Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00027/21.9BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:09/13/2024
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:ROGÉRIO PAULO DA COSTA MARTINS
Descritores:LEI DA AMNISTIA; APLICAÇÃO AO PROCESSO JUDICIAL; IDADE;
SANÇÃO DA SUSPENSÃO DE FUNÇÕES; RESTITUIÇÃO DE SALÁRIOS; INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE;
ARTIGOS 6º E 14.º DA LEI DA AMNISTIA (LEI N.º 38-A/2023, DE 02.08);
Sumário:
1. A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais.

2. Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08): “Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.”

3. A ideia subjacente a este preceito é a seguinte: competente para aplicar as medidas previstas na Lei da Amnistia é quem aplicou a sanção criminal ou disciplinar.

4. Os juízes, em qualquer instância judicial, não são os juízes do “julgamento” da infracção nem da condenação. E apenas podem aplicar a Amnistia a sanções aplicadas nos processos judiciais, como decorre, a contrario, do citado preceito. Não podem aplicar a Lei da Amnistia, directamente, nos processos administrativos, disciplinares. Fazendo-o, violam o referido artigo 14.º da Lei da Amnistia e, com ele, o princípio constitucional da separação de poderes.

5. Não importa aqui saber se a Lei da Amnistia tem eficácia ex tunc ou ex nunc. Importa extrair da Lei da Amnistia a única solução compatível com a letra da lei: o tribunal não pode aplicar a Lei da Amnistia ao caso concreto em processo administrativo. E sendo certo que retirar efeitos jurídicos para o processo judicial da Lei da Amnistia aplicável ao processo disciplinar é aplicar a Lei da Amnistia no processo administrativo.

6. Os artigos 6º e 14º da Lei da Amnistia de 2023, na interpretação contrária a esta, são inconstitucionais, por violação do princípio constitucional, da separação de poderes.

7. No caso concreto não se poderia, mesmo sob entendimento diverso destas normas, aplicar a Lei da Amnistia por o autor ter 47 anos à idade da prática dos factos - artigo 6º da Lei da Amnistia.

8. E não se verifica, de qualquer forma, inutilidade superveniente da lide, quando, vendo o autor o acto anulado por decisão judicial no termo do processo, pedido deduzido no articulado inicial, tem a possibilidade de, em execução de julgado, ver reconstituída a situação que existiria não tivesse sido a prática do acto anulado.

9. Como seja, receber a remuneração relativa aos dias em que esteve suspenso, ver esse período contar para efeitos de antiguidade e para o gozo de férias. E receber, ainda, eventual indemnização pelos prejuízos causados com a suspensão, por si mesma.

10. Por outro lado, procedendo a acção com base no vício de erro nos pressupostos, por não ter sido praticada a infraçcão pela qual foi punido, o Autor verá reposta a sua imagem e o bom nome, pessoal, social e profissional, direito e legítimos interesse a defender, também, na acção de impugnação.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

O Ministério Público e «AA» vieram interpor RECURSOS JURISDICIONAIS da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, de 05.01.2024, proferida na acção administrativa que «AA» moveu contra o Ministério da Justiça para a anulação do despacho de 30.07.2020, prolatado no procedimento disciplinar n.º AUD.D/2019/14, pelo qual lhe foi aplicada a sanção disciplinar de suspensão pelo período de 90 dias.

O Ministério Público invocou para tanto em síntese que a decisão recorrida padece de erro de julgamento na aplicação do direito por violação (interpretação errónea) do disposto nos artigos 6. °, e 11.° da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto e 277.°, alínea e), do Código de Processo Civil.

O Recorrente «AA» invocou para tanto, em síntese, que a decisão recorrida para além de insuficientemente fundamentada, de facto e de direito, incorreu em erro de julgamento porque a instância não se torna inútil com a aplicação da amnistia, pelo contrário desta resulta na prática a sua condenação sem possibilidade de defesa do seu bom nome e sem reparação dos prejuízos sofridos com a injusta pena de suspensão que lhe foi aplicada.

O Recorrido contra-alegou defendendo a manutenção da decisão recorrida.

*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.

*
I.I. - São estas as conclusões das alegações do recurso interposto pelo Ministério Público que definem o objecto deste recurso jurisdicional:

A.
No acórdão n.° 510/98, o Tribunal Constitucional concluiu que o efeito principal da amnistia é o impedimento de que “o agente sofra a sanção a que poderia vir a ser (ou a que já foi) «condenado», ficando em aberto - ou seja, dependendo de pronúncia expressa do legislador - a possibilidade de serem produzidos outros efeitos jurídicos, “como a da restituição dos direitos ... ou de aproveitar aos reincidentes ..., ou o do apagamento da sanção no registo, por exemplo”. No caso da amnistia prevista no artigo 6.° da Lei n.° 38-A/2023 não existem outros efeitos legalmente previstos, pelo que a amnistia das infracções disciplinares abrangidas por aquela norma se limita ao efeito principal, ou seja, a neutralizar os efeitos da sanção aplicável à infracção disciplinar que deixa de ser punível por efeito da referida norma de amnistia. No mais, os efeitos da amnistia são aqueles que decorrem das regras estipuladas no respectivo regime jurídico disciplinar.

B.
Do regime jurídico disciplinar resulta que a conduta deixa de poder ser punida, se estivermos na fase procedimental (antes da prática do acto que determina a aplicação da sanção disciplinar) ou que a sanção deixa de ser exequível, se estivermos na fase de execução da sanção, sem produção de efeitos anulatórios em relação à (totalidade ou parte) da sanção já executada. Assim, os efeitos da amnistia não se sobrepõem nem se confundem com os efeitos anulatórios do acto que aplica a sanção disciplinar. E esta diferença é essencial para aquilatar do preenchimento ou não dos requisitos da inutilidade superveniente da lide no âmbito de um litígio a respeito de um pedido de anulação de um acto que determinou a aplicação de uma sanção disciplinar, já executada, e que, entretanto, venha a ser amnistiada.

C.
O Tribunal Constitucional foi já confrontado com o problema da relação jurídica que se estabelece entre os efeitos da amnistia e os efeitos da anulação do acto que aplica a sanção disciplinar, mais concretamente, foi convocado a apreciar se se pode ou não qualificar como violadora do direito à tutela jurisdicional efectiva a interpretação normativa segundo a qual a da amnistia resulta ipso iure a inutilidade superveniente da lide da acção administrativa de anulação do acto que determinou a aplicação da sanção disciplinar (veja-se, entre outros, o acórdão 116/01). Nessa ocasião, o legislador deu nota de que “os efeitos concretos da infracção amnistiada que são eliminados, assim como as repercussões processuais da medida também poderão ser livremente conformadas pelo legislador” e que “a aplicação da amnistia não poderá, naturalmente, limitar, ainda que reflexamente, de modo inevitável outros direitos fundamentais do agente beneficiário”, designadamente, no âmbito da garantia da tutela jurisdicional efectiva, o direito à reconstituição da situação hipotética actual quando a sanção disciplinar tenha sido aplicada por um acto ilegal. O Tribunal Constitucional concluiu, no âmbito da Lei n.° 29/99, de 12 de maio, que o facto de o amnistiado ter de anuir em relação aos efeitos da amnistia (artigo 10.°) era um requisito suficiente para assegurar a realização da garantia da tutela jurisdicional efectiva, pois era o amnistiado que, com base na lei, prescindia da prossecução do meio processual anulatório e da chance que dele poderia obter no caso da respectiva procedência, sendo essa escolha legalmente oponível.

