Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01795/23.9BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:10/31/2024
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:VIRGÍNIA ANDRADE
Descritores:ISV;
CONTRATO DE LEASING;
ALÍNEA C) DO N.º 2 DO ARTIGO 60.º DO CÓDIGO DO IMPOSTO SOBRE VEÍCULOS;
Sumário:
I – O contrato de leasing converteu-se entre nós num contrato nominado de locação financeira.

II - O intérprete deve presumir que o legislador soube consagrar na lei o seu pensamento e não pode retirar do elemento literal aquilo que lá não consta

III – O legislador, ao ter distinguido na alínea c) do n.º 2 do artigo 60.º do Código do Imposto sobre Veículos, a contagem do prazo desde a data da emissão do documento que titula a propriedade ou da data em que celebrou o contrato de locação financeira, fê-lo ciente dos condicionalismos que decorrem do regime de locação financeira, mas sempre considerando a propriedade do veículo.

IV – A matéria de facto só deve integrar factos concretos e não formulações genéricas, de direito ou conclusivas, nomeadamente quando, por si só, traduzam uma afirmação ou uma valoração de facto que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta ou componente de resposta àquelas questões.

V – A língua a empregar nos actos judiciais é a língua portuguesa, como decorre do disposto no artigo 133.º n.º 1 do CPC, devendo o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordenar que o apresentante junte a respectiva tradução (n.º 1 do artigo 134.º do CPC).*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1 – RELATÓRIO
Autoridade Tributária e Aduaneira vem interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga de 21.01.2024, que julgou procedente a acção administrativa deduzida por «AA» contra o despacho do Subdirector-Geral da Direcção de Serviços dos Impostos Especiais de Consumo e do Imposto sobre Veículos que negou provimento ao recurso hierárquico interposto da decisão do Director Adjunto da Alfândega ... que indeferiu o pedido de isenção do Imposto sobre Veículos relativa ao veículo automóvel da marca «...X...» com a matrícula Suíça n.º ...61.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
“A. O presente recurso tem por objeto a sentença proferida a 21-01-2024, a qual que julgou procedente a ação administrativa apresentada pela Autora (ora Recorrida) anulando a decisão do Senhor Subdirector-Geral da Direção de Serviços dos Impostos Especiais de Consumo e do Imposto sobre Veículos, que indeferiu o recurso hierárquico, anulando por conseguinte a decisão do Senhor Director-Adjunto da Alfândega ... que indeferiu o pedido de isenção de ISV relativamente ao veículo automóvel da marca «...X...» com a matrícula suíça n.º ...61, reconhecendo, por último, o direito da ora Recorrida à isenção de ISV requerida.
B. Foi entendimento da AT, para a decisão de indeferimento do pedido de benefício fiscal de isenção de ISV, não estarem cumpridos os condicionalismos legalmente exigidos pelo nº 1 do art.º 58.º conjugado com a al. c) do nº 1 do art.º 60.º, ambos do CISV, porquanto a interessada, ora Recorrida, não ser plena proprietária do veículo à data da transferência da residência no país de acolhimento, em 30/09/2020.
C. A ora Recorrente não se conforma com a douta sentença recorrida por entender que a mesma enferma de erro de julgamento quanto aos factos e quanto ao direito.
D. Entendeu a sentença sob recurso, que a decisão de indeferimento do pedido de isenção de ISV assenta em erro na interpretação feita aos normativos aplicáveis, no que se refere aos efeitos do contrato de Leasing na esfera jurídica do locatário e à interpretação e aplicação do condicionalismo legal a que se refere a al. c) do nº 1 do art.º 60.º do CISV.
E. Segundo o Tribunal “a quo”, em síntese, “a compra de um bem através de leasing, não deixa o comprador de ser o seu proprietário, mais precisamente o “proprietário económico”, seja na compra de móveis ou imóveis pois é ele que assume todas as responsabilidades relativas à compra, seja seguro, responsabilidade por danos, multas, IUC”. (a fls. 17 da d. sentença)
F. Dessa forma, considera a sentença em recurso que “Como se vê dos normativos legais elencados supra, uma vez que a propriedade foi registada (com ónus) em Janeiro de 2019 e a compra, ou celebração do contrato de locação financeira, em Dezembro de 2015, é líquido concluir a Autora foi proprietária da viatura em apreço durante um período que excedeu largamente 6 meses previamente à transferência da sua residência da Suíça para Portugal.” a fls. 18 da d. sentença.
Sucede que,
G. Decorre do art.º 1.º e da al. f) do nº 2 do art.º 10.º do DL n.º 149/95, de 24 de junho, que estabeleceu o regime jurídico do contrato de locação financeira, que o objeto do contrato de Leasing não é a transferência da propriedade, mas sim a cedência, pela locadora, do uso do bem, isto é, a locadora obriga-se a prestar um serviço, traduzido na disponibilidade do bem em causa, recebendo em contrapartida, uma prestação, sem prejuízo de nele se poder prever a opção de compra, no final do contrato, a favor do locatário, por um valor residual fixado por acordo das partes.
H. O contrato de Leasing tem como objeto a cedência do uso do veículo e não a transferência da sua propriedade, uma vez que o locatário não pode dispor livremente do bem, sendo o registo do Leasing averbado com indicação da existência de ónus a favor da empresa locadora (propriedade provisória);
I. O locatário tem o direito contratual de exigir do locador que este celebre com ele, no fim do Leasing, um contrato de compra e venda tendo como objeto o bem locado. A compra do bem realiza-se por contrato posterior ao contrato de locação financeira, não sendo, pois, um efeito deste operado pelo pagamento da última prestação,
J. Ou seja, o locatário apenas obtém a propriedade plena do veículo, quando opta pela sua compra e efetua o pagamento do valor residual, sendo posteriormente efetuado registo definitivo do veículo a seu favor com expurgo dos ónus associados. Por outro lado,
K. Ainda segundo a douta sentença recorrida, a decisão de indeferimento do pedido de isenção de ISV incorreu em erro de julgamento, porquanto, para o Tribunal “a quo” o legislador da al. c) do nº 1 do art.º 60.º do CISV não distingue se o registo de propriedade tem que estar sem ou com o ónus / reserva de propriedade do Leasing,
