Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
«AA» instaurou ação administrativa contra o Ministério da Administração Interna, ambos melhor identificados nos autos, peticionando:
Nestes termos e, nos mais de direito aplicável, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente e provada e, em consequência:
a) Serem declarados nulos ou anulados a decisão final proferida no Processo Disciplinar instaurado contra o Autor, bem como, o despacho proferido pelo Exmo Senhor Comandante – Geral da GNR, no Recurso Hierárquico interposto pelo mesmo, que confirmou aquela, indeferindo este;
b) Ser o Réu condenado à prática do ato (despacho de arquivamento do processo disciplinar);
c) Ser, também, o Réu condenado a pagar ao Autor um a indemnização, nunca inferior a € 1.000,00 (mil euros), a título de reparação pelos danos morais que tais decisões e as consequentes sanções que lhe foram aplicadas lhe causaram e continuam a causar, como consequência necessária e direta da atuação ilegal e ilegítima dos seus Superiores Hierárquicos, acrescida dos juros à taxa legal e anual desde a citação até efetivo e integral pagamento;
d) Ser o Réu condenado nas custas e no mais legal.
Por decisão proferida pelo TAF de Braga foi julgada extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide:
Desta vem interposto recurso pelo Réu.
Alegando, formulou as seguintes conclusões:
A) Não está em causa - nem é tema de discussão -, a verificação dos requisitos legais previstos na Lei n.° 38.°-A/2023, de 2 de agosto relativamente à infração disciplinar cometida pelo recorrido, pois não há dúvidas de que esta se enquadra no seu âmbito de aplicação;
B) O que está apenas em causa são os efeitos jurídicos que a douta sentença do TAF/Braga parece entender que se produzem, ou seja, que a amnistia "apaga" a infração disciplinar, abolindo-a retroativamente, isto é, operando ex tunc (e não ex nunc);
C) A consequência jurídica que o TAF/Braga retirou da aplicação da amnistia à infração disciplinar cometida pelo recorrido, removendo-a da ordem jurídica como se uma anulação de tratasse, contraria os efeitos que o RDGNR prevê para a declaração de amnistia;
D) Tal circunstância configura um flagrante erro de julgamento na aplicação do Direito, pois apenas tomou em consideração o facto de o art.° 6.° da Lei n.° 38.°-A/2023, de 2 de agosto, não ter efetuado qualquer distinção entre amnistia própria e imprópria, e não, como se impunha, observar o que dispunha o RDGNR sobre essa matéria (da amnistia);
E) Contrariamente ao que a douta sentença do TAF/Braga defendeu, não pode, em qualquer circunstância, haver lugar ao desaparecimento da infração disciplinar, disciplinar, e, muito menos, não pode o ato punitivo simplesmente deixar de ter existência jurídica;
F) Note-se, que o legislador que aprova uma lei sobre a amnistia tem liberdade para definir os seus efeitos, designadamente para determinar se no âmbito da amnistia das infrações disciplinares se destroem ou não os efeitos já produzidos pela aplicação da pena;
G) No caso do art.° 6.° da Lei da Amnistia, do respetivo enunciado legal resulta evidente que o legislador não optou pela solução de determinar a destruição dos efeitos já produzidos pela aplicação das penas disciplinares, pelo que a amnistia das infrações disciplinares abrangidas por aquela norma limita-se a neutralizar os efeitos da sanção aplicável;
H) Apesar de a Lei da Amnistia, ser uma lei especial e posterior à lei que aprovou o RDGNR, a mesma não consagra qualquer disposição que expressa ou implicitamente afaste a aplicação deste regulamento, ou que revogue tácita ou expressamente qualquer disposição;
I) A Lei da Amnistia apenas consagra os pressupostos que permitem a declaração de amnistia de infrações penais e disciplinares, nada dizendo quantos aos efeitos, sendo estes regulados pelos respetivos regimes legais aplicáveis;
J) A Lei da Amnistia não revoga ou afasta o regime previsto no art.° 128.°, n.° 2, do CP, no que diz respeito aos efeitos da declaração de amnistia de uma infração penal, bem como, de igual forma, não a afasta na declaração de amnistia de uma infração disciplinar sancionada nos termos do RDGNR, devido à sua aplicação subsidiária;
K) À luz do art.° 45.°, al. e), do RDGNR, a «amnistia» constitui uma das causas de extinção da responsabilidade disciplinar, sendo que, nos termos do art.° 50.° do mesmo regulamento, a amnistia "tem os efeitos previstos na lei penal"; segundo o art.° 128.°, n.° 2, do CP, a amnistia "extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos";
