Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
«AA», contribuinte fiscal n.º ...36, com residência na Rua ..., ... ..., concelho ..., apresentou intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias contra o Centro Distrital de ... do Instituto da Segurança Social, I.P., requerendo que este seja intimado a proceder à retificação, com efeitos retroativos a 01.03.2022, do registo do período contributivo de 08/1990 a 11/2006, em nome de «AA», no prazo máximo de 7 (sete) dias, para que passem a constar como pagamentos pelo exercício de marítimo da marinha de comércio de longo curso - para efeito de aplicação do regime previsto pela Portaria n.º 804/77, de 31 de Dezembro -, pelo exercício, nesse período, das funções de profissional da marinha mercante para as quais se encontrava habilitado, em embarcações de pesca do largo (N).
Por decisão proferida pelo TAF de Aveiro foi recusado liminarmente o requerimento inicial que motiva a presente intimação.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, o Requerente formulou as seguintes conclusões: 1º A decisão recorrida enferma de NULIDADE, por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos previstos no artigo 615°, n.°1, alínea c), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1° do CPTA.2° Ao reconhecer que o recorrente invoca direitos fundamentais, o tribunal recorrido incorreu em contradição ao afirmar que estes “não são direitos, liberdades e garantias, nem direitos de natureza análoga”.3° Uma correcta apreciação dos factos invocados pelo recorrente e dos fundamentos de direito e doutrinais enunciados na própria decisão recorrida impunha uma decisão de deferimento liminar do requerimento inicial de intimação.4° A intimação é o meio é adequado a assegurar o efectivo exercício do direito violado.5° Não se pretende exercer o direito a prestações pecuniárias.6° Estão em causa direitos de natureza análoga aos direitos de liberdades e garantias constitucionalmente previstos.7º O recorrente pretende que, junto do recorrido, seja afastado o facto que impede o CNP de decidir de acordo com o previsto no artigo 1º, n.º 1, da Portaria 804/77, de 31 de Dezembro.8º Pelo exposto, não se verifica a “exceção dilatória inominada de inadequação do meio processual”.9º Por outro lado, não se afigura viável o recurso a uma providência cautelar.10º O recurso aos meios comuns não assegura o efectivo exercício do direito do requerente.11º A intimação do requerido para correcção dos registos do período contributivo em nome do recorrente revela-se indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito ao regime de Pensão de Velhice Antecipada previsto no artigo 1º, n.º 1, da Portaria 804/77, de 31 de Dezembro.12º O despacho recorrido violou o disposto no artigo 109º do CPTA e o direito previsto no artigo 63º, nºs 1, 3 e 4 da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com o disposto no artigo 1º, n.º 1, da Portaria 804/77, de 31 de Dezembro.
Nestes termos e demais de direito que suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deve a decisão recorrida:
I. Ser declarada NULA, nos termos previstos no artigo 615º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil;
II. Ser substituída por decisão que determine a intimação do requerido nos termos peticionados.
Não foram juntas contra-alegações.
Citado também para o efeito o Requerido apresentou oposição, pugnando pela manutenção da decisão proferida.
O Senhor Procurador Geral Adjunto notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
É objecto de recurso o despacho liminar que decidiu nos termos e com os fundamentos seguintes:
“«AA», contribuinte fiscal n.º ...36, com residência na Rua ..., ... ..., concelho ..., apresenta, nos termos do artigo 109.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) INTIMAÇÃO PARA A DEFESA DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS, contra a CENTRO DISTRITAL DE ... DO INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P., requerendo que o Requerido ser intimado a proceder à retificação, com efeitos retroativos a 01.03.2022, do registo do período contributivo de 08/1990 a 11/2006, em nome de «AA», no prazo máximo de 7 (sete) dias, para que passem a constar como pagamentos pelo exercício de marítimo da marinha de comércio de longo curso - para efeito de aplicação do regime previsto pela Portaria n.º 804/77, de 31 de Dezembro -, pelo exercício, nesse período, das funções de profissional da marinha mercante para as quais se encontrava habilitado, em embarcações de pesca do largo (N).