L. E com base em tal interpretação, conclui a douta sentença em recurso que, à data da transferência da residência para Portugal, a interessada era proprietária da viatura (ainda que com registo de propriedade com ónus) há mais de seis meses cumprindo, por isso, o pressuposto do artº 60º nº 1 al. c) do CISV, por ter adquirido por Leasing a viatura em dezembro de 2015 e transferido a residência para Portugal em setembro de 2020.
M. A Requerente considera que também este segmento da sentença recorrida enferma de erro de julgamento, porquanto, tratando-se de um benefício fiscal dependente de reconhecimento, embora a norma pudesse ser objeto de uma interpretação extensiva, jamais poderia ser objeto de integração analógica que conduzisse a uma solução não refletida expressamente na sua letra, cfr. artº 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo D.L. 215/89, de 1 de julho. Com efeito,
N. Para que o pressuposto da al. c), n.º 1, art.º 60.º do CISV estivesse cumprido, seria necessário que a interessada, à data da transferência da sua residência para Portugal, em 30-09-2020, já tivesse efetuado o registo definitivo da propriedade do veículo em seu nome, livre dos ónus associados, o que veio a acontecer apenas em 02-11-2020, ou seja, depois da transferência de residência ter ocorrido.
O. Nesta matéria, seguimos o teor da Sentença proferida em 27/06/2022 no Procº 59/18.4BELLE do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que se debruça sobre o mesmo tipo de questões de facto e de direito, ao estabelecer que:
“(…) relativamente à alínea c) do nº 1 do art.º 60.º do Código do ISV, entendo que a mesma deve ser interpretada no sentido de que só pode beneficiar da isenção em causa (i) o proprietário do veículo, no momento da transferência de residência e (ii) desde que o fosse pelo menos nos doze (12) meses anteriores a essa transferência.
A referência que se faz na referida norma à “(…) data em que celebrou o contrato de locação financeira (…)” tem como finalidade permitir ao proprietário do veículo “aproveitar” o prazo de duração do contrato de locação financeira para preenchimento do pressuposto da isenção relacionado com o prazo de doze (12) meses. O Legislador não quis prejudicar os proprietários que tenham adquirido os seus veículos através de contratos de locação financeira, permitindo que a duração dos referidos contratos fosse relevada para efeitos de preenchimento deste pressuposto da isenção.
Não obstante, o facto de se referir na norma sob análise que deve ser relevada a “(…) data em que celebrou o contrato de locação financeira (…)” a afasta o facto de que a isenção em causa só se aplica aos proprietários e não se trata de um benefício que possa ser aproveitado pelos locatários financeiros – que têm a posse do veículo, mas não são proprietários do mesmo. O Tribunal entende que se o legislador tivesse querido estender o benefício desta isenção de ISV aos locatários financeiros tê-lo-ia dito expressamente nesta norma. O que não é o caso.
Ainda seguindo aquele raciocínio:
Acresce que, como resulta da alínea f) do nº 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei nº 149/95 o locatário, durante o contrato de locação financeira, tem a posse do veículo e tem o direito de vir a adquirir o bem locado, findo o contrato, pelo preço estipulado. Ora, o direito que o locatário financeiro tem é o de adquirir o veículo no final do contrato de locação financeira, mas é livre para não exercer esse direito e nunca se tornar proprietário do veículo em causa. Isto é, está em causa um benefício atribuído a proprietários, que o Autor, à data ainda não era – na medida em que era locatário financeiro – e poderia nunca vir a ser
Tendo o veículo sido adquirido por exercício da opção de compra no final da vigência do contrato de locação financeira, este deve ser encarado, materialmente, como uma forma de financiar a aquisição do referido veículo. No entanto, tal afirmação apenas é possível se, no momento da transferência de residência, tal opção de compra já tivesse sido exercida, uma vez que apenas assim se poderá determinar que a vontade do locatário foi, desde o momento da celebração do contrato de locação financeira, efetivamente adquirir o veículo.
Outro entendimento colidiria com a redação da primeira parte do acima citado nº 1 do artº 58.º do Código do ISV, na medida em que o mesmo dispõe que a isenção apenas pode ser conferida por referência a veículos que são propriedade da pessoa que transferiu a sua residência. De facto, tratando-se de um benefício fiscal, embora a norma pudesse ser objeto de uma interpretação extensiva, jamais poderia ser objeto de integração analógica que conduzisse a uma solução não refletida expressamente na sua letra (nos termos do artigo 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais).
Pelo exposto, entendo que a isenção em causa é aplicável apenas aos proprietários dos veículos, não sendo admissível, atendendo ao elemento literal e à hermenêutica da norma sob análise estender os efeitos da mesma aos locatários financeiros, como era o Autor à data dos factos.
E em abono do que vem explicitado, quando o nº 3 do artigo 45.º do Código do ISV refere que as isenções são aplicáveis a veículos adquiridos em sistema de locação, reforça o entendimento deste Tribunal, já que se entende que o que o Legislador pretendeu foi tratar de forma equivalente a aquisição direta de veículos e a aquisição através de contrato de locação financeira. Isto é, tendo sido adquirido um veículo – entenda-se sendo o sujeito passivo efetivo proprietário -, não há qualquer distinção de tratamento, na atribuição do benefício de isenção por via da forma como o mesmo foi adquirido. E a propriedade tem de estar verificada à data do pedido do benefício.” (destaques nossos)
P. Nos termos supra expostos, deverá ser reconhecido que a Autoridade Tributária se limitou a fazer uma interpretação e aplicação escrupulosa da lei, ao decidir pelo indeferimento do pedido de isenção de ISV, por este não preencher os condicionalismos legalmente exigidos quanto à propriedade plena do veículo à data da transferência da residência no país de proveniência, em incumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 58º conjugado com a alínea c) do n.º 1 do artigo 60º, ambos do CISV.
Q. Devendo, em consequência, ser julgado procedente o erro de julgamento da douta Sentença recorrida quanto aos factos e quanto ao direito, com as devidas e legais consequências.
Nos termos supra expostos, e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso ser admitido e ser julgado procedente, com as devidas e legais consequências”