L) O procedimento disciplinar que se encontra regulado no RDGNR é unicamente composto pelas fases procedimentais aí previstas, não existindo qualquer fase judicial que faça parte desse procedimento; o processo judicial constitui qualquer continuação do procedimento disciplinar, nem com este se confunde;
M) Consequentemente, no caso dos autos, tendo o procedimento disciplinar sido extinto com a decisão final (ato administrativo) os efeitos da amnistia projetam-se unicamente na execução da pena e nos seus efeitos;
N) Por outro lado, mesmo no caso das infrações disciplinares amnistiadas, o registo também não pode ser eliminado, pois, para além de ser um facto histórico válido, que produziu efeitos, tal releva ainda para efeitos da verificação da «reincidência» (cf. art.° 75.°, n.° 4, do CP, aplicável ex vi do art.° 50.° do RDGNR), devendo apenas ser efetuado o respetivo averbamento, o que tem como consequência a impossibilidade de serem referidas nas notas que sejam extraídas dos registos, cf. Art.° 36.°-A, n.° 3, do RDGNR;
O) Nos termos do art.° 36.°-A, n.° 4, do RDGNR, só se a decisão punitiva for anulada contenciosamente, isto é, com fundamento na sua invalidade, é que as infrações disciplinares são definitivamente eliminadas não só do registo, como do próprio registo disciplinar dos militares, circunstância que não se verificou no caso do recorrido, pois foi julgada extinta a instância;
P) Se o requerido pretendia obter os efeitos de anulação da decisão punitiva, nos termos do art.° 11.°, n.°s 1 e 2, da Lei da Amnistia, sempre poderia ter requerido a recusa da amnistia, o que ditaria o prosseguimento do processo em ordem à apreciação da legalidade da decisão punitiva, porém, livre e conscientemente optou por não o fazer, esgotando, assim, qualquer possibilidade de obter uma sentença anulatória;
Q) A maioria das atuais decisões dos Tribunais não configuraram e apreciaram a questão nos devidos termos, limitando-se a subsumir as infrações disciplinares aos requisitos estabelecidos na Lei da Amnistia, sem nunca terem a preocupação de indagar da existência de normativos especiais que pudesse coexistir nos regulamentos disciplinares em causa (da GNR ou até da PSP), muito provavelmente toldadas pela teoria vigente em relação à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, que atualmente não prevê qualquer norma que limite os efeitos da declaração de amnistia;
R) Ressalva-se o voto de vencido proferido no acórdão do STA de 07DEC23 no processo n.° 02460/19.7BELSB que se companha integralmente;
S) A justiça disciplinar militar difere dos demais acervos disciplinares públicos e privados, e justifica-se sobretudo pela estrutura fortemente hierarquizada, disciplinada e intrinsecamente ligada a valores como o respeito pela hierarquia, a valorização da coesão, a salvaguarda da segurança (e da defesa nacional), a obediência aos órgãos de soberania, e direcionada ao cumprimento de uma missão;
T) O ambiente de atuação dos militares da GNR é substancialmente diferente do comum dos cidadãos, sobretudo atendendo à perigosidade danosa da sua conduta, que poderá ser muito superior comparativamente à do normal cidadão (utilização de força armada), confere uma legítima justificação para uma regulamentação disciplinar com características próprias e especiais;
U) A jurisprudência que aparentemente se está a firmar «abre a porta» a que todos os processos em que tenha havido uma condenação e os seus efeitos já se tivessem produzido in totum, veriam automaticamente ser apagados não só os factos, como também a decisão punitiva e todas as consequências daí advenientes, o que obrigaria a reposição de vencimentos e suplementos, consequências estas que o RDGNR impede através da aplicação subsidiária do previsto no art.° 128.°, n.° 2, do CP;
V) Atendendo às especificidades do ethos militar, também com repercussões ao nível das consequências que decorrem da aplicação da Lei da Amnistia, resta a esperança de que esse tribunal superior possa "emendar a mão", devendo, para tanto, seguir apenas o voto vencido que ficou bem expresso no citado acórdão do STA e com o qual se adere inteiramente;
W) Em face do exposto, resta concluir que douta sentença do TAF/Braga incorre em erro de julgamento de Direito, na aplicação que faz da Lei da Amnistia, outrossim e especialmente das consequências jurídicas que dela extrai, violando claramente o previsto no art.° 128.°, n.° 2, segunda parte, do CP, ex vi do art.° 50.° do RDGNR.
