios legais imperativos, resultando não da apreciação mais ou menos discricionária dos vários critérios técnicos, comerciais, orçamentais, etc. da execução do contrato, mas antes resultando da verificação de imposições legais. M. Por outro lado, a decisão impugnada produz efeitos por si só, não carecendo da intervenção do tribunal. N. Acresce que as próprias existência, intenção legislativa e natureza do Decreto-Lei n.º 36/2022 impõe que a decisão proferida pela entidade administrativa assuma a natureza de ato administrativo. O. A intenção legislativa que motivou esse diploma foi a consagração de um regime legal extraordinário para rever o preço de contratos públicos afetados pela inflação decorrente da pandemia e do conflito militar no leste da Europa. P. Verificados os requisitos substantivos previstos no diploma, o direito de revisão torna-se numa decisão vinculada, sem prejuízo dos requisitos formais do requerimento a apresentar. Q. Caso o legislador pretendesse que as partes renegociassem livremente os termos dos contratos afetados pela inflação através de declarações negociais sem autotutela, então nem faria sentido criar o Decreto-Lei n.º 36/2022, pois o próprio CCP e o Decreto-Lei 6/2004 já previam essa possibilidade de revisão “ordinária”. R. A mera existência de um regime legal extraordinário que cria um direito aos particulares que depende de uma decisão da entidade administrativa e cujo regime é alheio a juízos particulares de conveniência do contraente público impõe a natureza de ato administrativo a essa decisão. S. Prova disso é a circunstância de, ao contrário do regime ordinário de revisão de preços ou reequilíbrio financeiro do CCP que pode partir de qualquer um dos contraentes, a revisão extraordinária do Decreto-Lei n.º 36/2022 depende da iniciativa do contraente privado (cfr. art. 3.º, n.º1, proémio). T. Ao que acresce que, tendo o legislador consagrado um regime de deferimento tácito como o que decorre do disposto no proémio do n.º3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 36/2022, obviamente que o obverso desse ato (administrativo) tácito apenas pode ser um ato (administrativo) expresso. U. De resto, a Recorrida não colocou em causa a natureza de ato administrativo da decisão impugnada nos autos. V. Aliás, o próprio conteúdo do despacho de indeferimento revela claramente que se trata de uma decisão de autoridade: um ato administrativo. W. Conclui-se, portanto, que o douto saneador-sentença ora recorrido incorre numa incorreta interpretação do direito aplicável, determinando uma decisão ilegal. X. Mesmo que se concordasse com o sentido do saneador-sentença ora recorrido, o facto é que a consequência lógica do mesmo seria a convolação dos autos, adaptando o processo para o reconhecimento do direito da Recorrente à revisão do contrato. Y. Com efeito, tanto a impugnação de atos administrativos como o reconhecimento de direitos correm nos tribunais administrativos sob a forma de ação administrativa comum, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 37.º e seguintes CPTA. Z. Estavam, portanto, reunidos todos os requisitos da convolação. AA. Pelo contrário, ao indeferir liminarmente a pretensão da Recorrente sem sequer ponderar a convolação dos autos, o tribunal a quo violou o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 2.º CPTA. BB. Não se compreende, portanto, porque motivo não foram os autos convolados, até porque a Recorrente suscitou essa questão no artigo 30. das suas alegações escritas (fls. 124 e ss). CC. Devendo, nesses termos ser revogado o saneador-sentença ora recorrido e substituído por outro que convole os autos em ação administrativa comum de reconhecimento de direito, determinando às partes que aperfeiçoem os seus articulados em conformidade. Nestes termos e nos mais de direito requer a V. Exa. se dignem revogar o douto despacho saneador-sentença e substitui-lo por outro que julgue procedente, por provada, a petição inicial da Recorrente, condenado a entidade demandada nos termos aí peticionados. Subsidiariamente, requer que se dignem revogar o douto despacho saneador-sentença e substitui-lo por outro que convole os autos em ação administrativa comum de condenação ao reconhecimento de direito, condenando a entidade demandada a reconhecer o direito da Recorrente à revisão de preço ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 36/2022. Assim se fazendo a mui acostumada JUSTIÇA!” O R. não apresentou contra-alegações. * Notificado o Ministério Público junto deste TCA Norte, nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 146.