A Recorrida contra-alegou, peticionando a improcedência do recurso interposto e ainda ampliando o recurso perante decisão de revogação da sentença recorrida.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 146.º do CPTA não emitiu parecer.
Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos (cfr. artigo 657.º n.º 4 do Código de Processo Civil), submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.

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Objecto do recurso

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta do artigo 608.º n.º 2, artigo 635.º, n.º 4 e 639.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir i) do erro de julgamento de facto e de direito ii) da qualificação jurídica do contrato em caso de procedência do recurso, face à ampliação do recurso por parte da Recorrida.


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2 - Fundamentação
2.1. Matéria de Facto

O Tribunal a quo decidiu a matéria de facto da seguinte forma, que aqui se reproduz:
“A) – FACTOS PROVADOS
Com relevância para a decisão a proferir, consideram-se provados os seguintes factos:
1. Em 08-03-2021, a Autora, representada por „[SCom01...], LDA‟ requereu, junto da Alfândega ..., a isenção de ISV relativamente ao veículo automóvel, ligeiro de passageiros, da marca «...X...», com a matrícula suíça ...61, n.º de quadro SA.......621, com um peso bruto de 3175 Kg, com base na transferência da sua residência da Suíça para Portugal – Facto não controvertido; cf. págs. 1/5 do PA, incorporado a fls. 69-161 no SITAF.
2. Em 11-03-2021, [SCom01...], LDA‟ apresentou, junto da Alfândega ..., a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV), na qual consta a Autora, como adquirente/proprietária do veículo indicado no ponto anterior – cf. pág. 13/14 do PA.
3. Em 16-03-2021, a Alfândega ... pediu ao declarante aduaneiro, referido em 1., o envio dos seguintes documentos:
- Fotocópia do contrato de leasing afeto ao veículo de marca «...X...», matrícula suíça nº ...61
- Fotocópia da fatura final referente à liquidação final do leasing afeto ao veículo em apreço - cf. pág. 25 do PA, cujo teor se tem por reproduzido.
4. Em 05-07-2021, da Alfândega ..., com base em informação n.º ..2/2021, prestada pelos respectivos serviços, elaborou um projecto de despacho com a intenção de indeferir o pedido de isenção referido em 1. – cf. págs. 76/81 do PA.
5. Na informação referida no ponto anterior, consta designadamente o seguinte:
“(…) A 12/03/2021 «AA» requereu benefício fiscal de isenção de imposto sobre veículos (isv) para o veículo de marca «...X...», com a matrícula suíça nº ...61, chassis nº SA.......621, na transferência de residência ao abrigo do artigo 58º do código do imposto sobre veículos (cisv), aprovado pela Lei nº 22-A/2007, de 29 de junho.
O requerente juntou ao processo:
• Certificado de baixa residência com data de 30/09/2020.
• Identificação.
• Título de propriedade do veículo emitido em seu nome a 02/11/2020.
• Anterior título do veículo emitido a 22/01/2019. O documento contem menção a ónus de intransmissibilidade.
• Documentos alusivos à vida quotidiana do requerente no país de proveniência.
• Declaração de responsabilização do cumprimento dos ónus inerentes ao benefício
• Procuração.
(…)
Foi solicitado ao requerente a apresentação de fotocópia do contrato de leasing afeto ao veículo e de fotocópia da fatura respeitante à liquidação final do montante do contrato de leasing.
O requerente apresentou os documentos solicitados.
Da análise dos documentos agora juntos ao processo constata-se que o contrato de leasing foi saldado a 10/10/2020, conforme prova de pagamento apresentada.
O requerente registou o veículo em seu nome, sem menção do ónus afeto ao leasing, a 02/11/2020, conforme título de propriedade emitido pela entidade competente.
Resulta da conjugação do n.º 1 do artigo 58º, com a alínea c) do n.º 1 do artigo 60º, ambos do cisv, que o interessado, na situação de aquisição de veículo feita a coberto de um contrato de locação financeira, deve ser pleno proprietário do veículo à data da transferência da residência no país de acolhimento pelo que o contrato de locação financeira deve encontrar-se integralmente liquidado, devendo o interessado apresentar documento comprovativo.
Ora, na presente situação, o contrato de locação financeira não se encontrava integralmente liquidado à data da transferência da residência, pelo que não cumpre com o estipulado no n.º 1 do artigo 58º, em conjugação com a alínea c) do n.º 1 do artigo 60º, ambos do cisv.
(…)
O requerente refere que o veículo foi adquirido com recurso a contrato de leasing, feito em nome do seu marido. Por questões de saúde o veículo foi registado em seu nome, mantendo-se em decurso o contrato de leasing inicial. Refere ainda que veio para Portugal mais cedo para dar início a processo relativo aos seus problemas de saúde.
O requerente cancelou a sua residência a 30/09/2020.
O contrato de leasing afeto ao veículo foi saldado a 10/10/2020.