Nestes termos e nos melhores de direito que suprirão, deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser a douta sentença proferida pelo TAF/Braga revogada e substituída por acórdão que declare que os efeitos da amnistia são os que decorrem do art.° 128.°, n.° 2, segunda parte, do CP, ou seja, projetam-se na execução da pena e nos seus efeitos.
Não foram juntas contra-alegações.
O Senhor Procurador Geral Adjunto notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, emitiu parecer no sentido de que deve ser proferido acórdão a revogar a sentença recorrida e a determinar o prosseguimento dos autos.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO
Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
1. O Autor foi condenado, no âmbito de processo disciplinar, por despacho de 25.07.2019 – cfr. doc. 3 junto com a petição inicial;
2. Ao Autor foi aplicada pena de suspensão de 15 dias – cfr. doc. 3 junto com a petição inicial;
3. A factualidade, subjacente a tal condenação, ocorreu antes das 00.00horas de 19.06.2023 – o presente processo foi instaurado em 06.03.2020;
4. Não houve condenação penal nem há nota quanto a reincidência – cfr. doc. 3 junto com a contestação;
5. O Autor é GNR, a infração foi praticada no exercício das funções e refere-se ao uso indevido de guia de transporte.
DE DIREITO
É objecto de recurso a sentença recorrida que declarou (fez operar) a amnistia no presente caso.
Como alegado, in casu, constata-se que todos - absolutamente todos - os efeitos da pena de 15 dias de «suspensão» aplicados em 25JUL19 já se esgotaram, já se produziram, inexistindo atualmente qualquer réstia de efeito subsistente, inclusive o último dos efeitos (efeito indireto), o qual foi o prazo de 3 anos para a "anulação" da pena, que também já se esgotou, tendo esta sido "anulada" nos termos do art.° 44.°-A, do RDGNR.
No presente caso, uma vez que todos os efeitos (jurídicos e de facto) já se produziram, já se esgotaram, nada há mais para eliminar, pelo que, a declaração de amnistia é inócua na medida em que os efeitos passíveis de por si serem impactados já não subsistem.
Não está, pois, em causa a declaração de amnistia, mas unicamente os efeitos que a decisão judicial lhe atribuiu.
Ora, no âmbito do processo disciplinar n.° ...7..., o Exmo. Comandante de Unidade, por despacho de 25JUL19, puniu o Recorrido com a pena disciplinar de 15 (quinze) dias de «suspensão».
Essa decisão, proferida no final do procedimento disciplinar (em 1.° grau), corresponde à decisão final prevista nos artºs 105.° e 106.°, n.° 1, do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana (RDGNR).
O Recorrido cumpriu a pena disciplinar entre os dias 02JAN20 e 16JAN20.
Como sabemos, a Lei n.° 38-N2023, de 02AGO, apenas consagra os pressupostos para que possa ser declarada a amnistia.
A Lei n.° 38.°-A/2023, de 02AGO, não dispõe de qualquer norma quanto aos efeitos da declaração de amnistia.
De acordo com o art.° 45.°, al. e), do RDGNR, a responsabilidade disciplinar extingue-se por amnistia, dispondo o art.° 50.° do RDGNR que a amnistia tem o efeito previsto na lei penal.
Decorre do art.° 75.°, n.° 4, do Código Penal (CP), que a amnistia não obsta à verificação da reincidência; e do art.° 128.°, n.° 2, do CP, resulta que a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança. Ou seja, a declaração de amnistia tem os seus efeitos limitados pelo disposto nos art.°s 75.°, n.° 4, e 128.°, n.° 2, do CP, aplicável ex vi do art.° 50.° do RDGNR.
No caso, o Tribunal não podia declarar que a amnistia apaga a infração disciplinar, porquanto esta (a amnistia) opera ex tunc, tudo se passando como se os factos ilícitos não tivessem sido praticados, sem, pelo menos, ter considerado o disposto no art.° 128.°, n.° 2, do CP, por força do art.° 50.° do RDGNR.