D.
No caso dos autos, cumpre salientar, que na Lei n.º 38­A/2023 inexiste qualquer previsão legal de opção do amnistiado de uma infracção disciplinar, o que significa, em nosso entendimento, que os efeitos destas amnistias apenas neutralizam a utilidade da acção anulatória quando o amnistiado possa efectivamente retirar, no caso concreto, um benefício útil dos efeitos da amnistia, revelando-se aquele instituto (o da amnistia) totalmente inútil nas situações de “amnistia imprópria” em que a sanção já se encontra integralmente cumprida. O que não se verifica neste caso, uma vez que a acção proposta pelo A. visava obter a anulação do acto que lhe aplicara a sanção disciplinar de suspensão pelo período de 90 dias.

E.
Neste contexto, resulta da decisão objecto de recurso, que julga verificados os pressupostos da inutilidade superveniente da lide, a impossibilidade de o amnistiado vir a ter reconstituída a sua situação hipotética actual, em caso de eventual procedência dos pedidos, e, em contraponto, desta decisão não resulta para a sua esfera jurídica nenhum benefício ou efeito útil; apenas a perda de chance.

F.
A decisão objecto de recurso incorre nos seguintes equívocos:
- em primeiro lugar, concluí pela existência de um direito disponível do amnistiado, quando inexiste fundamento legal expresso para o efeito, pois ao não estar prevista a obrigação de notificação do amnistiado nos casos das infracções disciplinares, isso significa que o efeito da amnistia só pode razoavelmente produzir-se se existir uma efectiva opção ou faculdade do A. face à tramitação da acção anulatória, isto é, quando o efeito legal da amnistia tenha utilidade efectiva, uma utilidade contraponível à da lide anulatória (aos interesses que o A. visa prosseguir na acção) e não, como é o caso aqui, sem que uma tal utilidade exista;
- por outro lado, extende a aplicação do artigo 11.° da Lei n.° 38-A/2023 às infracções disciplinares. Ora, os os arguidos apenas e tão só por pelas infracções previstas no artigo 4.° (infracções penais) podem requerer no prazo de 10 dias a contar da entrada em vigor da lei em causa (v.g. 01.09.2023), que a amnistia não lhes seja aplicada (cfr. artigo 11.°, n.° 1, da referida Lei). A amnistia, configurando uma graça ou merçê de quem detem o poder de legislar, relegando para o “esquecimento” alguns factos ilícitos, não pode deixar de ser vista como uma medida de excepção, a interpretar nos exactos termos em que está redigida, com exclusão de interpretações extensivas e/ou analógicas. Nesta conformidade, mostra-se excluída a extensão da norma prevista no artigo 11.°, n.° 1, da referida Lei, bem como a sua aplicação analógica, às situações de facto que versem sobre as infrações disciplinares.

G.
Inexistindo no caso concreto base legal para determinar a inutilidade superveniente da lide, atento o facto de a amnistia não poder produzir qualquer efeito útil para o A. da acção anulatória, basta a oposição à extinção da instância para que aquele efeito se não possa produzir. Inexistindo um fundamento razoável para a perda de interesse do A. na lide, e não tendo este verbalizado expressamente essa opção através da uma via formal de desistência do pedido, com as respectivas consequências legais, inexiste base legal que sustente a solução da decisão objecto de recurso. O A. não colhe qualquer efeito útil da decisão de inutilidade superveniente da lide. Pelo contrário, dela resulta para a sua esfera jurídica a consolidação dos efeitos jurídicos da sanção com que ele não se conformou ao interpor a presente acção, a que se soma a perda de chance relativamente a uma eventual procedência da acção anulatória da sanção disciplinar. Pelo que a interpretação normtiva sufragada na decisão objecto de recurso é dificilmente harmonizável com a garantia da tutela jurisdicional daquele.

H.
Não se nos afigura igualmente válido o fundamento de que inexiste neste caso uma condenação transitada em julgado, pois a circunstância de estar pendente a acção de anulação do acto que aplicou a sanção disciplinar, e que assim fica por julgar por efeito da extinção da instância, em nada altera o que acabámos de afirmar. Pelo contrário, a extinção da instância tem como único resultado a consolidação dos efeitos decorrentes da aplicação da sanção disciplinar.

I.
Não pode, assim, o Ministério Público conformar-se com a sentença proferida por entender que não foi feita uma correcta aplicação do direito aos factos em discussão, padecendo de erro de julgamento na aplicação do direito por violação (interpretação errónea) do disposto nos artigos 6.°, e 11.° da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de Agosto e 277.°, alínea e), do CPC, que se impõe expurgar.

*

I.II - São estas as conclusões das alegações do recurso interposto por «AA» que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1ª: O Recorrente, salvo melhor opinião, entende que a sentença recorrida merece censura pela deficiente fundamentação de direito.

2ª: Inexiste, na sua opinião, fundamento para a aplicabilidade da Lei da Amnistia,

3ª: Já que o pressuposto da idade, em nosso modesto entendimento, não é exclusivo das infrações penais; mas,

4ª: Também se estende às infrações disciplinares.

5ª: A sentença ora em crise não deu como provados quaisquer outros factos para além dos mencionados supra em A);

6ª: Nomeadamente, os alegados pelo recorrente.

7ª: Omitindo (a sentença recorrida) a justificação/fundamentação para chegar a estes - e não outros - factos provados.

8ª: Sendo efetivamente aplicada a lei da amnistia, e porque o Autor cumpriu já, na íntegra, a sanção de suspensão por 90 dias, não verá destruídos estes efeitos,

9ª: Isto é, não lhe será restituído o salário correspondente ao tempo de serviço em que esteve suspenso e,

10ª: Nem contabilizados os dias de suspensão para efeitos de antiguidade, ficando o registo no seu registo disciplinar, o que pode trazer consequências, de futuro, a nível de avaliação e progressão na carreira.

11ª: Para o recorrente não resulta nenhum efeito útil da aplicação da lei da amnistia nos presentes autos.

12ª: Antes pelo contrário, da sua aplicação resulta, na prática, uma injusta condenação, não só na sanção disciplinar (já cumprida e com o consequente resisto disciplinar para o Autor) como também no pagamento das custas na proporção de metade.

13ª: Por outro lado, prosseguindo o processo, nele certamente será dada como provada a inexistência da infração disciplinar,

14ª: Caso em que o Autor verá reconhecida a razão e a justiça da sua já longa e difícil luta, e

15ª: Reposta, de algum modo a imagem e o bom nome pessoal, social e profissional do Autor.