Face aos elementos constantes no processo constata-se que o contrato de locação financeira não se encontrava integralmente liquidado à data da transferência da residência.
Assim, face ao exposto, afigura-se que a resposta ao direito de audição não permite afastar a intenção inicial de indeferimento, uma vez que o pedido da isenção de ISV não preenche os condicionalismos legalmente exigidos, por incumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 58º, em conjugação com a alínea c) do n.º 1 do artigo 60º, ambos do cisv. (…)” - cf. págs. 42/45 do PA, cujo teor se tem por integralmente reproduzido
6. Em 12-05-2021, através do ofício n.º 164/2895/2021, de 10-05-2021, da Alfândega ... comunicou à Autora a intenção de indeferir o pedido de isenção de ISV e para se pronunciar, no prazo de 15 dias, sobre aquela intenção – cf. págs. 38/40 do PA.
7. Em 20-05-2021, a Autora pronunciou-se oralmente sobre a intenção de indeferimento do seu pedido de isenção de ISV – cf. Auto de Declarações, pág. 41 do PA, cujo teor se tem por integralmente reproduzido.
8. Por despacho datado de 20-05-2021, o Senhor Director da Alfândega ..., decidiu indeferir o pedido de isenção formulado pela Autora – cf. págs. 42/45 do PA, cujo teor se tem por reproduzido.
9. Em 24-05-2021, através do ofício n.º 164/3243/2021, de 21-05-2021, da Alfândega ..., a Autora tomou conhecimento da decisão referida no ponto anterior – cf. págs. 48/40 do PA.
10. Em 21-06-2021, a Autora apresentou, junto da Alfândega ..., recurso hierárquico da decisão referida em 8. – cf. págs. 51/64 do PA, cujo teor se dá por reproduzido.
11. Em 29-06-2021, os serviços da Alfândega ... elaboraram informação no sentido do indeferimento do recurso hierárquico – cf. págs. 65/69 do PA, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
12. Em 05-07-2021, com base em informação prestada pela Direcção de Serviços dos Impostos Especiais de Consumo e do Imposto sobre Veículos, foi elaborado projecto de indeferimento do recurso hierárquico – cf. págs. 76/81 do PA.
13. Na informação referida no ponto anterior consta, designadamente, o seguinte:
“(…) Da análise de todos os elementos constantes do processo, importa referir o seguinte:
Decorre da alínea c) do nº 1 do art.º 60º do CISV que para efeitos de reconhecimento do direito à isenção do ISV no regime das transferências de residência, o veículo deverá ter sido propriedade do interessado no país de proveniência, durante pelo menos seis meses antes da transferência de residência, contados desde a data da emissão do documento que titula a propriedade ou da data em que celebrou o contrato de locação financeira, se for o caso:
a) Face ao que antecede e atendendo ao estabelecido na supramencionada alínea c) do nº 1 do art.º 60º do CISV, a isenção prevista no nº 1 do art.º 58º do mesmo diploma legal, só é concedida quando o veículo é propriedade do interessado no país de proveniência, no caso Suíça, durante pelo menos 6 meses antes da transferência de residência;
b) Ora, da análise aos documentos juntos ao processo, verificou-se que a recorrente não provou a aquisição plena do veículo antes da transferência de residência que ocorreu em 30/09/2020, porquanto, permaneceu como locatária do mesmo até 10/10/2020, data em que o contrato de leasing foi saldado, tendo registado o veículo em seu nome, sem menção do ónus afeto ao leasing, a 02/11/2020, pelo que não se encontram cumpridos os condicionalismos legalmente exigidos para a obtenção da isenção pretendida.
Com efeito,
Resulta da conjugação do nº 1 do art.º 58º do CISV, com a disposição legal acima referida (alínea c) do nº 1 do art.º 60º do CISV), que os interessados, na situação de aquisição de veículo feita a coberto de um contrato de locação financeira, devem ser plenos proprietários do veículo à data da transferência da residência no país de acolhimento pelo que o contrato de locação financeira deve encontrar-se integralmente liquidado, devendo os interessados apresentar documento comprovativo onde conste a data em que o contrato de financiamento se encontra integralmente pago.
Mais,
De acordo com a definição de contrato de locação financeira estabelecida no art.º 1º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de junho, infere-se, que o contrato de locação financeira (leasing) é integrado pela obrigação do locador ceder o gozo da coisa durante um certo período (o direito ao gozo da coisa pelo locatário, é temporário), continuando o locador a ser proprietário da coisa, e pelo direito do locatário de exigir a entrega da coisa, usando-a de acordo com o fim a que se destina durante o período do contrato. Bem como pela promessa unilateral de venda no fim do contrato, sendo esta opção de compra, indissociável do contrato de locação financeira.
Acresce referir, que o locatário, além de não poder usar a coisa para fim diverso daquele a que ela se destina, também não pode mover a coisa para local diferente do contratualmente previsto, salvo autorização do locador (vide alínea d) do nº 1 do art.º 10º do mencionado Decreto Lei nº 149/95).