º do CPTA, não foi emitido parecer. * II. OBJECTO DO RECURSO Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo o Tribunal de recurso conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA). À luz do exposto, cumpre a este Tribunal apreciar se a sentença recorrida incorreu em (i) incorreta interpretação do direito aplicável, determinando uma decisão ilegal (ii) violou o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 2.º CPTA. * III. Fundamentação III.1. De Facto Na sentença recorrida foram dados como assentes os seguintes factos: 1. Por comunicação datada de 9.5.2023 a A. apresentou ao MUNICÍPIO ... pedido de revisão extraordinária de preços no âmbito do contrato de prestação de serviços de recolha de serviços urbanos e limpeza pública, nos seguintes termos, [Imagem que aqui se dá por reproduzida] - fls. 1 e ss. do p.a.; 2. Em 24.5.2023 foi emitida a Comunicação Interna n.º 18/2923/PR da qual se extrai, [Imagem que aqui se dá por reproduzida] - fls. 10 e ss. do p.a.; 3. Em 25.5.2023 foi emitida a Informação Técnica NipG n.º 9840/23 de que se extrai, [Imagem que aqui se dá por reproduzida] - fls. 14 e ss. do p.a.; 4. Em 31.5.2023 o Vereador proferiu o seguinte despacho, [Imagem que aqui se dá por reproduzida] - fls. 15 do p.a.; 5. Em 31.5.2023 o Presidente da CM... proferiu despacho de “Nos termos e com os fundamentos das informações técnicas prestadas no presente processo e na proposta apresentada pelo Vereador do Pelouro Eng.º «AA», indefiro o pedido de revisão extraordinária de preços, apresentada pela cocontratante [SCom01...], ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 35.º anexo I à Lei 75/2013” – fls. 16 do p.a.; 6. Por oficio datado de 31.5.2023 foi a A. notificada, [Imagem que aqui se dá por reproduzida] - fls. 18 do p.a.; 7. Por deliberação de 14.6.2023 a CM... ratificou o despacho do Presidente da Câmara de 31.5.2023. – doc. de fls. 19 do p.a.; 8. Por comunicação de 14.6.2023 a A. requereu, [Imagem que aqui se dá por reproduzida] - fls. 26 do p.a. 9. Em 6.7.2023 o Vereador proferiu despacho nos seguintes termos, [Imagem que aqui se dá por reproduzida] fls. 27 do p.a.; 10. E na mesma data o Presidente da CM... proferiu o seguinte despacho, [Imagem que aqui se dá por reproduzida] - fls. 27 do p.a.; 11. Em 10.7.2023 a A. foi notificada, [Imagem que aqui se dá por reproduzida] - fls. 29 e ss.; 12. Em reunião de 11.7.2023 a CM... deliberou ratificar o despacho de 6.7.2023 do Presidente da CM.... – fls. s/n do p.a.; * Fundamentação de facto que consta da sentença recorrida: “O Tribunal considerou provada a matéria inscrita em 1 a 12 do ponto III.1. em resultado dos elementos documentais constantes do processo administrativo e juntos aos autos e, bem assim, à luz do acordo das partes. Valorou-se a prova documental em concordância com o disposto nos arts. 362.º e ss. do CC, na medida em que os mesmos não foram impugnados, indicando-se em cada um dos pontos do probatório os elementos documentais que estiveram na base da demonstração do facto e da formação da convicção do Tribunal”. * III. 2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO A Recorrente põe em crise a sentença proferida pelo TAF do Porto que julgou verificada a exceção dilatória inominada de falta de verificação do pressuposto para a condenação à prática de ato administrativo devido, concretamente, que tenha sido praticado um ato administrativo de indeferimento, e, em consequência, absolveu o R., MUNICÍPIO ..., da instância. Sustenta a recorrente que o despacho impugnado nos autos não se pronunciou sobre o sentido de quaisquer cláusulas contratuais, mas antes sobre a admissibilidade legal de um direito conferido à Recorrente pelo Decreto-Lei n.º 36/2022; prova de que se trata de um ato administrativo é, precisamente, o facto de essa decisão produzir efeitos por si só, sem necessidade de intervenção de um tribunal; o indeferimento produziu efeitos sem a intervenção de nenhum tribunal e o preço do contrato continua por rever, não obstante os critérios legais de aplicabilidade do Decreto Lei n.