Alegou o Autor, para o efeito e em síntese:
Que é profissional da marinha de comércio de longo curso desde 26.07.1990;
Que exerceu atividade de trabalhador da marinha mercante em embarcações de longo curso entre 16.08.1990 a 28.02.2022, num total de 7281 dias (19 anos, 11 meses e 11 dias);
Que sempre se encontrou inscrito nos serviços da segurança social e efetuou as respetivas contribuições sobre os vencimentos auferidos pelo seu trabalho, como trabalhador da marinha mercante, que foram processadas, descontadas e pagas pelas respetivas entidades patronais;
Que tem 57 anos de idade e mais de quinze anos de registo de embarque e permanência nos quadros do mar.
E nessa medida, ao abrigo do artigo 1º, n.º 1, da Portaria 804/77, de 31 de dezembro é-lhe reconhecido o direito à pensão de velhice, a partir dos 55 anos de idade.
Em 01.03.2022, formulou pedido online, com o nº ...98, de Atribuição de Pensão de Velhice Antecipada;
Em 10.03.2022, o Centro Nacional de Pensões notificou o Requerente da proposta de indeferimento do pedido acima referido, por falta de reconhecimento do direito do Requerente à Reforma Antecipada e ausência de idade pessoal do Requerente para acesso à Pensão de Velhice.
Que consultadas as contribuições registadas no ISS, em nome do Requerente, verificou-se que as contribuições sobre as renumerações auferidas pelo exercício da atividade de trabalhador da marinha mercante ao serviço de Empresas de Pesca, em embarcações de longo curso, foram incorretamente registadas como tendo sido auferidas por trabalho prestado como pescador;
Em 30.03.2022, após informação da retificação do tempo de serviço como profissional da marinha mercante, o Requerente apresentou pedido de reapreciação do anterior pedido de Pensão de Velhice Antecipada, o qual veio a ser indeferido pelo mesmo motivo;
De novo, em 10.11.2022, após nova informação da retificação do tempo de serviço como profissional da marinha mercante, o Requerente solicitou ao Centro Nacional de Pensões a reanálise do pedido;
Após o Centro Nacional de Pensões solicitou, diretamente, esclarecimentos ao CDSS de ...;
Em 16.03.2023 o Requerente foi notificado pelo Centro Nacional de Pensões, que o Centro Distrital ... não tinha efetuado qualquer alteração nos períodos que constam na Segurança Social e que deram origem ao indeferimento do processo de pensão e que nessa medida davam o processo por findo mantendo o indeferimento;
Perante esta resposta, em 29.03.2023, através de carta entregue em mão no CDSS de ..., o Requerente reiterou o pedido de deferimento do requerimento de pensão de Velhice Antecipada;
E, em 22.05.2023, o Requerente solicitou ao CDSS de ... que procedesse à comunicação da retificação do registo de remunerações ao Centro Nacional de Pensões;
Porém, em 29.05.2023, o Centro Nacional de Pensões dirigiu nova notificação ao Requerente, dando conta que não existia qualquer alteração a efetuar “uma vez que o Centro Distrital ... manteve todos os registos da Segurança Social que deram origem ao Indeferimento.”;
Em 21.06.2023, o Requerente apresentou reclamação daquela decisão;
Em 03.10.2023, através do seu mandatário, enviou requerimento ao Diretor do Centro Distrital de ... do Instituto da Segurança Social, I.P., de idêntico teor e com os mesmos fundamentos do presente requerimento;
Na ausência de resposta, em 13.11.2023, por email e através do seu mandatário, o Requerente insistiu pelo deferimento do pedido formulado; sendo que, até ao momento, o CDSS de ... não respondeu a qualquer pedido ou reclamação do Requerente nem procedeu à correção do registo das contribuições prestadas pelo Requerente, o que consubstancia grave e injustificado abuso de direito, com inerente grave prejuízo pessoal para o Requerente;
Alegou que não dispõe de outro meio que assegure o seu direito de acesso à Pensão de Velhice Antecipada senão através da retificação pelo CDSS de ... do registo das contribuições no período de 08/1990 a 11/2006.
Concluiu que, por ter mais de 55 anos de idade, ter sido trabalhador inscrito marítimo da marinha de longo curso, ter mais de 15 anos de embarque em embarcações de longo curso no exercício das funções de profissional da marinha mercante e ter procedido aos respetivos descontos para a segurança social, tem direito à Pensão de Velhice Antecipada, nos termos previstos no artigo 1º, n.º 1, da Portaria 804/77, de 31 de dezembro.