Ademais, a interpretação do Tribunal determina uma reposição generalizada da perda dos vencimentos, suplementos e subsídios que resultaram da imposição de penas disciplinares relativas a infrações disciplinares praticadas até às 00H00 do dia 19JUN23, incluindo daquelas que já ocorreram, por exemplo, há mais de 20 anos, pois não existem quaisquer limites ao alcance da declaração de amnistia.
Como alegado, se tivesse sido ponderada a aplicação do regime previsto no art.° 128.°, n.° 2, do CP, por força do art.° 50.° do RDGNR, a conclusão apenas poderia ser a seguinte:
O procedimento disciplinar que se encontra regulado no RDGNR é unicamente composto pelas fases procedimentais aí previstas, não existindo qualquer fase judicial que faça parte desse procedimento.
O procedimento disciplinar - que constitui um procedimento administrativo especial -, tal como sucede em qualquer outro tipo de procedimento administrativo, extingue-se com a tomada de decisão, conforme prescreve o art.° 93.° do CPA, aplicável ex vi do art.° 7.° do RDGNR.
A via judicial consiste apenas num direito que assiste a qualquer arguido em sede disciplinar, que, só no caso da adoção de uma providência cautelar é que sustém a execução da pena que lhe foi aplicada, isto se não houver lugar à elaboração de resolução fundamentada por parte da entidade demandada a que alude o art.° 128.°, n.° 1, do CPTA.
O processo judicial - atualmente - não consubstancia uma continuação do procedimento disciplinar, nem tampouco se confunde com este, sendo antes uma causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento precisamente pelo facto de ser um fator impeditivo da sua continuação.
Conforme referiu o STA em Acórdão, "por força do princípio geral de direito, com consagração nos arts. 306.°, n.° 1, e 321.° do Código Civil, aplicável em processo disciplinar, de que a prescrição não corre enquanto o titular do direito estiver impossibilitado de exercê-lo, a prescrição do procedimento disciplinar não corre entre a data do acto que o decidiu e o trânsito em julgado da decisão que julgou o recurso contencioso interposto desse acto" (Acórdão do STA de 27JAN10 no processo n.° 0551/09).
Princípio este que tem consagração expressa no art.° 46.°, n.° 5, al. b), do RDGNR, onde se determina expressamente que “a prescrição do procedimento disciplinar suspende-se durante o tempo em que o procedimento disciplinar não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de decisão do tribunal sobre processo judicial pendente, ou por efeito de apreciação jurisdicional de questão prejudicial”.
Nessa medida, estando o procedimento disciplinar extinto, a declaração de amnistia no caso concreto apenas pode ter como efeitos os previstos na segunda parte do art.° 128.°, n.° 2, do CP (amnistia imprópria), fazendo cessar os efeitos da pena que ainda subsistam, uma vez que já foi cumprida.
Na prática, no que diz respeito ao RDGNR, o alcance da amnistia em nada difere das anteriores leis, sendo válido o entendimento do STA, de 28NOV95, no processo n.° 036683, que concluiu que "1- No caso de amnistia que abranja infracção disciplinar pela qual já exista pena aplicada, aquela não destrói os efeitos já produzidos. II - Na pendência de um recurso contencioso de anulação de um despacho que aplicou à recorrente a pena de suspensão por 60 dias, a decisão do Tribunal a declarar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, em virtude da amnistia entretanto decretada, não anula o acto impugnado, pelo que os efeitos já produzidos não são destruídos», ou da recomendação do Provedor de Justiça de 03SET97 - referido na sentença ora recorrida -, onde se referiu que «a amnistia (seja ela própria ou imprópria) atinge o acto praticado, não na sua materialidade, mas nas suas consequências. Ou seja, o que se pretende na amnistia (própria ou imprópria) é só impedir que o agente agraciado sofra sanção em que poderia vir a ser ou em que já foi condenado, não apagando por isso mesmo o facto na sua materialidade naturalística".