º 36/2022 serem critérios objetivos que, à partida, dependem apenas de um exercício abstrato de subsunção normativa; apenas num exercício de extrema abstração mental se poderia considerar que a Recorrente e a Recorrida estão em plano de igualdade de armas no que concerne à aplicação do regime de revisão extraordinária do Decreto-Lei n.º 36/2022, pois que o mero facto de, perante a decisão administrativa de indeferimento, não restar qualquer mecanismo de reação com efeito útil que não seja a sua impugnação judicial, demonstra radicalmente que as partes não estão em posições de igualdade; Por outro lado, as próprias existência, intenção legislativa e natureza do Decreto-Lei n.º 36/2022 impõe que a decisão proferida pela entidade administrativa assuma a natureza de ato administrativo; A intenção legislativa que motivou esse diploma foi a consagração de um regime legal extraordinário para rever o preço de contratos públicos afetados pela inflação decorrente da pandemia e do conflito militar no leste da Europa.; Essa inflação é uma alteração anormal das circunstâncias, mas o legislador dispensa a prova dos requisitos comuns da alteração anormal das circunstâncias, fixando 2 critérios objetivos de cuja verificação decorre ipso facto o direito de rever o contrato: o peso relativo de, pelo menos 3% do preço contratual por um elemento da estrutura de custos e a sua variação homóloga em 20% ou mais. Verificados estes requisitos substantivos, o direito de revisão torna-se numa decisão vinculada, sem prejuízo dos requisitos formais do requerimento a apresentar; , o artigo 307.º, n.º1 CCP constitui uma norma excecional face à norma geral de que as decisões de entidades administrativas revestem a forma de ato administrativo – o n.º2 desse artigo, na medida em que constitui uma exceção a uma exceção limita-se a delimitar negativamente a primeira exceção, repondo nos casos por si previstos o regime geral. Conclui, assim, a recorrente que o saneador-sentença ora recorrido incorre numa incorreta interpretação do direito aplicável, determinando uma decisão ilegal. Mais sustenta a recorrente que mesmo que se concordasse com o sentido do saneador-sentença ora recorrido, o facto é que a consequência lógica do mesmo seria a convolação dos autos, adaptando o processo para o reconhecimento do direito da Recorrente à revisão do contrato; ao indeferir liminarmente a pretensão da Recorrente sem sequer ponderar a convolação dos autos, o tribunal a quo violou o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 2.º CPTA. Vejamos então. A autora deduziu acção administrativa, nos termos que constam da sua petição inicial, peticionando a final: “Nestes termos e nos mais de direito requer a V. Exa. se digne julgar a presente ação procedente, por provada, e, consequentemente, anule o ato administrativo consubstanciado na decisão da entidade demandada de indeferimento do pedido de revisão extraordinária de preço, datada de 30 de maio de 2023, determinando à entidade demandada a obrigação de emitir novo ato administrativo que defira a revisão extraordinária de preço nos termos peticionados pela Autora”. A sentença recorrida concluiu pela falta do pressuposto para a condenação à prática de ato administrativo devido, concretamente, um ato administrativo de indeferimento e, assim, absolveu o R. da instância. Conforme resulta do probatório, a A., por comunicação datada de 9.5.2023 apresentou ao MUNICÍPIO ... pedido de revisão extraordinária de preços no âmbito do contrato de prestação de serviços de recolha de serviços urbanos e limpeza pública; Em 31.5.2023 o Presidente da CM... proferiu despacho de “Nos termos e com os fundamentos das informações técnicas prestadas no presente processo e na proposta apresentada pelo Vereador do Pelouro Eng.º «AA», indefiro o pedido de revisão extraordinária de preços, apresentada pela cocontratante [SCom01...], ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 35.