16ª: Luta que é extensível a outros três processos que correram e correm termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, todos relacionados entre si, com o n.º 473/19.8BEMDL (que julgou procedente a ação intentada pelo Autor); n.º 233/19.6 BEMDL (que julgou procedente a ação intentada pelo Autor) e nº 225/20.2BEMDL (que ainda está pendente), e

17ª: cujas sanções disciplinares foram sendo sequencialmente agravadas em virtude da existência dos anteriores processos/condenações.

18ª: Acresce que a situação (de quase perseguição) perdura internamente e o Autor só não propôs mais e novas ações tendentes à anulação de atos administrativos que o lesam porque a sua situação económico-financeira não lho permite em consequência das sanções disciplinares aplicadas que lhe coartaram o direito a parte do seu vencimento.

19ª: Até porque estes autos são nada mais nada menos do que a consequência/retaliação pela reclamação da nota dada pelo Sr. Chefe Principal, que corre termos com o n.º 225/202BEMDL no TAF de Mirandela.

20ª: E em que a única testemunha do suposto ofendido nestes autos (inferior hierárquico direto daquele que o avalia e de quem depende para progredir na carreira) e de onde decorre a suposta infração disciplinar assacada ao Autor, é também a testemunha que, no Proc. n.º 473/19.8BEMDL, muda o seu depoimento em sede de processo disciplinar por duas vezes e,

21ª: Em sede de julgamento apresenta uma terceira versão dos factos, o que abona muito pouco acerca da sua credibilidade e veracidade.

22ª: Ao invés, o Autor/recorrente tem diversas testemunhas, entre elas os demais graduados de serviço, que comprovam a veracidade dos factos por si indicados na petição inicial.

23ª: Assim, aplicando-se a lei da amnistia a estes autos e julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, isso traduzir-se-á, na prática, numa condenação do Autor, a quem será coartada a possibilidade de REPOR A VERDADE E a JUSTIÇA pois está INOCENTE,

24ª: Por seu turno, com o prosseguimento dos Autos, o recorrente terá a possibilidade de provar que foi vítima de uma cabala contra si, levada a cabo por um graduado de serviço que, usando e abusando do cargo e do poder que o mesmo lhe confere, enxovalha e humilha um funcionário exemplar.
*

II -Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1) O Autor é Guarda Prisional, detendo o número de identificação profissional 4250, estando afecto ao Estabelecimento Prisional ....

- Cf. nota biográfica inserta a fls. 29 a 36 do P.A. - ref.ª ...62...; também a informação de fls. 252 do P.A. - ref.ª ...68....

2) Por despacho do Director Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, datado de 19-03-­2019, foi instaurado, contra o Autor, o procedimento disciplinar n.º AUD.D/2019/14, por actos por si praticados em Março de 2019.

- Cf. documentação inserta a fls. 02 a 10 do P.A. - ref.ª ...62...; e 198 a 230 do P.A. - ref.ª ...68....

3) Em 24-07-2019, foi elaborado o relatório final do procedimento disciplinar mencionado no ponto anterior, tendo, aí, sido proposta a aplicação ao Autor da sanção disciplinar de demissão.

- Cf. relatório final, inserto a fls. 198 a 230 do P.A. - ref.ª ...68...; cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

4) Em 30-07-2020, o Diretor Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, proferiu despacho, pelo qual, aderindo aos fundamentos de facto e de Direito constantes do relatório final referido no ponto anterior, mas discordando da sanção ali proposta, determinou a aplicação ao Autor da sanção disciplinar de suspensão efetiva pelo período de 90 dias

- Cf. despacho inserto a fls. 233 a 234 do P.A. - ref.ª ...68..., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

5) Em 06-08-2020, o Autor tomou conhecimento pessoal do teor do despacho acabado de referir.

- Cf. ofício de notificação pessoal, de fls. 252 do P.A. - ref.ª ...68...;

6) Em 21-08-2020, deu entrada, por via eletrónica, na Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, o recurso hierárquico da decisão mencionada acima mencionada, interposto pelo aqui Autor.

- Cf. documentação inserta a fls. 262 a 307 do P.A. - ref.ª ...68..., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

7) Em 08-09-2020, o Director Geral de Reinserção e Serviços Prisionais determinou que os autos de recurso hierárquico fossem presentes ao Secretário de Estado Adjunto e da Justiça.

- Cf. despacho de fls. 346 e 347 do P.A. - ref.ª ...68....

8) Por despacho, com a data de 19-10-2020, o Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, aderindo aos fundamentos expendidos na informação n.° I-SGMJ/2020/549, da Direcção de Serviços Jurídicos e de Contencioso da Secretaria-Geral do Ministério da Justiça, negou provimento ao recurso hierárquico acabado de referir.

- Cf. despacho e informação insertos a fls. 02 a 10 do P.A. - ref.ª ...69..., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

9) Em 28-10-2020, o Autor tomou conhecimento pessoal do teor do despacho referido no ponto que antecede.

- Cf. ofício de notificação pessoal, de fls. 15 do P.A. - ref.ª ...69....

10) O Autor cumpriu a sanção de suspensão entre os dias 06-08-2020 e 21-08-2020, e entre 28-10-2020 e 09-01-2021.

- Cf. informação inserta a fls. 29 do P.A. - ref.ª ...69...;

11) Em 22-01-2021, deu entrada, neste Tribunal Administrativo e Fiscal, a petição inicial referente à presente acção administrativa.

- Cf. comprovativo de entrega de articulado, inserto com a ref.ª 004388954-SITAF.

Importa ainda aditar o seguinte facto, com relevo e documentado nos autos:

12) O Autor nasceu em ../../1971.

- Cf. fls 25 do volume 1 do processo administrativo.

*

III - Enquadramento jurídico.

A decisão recorrida procedeu ao seguinte enquadramento jurídico, na parte aqui relevante:
“(…)

Em 01-09-2023, entrou em vigor a Lei n.° 38-A/2023, de 2 de agosto, da Assembleia da República, através da qual foi estabelecido um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização, em Portugal, da Jornada Mundial da Juventude (artigos 1.° e 15.°).

De acordo com o artigo 2.°, n.° 2, a), estão, entre o mais, abrangidas pela Lei n.° 38­A/2023 as sanções relativas a infrações disciplinares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.°.

Neste último artigo, prevê-se que são amnistiadas as infrações disciplinares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei n.° 38-A/2023, e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.

Contrariamente ao que sucede no caso das sanções penais, relativamente às quais o artigo 2.°, n.° 1 daquele diploma legal faz depender a amnistia da idade dos arguidos à data dos factos [que deve situar-se entre os 16 e os 30 anos de idade], a concessão da amnistia das infrações disciplinares não tem como pressuposto a idade dos trabalhadores, exigindo-se somente que a infração em causa tenha sido praticada até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, não constitua simultaneamente ilícito penal não amnistiado por aquela mesma lei, e não implique a aplicação de uma sanção superior à suspensão ou prisão disciplinar.

Vejamos, então.

