Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02492/21.5BEPRT-A
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/17/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:MARIA FERNANDA ANTUNES APARÍCIO DUARTE BRANDÃO
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA; MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA; AGENTE POLICIAL; ÁREA OPERACIONAL DO COMETPOR;
FURTO DE DIMINUTO VALOR (€ 4.99); SANÇÃO DISCIPLINAR DE APOSENTAÇÃO COMPULSIVA; DESPROPORCIONALIDADE DA MEDIDA APLICADA; PROCEDÊNCIA DA ACÇÃO;
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte -Subsecção Social-:

RELATÓRIO
«AA», Agente Principal ...85, em funções no Núcleo de Informação Policial - Área Operacional, do COMETPOR, NIF: ...18, com domicílio na Travessa ..., ..., instaurou acção administrativa contra o MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA (“MAI”), com vista à anulação do despacho do Ministro da Administração Interna, datado de 23/09/2021, no qual lhe foi determinada a aplicação de sanção disciplinar de aposentação compulsiva.
Por decisão proferida pelo TAF do Porto foi julgada improcedente a acção e absolvida a Entidade Demandada dos pedidos contra si formulados.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, o Autor formulou as seguintes conclusões:
A. A sentença a quo assenta na ideia de que a administração/recorrida tem uma margem de conformação que lhe permitiu decidir como decidiu.
B. O recorrente não discute a essencialidade dessa margem de conformação.
C. O que o recorrente diz é que a liberdade de conformação não pode ser tão lata que se torne cega e se repita exactamente da mesma maneira, em todos os processos da mesma natureza.
D. A recorrida não tem critério definidor, caso a caso.
E. Decide sempre da mesma maneira, com as mesmas palavras.
F. Ou seja, há uma repetição de uma fórmula que é perpetuada sem critério.
G. Daí que a liberdade conformadora que é permitida à Administração/recorrida tenha/deva ser fiscalizada pelos Tribunais.
H. Caso contrário, qualquer polícia sabe qual é o fim do seu processo disciplinar – a condenação, independentemente do que alegue em sua defesa.
I. E a prática é a melhor demonstração desta realidade.
J. O Direito, como ciência em permanente evolução, no seu corpo e conteúdo de ciência humana e social, tem, necessariamente, à medida que a vida se vai transformando, que se actualizar.
K. Daí que, entende o recorrente, não se deva dar como cristalizada ou imutável a ideia de que ao Tribunal compete apenas apurar a forma, devendo, também, avaliar a tal margem de conformação da Administração/recorrida.
L. A Administração/recorrida, vinculada pelo artigo 266º CRP deve actuar de acordo com os Princípios da Igualdade, Proporcionalidade, Justiça, Imparcialidade e Boa-fé.
M. Nos presentes autos verifica-se a ofensa a vários destes Princípios, designadamente os da igualdade (de armas) e o da adequação e proporcionalidade.
N. Com efeito, o recorrente viu ser-lhe sonegada igualdade de armas.
O. Na sua defesa, o recorrente produziu quesitos e indicou como perita médica a Dr.ª «BB».
P. Estranhamente, ou não, ao longo do processo disciplinar, a Instrução, apesar dos vários esclarecimentos fornecidos, sempre se referiu à perita médica como testemunha
Q. e desvalorizou, em absoluto, as respostas dadas aos quesitos por esta.
R. Violação do Princípio da Igualdade de armas porquanto, enquanto o recorrente indicou quesitos e uma perita médica para lhes responder, a Instrução nada fez.
S. Ora, que se saiba, o Instrutor não é médico.
T. E, não o sendo, arrogou-se no direito de desmontar, com juízos comuns, as respostas aos quesitos, declarações de ciência, dadas pela perita médica.
U. Entende o recorrente que a rotina da punição exemplar obliterou a razão.
V. Ou seja, como estava já definida a sanção, a Instrução achou que tinha competência para contradizer uma perita médica.
W. A não se actuar sobre esta conduta, vai permitir-se que as Instruções alarguem de tal modo a sua discricionariedade que caiam na arbitrariedade.
X. Ao não se actuar sobre esta lógica, será ineficaz qualquer defesa que qualquer Agente apresente. E é esta a realidade!
Y. Evidentemente que é ao órgão com competência disciplinar que cabe a decisão de punir.
Z. No entanto, no caso concreto, entende o recorrente, que o espaço conferido à Administração pelas normas legais para apreciação da prova, foi ultrapassado.
AA. No caso, ao prescindir a recorrida de um perito médico para responder aos quesitos que que aquela haveria de produzir,
BB. coloca-se numa posição violadora da praxis médica.
CC. Para avaliar as respostas aos quesitos, deveria a recorrida munir-se de alguém de, pelo menos, igual competência técnica.
DD. E não o fez.
EE. Não o tendo feito, viola o Princípio da Igualdade de Armas na medida em que a Instrução fica com a porta aberta para fazer a interpretação que entender/quiser fazer, sem critério científico.
FF. Exemplo flagrante, e que a douta sentença não só não questionou como valorou, é o teor do ponto 6.2.3.1.1. do Relatório, onde se disse “Quanto a ser abrangido pela circunstância dirimente de privação acidental e involuntária do exercício das faculdades intelectuais no momento da prática do ilícito, tendo para isso em todo o processo..., o arguido tentou demonstrar que só cometeu o ilícito devido a se encontrar com anomalia psíquica, estamos convictos que a existir anomalia psíquica no arguido, a mesma só foi desenvolvida após ter sido apanhado a cometer o ilícito...”.