Em suma,
Contrariamente ao que a sentença defendeu, não pode, em qualquer circunstância, haver lugar ao desaparecimento da infração disciplinar, disciplinar, e, muito menos, não pode o ato punitivo simplesmente deixar de ter existência jurídica;
Note-se, que o legislador que aprova uma lei sobre a amnistia tem liberdade para definir os seus efeitos, designadamente para determinar se no âmbito da amnistia das infrações disciplinares se destroem ou não os efeitos já produzidos pela aplicação da pena;
No caso do art.° 6.° da Lei da Amnistia, do respetivo enunciado legal resulta evidente que o legislador não optou pela solução de determinar a destruição dos efeitos já produzidos pela aplicação das penas disciplinares, pelo que a amnistia das infrações disciplinares abrangidas por aquela norma limita-se a neutralizar os efeitos da sanção aplicável;
Apesar de a Lei da Amnistia, ser uma lei especial e posterior à lei que aprovou o RDGNR, a mesma não consagra qualquer disposição que expressa ou implicitamente afaste a aplicação deste regulamento, ou que revogue tácita ou expressamente qualquer disposição;
A Lei da Amnistia apenas consagra os pressupostos que permitem a declaração de amnistia de infrações penais e disciplinares, nada dizendo quantos aos efeitos, sendo estes regulados pelos respetivos regimes legais aplicáveis;
A Lei da Amnistia não revoga ou afasta o regime previsto no art.° 128º, nº 2, do CP, no que diz respeito aos efeitos da declaração de amnistia de uma infração penal, bem como, de igual forma, não a afasta na declaração de amnistia de uma infração disciplinar sancionada nos termos do RDGNR, devido à sua aplicação subsidiária;
À luz do art° 45.°, al. e), do RDGNR, a «amnistia» constitui uma das causas de extinção da responsabilidade disciplinar, sendo que, nos termos do art.° 50.° do mesmo regulamento, a amnistia “tem os efeitos previstos na lei penal”;
Segundo o art.° 128.°, n.° 2, do CP, a amnistia “extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos";
O procedimento disciplinar que se encontra regulado no RDGNR é unicamente composto pelas fases procedimentais aí previstas, não existindo qualquer fase judicial que faça parte desse procedimento; o processo judicial não constitui qualquer continuação do procedimento disciplinar, nem com este se confunde;
Consequentemente, no caso dos autos, tendo o procedimento disciplinar sido extinto com a decisão final (ato administrativo) os efeitos da amnistia projetam-se unicamente na execução da pena e nos seus efeitos;
O legislador não definiu na Lei n.º 38- A/2023, de 2 de agosto, quais as concretas consequências da amnistia nos processos judiciais pendentes, razão pela qual, os efeitos da amnistia aqui em causa decorrem do RDGNR e do Código Penal;
Prevê o artº 45º do RDGNR que a responsabilidade disciplinar extingue-se por: a) Prescrição do procedimento disciplinar; b) Prescrição da pena; c) Cumprimento da pena; d) Morte do infrator; e) Amnistia, perdão genérico ou indulto, preceituando o artº 50.º que a amnistia, o perdão genérico e o indulto têm os efeitos previstos na lei penal, prevendo expressamente o n.º 2 do art.° 128.º do Código Penal que "A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.";
Resulta inequívoco que a amnistia só produz efeitos para o futuro (v. Acórdão do STJ de 19 de maio de 1993, Proc. n.° 043767);
A amnistia “não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da pena” (Acórdão do TC n.º 301/97), uma vez que “ao apagar a infracção disciplinar, o que a amnistia apaga são os efeitos disciplinares - e suas repercussões - não os outros efeitos (salvo disposição legal expressa em contrário)” (Acórdão do TC n.º 301/97);
O legislador da Lei n.º 38-A/2023 não optou pela solução de determinar a destruição dos efeitos já produzidos pela aplicação das penas disciplinares, pelo que estes efeitos permanecem, mesmo que seja determinada a amnistia da infração disciplinar, ou seja, atendendo a que a amnistia não tem efeitos retroativos - isto é, não elimina os efeitos já produzidos e consumados pela integral execução e cumprimento da sanção de suspensão;
In casu existem outros efeitos jurídicos diretos efeitos já produzidos e consumados pela integral execução e cumprimento da sanção de suspensão a extinguir para além daqueles que são extintos pela própria amnistia;
Na verdade, preceitua o artº 30º do referido RDGNR que a pena de suspensão traduz-se no afastamento completo do serviço pelo período que for fixado, entre 5 e 120 dias, mantendo o militar unicamente direito a um terço do vencimento auferido à data da execução.