Os denominados atos de graça abrangem a amnistia, o perdão genérico, e o perdão individual / particular (indulto e comutação), consoante o ato respeite ao facto praticado ou à pena concretamente aplicada, e abranja um caso concreto, ou um grupo de situações, em função das caraterísticas do facto praticado, ou do seu agente (a este respeito, vejam-se os artigos 134.°, f) e 161.°, f) da CRP).

Em particular, a amnistia é uma instituição de clemência da competência - constitucionalmente consagrada (cf. artigo 161.°, f) da CRP) - da Assembleia da Republica, que pode resultar na extinção do processo penal (amnistia em sentido próprio) ou na extinção da pena e dos seus efeitos (amnistia em sentido impróprio). De facto, no caso de a amnistia abranger infrações pelas quais já existam sanções aplicadas, ela impedirá a sua execução na eventualidade do respetivo cumprimento não se ter ainda iniciado, ou estar em curso, mas não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da mesma, independentemente de a amnistia dever ser averbada o competente processo individual do arguido (neste caso, fala-se, então, em amnistia imprópria – cf., entre outros, o Acórdão do TCA-Sul, de 11-04-2002, proc. n.° 3752/99, acessível em www.dgsi.pt).

Deve, no entanto, atender-se a que estes efeitos impróprios se justificam, no caso do Direito Penal, pelo facto de, contrariamente ao que sucede no domínio disciplinar, as penas (de multa e prisão) apenas poderem ser executadas após o trânsito em julgado das respetivas decisões condenatórias (cf. os artigos 477.° e 489.° do CPP).

É que, no domínio do Direito disciplinar, a sanção é aplicada por ato administrativo que, por regra, produzirá os seus efeitos com a notificação ao interessado, ainda que este possa, depois disso, discutir a legalidade da decisão em Tribunal, por via impugnatória, havendo, nesse caso, a possibilidade de obter a expurgação dos efeitos de tal ato, caso a ação seja julgada procedente.

Entende, por isso, este Tribunal que a não destruição efeitos já produzidos pela aplicação / execução da sanção, depois de concedida uma amnistia, só tem razão de ser nos casos em que a execução dessa sanção resulte de uma decisão consolidada na ordem jurídica, o que não sucede nos casos em que um trabalhador punido disciplinarmente impugne, dentro do prazo, perante um tribunal, o ato administrativo de aplicação da pena disciplinar [ainda que a execução da sanção já tenha iniciado, ou até terminado], mas sucede já no domínio do Direito penal, pelo facto de, como se disse, as penas de prisão e de multa só poderem ser executadas depois de transitadas em julgado as decisões condenatórias respetivas [identicamente, cf. o Aresto do STJ, de 21-12-2021, proc. n.° 11/21.2YFLSB, disponível em www.dgsi.pt].

Como bem se refere no mencionado Acórdão, que acompanhamos, “[...] De todo o modo, por outro lado ainda, e mais decisivamente, não se pode acompanhar o autor no paralelismo com o trânsito em julgado da sentença condenatória porque não corresponde sequer à verdade que a sanção disciplinar se consolide, apesar de começar a produzir efeitos [...]”.

Por aqui se vê como é diferente toda a lógica da execução das sanções no domínio jurídico-penal e no âmbito do Direito disciplinar.

Já o perdão genérico, enquanto medida de caráter geral, que tem por efeito a extinção de certas sanções [neste sentido, cf. MARIANA CANOTILHO e ANA LUÍSA PINTO, As medidas de clemência na ordem jurídica portuguesa, in «Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida», Coimbra Editora, pp. 336 e 337; também o Acórdão do Colendo STJ, de 15-12-2022, proc. n.° 132/15.0TXEVR-F.E1-A.S1, acessível em www.dgsi.pt].

Portanto, se houver uma Lei do Parlamento que amnistie infrações abstratamente consideradas, apagando a natureza criminal, contraordenacional, ou disciplinar do facto, o seu perdão implicará que a pena, contraordenação ou sanção não sejam total ou parcialmente cumpridas.

Esta é, de resto, a solução consagrada em lei, no domínio jurídico-penal, nos artigos 127.° e 128.°, n.° 2 do CP, nos termos dos quais a responsabilidade criminal se extingue, entre o mais, pela amnistia e pelo perdão genérico, fazendo com que ocorra, no caso da amnistia, a extinção do procedimento criminal ou, no caso de ter havido condenação, cessação da execução da pena e seus efeitos; e no caso do perdão genérico, a extinção da pena, no seu todo ou apenas em parte.

Nas palavras do Tribunal Constitucional, “[e]ntre a amnistia e o perdão genérico (incluindo a figura da comutação genérica de penas) existe uma diferença de regimes jurídicos importante: a amnistia tem efeitos retroactivos, afectando não só a pena aplicada mas o próprio acto criminoso passado, que é "esquecido", considerando-se como não praticado (abolição retroactiva do crime). O perdão genérico incide, segundo a doutrina maioritária, apenas sobre as penas determinadas pela decisão condenatória e para o futuro [...]” (cf. o Aresto n.° 152/93, de 03-02-1993, proc. n.° 432/91, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).

Pelo mesmo Tribunal veio, ainda, a ser esclarecido que o perdão das penas constitui uma medida de clemência que é aplicada em função da pena ou sanção por que as pessoas foram condenadas, impedindo, total ou parcialmente, a execução destas; a amnistia, por seu turno, atinge a punibilidade de certos atos definidos como crimes (crimes, contraordenações ou ilícitos disciplinares), atuando, por isso, em função do ilícito em causa, deixando os atos praticados até certo momento histórico-jurídico de poderem ser enquadrados em certos tipos legais, apagando, assim, “[...] retroactivamente a punibilidade criminal dos factos típicos, continuando os tipos penais a valerem, por inteiro, para o futuro” (v. o Acórdão do TC n.° 488/2008, proc. n.° 35/08, de 07-10-2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

Compulsado o teor da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de agosto, nos artigos supra transcritos, temos que o legislador amnistiou as infrações disciplinares (i) que não constituam ilícitos penais não amnistiados; (ii) a que sejam aplicáveis sanções iguais ou inferiores à suspensão; (iii) e que tenham subjacente a prática de factos praticados até às 00h00 do dia 19-06-2023.

Sobrevoado o teor das disposições legais contidas nos artigos 2.°, n.° 2, b) e 6.° da Lei n.° 38-A/2023, temos que, no que respeita ao domínio disciplinar, o que se consagrou foi a amnistia de certas infrações disciplinares, a saber, aquelas a que, abstratamente, seja aplicável sanção não superior a suspensão.

No caso vertente, e conforme se fez notar no probatório, o Autor foi, através de ato administrativo, condenado na sanção disciplinar de suspensão, por factos praticados em data anterior a 19-06-2023 [que não configuram, simultaneamente, a prática de um crime], sendo certo que, aos mesmos, não é aplicável, em abstrato, uma sanção disciplinar superior à suspensão.