GG. Ora, perante as respostas aos quesitos, dadas pela perita médica, a Instrução não só não as valorizou como “estamos convictos que a existir anomalia psíquica no arguido, a mesma só foi desenvolvida após ter sido apanhado a cometer o ilícito...”.
HH. O que transparece é que a Instrução disse o que disse como podia ter dito qualquer outra coisa, uma vez que “estamos convictos”.
II. Mas qual é base dessa convicção? Qual foi o critério científico para produzir essa convicção?
JJ. Mais arbitrário do que isto não será fácil encontrar...
KK. Entende, também, o recorrente ocorrer violação do Princípio da Proporcionalidade.
LL. Em casos de natureza semelhante ao dos autos, independentemente das circunstâncias de cada caso, a recorrida aplica sempre a mesma sanção.
MM. Sanção expulsiva, diferindo na sua modalidade – expulsão ou, como nos autos, aposentação compulsiva.
NN. Quando na acção o ora recorrente se referiu a pena máxima, foi no sentido de pena expulsiva.
OO. O recorrente foi aposentado compulsivamente da PSP (uma das modalidades da pena expulsiva), com base nos depoimentos dos funcionários do estabelecimento comercial onde ocorreram os factos e nas imagens vídeo.
PP. Desde logo ressalta quem, quanto ao que sucedeu e ao modo como sucederam os factos no interior do estabelecimento, não só não há imagens, como a Instrução não demonstrou qualquer preocupação ou apreensão quanto a isso,
QQ. tendo, bem pelo contrário, fundado a sua convicção nas imagens de vídeo-vigilância, dado que “... as mesmas não têm cortes”.
RR. E, de facto, é crucial saber o que aconteceu dentro da loja!
SS. Saber se o recorrente recebeu um telefonema, se tinha as mãos ocupadas, como meteu o bem no casaco..., são elementos essenciais para aferir melhor a conduta do recorrente.
TT. O Princípio da Adequação e Proporcionalidade, como nota a douta sentença a quo, assenta em 3 pilares: adequação, necessidade e proporcionalidade.
UU. No entender do recorrente, ocorre ofensa a este Princípio uma vez que a recorrida não atende minimamente às circunstâncias especiais do caso.
VV. Tanto a recorrida como o Tribunal a quo, partem do princípio de que o recorrente, sem mais nem menos, se lembrou de furtar um bem no valor de € 4.99.
WW. Nem uma nem outro, fizeram qualquer juízo de probabilidade ou razoabilidade sobre os factos.
XX. De facto, tendo o recorrente a folha de serviço que tem e que fala por si, 27 anos de uma carreira imaculada, aos olhos do Homem Médio resulta, no mínimo, estranho ou impossível alguém que põe em jogo uma carreira de 27 anos por € 4.99.
YY. Ninguém se questionou se é provável, plausível que alguém, sem mais nem menos, se lembre de arriscar uma carreira policial de anos por um acto desta natureza.
ZZ. Tendo em conta a questão que ninguém quis colocar, bem se vê que o Princípio da Proporcionalidade foi violado.
AAA. Desde logo na sua dimensão da adequação, uma vez que a sanção aplicada não se adequa às finalidades que visa.
BBB. As sanções expulsivas foram pensadas para aqueles casos em que, de facto, o comportamento do Agente é de tal modo ofensivo, designadamente pela sua reiteração, intensidade ou visibilidade, que põe em causa a dignidade da função e a relação profissional.
CCC. E, no caso, apesar de nem a Instrução nem o Tribunal a quo terem visto, os factos não ocorreram no quadro negro que a Instrução pintou.
DDD. A finalidade essencial do Princípio da Adequação é a da realização de Justiça e não de Justiça justiceira.
EEE. Ao não atender às circunstâncias em que ocorreram os factos, ao não procurar saber mais (v.g. o que sucedeu no interior da loja), a recorrida, ao aplicar esta sanção, limita-se a aplicar uma sanção mecânica, uma vez que vai além das medidas adequadas à prossecução dos fins.
FFF. Quanto à dimensão da necessidade, também aqui, e sobretudo aqui, há um excesso da medida da pena, uma vez que a aposentação compulsiva – medida expulsiva – é muito mais lesiva do que o dano provocado.
GGG. Outra sanção seria perfeitamente adequada à prossecução dos fins visados pela norma.
HHH. Ou seja, aplicar uma sanção expulsiva não realiza mais nem melhor os fins do que v.g. uma suspensão por determinado período de tempo.
III. Do ponto de vista da proporcionalidade, por tudo o que vem dito, também se alcança que a sanção escolhida não realiza melhor os fins do que outra, v.g., como se disse, uma suspensão.
JJJ. Os tribunais criminais atendem, e bem, às circunstâncias dos agentes e dos factos, às circunstâncias em que determinado facto ocorreu.
KKK. E não deixam de punir os infractores!
LLL. Fazem-no é de modo adequado e proporcional,
MMM. sem cair na sanção automática e justiceira,
NNN. mas pugnando por uma sanção adequada e proporcional que também satisfaça os fins visado pela norma.
OOO. E aqui, sim, podemos falar em realização de justiça.
PPP. A recorrida, em casos de natureza semelhante, aplica sempre sanção expulsiva – aposentação compulsiva ou expulsão.
QQQ. E não se diga que quando opta pela aposentação compulsiva teve em conta as circunstâncias do(s) caso(s).
RRR. Porque se, efectivamente, tivesse em conta, poderia escolher outra sanção.
SSS. E nunca o faz!
Nestes termos e nos melhores de direito que suprirão, deverá ser admitido e declarado procedente o presente recurso, fazendo assim,
JUSTIÇA.
Não foram juntas contra-alegações.
A Senhora Procuradora Geral Adjunta notificada, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.

Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:

1. O Autor é Agente Principal da PSP, com o número M/2716/...85 – cfr. parte I do PA, fls. 107 do SITAF;

2. Do Auto de Notícia com o ...:...20, constante de fls. 4/6 do volume II do PA, fls. 108/292 do SITAF, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, consta o seguinte: «(...)

[imagem que aqui se dá por reproduzida]




(...)»;

3. Em 21/01/2021, o Instrutor deu início ao procedimento disciplinar com o n.º ...09..., por conta dos factos referidos nos pontos 2., – cfr. fls. parte I do PA, fls. 107 do SITAF;

4. Em 25/01/2020 foi lavrado Auto de Denúncia contra o Autor, pela apropriação indevida de um artigo de roupa interior, constando do Auto de Denúncia, designadamente o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

.” – cfr. fls. 29 do volume II do PA, fls. 108/292 do SITAF do SITAF;

5. Em 29/01/2020, o Director Nacional da PSP determinou a suspensão preventiva de funções do Autor pelo período de 90 dias [cfr. doc. ... junto à PI];

6. Em 11/11/2020, o Instrutor do processo disciplinar n.º ...09... deduziu acusação nos seguintes termos: «(...)
[imagem que aqui se dá por reproduzida]





(...)» [cfr. fls. 201/202v do Volume IV do PA, fls. 382/394 do SITAF];

7. Em 15/12/2020, o Autor apresentou defesa escrita do despacho de acusação mencionado no ponto antecedente, nos termos e com os fundamentos de fls. 221 a 225v do Volume V do PA que consta a fls. 397/465 do SITAF;

8. Foi elaborado Relatório final, ao abrigo do artigo 98º, n.º 1, do ED/PSP, aprovado pela Lei n.º 37/2019, de 30 de Maio, com o seguinte teor que se transcreve parcialmente: «(...)
[imagem que aqui se dá por reproduzida]






(...)» – cfr. fls. 234/250 do volume V do PA, fls. 397/465 do SITAF;

9. Em 14/06/2021, o Conselho de Deontologia e Disciplina lavrou acta no processo disciplinar, da qual se extrai o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