Ora, se o contrato da locação financeira tem apenas como objeto a cedência do uso da coisa, não possibilitando a transferência da sua propriedade, nem a cedência do uso mais a cedência contratual da propriedade, e se sobre o veículo que a recorrente pretende legalizar ao abrigo do regime especial de transferência de residência, aquando da data em que a recorrente transferiu a residência para o território nacional, incidia um contrato de locação financeira (leasing), celebrado num país terceiro, o mesmo não poderá ser legalizado em Portugal ao abrigo daquele regime, pois a legalização do veículo só se pode operar, através da confirmação da opção de compra, ou seja, a regularização fiscal do veículo apenas pode ser realizada após a recorrente ser plena proprietária do mesmo
(…)
21.Tendo em consideração que o contrato de leasing afeto ao veículo objeto de pedido de isenção foi saldado em 10/10/2020 e considerando que a recorrente cancelou a sua residência no país de proveniência para se transferir para Portugal em 30/09/2020, conforme consta de documento emitido pelo Município de Trin, verifica-se que o contrato de leasing não se encontrava integralmente liquidado à data da transferência de residência, pelo que a recorrente não era plena proprietária do veículo.
VI – CONCLUSÃO
22.Face ao que antecede e após a valoração de todos os elementos disponíveis no processo, fica demonstrado que não se encontra cumprido o requisito exigido na alínea c) do nº 1 do art.º 60º do CISV, porquanto à data da transferência de residência do país de proveniência para o território nacional, a recorrente não era plena proprietária do veículo, termos em que se propõe o indeferimento do presente RH, mantendo-se em consequência o despacho do Senhor Diretor da Alfândega ..., que indeferiu o pedido de isenção de ISV. (…)” - cf. págs. 76/81 do PA.
14. Em 12-07-2021, o mandatário da Autora tomou conhecimento do teor do projecto de indeferimento do recurso hierárquico – cf. pág. 82 do PA.
15. Em 03-08-2021, por despacho do Senhor Subdirector-Geral da AT, o recurso hierárquico foi indeferido – cf. págs. 84/86 do PA.
16. Através de ofício datado de 03-08-2021, a AT comunicou à Autora o despacho de indeferimento do seu pedido de isenção de ISV – cf. pág. 89/91 do PA.
Mais se provou que:
17. Em 04-01-2003, a Autora casou com «BB» – cf. Documento n.º 3 junto com a petição inicial.
18. Em 08-12-2015, «BB» comprou na Suíça, através de um contrato de locação financeira (leasing) celebrado com a concessionária „[SCom02...]‟, um veículo automóvel da marca «...X...», com a matrícula n.º ...82, pelo preço de CHF 43.372,25– cf. Documento n.º 4 junto com a PI, cujo teor se tem por reproduzido.
19. Na sequência do referido no ponto anterior, «BB» ofereceu em troca o veículo automóvel da marca «...Y...», modelo ..., com a matrícula ...08, o qual foi avaliado em CHF 12.800 – cf. Documento n.º 5 junto com a PI; facto não controvertido.
20. Em 18-12-2015, «BB» obteve junto de “Banco 1..., SA‟ (Banco 1...) um financiamento, no montante total de CHF 30.572,25, a desembolsar em 60 prestações mensais, para aquisição – cf. Documento n.º 4 junto com a PI
21. Em 10-10-2020, «BB» pagou à “Banco 1...‟ o montante de CHF 921,15 no âmbito do contrato referido no ponto anterior – cf. Documento n.º 6 junto com a PI.
22. Em data não concretamente apurada, a Banco 1..., por comunicação datada de 14-10-2020, informou «BB» de que a dívida se encontrava totalmente paga – cf. pág.27 do PA.
23. Em 02-11-2020, o veículo identificado em 18. foi registado em nome da Autora– cf. pág. 28 do PA; facto não controvertido.
24. Desde o ano de 2015, a Autora utiliza o veículo identificado em 18), pagando as respectivas despesas e encargos – facto não impugnado.
25. A Autora residiu em Trin, na Suíça, até 30-09-2020, data em que transferiu a sua residência para Portugal – cf. págs. 15;62 do PA.
*
B) – FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem factos a dar como não provados com interesse para a decisão a proferir.
*
C) MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
A decisão da matéria de facto dada como provada efectuou-se com base no exame dos documentos, não impugnados, que constam dos autos, designadamente com os articulados e do procedimento administrativo (PA), incorporado a fls. 69-161 do SITAF, consoante se anota em cada ponto do probatório.
Apoiou-se ainda o Tribunal na posição assumida pelas partes no presente litígio, expressa ao longo dos seus articulados, designadamente na factualidade em que concordam e nos documentos que não questionam e que secundam aquelas posições.
O Tribunal formou, assim, a sua convicção quanto aos factos dados como provados com base na apreciação crítica e articulada de toda a prova carreada para os autos, conjugada com as regras da experiência comum, tudo conforme ficou descrito e patenteado supra (cf. artigos 362.º e seguintes do Código Civil; 74.º e 76.º da LGT; 123.º do CPPT; 94.º, n.ºs 3 e 4 do CPTA, ex vi artigo 2.º, alínea c) do CPPT).”