Pelo que, ao abrigo dos normativos atrás citados, cujas previsões legais estão preenchidas, o Autor está abrangido pela amnistia da infração disciplinar por que foi condenado, à luz do disposto no artigo 6.° da Lei n.° 38-A/2023.

Atenda-se, ainda, ao seguinte.

Compulsado o teor da Lei n.° 38-A/2023, mormente o disposto no seu artigo 11.°, vemos que o legislador possibilitou, aos arguidos, a recusa da amnistia.

De acordo com tal normativo, “[i]ndependentemente da aplicação imediata da presente lei, os arguidos por infrações previstas no artigo 4.º podem requerer, no prazo de 10 dias a contar da sua entrada em vigor, que a amnistia não lhes seja aplicada, ficando sem efeito o despacho que a tenha decretado”, sendo certo que tal declaração é tida como irretratável.

Ainda que o normativo em questão se refira, em concreto, às infrações previstas no artigo 4.°, isto é, às infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 01 ano de prisão ou a 120 dias de multa, não se vislumbram quaisquer razões legais ou principiológicas que justifiquem que aos trabalhadores sancionados em procedimentos disciplinares seja coartada essa mesma possibilidade de se recusarem a beneficiar da amnistia concedida pela Lei n.° 38­A/2023, conquanto o façam dentro dos condicionalismos ali consignados.

Sucede que, no caso vertente, decorridos 10 dias após a entrada em vigor da Lei n.° 38­A/2023 [nos termos do artigo 15.°, a referida Lei entrou em vigor a 01-09-2023], o Autor nada veio dizer aos autos no sentido de não pretender ver ser-lhe aplicada a amnistia concedida ao abrigo desse diploma, isto é, não recusou tal amnistia.

Deve dizer-se, ainda, que a pretensão do Autor, formulada no requerimento de 19-10­2023, no sentido de ser dado prosseguimento à presente ação administrativa não tem cabimento legal.

Ou bem que o Autor, dentro das condicionantes previstas no artigo 11.° da Lei n.° 38­A/2023, informava expressamente os autos de que pretendia não lhe ver ser aplicada a amnistia estabelecida por esse diploma legal, com o prosseguimento dos autos [o que tinha de ter feito no prazo de 10 dias após a entrada em vigor da Lei n.° 38-A/2023] ou, não o fazendo [como não fez], teriam de ser extraídas as legais consequências da amnistia concedida pela Assembleia da República.

Veja-se que a consagração de normativos com conteúdo semelhante ao artigo 11.° da Lei n.° 38-A/2023 não é inédita no ordenamento jurídico português, sendo disso exemplo a disposição legal contida no artigo 9.° da Lei n.° Lei 16/86, de 11 de junho [amnistia diversas infracções e concede perdões de penas] ou a extraída do artigo 10.° da Lei n.° 29/99, de 12 de maio [perdão genérico e amnistia de pequenas infracções].

E sobre questões idênticas à que se coloca nos presentes autos, mas em que tinham aplicação os diplomas legais atrás citados, pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo no seguinte sentido:

(i) Aresto do Colendo STA, de 02-12-1987 [proc. n.° 020136]

I - Os tribunais administrativos tem o poder e o dever de fazer a aplicação de normas de leis de amnistia - no caso o artigo 1, alínea d)d), da Lei n. 16/86, de 11 de Junho

- que se repercutam na subsistência da relação processual instaurada com a interposição de recursos contenciosos para declaração da invalidade ou anulação de actos administrativos definitivos e executórios que apliquem sanções disciplinares, tirando as necessárias consequências quanto ao prosseguimento dos respectivos processos.

II - O exercício do direito de renuncia a amnistia, previsto no artigo 9 da mesma Lei n. 16/86, e aplicável aqueles recursos contenciosos e não é obstáculo a essa aplicação o disposto nos artigos 11, n. 3, do Decreto-Lei n. 191-D/79, de 25 de Junho, e 48, do Decreto-Lei n. 267/85, de 16 de Julho, relativamente aos efeitos já produzidos pela punição disciplinar.

III - Consequentemente, não tendo o recorrente usado da faculdade conferida por aquele artigo 9 e mantendo o seu silencio, aplica-se-lhe a amnistia e deve, consequentemente, declarar-se extinto o recurso (artigo 287, e), do Codigo de Processo Civil).

(ii) Aresto do Colendo STA, de 16-11-1999 [proc. n.° 041148]

I - A amnistia de infracções disciplinares puníveis pelo E. D. aprovado pelo D. L. 24/84, de 16 de Janeiro, cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão, constitui efeito directamente decorrente da al. c) do art. 7 da Lei 29/99, de 12 de Maio, pelo que, para a sua aplicação individualizada, aquele normativo requer apenas um acto jurídico de natureza declarativa, destinado à verificação da existência, no caso concreto, da situação prevista na aludida norma.

II - Em recurso contencioso pendente, tendo por objecto acto punitivo integrante das referidas infracções, e não tendo o recorrente recusado a aplicação da amnistia ao abrigo do estatuído no art. 10 daquela lei, e não tendo ainda a Administração praticado aquele acto declarativo, deve fazê-lo o Tribunal sem intermediação da mesma Administração, e por imperativo da função jurisdicional.

III - A tal não deve abstar a posição assumida nos autos pela entidade recorrida que, notificada para se pronunciar, face à publicação da Lei 29/99, veio dizer que os autos deveriam prosseguir, pois que tão singela afirmação (produzida em peça processual subscrita pelo seu mandatário), não deve considerar-se manifestação de vontade do órgão administrativo competente.

IV - Devendo, "ex-vi" do art. 7 (al. c) da lei 29/99, ser amnistiadas duas das infracções disciplinares (puníveis com pena de suspensão) que, em concurso com duas outras infracções puníveis com pena de inactividade, integravam os fundamentos do acto punitivo impugnado, deve concluir-se que ao acto punitivo faleceram, em virtude do aludido efeito amnistiante, dois dos seus pressupostos de facto e de direito, devendo o Tribunal anular o acto em conformidade, não lhe sendo consentido que, em juízo de prognose póstuma, possa afirmar que a Administração, pese embora o aludido efeito amnistiante, venha a manter a mesma punição, sob pena de estar a fazer administração activa.[sublinhados e realces nossos]

Deve, todavia, ter-se presente o que se frisou supra a propósito dos efeitos da amnistia em situações, como no presente caso, em que a sanção, apesar de integralmente executada, tem por base um ato administrativo que pode, ou não, ter produzido os efeitos de caso decidido.

Retomando o raciocínio atrás expendido:

«Em particular, a amnistia é uma instituição de clemência da competência -constitucionalmente consagrada (cf. artigo 161.', f) da CRP) - da Assembleia da Republica, que pode resultar na extinção do processo penal (amnistia em sentido próprio) ou na extinção da pena e dos seus efeitos (amnistia em sentido impróprio). De facto, no caso de a amnistia abranger infrações pelas quais já existam sanções aplicadas, ela impedirá a sua execução na eventualidade do respetivo cumprimento não se ter ainda iniciado, ou estar em curso, mas não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da mesma, independentemente de a amnistia dever ser averbada no competente processo individual do arguido (neste caso, fala-se, então, em amnistia imprópria – cf., entre outros, o Acórdão do TCA-Sul, de 11-04-2002, proc. n.' 3752/99, acessível em www.dgsi.pt).