(...)» – cfr. fls. 290/293 do Volume VI do PA, que consta a fls. 466/572 do SITAF;

10. Em 17/06/2021, pelo Director Nacional da Polícia de Segurança Pública foi proferido despacho com o seguinte teor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]


[cfr. fls. 293 do Volume VI do PA, que consta a fls. 466/572 do SITAF];

11. Em 22/09/2021 foi proferido despacho pelo Ministro da Administração Interna, com o seguinte teor:
“1. Considerando o processo disciplinar N...09... em que é arguido o Agente Principal da Polícia de Segurança Pública (PSP) n.º ...85, «AA», seu Relatório Final, a deliberação do Conselho de Deontologia e Disciplina de 14 de junho de 2021, o despacho do Senhor Diretor Nacional da Polícia de Segurança Pública de 17 de junho de 2021 e o parecer nº 462­D/2021 da Direção de Serviços de Assessoria Jurídica, Contencioso e Política Legislativa da Secretaria Geral da Administração Interna, seus termos e fundamentos, aplico ao Agente Principal da Polícia de Segurança Pública, n.º ...85, «AA», a pena disciplinar de aposentação compulsiva.
2. Comunique-se o presente despacho à Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública, que determinará a notificação do mesmo ao arguido e ao seu Ilustre Mandatário” – cfr. fls. 295 do Volume VI do PA, que consta a fls. 466/572 do SITAF;

12. Pelo Comissário «CC», Chefe do Núcleo de Informações Policiais foi emitida informação de serviço com o seguinte teor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]


[cfr. doc. ... junto à PI];

13. Da “Nota de Assentos” do Autor consta designadamente o seguinte:
«(...)
[imagem que aqui se dá por reproduzida]



(...)»[cfr. doc. ... junto à PI];

16. O Autor tem 53 anos de idade [cfr. doc. ... junto com a PI];

17. Em 01/02/2020, a Unidade Local de Saúde de Matosinhos EPE, declarou que «DD» esteve internada no serviço de Ortopedia de 17/08/2019 a 28/08/2019 [cfr. doc. junto à PI];

18. Em 01/02/2020, a Unidade Local de Saúde de Matosinhos EPE, declarou o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]


(...)»;

19. Em 03/02/2020, a [SCom01...], Lda, declarou que «DD» “esteve presente para tratamento de fisioterapia ao joelho esquerdo desde 09 de outubro de 2019 e ao ombro direito desde 20 de dezembro de 2019, mantendo-se em tratamento pelo menos até ao final de 20 sessões” [cfr. doc. junto à PI];
20. Em 27/02/2020, pela médica psiquiatra «BB», emitiu Relatório Médico no Hospital ..., cujo conteúdo se dá por reproduzido e se transcreve parcialmente:
«(...)
[imagem que aqui se dá por reproduzida]



(...)»; [cfr. doc. junto à PI];