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2.2 – O direito
Constitui objecto do presente recurso a sentença proferida em 21.01.2024 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que julgou procedente a acção administrativa deduzida por «AA» contra o despacho do Subdirector-Geral da Direcção de Serviços dos Impostos Especiais de Consumo e do Imposto sobre Veículos que negou provimento ao recurso hierárquico interposto da decisão do Director Adjunto da Alfândega ... que indeferiu o pedido de isenção do Imposto sobre Veículos relativa ao veículo automóvel da marca «...X...» com a matrícula Suíça n.º ...61.
A Recorrente, insurge-se contra o assim decidido, sustentando o erro de julgamento de facto e de direito.
No entanto, perscrutadas as conclusões do presente recurso, constata-se que a Recorrente somente assaca à decisão recorrida o erro de julgamento de direito, o que cumpre apreciar.

2.2.1. Do erro de julgamento de direito

A Recorrente vem invocar que o Tribunal a quo errou ao considerar que à data da transferência da residência para Portugal, a interessada era proprietária da viatura (ainda que com registo de propriedade com ónus) há mais de seis meses cumprindo, por isso, o pressuposto do artigo 60.º nº 1 alínea c) do Código do Imposto sobre Veículos, por ter adquirido por Leasing a viatura em Dezembro de 2015 e transferido a residência para Portugal em setembro de 2020.
Nessa medida, vem sustentar que o contrato de locação financeira não tem subjacente uma transferência da propriedade, mas a mera cedência temporal do uso do bem (viatura), que pode ou não culminar na transferência da propriedade, e, nessa medida, não se encontra preenchido o pressuposto da propriedade para efeito da isenção pretendida.
A Recorrida, no entanto, vem sustentar que a decisão recorrida fez correcta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, uma vez que aplicou a Lei de acordo com a única interpretação plausível, baseada no seu texto e no espírito do legislador.
Assim, o pomo de discórdia situa-se em determinar se o contrato de locação financeira pré-existente influi de alguma forma no direito à isenção que a aqui Recorrida se arroga e, nessa medida, se ocorre erro de julgamento.
Vejamos.
O Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho que veio alterar o regime jurídico do contrato de locação financeira, introduziu significativas alterações no regime jurídico do contrato de locação financeira, visando adaptá-lo às exigências de um mercado caracterizado pela crescente internacionalização da economia portuguesa e pela sua integração no mercado único europeu – cfr. sumário do Diploma mencionado.
Como decorre do artigo 1.º do sobredito Diploma “Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”
Parafraseando Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral”, Vol I, 6ª edição revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 275), “Verdadeiro contrato misto constituiu, entre nós e noutros países europeus, durante algum tempo, o chamado contrato de leasing que, pelo menos numa das suas modalidades, envolvia uma associação curiosa de prestações do contrato de locação com prestações da compra e venda. A partir, porém, de 1979 (Decreto-Lei n° 135/79, de 18/5; Decreto-Lei n° 171/79, de 6/6; Decreto-Lei n° 11/84, de 7/1 e Decreto-Lei n° 103/86, de 19/5), o leasing converteu-se entre nós num contrato nominado, sob o nomen iuris de contrato de locação financeira”.
Com efeito, nos termos do disposto na alínea f) do nº 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei 149/95, de 24 de Junho “Para além dos direitos e deveres gerais previstos no regime da locação que não se mostrem incompatíveis com o presente diploma, assistem ao locatário financeiro, em especial, os seguintes direitos: (…) f) Adquirir o bem locado, findo o contrato, pelo preço estipulado.”
Assim e tal como pugnado pelo Recorrente, o contrato de locação financeira não tem subjacente uma transferência da propriedade, mas a mera cedência temporal do uso do bem (viatura), que pode ou não culminar na transferência da propriedade
Por outro lado, os artigos 2.º e 3.º do Código do Imposto sobre Veículos estabelecem a incidência objectiva e subjectiva do imposto.
Acresce que, no Capítulo VI do sobredito Diploma são previstas isenções, nomeadamente por efeito da transferência de residência para o território nacional.
Assim, sob a epígrafe “Transferência de residência”, prevê o artigo 58.º n.º 1 do Código do Imposto sobre Veículos que “Estão isentos de imposto os veículos da propriedade de pessoas, maiores de 18 anos, que transfiram a sua residência de um Estado-Membro da União Europeia ou de país terceiro para território nacional, desde que estejam reunidas as condições estabelecidas nos artigos 59.º e 60.º”
O artigo 59.º do Código do Imposto sobre Veículos, com a epígrafe “Condições relativas à transferência de residência”, determina que “1 - O reconhecimento da isenção prevista no artigo anterior depende de pedido dirigido à Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, acompanhado de: a) Comprovativo da residência noutro Estado-Membro da União Europeia ou em país terceiro por período de seis meses, seguidos ou interpolados se nesse país vigorarem restrições de estada, e a respetiva transferência para Portugal, na situação prevista no n.º 1 do artigo anterior; b) Comprovativo da nacionalidade, da natureza da actividade desenvolvida noutro país e do respectivo vínculo contratual e duração, nas situações previstas no n.º 2 do artigo anterior”