Deve, no entanto, atender-se a que estes efeitos impróprios se justificam, no caso do Direito Penal, pelo facto de, contrariamente ao que sucede no domínio disciplinar, as penas (de multa e prisão) apenas poderem ser executadas após o trânsito em julgado das respetivas decisões condenatórias (cf. os artigos 477.' e 489.' do CPP).

É que, no domínio do Direito disciplinar, a sanção é aplicada por ato administrativo que, por regra, produzirá os seus efeitos com a notificação ao interessado, ainda que este possa, depois disso, discutir a legalidade da decisão em Tribunal, por via impugnatória, havendo, nesse caso, a possibilidade de obter a expurgação dos efeitos de tal ato, caso a ação seja julgada procedente.

Entende, por isso, este Tribunal que a não destruição efeitos já produzidos pela aplicação / execução da sanção, depois de concedida uma amnistia, só tem razão de ser nos casos em que a execução dessa sanção resulte de uma decisão consolidada na ordem jurídica, o que não sucede nos casos em que um trabalhador punido disciplinarmente impugne, dentro do prazo, perante um tribunal, o ato administrativo de aplicação da pena disciplinar [ainda que a execução da sanção já tenha iniciado, ou até terminado], mas sucede já no domínio do Direito penal, pelo facto de, como se disse, as penas de prisão e de multa só poderem ser executadas depois de transitadas em julgado as decisões condenatórias respetivas [identicamente, cf. o Aresto do STJ, de 21-12-2021, proc. n.° 11/21.2YFLSB, disponível em www.dgsi.pt].

Como bem se refere no mencionado Acórdão, que acompanhamos, “[...] De todo o modo, por outro lado ainda, e mais decisivamente, não se pode acompanhar o autor no paralelismo com o trânsito em julgado da sentença condenatória porque não corresponde sequer à verdade que a sanção disciplinar se consolide, apesar de começar a produzir efeitos [...]”.

Por aqui se vê como é diferente toda a lógica da execução das sanções no domínio jurídico-penal e no âmbito do Direito disciplinar»

Neste conspecto, porque a ED suscitou a exceção da intempestividade do ato processual, importa conhecê-la incidentalmente, por forma a apurar se, no caso, os efeitos da amnistia são próprios ou impróprios.

Isto porque, independentemente de a decisão sancionatória ter formado, ou não, caso decidido, sempre seria de reconhecer a concessão da amnistia prevista na Lei n.° 38-A/2023.

Relativamente aos efeitos dessa amnistia, importa, no entanto, aquilatar da consolidação, ou não, na ordem jurídica da decisão sancionatória prolatada pela Administração, atendendo às especificidades decorrentes da aplicação das normas do Direito disciplinar quando comparadas com as homólogas no Direito penal, particularmente em matéria da produção de efeitos / executoriedade das sanções.

Na contestação, a ED sustenta que, à data em que a presente ação administrativa foi proposta, já o prazo legal para tanto havia decorrido integralmente, invocando, num primeiro momento, a natureza meramente facultativa do recurso hierárquico interposto pelo Autor. Sustenta que, mesmo que se entenda que o RH tem natureza necessária, terá de se considerar que o termo inicial do prazo ocorreu na data em que terminou o prazo de decisão desse recurso, que entender ter sido a 02-10-2020, e não a partir do momento em que a decisão de indeferimento foi notificada ao aqui A.

A posição maioritária da jurisprudência – a que esta Instância adere por inteira concordância lógica – tem ido no límpido sentido de que o recurso hierárquico ou tutelar, previsto no artigo 225.° da LGTFP, é de natureza necessária e não facultativa [neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos do STA, de 08-06-2017, proc. n.° 0647/17, de 13-03-2019, proc. n.° 0358/18.5BESNT; do TCA-

Norte, de 31-01-2020, proc. n.° 00600/18.2BECBR, e de 25-03-2022, proc. n.° 00592/20.8BECBR, todos disponíveis em www.dgsi.pt].

Na senda do discorrido no último dos Acórdãos supra citados, “[...] a interpretação conjugada do disposto nos artigos 225.° da LTFP e artigo 3.°, n.°1, al. c) do D.L. n.° 4/2015, de 07/12, no sentido de estabelecer que o recurso hierárquico ou tutelar previsto no art.° 225° da Lei 35/2014, de 20/6 (LGTFP) tem natureza necessária, é a interpretação correta a extrair daqueles preceitos, pelo que o Tribunal a quo ao assim entender não cometeu nenhuma violação do princípio do pro actione, previsto no artigo 7.° do CPTA, sequer esse entendimento pode ser visto como a proibição do Apelante de acesso à justiça e aos tribunais, e uma tutela efetiva, nos termos do disposto nos artigos 20.°, n.°4 e 268.° da CRP”.

Tem, por isso, de se atender ao que dispõe o CPA relativamente à matéria dos recursos hierárquicos necessários.

Nos termos do n.° 1 do artigo 198.° do CPA, quando a lei não fixe prazo diferente, o recurso hierárquico deve ser decidido no prazo de 30 dias, a contar da data da remessa do processo ao órgão competente para dele conhecer. Já o n.° 2 prevê que esse prazo será elevado até ao máximo de 60 dias, quando haja lugar à realização de nova instrução ou de diligências complementares

Compulsados os autos, não consta que, no procedimento de recurso hierárquico, tenha havido lugar à realização de nova instrução ou de diligências complementares.

Assim, há que aplicar o n.° 4 do artigo 198.° do CPA, normativo que estabelece que “[o] indeferimento do recurso hierárquico necessário ou o decurso dos prazos referidos nos n.ºs 1 e 2, sem que haja sido tomada uma decisão, conferem ao interessado a possibilidade de impugnar contenciosamente o ato do órgão subalterno ou de fazer valer o seu direito ao cumprimento, por aquele órgão, do dever de decisão”.

Embora não seja de interpretação fácil, o normativo citado vem, em linha com o que já se adensou supra, estabelecer que o acesso à via jurisdicional é aberto ao interessado, ou com a notificação da decisão que indefira o recurso hierárquico necessário, ou com o decurso do prazo legal para a prolação da decisão do recurso hierárquico necessário, consoante a circunstância que ocorra em primeiro lugar. A partir daí, o interessado, ou impugna perante um Tribunal administrativo o ato do subalterno, que constituirá o objeto mediato da ação, ou pede, diante esse Tribunal, a condenação à prática do ato legalmente devido, observando os prazos de caducidade previstos no CPTA.

No caso vertente, temos, então, que o Autor foi notificado, em 06-08-2020, da decisão que lhe aplicou a sanção disciplinar de suspensão pelo período de 90 dias, tendo dela interposto recurso hierárquico em 21-08-2020.