21. A petição inicial relativa à presente lide foi apresentada em juízo no dia 27-12-2021 – [cfr. fls. 1 SITAF];

22. Correu termos neste TAF o processo cautelar n.º 2492/21...., requerendo a suspensão do acto ora impugnado, a qual foi julgada improcedente por sentença datada de 22/01/2022 e confirmada por Ac. do TCAN de 8/04/2022 (cfr. consulta SITAF ao processo n.º 2492/21.... e conhecimento no exercício de funções).
DE DIREITO
Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Sem embargo, por força do artigo 149.º do CPTA, o Tribunal, no âmbito do recurso de apelação, não se quedará por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decidirá “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
Assim,
A sentença assenta na ideia de que a administração/recorrida tem uma margem de conformação que lhe permitiu decidir como decidiu.
O Recorrente não discute a essencialidade dessa margem de conformação.
O que o Recorrente alega é que a liberdade de conformação não pode ser tão lata que se torne cega e se repita exactamente da mesma maneira, em todos os processos da mesma natureza.
Daí que a liberdade conformadora que é permitida à Administração/recorrida tenha/deva ser fiscalizada pelos Tribunais. Caso contrário, qualquer polícia sabe qual é o fim do seu processo disciplinar - a condenação, independentemente do que alegue em sua defesa.
O Direito, como ciência em permanente evolução, no seu corpo e conteúdo de ciência humana e social, tem, necessariamente, à medida que a vida se vai transformando, que se actualizar.
Daí que, se entenda, não se dever dar como cristalizada ou imutável a ideia de que ao Tribunal compete apenas apurar a forma, devendo, também, avaliar a tal margem de conformação da Administração/Recorrida.
A Administração/Recorrida, vinculada pelo artigo 266º CRP deve actuar de acordo com os Princípios da Igualdade, Proporcionalidade, Justiça, Imparcialidade e Boa-fé.
Nos presentes autos verifica-se a ofensa a vários destes Princípios, designadamente os da igualdade (de armas) e o da adequação e proporcionalidade.
Com efeito, o Recorrente viu ser-lhe sonegada a igualdade de armas.
Na sua defesa, o Recorrente produziu quesitos e indicou como perita médica a Dr.ª «BB».
Todavia, ao longo do processo disciplinar, a Instrução, apesar dos vários esclarecimentos fornecidos, sempre se referiu à perita médica como testemunha e desvalorizou, em absoluto, as respostas dadas aos quesitos por esta.
Foi violado o Princípio da Igualdade de armas porquanto, enquanto o Recorrente indicou quesitos e uma perita médica para lhes responder, a Instrução nada fez.
Ora, o Senhor Instrutor não é médico.
E, não o sendo, arrogou-se no direito de desmontar, com juízos comuns, as respostas aos quesitos, declarações de ciência, dadas pela perita médica.
A não se actuar sobre esta conduta, vai permitir-se que as Instruções alarguem de tal modo a sua discricionariedade que caiam na arbitrariedade.
Ao não se actuar sobre esta lógica, será ineficaz qualquer defesa que qualquer Agente apresente - lê-se nas alegações e aqui corrobora-se.
Não se discute que é ao órgão com competência disciplinar que cabe a decisão de punir.
No entanto, no caso concreto, entende-se que o espaço conferido à Administração pelas normas legais para apreciação da prova, foi ultrapassado.
No caso, ao prescindir a Recorrida de um perito médico para responder aos quesitos que aquela haveria de produzir, colocou-se numa posição violadora da praxis médica.
Para avaliar as respostas aos quesitos, deveria a Recorrida munir-se de alguém de, pelo menos, igual competência técnica. E não o fez.
Não o tendo feito, violou o Princípio da Igualdade de Armas na medida em que a Instrução ficou com a porta aberta para fazer a interpretação que entendesse/quisesse fazer, sem critério científico.
Exemplo flagrante, e que a sentença não só não questionou como valorou, é o teor do ponto 6.2.3.1.1. do Relatório, onde se disse “Quanto a ser abrangido pela circunstância dirimente de privação acidental e involuntária do exercício das faculdades intelectuais no momento da prática do ilícito, tendo para isso em todo o processo..., o arguido tentou demonstrar que só cometeu o ilícito devido a se encontrar com anomalia psíquica, estamos convictos que a existir anomalia psíquica no arguido, a mesma só foi desenvolvida após ter sido apanhado a cometer o ilícito...”.
Ora, perante as respostas aos quesitos, dadas pela perita médica, a Instrução não só não as valorizou como “estamos convictos que a existir anomalia psíquica no arguido, a mesma só foi desenvolvida após ter sido apanhado a cometer o ilícito...”. O que transparece é que a Instrução disse o que disse como podia ter dito qualquer outra coisa, uma vez que “estamos convictos”. Mas qual é base dessa convicção? Qual foi o critério científico para produzir essa convicção?
E o que dizer sobre a alegada violação do Princípio da Proporcionalidade?
Ao Recorrente foi aplicada a medida de aposentação compulsiva.
O Recorrente foi aposentado compulsivamente da PSP (uma das modalidades da pena expulsiva), com base nos depoimentos dos funcionários do estabelecimento comercial onde ocorreram os factos e nas imagens vídeo.
Desde logo ressalta que, quanto ao que sucedeu e ao modo como sucederam os factos no interior do estabelecimento, não só não há imagens, como a Instrução não demonstrou qualquer preocupação ou apreensão quanto a isso, tendo, pelo contrário, fundado a sua convicção nas imagens de vídeo vigilância, dado que “... as mesmas não têm cortes”.
E, de facto, é crucial saber o que aconteceu dentro da loja.
Saber se o Recorrente recebeu um telefonema, se tinha as mãos ocupadas, como meteu o bem no casaco..., são elementos essenciais para aferir melhor a conduta do Recorrente.
O Princípio da Adequação e Proporcionalidade, como nota a sentença, assenta em três pilares: adequação, necessidade e proporcionalidade.
No entender do Recorrente, ocorreu ofensa a este Princípio uma vez que a Recorrida não atendeu às circunstâncias especiais do caso.
Tanto a Recorrida como o Tribunal a quo, partiram do princípio de que o Recorrente, sem mais nem menos, se lembrou de furtar um bem no valor de € 4.99.
Nem uma nem outro, fizeram qualquer juízo de probabilidade ou razoabilidade sobre os factos.