Por outro lado, o n. 1 do artigo 60.º do Código do Imposto sobre Veículos estatui que: “A isenção de imposto referida no artigo 58.º só é concedida quando se verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições relativas ao veículo: a) Destinar-se a ser introduzido no consumo por ocasião da transferência de residência normal do interessado para território nacional; b) Ter sido adquirido no país de proveniência, ou em país onde anteriormente tenha igualmente residido o proprietário, em condições gerais de tributação e não ter beneficiado na expedição ou exportação de qualquer desagravamento fiscal, presumindo-se tal facto quando o veículo se encontre munido de uma placa de matrícula de série normal, com exclusão de toda e qualquer placa temporária; c) Ter sido propriedade do interessado no país de proveniência, durante pelo menos seis meses antes da transferência de residência, contados desde a data da emissão do documento que titula a propriedade ou da data em que celebrou o contrato de locação financeira, se for o caso.” – negrito nosso
No caso presente, importa analisar para a justa composição do litígio o sentido que o legislador quis atribuir ao normativo aqui em análise (alínea c) do n.º 2 do artigo 60.º do Código do Imposto sobre Veículos), o mesmo é dizer, qual será a sua ratio legis, atendendo a que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis” – cfr. n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária.
Isto porque, de acordo com o disposto no artigo 9.º n.º 3 do Código Civil “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”
A letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, “desde logo, uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio ou, pelo menos, qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei”, sendo a letra da lei, o texto da norma, o limite da sua interpretação, conforme Baptista Machado (in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina Coimbra, 1990, pág. 182).
Assim, como decorre do sobredito preceito legal, a isenção depende de dois pressuposto, quais sejam i) o veículo automóvel ter sido propriedade do interessado no país de proveniência, ii) e que seja proprietário durante pelo menos seis meses antes da transferência de residência, prazo esse contado desde a data da emissão do documento que titula a propriedade ou da data em que celebrou o contrato de locação financeira.
Assim, o legislador apesar de na 1ª parte do preceito colocar a tónica na propriedade do bem, na contagem do prazo fixado distinguiu duas situações, estabelecendo que o prazo decorre i) desde a emissão do documento que titula a propriedade, ii) desde a data em que celebrou o contrato de locação financeira.
O intérprete deve presumir que o legislador soube consagrar na lei o seu pensamento e não pode retirar do elemento literal aquilo que lá não consta.
Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, (in Código Civil Anotado, vol. 1º, 4ª edição, págs. 58 e 59) “o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal…”
Assim, ao fixar como primeiro pressuposto a propriedade, temos que considerar que o legislador soube exprimir com correção o seu pensamento e dar por certo que aquele estava ciente dos condicionalismos que decorrem do regime de locação financeira, exigindo a aquisição da propriedade após o terminus do contrato de locação financeira, por meio da aquisição do bem pelo preço acordado.
Retornando ao caso dos autos, e como decorre da factualidade assente fixada pelo Tribunal a quo, pontos 17. e 18, a Recorrida casou em 4.01.2003 com «BB», tendo este comprado em 08.12.2015 na Suíça através de um contrato de locação financeira (leasing), um veículo automóvel da marca «...X...», com a matrícula n.º ...82.
Para pagamento do veículo automóvel em questão nos presentes autos, foi dada à troca outro veículo automóvel e foi contraído financiamento a pagar em 60 prestações mensais, totalmente pagas em 10.10.2020 – cfr. pontos 19. a 21. da factualidade assente.
Na mesma data (10.10.2020), «BB» pagou à “Banco 1...‟ o montante de CHF 921,15 no âmbito do contrato de locação financeira – cfr. ponto 21. da factualidade assente.
O veiculo automóvel foi registado em 2.11.2020 em nome da Recorrida, tendo esta utilizado o veículo e pago as suas despesas desde 2015 – cfr. pontos 23. e 24 da factualidade assente.
A Recorrida transferiu a sua residência para Portugal em 30.09.2020 – cfr. ponto 25. da factualidade assente.
Por fim, em 8.03.2021 a Recorrida requereu, junto da Alfândega ..., a isenção de Imposto sobre Veículos relativamente ao veículo automóvel em questão nos autos – cfr. ponto 1. da factualidade assente.
Assim, e tal como decorre da factualidade que aqui demos conta, a Recorrida não foi proprietária do veículo em questão durante os 6 meses previamente à transferência da sua residência da Suíça para Portugal, uma vez que transferiu a sua residência para Portugal em 30.09.2020, tendo o contrato de leasing sido pago somente em 10.10.2020, não se encontrando, assim, preenchidos os pressupostos de que depende a isenção, nomeadamente os que decorrem do disposto na alínea c) do n.º 5 do artigo 60.º do Código do Imposto sobre Veículos.