Em 08-09-2020, o Diretor Geral de Reinserção e Serviços Prisionais determinou que os autos de recurso hierárquico fossem presentes ao Secretário de Estado Adjunto e da Justiça.

Desconhece-se, porém, em que data é que esse recurso hierárquico foi, efetivamente, remetido à Secretaria de Estado da Administração e da Justiça.

Perante situações, como a que ora se verifica, tem a jurisprudência dos Tribunais superiores vindo a entender que se presume um prazo de 15 dias para a remessa do procedimento administrativo ao órgão competente para conhecer do recurso hierárquico, prazo que se contabiliza nos termos do artigo 87.° do CPA, uma vez que assume natureza procedimental (neste sentido, vejam-se, designadamente, os Acórdãos do STA, de 19-06-2014, proc. n.° 01954/13, do TCA-Sul, de 04-10-2018, proc. n.° 0239/18.2, e do TCA-Norte, de 10-03-2022, proc. n.° 00186/18.8BECBR, disponíveis em www.dgsi.pt).

Presume-se, assim, que o órgão competente para a tomada de decisão recebeu o recurso hierárquico em 29-09-2020.

A partir do dia 30-09-2020 [artigo 87.°, b) do CPA] iniciou-se o prazo de 30 dias úteis para a tomada da decisão do recurso hierárquico, prazo esse que findou em 11-11-2020.

Sucede que o Secretário de Estado da Administração e da Justiça prolatou, a em 19-10­2020, despacho, pelo qual não concedeu provimento ao recurso hierárquico interposto pelo Autor. E, dessa decisão, o Autor foi notificado pessoalmente em 28-10-2020, isto é, antes de esgotado o prazo de decisão do recurso hierárquico, nos termos atrás descritos.

Pelo que, devendo atender-se ao evento ocorrido em primeiro lugar, tem de considerar-se que o prazo para impugnar o ato administrativo vertente iniciou em 29-10-2020 (artigos 58.°, n.° 1, b) e n.° 2, e 59.°, n.°s 1, 2 e 4 do CPTA, conjugados com o estatuído no artigo 198.°, n.°s 1 e 4 do CPA).

Donde, o prazo para o Autor propor a presente ação administrativa terminava a 29-01­2021.

Tendo a ação em apreço sido proposta em 22-01-2021, tem de considerar-se que a mesma foi intentada em juízo dentro do prazo para tanto concedido, nos termos legais.

Temos, por isso, que a decisão administrativa que aplicou ao Autor a sanção disciplinar de suspensão pelo período de 90 dias não tinha, ainda, formado caso decidido, por ser ainda impugnável na data em que a ação administrativa vertente foi, de facto, proposta.

É, por isso, entendimento deste Tribunal que a amnistia produz, in casu, os seus efeitos próprios.

Prosseguindo.

Nos termos do artigo 277.°, alínea e) do CPC, aplicável ex vi artigo 1.° do CPTA, a instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.

A respeito da inutilidade e da impossibilidade superveniente da lide escrevem JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE que a mesma ocorre quando “[p]or facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio” (cf., dos autores, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2014, p. 546).

A lide torna-se impossível quando sobrevêm circunstâncias que inviabilizam o pedido, não em termos de procedência/mérito, mas por razões conectadas com o mesmo já ter sido atingido por outro meio, ou de já não poder sê-lo na causa pendente (neste sentido, o Acórdão do STJ, de 15-03-2012, proc. n.° 501/10.2TVLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Torna-se a lide inútil, por outro lado, se ocorrer um facto ou circunstância, ulterior à sua instauração, que venha tornar desnecessário que sobre ela recaia pronúncia jurisdicional, nomeadamente porque o pedido formulado já foi atingido por outro meio (vide, o Acórdão do STA, de 28-09-2017, proc. n.° 049/17, acessível em www.dgsi.pt).

Com efeito, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide efetiva-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, em virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo ou, por outro lado, porque encontra satisfação fora do esquema da proveniência pretendida.

Considerando que, por efeito da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de agosto, já no decurso da presente ação administrativa, o Autor encontrou satisfação da sua pretensão, em virtude de ter sido amnistiada a infração disciplinar por que foi condenado através da decisão administrativa impugnada, tornou-se a presente lide inútil.

Resulta, assim, cristalino que, por força de ocorrências posteriores à propositura da presente ação, a pretensão de tutela do A. foi satisfeita fora do esquema jurisdicional, sendo, nessa conformidade, de dar por verificada a inutilidade superveniente da presente lide, e, consequentemente, determinar a extinção da instância, nos termos do artigo 277.°, alínea e) do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.° do CPTA.

Ao que se provirá em sede de dispositivo.

(…)”.

A decisão está não só suficientemente como até está exaustivamente fundamentada. De facto e de direito. Em particular em relação aos factos não importava saber se o Autor cometeu ou não o ilícito pelo qual foi punido porque isso será objecto da decisão de mérito sobre a acção.

A aplicação da Lei da Amnistia ao processo disciplinar, como foi feito na decisão recorrida, pressupõe precisamente a não apreciação do mérito da acção.

Quanto à idade, na lógica da decisão, não importava fixar a idade do Autor.

Discordamos, no entanto, do entendimento sufragado na decisão recorrida.

Não importa saber se a Lei da Amnistia tem eficácia ex tunc ou ex nunc.

Importa determinar se o Tribunal podia ou não aplicar a Lei da amnistia ao caso concreto, encontrando-se verificados todos os seus pressupostos, e se podia, com esse fundamento, não conhecer, no todo ou em parte, do objecto da acção, com fez.

Entendemos que não.

Os tribunais não são segunda instância administrativa sob pena de violação do princípio da separação de poderes consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

O objecto da decisão do Tribunal de Primeira Instância não é processo disciplinar em si – a que possa pôr termo por aplicação da Lei da Amnistia ou outra razão qualquer -, mas a decisão punitiva que pode, por exemplo, ter recusado a aplicação da Lei da Amnistia.

A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais.

Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08):

“Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.”

A ideia subjacente a este preceito é a seguinte: competente para aplicar as medidas previstas na Lei da Amnistia é quem aplicou a sanção criminal ou disciplinar.

Os juízes, em qualquer instância judicial, não são os juízes do “julgamento” da infracção nem da condenação. E apenas podem aplicar a amnistia a sanções aplicadas nos processos judiciais, como decorre, a contrario, do citado preceito. Não podem aplicar a Lei da Amnistia, directamente, nos processos administrativos, disciplinares. Fazendo-o, violam o referido artigo 14.º da Lei da Amnistia e, com ele, o princípio constitucional da separação de poderes.

Precisamente face ao teor desta norma não vale como argumento trazer aqui à colação nem a Lei n. 16/86, de 11.06, nem a jurisprudência produzida ao abrigo desta Lei, porque esta Lei não tem uma norma igual ou semelhante à do artigo 14.º da Lei da Amnistia de 2023.