Que o exercício do direito do Requerente à Pensão de Velhice Antecipada, depende da retificação, pelo CDSS de ..., do registo do período contributivo, do Requerente, de 08/1990 a 11/2006, para que passem a constar como pagamentos pelo exercício de marítimo da marinha de comércio de longo curso, para efeito de aplicação do regime previsto pela Portaria n.º 804/77, de 31 de dezembro.
Sustenta como urgência do pedido de rectificação do registo das contribuições em nome do Requerente, que desembarcou, por última vez, em 28.02.2022 e desde essa data não exerce atividade profissional, nem aufere rendimento da mesma.
Que em 01.03.2022 apresentou o pedido de pensão de velhice antecipada e que aguarda pela decisão que determine a concessão da pensão de velhice antecipada a que tem direito.
Conclui que a omissão do dever de resposta e decisão do CDSS de ..., viola o direito de acesso à pensão de velhice do Requerente, constitucionalmente consagrado no artigo 63.º nº 4 da CRP, a que tem direito, a seu pedido, desde 01.03.2022.
O Tribunal a quo decidiu assim:
A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias (doravante intimação) vem prevista nos artigos 109.º e seguintes do CPTA e visa a concretização do direito fundamental decorrente do n.º 5 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Este mecanismo processual permite dar tutela principal (definitiva), urgente e sumária a direitos, liberdades e garantias, podendo ser requerida quando a emissão célere (atentos os interesses que visa acautelar) de decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se mostre indispensável para assegurar o exercício em tempo útil de um direito, liberdade e garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.
Refira-se que a tutela urgente tem um caráter excecional, “já que a aplicação da justiça exige tempo para o apuramento dos factos e a observância dos direitos das partes, em maior ou menor medida sacrificados pela celeridade e sumariedade da tutela urgente”, neste sentido Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2020, pág. 150.
É a seguinte a redação do artigo 109.º, n.º 1 do CPTA: “A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.”
Resulta daquele preceito que a utilização da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias depende do preenchimento dos seguintes pressupostos legais: (i) que a emissão urgente de uma decisão de fundo seja apta e indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia; e (ii) que não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar, no âmbito de uma ação administrativa não urgente.
Direitos, liberdades e garantias serão, em primeiro lugar, todos os que a Constituição consagra como tal no Título II da Parte I, da CRP, referentes a direitos, liberdades e garantias pessoais (artigo 24.º a 47.º), de participação politica (artigos 48.º a 52.º ou dos trabalhadores (artigos 53.º a 57.º), em segundo lugar, os direitos de natureza análoga a estes, nos termos do artigo 17.º da lei fundamental, e em terceiro lugar os direitos fundamentais que resultem de Lei ou norma internacional que vincule o Estado Português, desde que revistam também natureza análoga a direitos, liberdades e garantias.
Ou seja, estão em causa, em primeira linha, situações relacionadas com direitos, liberdades e garantias com um estatuto de “preferred position” que exigem um especial amparo jurisdicional, um meio subsidiário de tutela célere e prioritária, vocacionado para intervir como uma válvula de segurança, quando a proteção jurídica, atempada e efetiva, daqueles direitos mediante os demais de processo administrativo não se mostra apta ou adequada, por impossibilidade ou insuficiência - vide, entre outro, Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, página 935, Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 7.ª edição, Coimbra, 2005, página 2005 e Isabel Celeste Fonseca, Dos Novos Processos Urgentes no Contencioso Administrativo, 2004, página 77.
Pelo que o direito alegado pelo requerente da Intimação tem de ser (concretamente) configurável como um direito subjetivo fundamental, universal e permanente que se subsuma à categoria dos direitos, liberdades e garantias ou análogos, distinguível da dos direitos fundamentais económicos, culturais e sociais, ou direitos a prestações.
Dito de outro modo, e nas palavras de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, Almedina, 2017, p. 883, “(...) é necessário que esteja em causa o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia e que a adopção da conduta pretendida seja apta a assegurar esse exercício. À partida, o preenchimento deste requisito pressupõe que o requerente concretize na petição os seguintes aspectos: a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual; e a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação. Não releva, por isso a mera invocação genérica de um direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a intimar a Administração, através de um processo célere e expedito, a adoptar uma conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil desse direito.”.