2.2.2. Da ampliação do recurso – a qualificação jurídica do contrato

Em contra-alegações veio a Recorrida ampliar o pedido, invocando que “em sede de impugnação das decisões proferidas pela Autoridade Tributária, havia (…) alegado ter ajustado contrato de compra e venda, e não contrato de locação financeira, razão pela qual, face à lei aplicável, sempre seria de lhe reconhecer o direito à isenção do pagamento do imposto sobre veículos automóveis”, juntando para tal o doc. nº 4, considerando que do seu teor literal, se conclui que se trata de um como contrato de compra e venda.
Assim, cumpre qualificar juridicamente o contrato outorgado, coligido no ponto 18) da factualidade assente, aferindo se o mesmo é contrato de compra e venda ou um contrato de locação financeira.
Vejamos.
No dizer de Anselmo de Castro (in Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269), “são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objecto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstractos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste” (in Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269).
Ora, parafraseando Helena Cabrita, (in “A fundamentação de facto e de direito da decisão cível”, págs. 106, 110 e 111), “Os factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo, desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos forem considerados provados ou não provados, toda a acção seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência), com base nessa única resposta”.
“Assim, em linha com esse entendimento, as afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que, sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado [Ac. STJ de 28-01-2016, Proc. nº 1715/12.6TTPRT.P1.S1, António Leones Dantas, www.dgsi.pt.]. Significando isto, que quando tal não tenha sido observado pelo tribunal a quo e este se tenha pronunciado sobre afirmações conclusivas, deve tal pronúncia ter-se por não escrita. E, pela mesma ordem de razões, que deve ser desconsiderado um facto controvertido cuja enunciação se revele conclusiva, desde que o mesmo se reconduza ao thema decidendum, não podendo esquecer-se que o juiz só pode servir-se dos factos alegados pelas partes e que “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir (..)” [art.º 5.º 1 do CPC].” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.09.2023, proc. 9028/21.6T8VNG.P1.
No caso presente, do ponto 18) da matéria de facto assente, respeitante ao documento n.º 4 que titula o contrato aqui em questão, consta o seguinte:
“Em 08-12-2015, «BB» comprou na Suíça, através de um contrato de locação financeira (leasing) celebrado com a concessionária„ [SCom02...]‟, um veículo automóvel da marca «...X...», com a matrícula n.º ...82, pelo preço de CHF 43.372,25– cf. Documento n.º 4 junto com a PI, cujo teor se tem por reproduzido”
Assim, sendo controvertida a qualificação jurídica do contrato e constando do sobredito facto a sua qualificação, do mesmo resulta a resolução da questão a decidir.
Nesta senda, tratando-se de matéria conclusiva, nunca a mesma deveria ter sido reconduzida ao probatório, pelo menos com a redacção aí aposta de que se trata de um contrato de locação financeira (leasing), determinando-se a sua expurgação da matéria de facto.
Acresce que, nos termos do disposto no artigo 133.º n.º 1 do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Língua a empregar nos atos”, a língua a empregar nos actos judiciais é a língua portuguesa.
Tal decorre do direito de soberania do Estado português uma vez que a sua língua oficial é o português - cfr. artigo 11.º nº 3 da Constituição da República Portuguesa.
Nesta senda, como decorre do n.º 1 do artigo 134.º do Código de Processo Civil “Quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte”
Parafraseando Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in CPC Anotado, Vol. I, pág. 157), “A junção pelas partes de documento originariamente redigido em língua estrangeira deve ser acompanhada, em princípio, da respetiva tradução, a qual pode ser dispensada pelo juiz quando as circunstâncias o justifiquem. A prudência aconselha, porém, que tal dispensa apenas seja autorizada quando for seguro que não compromete as garantias das partes nem a justa composição do litígio, o que poderá revelar-se especialmente pertinente quando se trate de interpretar o teor de algum documento ou de cláusula contratual que se mostrem decisivos para a solução do pleito”.
Ora, o sobredito documento, vertido no ponto 18) da factualidade assente, não está redigido em língua portuguesa, como impõe o já aqui o referenciado artigo 133.º n.º 1 do Código de Processo Civil, mas encontra-se redigido em língua estrangeira (italiano), não permitindo a este Tribunal aferir da sua qualificação jurídica.
Ora, mostrando-se essencial à decisão da causa a interpretação do sobredito contrato, na medida em que está em questão a sua qualificação jurídica, e versando este sobre questões técnicas (financeiras), deveria ter sido junto aos autos a sua tradução e não tendo sido junto, deveria o Juiz titular do processo ter diligenciado no sentido da sua junção ao abrigo do disposto do n.º 1 do artigo 134.º do Código de Processo Civil, verificando-se assim défice instrutório.
Como tal, impõe-se a remessa dos presentes autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga para promover as diligências instrutórias no sentido da tradução do documento junto aos autos como doc. 4, e, após ampliação do probatório fixado nos termos supra referidos, proferir nova decisão final.
Pelo exposto, não se mostra possível, atento o deficit instrutório, apreciar e decidir da questão de mérito invocada na ampliação de recurso, ficando prejudicada o conhecimento da mesma.

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Nos termos do disposto no artigo 663.º nº 7 do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte sumário:

I – O contrato de leasing converteu-se entre nós num contrato nominado de locação financeira.
II - O intérprete deve presumir que o legislador soube consagrar na lei o seu pensamento e não pode retirar do elemento literal aquilo que lá não consta
III – O legislador, ao ter distinguido na alínea c) do n.º 2 do artigo 60.º do Código do Imposto sobre Veículos, a contagem do prazo desde a data da emissão do documento que titula a propriedade ou da data em que celebrou o contrato de locação financeira, fê-lo ciente dos condicionalismos que decorrem do regime de locação financeira, mas sempre considerando a propriedade do veículo.
IV – A matéria de facto só deve integrar factos concretos e não formulações genéricas, de direito ou conclusivas, nomeadamente quando, por si só, traduzam uma afirmação ou uma valoração de facto que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta ou componente de resposta àquelas questões.
V – A língua a empregar nos actos judiciais é a língua portuguesa, como decorre do disposto no artigo 133.º n.º 1 do CPC, devendo o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordenar que o apresentante junte a respectiva tradução (n.º 1 do artigo 134.º do CPC).

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3 – Decisão

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal em:
i) conceder provimento ao recurso e, em consequência revogar a decisão recorrida,
ii) conceder provimento à ampliação de recurso, ordenando a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, a fim de, após a devida instrução, proferir decisão.


Custas a cargo de ambas as partes pelo decaimento, na ordem dos 50% cada.

Porto, 31 de Outubro de 2024


Virgínia Andrade
Serafim José da Silva Fernandes Carneiro
Rui Esteves