De facto, tendo o Recorrente a folha de serviço que tem - 27 anos de uma carreira imaculada, aos olhos do Homem Médio - resulta, no mínimo, estranho que alguém ponha em jogo uma carreira de 27 anos por € 4.99.
Ninguém se questionou se é provável, plausível que alguém, sem mais nem menos, se lembre de arriscar uma carreira policial de anos por um acto desta natureza.
Assim, o Princípio da Proporcionalidade foi violado.
Desde logo na sua dimensão da adequação, uma vez que a sanção aplicada não se adequa às finalidades que visa.
As sanções expulsivas foram pensadas para aqueles casos em que, de facto, o comportamento do Agente é de tal modo ofensivo, designadamente pela sua reiteração, intensidade ou visibilidade, que põe em causa a dignidade da função e a relação profissional.
A finalidade essencial do Princípio da Adequação é a da realização de Justiça.
Ao não atender às circunstâncias em que ocorreram os factos, ao não procurar saber mais (v.g. o que sucedeu no interior da loja), a Recorrida, ao aplicar esta sanção, limitou-se a aplicar uma sanção mecânica, uma vez que vai além das medidas adequadas à prossecução dos fins.
Quanto à dimensão da necessidade, também aqui, e sobretudo aqui, há um excesso da medida da pena, uma vez que a aposentação compulsiva - medida expulsiva - é muito mais lesiva do que o dano provocado. Outra sanção poderia ser adequada à prossecução dos fins visados pela norma. Ou seja, aplicar uma sanção expulsiva não realiza mais nem melhor os fins do que v.g. uma suspensão por determinado período de tempo.
Do ponto de vista da proporcionalidade, também se alcança que a sanção escolhida não realiza melhor os fins do que outra, v.g., como se disse, uma suspensão.
Os Tribunais têm de atender às circunstâncias dos agentes e dos factos, às circunstâncias em que determinado facto ocorreu, sem que, naturalmente deixem de punir os infratores.
Têm é que o fazer de modo adequado e proporcional, sem cair na sanção automática, pugnando antes por uma sanção adequada e proporcional que também satisfaça os fins visado pela norma.
No caso concreto, analisados os autos, temos para nós que houve desproporção entre a sanção aplicada e a falta cometida pelo Recorrente.
Em suma,
Não se ignora que a Administração goza de algum poder discricionário na aplicação de penas em função das infrações imputadas a um qualquer arguido, sendo que, em qualquer caso, tal não poderá extravasar ou contrariar as balizas legalmente estabelecidas para o efeito.
A aplicação e graduação das penas resultam da conjugação de diversos critérios, nomeadamente a natureza e gravidade da infração, a categoria do agente, o grau de culpa, a personalidade do agente, o seu nível cultural, o tempo de serviço e quaisquer outros elementos que militem contra ou a favor do arguido.
Decidiu-se no Acórdão nº 12868/03 do TCA-Sul de 09/06/2004: Diz-nos Eduardo Correia: “(...) na medida em que as penas disciplinares são um mal infligido a um agente, devem (...) em tudo quanto não esteja expressamente regulado, aplicar-se-ão os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo (...)” (Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Almedina, 1971, pág. 37.).
Por seu turno, José Beleza dos Santos sustenta: “(…) As sanções disciplinares têm fins idênticos aos das penas crimes; são, por isso, verdadeiras penas: como elas reprovam e procuram prevenir faltas idênticas por parte de quem quer que seja obrigado a deveres disciplinares e essencialmente daquele que os violou. (...) aquelas sanções têm essencialmente em vista o interesse da função que defendem, e a sua atuação repressiva e preventiva é condicionada pelo interesse dessa função, por aquilo que mais convenha ao seu desempenho atual ou futuro (...). No que não seja essencialmente previsto na legislação disciplinar ou desviado pela estrutura específica do respetivo ilícito, há que aplicar a este e seus efeitos as normas do direito criminal comum. (...)” ( José Beleza dos Santos, Ensaio sobre a introdução ao direito criminal, Atlântida Editora SARL/1968, págs.113 e 116.).
Tal não significa que o princípio da legalidade e consequente função garantística de direitos subjetivos públicos esteja arredada do direito sancionatório disciplinar, nomeadamente ao amparo da conceção da relação jurídica de emprego público como relação especial de poder (Luís Vasconcelos Abreu, Para o estudo do procedimento disciplinar no direito administrativo português vigente: as relações com o processo penal, Almedina, Coimbra/1993, pág. 30. Francisco Liberal Fernandes, Autonomia coletiva dos trabalhadores da administração. Crise do modelo clássico de emprego público, Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iuridica, 9, Universidade de Coimbra, Coimbra /1995, págs.146/147).
Todo este labor legislativo traduz-se na adoção de conceitos gerais e indeterminados, juridicamente expressivos do conteúdo da relação laboral (vinculativos) o que outorga à autoridade administrativa no exercício da competência disciplinar, uma vez definidos quais os factos provados, uma margem de livre apreciação, subsunção e decisão, operações todas elas jurisdicionalmente sindicáveis no que concerne à definição do efeito jurídico no caso concreto (validade do ato), v.g. quanto à existência material dos pressupostos de facto (Mário Esteves de Oliveira, Lições de Direito Administrativo - FDL/1980, págs.621 e 787. Bernardo Diniz de Ayala, O défice de controlo judicial da margem de livre decisão administrativa, Lex, 1995, pág. 91. ).
A operação de subsunção da factualidade provada ao conceito identificado pelos substantivos abstratos que qualificam os deveres gerais, em ordem a aplicar ao caso concreto a consequência jurídica definida pela norma, passa, assim, por dois planos:
-primeiro: pela interpretação e definição de conteúdo dos conceitos indeterminados que consubstanciam os deveres gerais;
-segundo: pelo juízo de integração ou inclusão dos factos apurados na previsão do normativo aplicável e consequente concretização dos referidos conceitos normativos.
O direito sancionatório disciplinar pune os comportamentos que, consubstanciados no caso concreto pela factualidade apurada e definida no procedimento disciplinar, em juízo subsuntivo não integrem as qualidades abstratamente elencadas.