º anexo I à Lei 75/2013”; Por oficio datado de 31.5.2023 foi a A. notificada, da qual se extrai o seguinte: [Imagem que aqui se dá por reproduzida] Por comunicação de 14.6.2023 a A. requereu, [Imagem que aqui se dá por reproduzida] Em 6/7/23 o Presidente da CM... proferiu o seguinte despacho, [Imagem que aqui se dá por reproduzida] E, em 10.7.2023 a A. foi notificada nos seguintes termos: [Imagem que aqui se dá por reproduzida] Temos, por conseguinte, que a pretensão da A. dirigida ao Município e fundada no regime excecional e temporário de revisão de preços de contratos públicos, previsto no DL nº36/2022, de 20 Maio, foi indeferida pelo Município. Em face da decisão do Município, a A. vem, através da apresentação de acção administrativa, formular um pedido de anulação dessa decisão que apelidou de “acto administrativo”, e da consequente obrigação do Município a emitir nova decisão que defira a revisão extraordinária de preço, tal como foi peticionado pela A., que apelidou de “novo ato administrativo”. A sentença recorrida focou a sua análise nos termos em que vinha formulado o pedido dirigido ao acto praticado, debruçando-se sobre o conceito de acto administrativo e de declaração negocial para concluir que a “pronúncia do contraente público quanto ao pedido de revisão extraordinária não consubstancia um ato administrativo. (…) por isso, assumindo a natureza de mera declaração negocial, essa medida, naturalmente, que também não pode este Tribunal condenar o R. à prática do ato administrativo de deferimento da proposta de revisão de preços extraordinária nos termos requeridos pela A., por o ato a praticar não corresponder a qualquer ato administrativo”. Mais refere a sentença recorrida que “Não estando em causa qualquer ato administrativo impugnável, o que se impunha é que a A. tivesse instaurado ação administrativa peticionando a condenação do R. ao reconhecimento do direito à revisão de preços nos termos da fórmula por si proposta e, sendo o caso, ao pagamento de quantia devida a título de revisão extraordinária de preço”, concluindo, que, assim “se verifica a exceção dilatória inominada de falta de verificação do pressuposto para a condenação à prática de ato administrativo devido, concretamente, que tenha sido praticado um ato administrativo de indeferimento, o que determina a absolvição da Entidade Demandada da instância”. Vejamos. Em sede dos contratos públicos, as declarações do contraente público sobre a execução e interpretação do contrato como o que aqui está em causa- contrato de prestação de serviços de recolha de serviços urbanos e limpeza pública - devem ser entendidas como meras declarações negociais, só revestindo a natureza de actos administrativos as declarações contratuais proferidas no âmbito dos poderes de autoridade do contraente público que lhe foram confiados para prossecução do interesse público subjacente ao contrato. Como escreve Mário Aroso de Almeida, in O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, págs. 109-110, “A melhor doutrina é a que sugere que, por regra, as declarações que a Administração produza no âmbito das suas relações contratuais mesmo em sede de execução de contratos não devem ser qualificadas como actos administrativos, mas como meras declarações negociais sem carácter imperativo, susceptíveis de serem discutidas, sendo caso disso, no âmbito de uma acção de plena jurisdição. Este é, na verdade, o entendimento mais consentâneo, (…) com uma perspectiva moderna e democrática das relações jurídico-administrativas e do papel que às entidades públicas e aos particulares deve corresponder no quadro dessas relações”. O CCP procede à qualificação das declarações emitidas pelo contraente público sobre interpretação e validade do contrato como meras declarações negociais posição que se mostra reflectida no artigo 307.º do CCP que com a epígrafe “Natureza das declarações do contraente público” estabelece o seguinte: “1 - Com exceção dos casos previstos no número seguinte, as declarações do contraente público sobre interpretação e validade do contrato ou sobre a sua execução são meras declarações negociais, pelo que, na falta de acordo do cocontratante, o contraente público apenas pode obter os efeitos pretendidos através do recurso à ação administrativa. 2 - Revestem a natureza de ato administrativo as declarações do contraente público sobre a execução do contrato que se traduzam em: a) Ordens, diretivas ou instruções no exercício dos poderes de direção e de fiscalização; b) Modificação unilateral das cláusulas respeitantes ao conteúdo e ao modo de execução das prestações previstas no contrato por razões de interesse público; c) Aplicação das sanções previstas para a inexecução do contrato; d) Resolução unilateral do contrato; e) Cessão da posição contratual do cocontratante para terceiro”. Sobre “Os poderes de conformação da relação contratual: distinção entre acto administrativo e direito potestativo administrativo” escreve RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA em JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.