E isto porque, a defesa ou tutela dos direitos fundamentais, faz-se, por regra, através do recuso à ação administrativa e apenas quando aquela via não é possível ou suficiente por se verificar “a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de grave ameaça ou violação do direito, liberdade ou garantia em causa, que só possa ser reparada através do processo urgente de intimação.” cf. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 4.ª Edição, 2018, pág. 883).
Como sufraga o STA (acórdão de 30.10.2008, processo n.º 878/08) “o processo de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias não é um processo cautelar, a que só é legitimo recorrer quando esteja em causa a lesão, ou ameaça de lesão, de um direito, liberdade ou garantia cuja proteção seja urgente e que esta não seja possível ou não seja suficiente através da propositura de uma ação administrativa associada a um pedido de decretamento de uma providência cautelar”.
O segundo dos requisitos estatuídos no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, relaciona-se com a subsidiariedade da intimação.
Escreve, a este propósito, Anabela Costa Leão, Comentários à Legislação Processual Administrativa, Vol. II, 5.ª edição, 2020, AAFDL Editora, pág. 673 “se o que se trata é de acautelar danos decorrentes do decurso do tempo do processo principal, estamos de pleno no âmbito da tutela cautelar; se do que se trata é da urgência na decisão de mérito, então ou a providência cautelar não é suficiente, ou, se antecipar definitivamente a decisão final, não é possível.” Acrescenta aquela Autora que “se o que se pretende é uma regulação definitiva, então o meio processual será um meio principal. Neste caso, ou se trata de uma situação de especial urgência das que o legislador tipificou como tal, ou o processo urgente não é necessário, sendo a forma de tutela mais adequada uma solução combinatória de ação principal e providência cautelar, o que decorre da especificidade ou da excecionalidade, mais do que da subsidiariedade, dos processos urentes.”
Feito este enquadramento normativo, a primeira questão que se coloca é o da inadequação ou inidoneidade do meio processual, e desde já se avança que o meio processual escolhido pelo Requerente não é o adequado.
Com efeito, por meio do requerimento inicial, o Requerente, sustenta que “a omissão do dever de resposta e decisão do CDSS de ..., a proceder à retificação do registo das contribuições no período de 08/1990 a 11/2006 para efeito de aplicação do regime previsto pela Portaria n.º 804/77, de 31 de dezembro de modo a que lhe seja concedida a pensão de velhice antecipada a que tem direito, viola o direito de acesso à pensão de velhice do requerente, constitucionalmente consagrado no artigo 63.º nº 4 da CRP, a que tem direito, a seu pedido, desde 01.03.2022.”
Ora, desde logo, os direitos fundamentais invocados não são direitos, liberdades e garantias, nem direitos de natureza análoga (direitos com natureza positiva ante o Estado e com exequibilidade direta), (cf. v.g. o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 23 de fevereiro de 2012- processo 06621/00, publicado em www.dgsi.pt).
Com efeito, o ora requerente invoca direitos, em geral, com natureza positiva ante o Estado (a prestações), sem exequibilidade direta, por carecerem da intervenção do legislador, pois o que pretende com o presente meio é obter determinadas prestações sociais com carácter pecuniário (o direito à pensão de velhice antecipada).
Contudo, tal como a jurisprudência tem assinalado, “Não é admissível o recurso à intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias com a finalidade de obter determinada prestação social de cariz pecuniário” - Ac. do TCA Sul, proferido no proc. 1543/21.813ELS13, datado de 20.01.2022, disponível em www.dgsi.pt.
Acrescenta-se neste aresto que “sendo que, ainda que se admitisse a reflexa violação de direitos, liberdades e garantias por via da invocação direta de uma pretensa “violação” de direitos a prestações estaduais (direitos económicos, sociais e culturais), não poderia deixar de se entender que o cerne da pretensão material do A. consiste na atribuição de uma prestação pecuniária (com vista à satisfação das suas necessidades vitais, como alega) e que tal desiderato é passível de ser alcançado através de tutela cautelar (cfr. art.º 112º, n.º 2, al. e) do CPTA) pelo que jamais se poderia julgar verificado o segundo dos pressupostos supra enunciados.”