2 - A pena de suspensão implica, cumulativamente:
a) A perda de igual tempo de serviço efectivo;
b) A perda de suplementos e subsídios;
c) A impossibilidade de ser promovido durante o período de execução da pena;
O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento por considerar a extinção da instância por impossibilidade da lide como uma espécie de efeito automático da amnistia, quando, na verdade, continuam por acautelar os efeitos produzidos e consumados pela integral execução e cumprimento da sanção de suspensão, isto porque, no momento em que o diploma da amnistia entrou em vigor a pena se encontrava integramente cumprida pelo Recorrido, o que significa que a amnistia não invalida que o ato impugnado tenha produzido efeitos lesivos para o mesmo (tendo o Recorrido ficado impedido, pelo período de 15 dias, de exercer as suas funções, sendo que em tal período se viu privado de parte da sua remuneração, não relevando os dias em que esteve suspenso quer para efeitos de antiguidade, quer para o gozo de férias e tendo a infração em causa ficado averbada no seu registo disciplinar;
Atendendo a que a amnistia não tem efeitos retroativos - isto é, não elimina os efeitos já produzidos e consumados pela integral execução e cumprimento da sanção de suspensão - esta é uma situação suscetível de integrar a previsão do n.° 2 do art.° 65.° do CPTA que determina a continuação do processo justamente porque o Autor/Recorrido mantém interesse em obter a anulação jurisdicional dos efeitos anteriormente produzidos pelo ato impugnado, na medida em que ainda lhe é possível obter a reintegração da sua esfera jurídica quanto ao passado (v., neste sentido, Mário Aroso e Carlos Cadilha, em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 5ª ed., 2022, p. 476);
Consequentemente, ao julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, o Tribunal a quo violou o direito do Autor à tutela jurisdicional efetiva, uma vez que lhe vedou a oportunidade de ver conhecidas as ilegalidades assacadas ao ato punitivo e a consequente eliminação dos efeitos produzidos pelo mesmo;
A utilidade da lide está correlacionada com a possibilidade de obtenção de efeitos úteis, pelo que a sua extinção, com base em inutilidade/impossibilidade superveniente, só deverá ser declarada quando se possa concluir que o prosseguimento da ação não trará quaisquer consequências benéficas para o autor. Tal declaração postula e pressupõe que o julgador possa efetuar um juízo apodítico acerca da total inutilidade/impossibilidade;
A utilidade superveniente da lide tem, pois, a ver com a perda de interesse em agir, ou seja, com a perda da necessidade do processo para obter o pedido. O que equivale a dizer que tal inutilidade se dá, se e quando o efeito jurídico pretendido através do processo foi plenamente alcançado durante a instância. Assim, a inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, ocorrerá sempre que, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objeto do respetivo processo, configurando-se como um modo anormal de extinção da instância, por cotejo com a causa dita normal, traduzida na prolação de uma sentença de mérito (cfr. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, volume III, páginas 364 e seguintes; Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, volume I, página 512);
Na situação vertente os efeitos já produzidos e consumados pela aplicação da sanção de suspensão não são revertidos nem eliminados como consequência dessa amnistia, razão pela qual o Recorrido mantém interesse em obter a anulação jurisdicional dos efeitos anteriormente produzidos pelo ato impugnado, na medida em que ainda lhe é possível obter a reintegração da sua esfera jurídica quanto ao passado; Consequentemente, não tendo sido determinado o prosseguimento dos autos para conhecimento das ilegalidades assacadas ao ato punitivo, ato esse que já produziu efeitos lesivos na sua esfera jurídica, é manifesto que lhe foi denegada a tutela jurisdicional efetiva constitucionalmente consagrada no art° 20º da CRP;
A amnistia não torna inexistente a decisão punitiva, isto é, o ato administrativo sancionatório, o mesmo valendo para a decisão condenatória transitada em julgado, bem como não tem efeitos anulatórios; a declaração de amnistia não é sinónimo de anulação do ato administrativo punitivo;
Existindo uma decisão disciplinar cujo procedimento disciplinar se encontra extinto, os efeitos da amnistia incindem unicamente na pena e nos efeitos que dela decorrem e que ainda possam subsistir (cf. art.° 128.°, n.° 2, do CP, aplicável ex vi do art.° 50.° do RDNGR).
Procedem as Conclusões das alegações.
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, revoga-se a decisão no segmento em apreço e determina-se a baixa dos autos ao TAF a quo para
que prossigam seus termos, isto é, para verificar se procedem ou não os fundamentos de anulação do acto que aplicou a pena disciplinar.
Sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.
Notifique e DN.
Porto, 13/9/2024~
Fernanda Brandão
Paulo Ferreira de Magalhães
Rogério Martins |