° 63 • Maio/Junho 2007 o seguinte: “relevando (acto administrativo e poder potestativo) de uma certa ideia de poder – (de conformação unilateral de posições jurídicas alheias) –, trata-se, em todo o caso, de um poder ou autoridade bem distintos, de natureza e força muito diversas. Assim, enquanto o direito potestativo se esgota na capacidade de introduzir uma modificação na esfera jurídica de outrem, já o poder (público de autoridade) de que constitui manifestação o acto administrativo não se consome nessa virtualidade, vai mais longe, porque aí a modificação é acompanhada de uma especial sanção do ordenamento jurídico, a executividade. É que o acto administrativo é, como se sabe, legalmente configurado como um título executivo, como um documento sufi ciente para invocar uma dada situação jurídica e dotado de aptidão para, por si só, fundar uma actividade executiva, seja ela administrativa ou judicial (…)diferente potência jurídico-formal de uma e outra figura. Na verdade, quando o efeito jurídico que interfere com o contrato (ou com a posição do co-contratante) é determinado por acto administrativo, a Administração, em caso de inadimplemento da medida decretada, passa imediatamente, se o acto for exequível, para um procedimento administrativo de execução ou para um processo judicial executivo, consoante o que resultar da lei (por exemplo, do art. 187.° do CPA). Se, pelo contrário, a mutação for determinada por acto negocial, então, em caso de incumprimento do que for aí estabelecido, não resta em princípio ao contratante público senão propor uma acção declarativa, para obter do tribunal a condenação do co-contratante no comportamento devido. (…)”. Ora, atentando ao teor dos ofícios do Recorrido, relativos à posição assumida quanto ao pedido de aplicação ao contrato do regime extraordinário de preços ao abrigo do DL n.º 36/2022, de 20 de Maio, não assiste razão à Recorrente que sustenta que os actos em crise configuram actos administrativos, porquanto, os mesmos traduzem-se em declarações do contraente público sobre a execução do contrato em causa, mais propriamente declarações de não aplicação do regime de revisão extraordinária de preços, nos termos nela definidos no DL n.º 36/2022, de 20 de Maio e, assim, mediante o uso de um direito potestativo que lhe assiste e que surge em termos de vinculação paritária “no contexto de uma típica lógica de contrato, de consenso ou de pactum, em que as partes manifestam as suas vontades e interesses através de declarações negociais” – cfr. Pedro Gonçalves, in O Contrato Administrativo — Uma Instituição de Direito Administrativo do Nosso Tempo», Almedina, 2003, p. 121 – sem se vislumbrar, assim, o exercício de poderes especiais de interesse público ou de supremacia. Pelo que, tal como sustentado na decisão recorrida, as declarações de não aplicação do regime de revisão extraordinária de preços com as quais a A./recorrente não se conforma, não configuram actos administrativos, mas antes declarações negociais que podem ser objecto de acção administrativa, nos termos do disposto no artigo 37.º, n.º 1, alínea l) do CPTA, acção essa que pode sempre ser proposta a todo o tempo – cf. artigo 41.º do CPTA. Tendo presente que a A. na acção que intentou qualificou mal a decisão que foi proferida e de que foi destinatária a propósito da aplicação ao contrato celebrado entre A. e R. do regime excepcional de revisão de preços, será que ainda assim, oferece razão à recorrente quando sustenta que a consequência lógica seria a convolação dos autos, adaptando o processo para o reconhecimento do direito da Recorrente à revisão do contrato e que, ao indeferir liminarmente a pretensão da Recorrente sem sequer ponderar a convolação dos autos, o Tribunal a quo violou o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 2.