Sendo certo que retirar efeitos jurídicos para o processo judicial da Lei da Amnistia aplicável ao processo disciplinar mais não é do que aplicar a Lei da Amnistia no processo judicial.

Os artigos 6º e 14º da Lei da Amnistia de 2023, na interpretação feita na decisão recorrida, são inconstitucionais, por violação deste princípio constitucional, da separação de poderes.

Pelo que não cabia ao Tribunal recorrido aplicar à acção judicial a Lei da Amnistia, antes se impunha conhecer de mérito, logo por aqui.

Olhando para o caso concreto, de qualquer modo, sempre seria de não aplicar a recente Lei da Amnistia de 2023.

Dispõe o artigo 6º da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08):

“São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.

Por seu turno dispõe o n.º 1 do artigo 2º do mesmo diploma:

“Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.

Desde logo, o requisito da idade é um pressuposto essencial para a aplicação desta Lei da Amnistia de 2023, ao contrário do decidido.

Esta lei estabelece uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – artigo 1º da Lei 38-A/2023, de 02.08.

Neste contexto é que se compreende o requisito da idade, para as pessoas imputáveis em razão da idade, a partir dos 16 anos, mas com idade inferior a 30 anos à data da prática do facto.

Por isso carece de fundamento a distinção entre infracções disciplinares e infracções penais para afastar das primeiras o requisito da idade.

No caso de infracção disciplinar que constitui, em simultâneo, ilícitos criminais estão excluídos do seu âmbito, expressamente, ilícitos disciplinares que sejam também ilícitos criminais não amnistiados – artigo 6º. Ora os crimes praticados por pessoas com mais de 30 anos à data da prática dos factos não estão amnistiados.

Em concreto, o Autor tinha 47 anos à data da prática dos factos (cf. factos provados sob o n.º 2) (parte final) e o n.º 12. Já não era, portanto, um “jovem” nos termos e para os efeitos desta Lei da Amnistia.

Pelo que, logo por aqui, não lhe deveria ter sido aplicada a amnistia.

Assim como o princípio da tutela jurisdicional efectiva impõe no caso os autos da acção de impugnação prossigam os seus termos com vista a assegurar o respectivo efeito útil.

Admitindo que a amnistia tem por efeito fazer desaparecer da ordem jurídica o acto impugnado, perdendo a acção o seu objecto principal, no caso concreto é evidente, quanto a nós, que a lide não perde a sua utilidade, ipso facto.

Como se sustenta no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20.10.2011, no processo nº 0941/10 (com sublinhados nossos):

«A jurisprudência deste STA entende que só se verifica a inutilidade superveniente da lide quando essa inutilidade for uma inutilidade jurídica e que, por ser assim, não se pode considerar actividade inútil o prosseguimento do processo quando ele se destine a expurgar da ordem jurídica um acto ilegal e a proporcionar a tutela efectiva dos direitos daqueles a quem o mesmo atinge. A utilidade da lide correlaciona-se, assim, com a possibilidade da obtenção de efeitos úteis pelo que a sua extinção só deve ser declarada quando se conclua, ‘com a necessária segurança, que o provimento do recurso em nada pode beneficiar o Recorrente, não o colocando, de todo o modo, numa situação vantajosa, e que, sendo a anulação de um acto um imperativo do princípio da legalidade, continua; sempre a haver utilidade no prosseguimento da lide que visa anular acto ferido de ilegalidade, ainda que esteja em causa acto de adjudicação de obra que se diz já estar concluída.’ - Acórdão de 18/1/01, (rec. n.º 46.727)». Cfr. neste sentido, entre outros, os Acórdãos de 30/9/97 (rec. 38.858), de 23/9/99 (rec. 42.048), de 19/12/00 (rec. 46.306) e de 9/1/02 (rec. 46.557).)

Deste modo, e porque o recurso contencioso era o meio processualmente adequado para assegurar a tutela judicial efectiva dos direitos e interesses legítimos dos interessados a extinção da instância por inutilidade da lide só podia declarada quando fosse certo que o seu provimento não traria quaisquer consequências para o Recorrente, designadamente não o colocando numa situação vantajosa. Sendo que esta tanto se podia traduzir na possibilidade da reconstituição natural da situação hipotética como na atribuição de uma indemnização pelos danos decorrentes da prática do acto ilegal como ainda, conjuntamente, pelas duas quando a referida reconstituição fosse insuficiente para a reparação integral dos prejuízos».

No caso concreto o Autor, vendo o acto anulado por decisão judicial no termo do processo, pedido deduzido no articulado inicial, tem a possibilidade de, em execução de julgado, ver reconstituída a situação que existiria não tivesse sido a prática do acto anulado.

Como seja, receber a remuneração relativa aos dias em que esteve suspenso, ver esse período contar para efeitos de antiguidade e para o gozo de férias. E receber, ainda, eventual indemnização pelos prejuízos causados com a suspensão, por si mesma.

Por outro lado, procedendo a acção com base no vício de erro nos pressupostos, por não ter sido praticada a infraçcão pela qual foi punido, o Autor verá reposta a sua imagem e o bom nome, pessoal, social e profissional, direito e legítimos interesse a defender, também, na acção de impugnação.

Finalmente não se compreende o argumento de não estar consolidada na ordem jurídica a decisão punitiva como justificação para a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

A amnistia extingue o procedimento sancionatório (amnistia própria) ou, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução da pena e dos seus efeitos (amnistia imprópria) – n.ºs 1 e 2 do artigo 128 do Código Penal.

Não pode haver extinção de procedimentos ou de sanções que já se extinguiram pela decisão final transitada em julgado ou consolidada na ordem jurídica e cujos efeitos se produziram na totalidade.

Pela simples e evidente razão de que não se pode extinguir o que já está extinto. É da natureza das coisas, de facto e de direito.

Mas faz todo o sentido e impõe-se conhecer de mérito da acção impugnatória tempestiva – como é a presente acção, tal como decidido, com acerto nesta parte, na sentença recorrida-, precisamente porque o seu fim é não permitir a consolidação na ordem jurídica do acto punitivo.

É precisamente para discutir os pressupostos de facto (e de direito) da decisão sancionatória que se justifica prosseguir os autos da acção de impugnação.

O que determina a procedência do recurso, por erro da decisão recorrida, de determinar a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, face à Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08).

Termos em que, na revogação da decisão recorrida, seja imperioso que os autos prossigam os seus normais termos na Primeira Instância para conhecimento de mérito, se nada mais a tal obstar.

*

IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO pelo que:

1. Revogam a decisão recorrida.

2. Determinam a baixa dos autos para que prossigam os seus normais termos para conhecimento de mérito se nada mais a tal obstar.

Custas em ambas as instâncias pelo Ministério da Justiça face à sua pronúncia, em ambas as instâncias, a favor da aplicação da Lei da Amnistia ao caso dos autos.

*

Porto, 13.09.2024


Rogério Martins
Fernanda Brandão
Isabel Costa, com a declaração de voto que se segue:

Declaração de voto:

Voto a decisão e os fundamentos só na segunda parte.
Isabel Costa