(…).
O artigo 2.° da CRP tem ancorado o princípio da proporcionalidade que se encontra concretizado e densificado no artigo 18.°, n.° 2 da CRP.
Este princípio desdobra-se em três subprincípios: i) idoneidade ou adequação; ii) necessidade; e iii) racionalidade ou proporcionalidade stricto sensu.
O princípio da idoneidade ou adequação traduz-se na aptidão objetiva ou formal de um meio para realizar um fim.
O princípio da necessidade significa que é ele, entre os que poderiam ser escolhidos in abstrato, aquele que melhor satisfaz in concreto - com menos custos, nuns casos, e com mais benefícios, noutros - a realização do fim; e, assim, é essa providência, essa decisão que deve ser adotada.
A racionalidade ou proporcionalidade strictu sensu equivale a justa medida. Implica que o órgão procede a uma correta avaliação da providência em termos quantitativos (e não só qualitativos), de tal jeito que ela não fique além ou aquém do que importa para se alcançar o resultado devido - nem mais, nem menos - cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, Vol. I, 2ª ed. Revista, Universidade Católica Editora, pág. 80.
Por força do citado princípio terá de existir uma proporção adequada entre os meios usados e o fim que se pretende atingir, aplicando-se a sanção que se deva ter por consentânea com a gravidade dos factos apurados, devendo essa sanção apresentar-se como a menos gravosa para o trabalhador.
Ademais, o chamado controlo jurisdicional da adequação da decisão aos factos, conforme entendimento corrente dos Tribunais Administrativos Superiores, determina que o Tribunal se não pode substituir à Administração na concretização da medida da sanção disciplinar, o que não impede que lhe seja possível sindicar a legalidade da decisão punitiva, na medida em que esta ofenda critérios gerais de individualização e graduação estabelecidos na lei ou que saia dos limites normativos correspondentes (Acórdão do STA, de 09/3/83, in Ac. Dout. Ano XXIX, nº 338, pág. 191 e segs.).
O princípio da proporcionalidade tem, pois, assento constitucional no artigo 18º da CRP e no artigo 7º do CPA, sendo um princípio basilar da atuação da Administração Pública, impondo-lhe, nomeadamente que com a prossecução do interesse público provoque a menor lesão possível aos interesses privados.
Segundo Luís Moncada (Código do Procedimento Administrativo anotado, 2ª ed., Quid Juris, pág. 95), “a proporcionalidade é utilizada como critério jurídico defensivo das limitações aos direitos fundamentais pelo legislador e pela Administração, de acordo com o regime do artº. 18º da CRP. Mas pode e deve ser utilizada fora daí como critério geral de toda a atividade administrativa”.
Este princípio assume também grande importância em sede de poder disciplinar, uma vez que “as penas disciplinares são um mal infligido a um agente, devem, em tudo quanto não esteja expressamente regulado, aplicar-se os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo” e portanto “o princípio da proporcionalidade impõe que, tendo em consideração os fins a atingir, a sanção disciplinar aplicada ao arguido deva ser, simultaneamente, a menos gravosa e a mais adequada à gravidade dos factos” (vide, acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 20/11/2014, proferido no proc. nº. 00312/11.8BEVIS).
Conforme se enuncia no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo datado de 01/04/2003 e proferido no processo 1228/02:

“I-Nos termos do artº 26º nº 1 do Estatuto Disciplinar as penas de aposentação compulsiva e de demissão aplicam-se a comportamentos que, imputados ao arguido atinjam um grau de desvalor que quebre, definitiva e irreversivelmente, a confiança que deve existir entre o serviço e o agente.

II-O juízo de inviabilização da relação funcional como elemento típico e essencial da cláusula geral punitiva do artº 1 do artº 26º do ED deve resultar, como conclusão fundada, no despacho punitivo, a denotar a devida ponderação dos juízos de desvalor face aos atinentes critérios de aplicação das penas, sobretudo quando a aplicação daquela norma resulte de comportamentos não tipificados nos nºs 2 a 4 daquele artigo 26º.

III-A valoração das infracções disciplinares como inviabilizantes da manutenção da relação funcional tem de assentar não só na gravidade objectiva dos factos cometidos, mas ainda no reflexo dos seus efeitos no desenvolvimento da função exercida e no reconhecimento, através da natureza do acto e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções.”

No caso vertente a sanção de suspensão de funções (igualmente aplicável abstratamente) era mais adequada do que a pena efetivamente aplicada ao Recorrente tendo em consideração que o princípio da proporcionalidade implica que, ao exercer os seus poderes disciplinares, a Administração deve aplicar a medida punitiva que, sendo idónea aos fins a atingir, se apresente como menos gravosa para o arguido (vide Acórdão deste TCAN de 28/03/2014, proferido no proc. n.º 3188/11.1BEPRT). Dito de outro modo, tendo-se verificado na aplicação da pena a violação designadamente dos princípios da justiça e da proporcionalidade, naturalmente que a intervenção dos tribunais se mostra legítima, e não violadora do princípio da separação de poderes (artigos 7º e 8º do CPA), tanto mais que ao Recorrente não foram imputados comportamentos que atinjam um grau de desvalor que quebre, definitiva e irreversivelmente, a confiança que deve existir entre o serviço e o agente.

Como se decidiu no Acórdão do TCA Sul de 23/11/2023, proc. nº 795/23.3 BELRA, se é verdade, no que respeita à proporcionalidade da pena, que não podemos perder de vista que estamos perante um agente policial com um específico código deontológico e com um apertado conjunto de deveres de conduta, o que é facto é que se mostra desproporcional aplicar a pena de demissão em resultado do furto numa messe da PSP de refrigerantes com um valor total de cerca de 1€, atenta até a ausência de repercussão publica do referido evento, não estando pois demonstrado que o controvertido crime tenha inviabilizado a manutenção da relação funcional.
Efetivamente, e desde logo, o MAI não demonstrou que a infração imputada ao aqui Recorrido, se mostraria inviabilizadora da manutenção da sua relação funcional, não tendo sido, designadamente, evidenciados comportamentos suscetíveis de constituírem um grau de desvalor, determinantes da quebra, definitiva e irreversível, da confiança que deverá existir entre o serviço e o agente - cf. sumário.

Procedem as Conclusões das alegações.

DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, revoga-se a sentença recorrida e julga-se procedente a acção, anulando-se o acto impugnado da autoria do Senhor Ministro da Administração Interna, de 23/setembro/2021, que puniu o Autor com a pena de Aposentação Compulsiva.
Custas pela Entidade Recorrida e, nesta instância, sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.
Notifique e DN.

Porto, 17/5/2024

Fernanda Brandão
Isabel Jovita
Paulo Ferreira de Magalhães (com a seguinte declaração de voto: "Voto a decisão")