º CPTA? O pedido que a A. formula na sua petição inicial vem dirigido ao conteúdo material da decisão que afastou a aplicação do regime de revisão extraordinária de preços ao contrato em causa, por considerar que não estavam reunidos os critérios de elegibilidade, extraindo-se dessa decisão o seguinte: [Imagem que aqui se dá por reproduzida] Significa, portanto, que quanto ao pedido de revisão de preços ao abrigo do DL n.º 36/2022, de 20 de Maio, o dono da obra recusa in totum a proposta de revisão de preços apresentada pela A. Perante esta posição do contraente público e discordando dela gerou-se um litígio entre este e a A./recorrente sobre a legalidade da conduta do ente público, no âmbito do contrato, a ser dirimido em sede de acção administrativa destinada à condenação do R. ao reconhecimento do direito à revisão de preços de acordo com a proposta que formulou – artº 37º, nº1, alínea f) e não à anulação de um acto (administrativo) e subsequente condenação na prática de acto devido (de deferimento do pedido de revisão extraordinária de preços). Na verdade, a decisão em crise traduziu-se num acto do contraente público que consubstanciou o exercício de poderes potestativos emergentes do contrato administrativo, sendo que actos do género, em regra, não constituem actos administrativos É certo que a A. constrói a acção em redor dessa decisão referindo, como vimos, no introito da petição inicial que peticiona “a anulação do ato administrativo consubstanciado na decisão da entidade demandada de indeferimento do pedido de revisão extraordinária de preço, datada de 30 de maio de 2023” e no petitório que “requer (…) se digne julgar a presente ação procedente, por provada, e, consequentemente, anule o ato administrativo consubstanciado na decisão da entidade demandada de indeferimento do pedido de revisão extraordinária de preço, datada de 30 de maio de 2023, determinando à entidade demandada a obrigação de emitir novo ato administrativo que defira a revisão extraordinária de preço nos termos peticionados pela Autora” quando, perante o indeferimento do pedido de revisão extraordinária do preço, no âmbito da execução do contrato celebrado entre A. e R., devia ter peticionado que, em substituição dessa decisão devia ser proferida decisão que reconhecesse o direito a essa revisão. Não obstante aquela configuração, isto é, o erro na qualificação da decisão em crise, a Recorrente tem razão quando afirma que mesmo que se concordasse com o sentido do saneador-sentença, a consequência lógica do mesmo seria a convolação dos autos, adaptando o processo para o reconhecimento do direito da Recorrente à revisão do contrato, à luz do princípio pro actione (cf. artigos 7.º do CPTA, e 20.º e 268.º da CRP) na interpretação das peças processuais, princípio que “visa garantir que serão rigorosamente observadas todas as condições para que a lide processual fique subordinada à salvaguarda da real e substantiva possibilidade de afirmação material das respectivas pretensões, sem a colocação de entraves iníquos, obstáculos de índole processual desproporcionados ou excessivamente formalistas que, as impeçam, diminuam ou dificultem injustificadamente, com primado da substância (verdade material) sobre a forma (verdade estritamente processual) –, do direito de acção e do direito à tutela jurisdicional efectiva consagrados no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa” – Acórdão do STJ de 15 de Março de 2023, Processo 955/22.4T8VIS-A.C1.S1. Assim, a interpretação da petição inicial em conformidade com o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, permite retirar qual a verdadeira pretensão de tutela jurídica, isto é, o reconhecimento do direito à peticionada revisão extraordinária de preços nos moldes requeridos pelo co-contratante, ora recorrente, razão pela qual, se impõe revogar o despacho saneador-sentença recorrido, ordenando-se a baixa dos autos à 1.ª instância, com vista ao seu prosseguimento. * IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Administrativa, Subsecção de Contratos Públicos, do Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar o despacho saneador-sentença recorrido, ordenando-se a baixa dos autos, com vista ao seu prosseguimento para conhecimento do mérito da acção, se nada mais a tal obstar. Custas pelo recorrido – artº 527, nºs 1 e 2 do CPC. Notifique. Porto, 25 de Outubro de 2024. Maria Clara Ambrósio Ricardo de Oliveira e Sousa Tiago Afonso Lopes de Miranda |