E nessa medida, aquela alegação não tem a tutela prevista no artigo 109.º do CPTA, por não consubstanciar uma lesão de um direito, liberdades e garantias, nos termos acima mencionados.
Por outro lado, da alegação do Requerente não se extrai a necessidade de uma decisão de mérito para assegurar, em tempo útil, o exercício de um direito com a natureza de direito, liberdade ou garantia, não resultando sequer qualquer situação de urgência que inviabilize o recurso às vias normais de tutela contenciosa, o que consubstancia, também ela, uma exceção dilatória inominada de inadequação do meio processual, e que obsta ao conhecimento do mérito da presente intimação, atenta a natureza cumulativa dos pressupostos processuais específicos deste meio processual (cf. art. 109º, nº 1, do CPTA), neste sentido os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 04/03/2016, proferido no proc. nº 02931/15 e do Tribunal Central Administrativo Sul, de 09/07/2015, proferido no proc. nº 12220/15, disponíveis em www.dgsi.pt.
Na verdade, face aos contornos da situação em crise e direitos em questão, à tutela que pelos mesmos é reclamada por parte do Requerente, temos, para nós, que o recurso a processos/meios contenciosos não urgentes (ações administrativas - art. 37.º, n.º 1. alíneas b), f), g), j) do CPTA), ainda que devidamente complementados pelo sistema de tutela cautelar, e nesta última dimensão apenas caso seja necessário, permite claramente a defesa efetiva do Requerente.
Até porque, em caso de assistir razão ao Requerente na sua pretensão, os efeitos de uma hipotética procedência fará retroagir os seus efeitos à data em que aquele reclama que lhe é devida a pensão antecipada de velhice. Assim, é manifesto que não se verificam os requisitos para o recurso à ação de intimação para proteção de direitos, liberdade e garantias, previstos no artigo 109.º, n.º 1 do CPTA, o que configura a impropriedade do meio processual, verificando-se, assim, uma exceção dilatória inominada que determina o indeferimento liminar da petição inicial, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 89º, nºs 1, 2 e 4, alínea b), 109º, nº 1 e 110º, nº 1, do CPTA e 590º, nº 1, do CPC (ex vi art. 1º do CPTA).
Não nos revemos nesta leitura do Tribunal a quo.
Vejamos:
Da nulidade, nos termos previstos no artigo 615°, n.°1, alínea c), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1° do CPTA -
Como é sabido, a nulidade da decisão judicial por oposição dos fundamentos com o decidido, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 615.º CPC, é um vício que afecta a estrutura lógica da decisão, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, motivo por que não lhe são subsumíveis meras discordâncias do recorrente com que o foi decidido - Acórdão do STA de 29/9/2022 no proc. 0128/20.0BALSB.
Não ocorre nulidade da sentença recorrida se esta é coerente entre os fundamentos e a decisão, sem prejuízo da eventual ocorrência de erro de julgamento quanto às questões a apreciar - Acórdão do STA de 11/7/2012, no proc. 0235/12.
Esta nulidade (contradição entre os fundamentos e a decisão) ocorre “quando os fundamentos invocados na decisão deveriam conduzir, num processo lógico, à solução oposta da que foi adoptada na decisão”.
Na verdade, a sentença pode padecer de vícios de duas ordens:
Por um lado, pode ter errado no julgamento dos factos e do direito e, então, a consequência é a sua revogação.
Por outro lado, como acto jurisdicional, pode ter atentado contra as regras próprias da sua elaboração ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra é decretada e, então, torna-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea c) do CPC.
Ora, nos termos do supracitado preceito legal, é nula a sentença quando os seus fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Encontramo-nos perante um corolário lógico da exigência legal de fundamentação das decisões judiciais em geral consagrado no artigo 154º, nº 1, do CPC.
O vício em análise, o qual tem como premissa a eventual violação do necessário silogismo judiciário que deve existir em qualquer decisão judicial, terá lugar, como referimos, somente quando os fundamentos da sentença devam conduzir, num processo lógico, a uma decisão oposta ou, pelo menos, diferente da que foi adoptada.
In casu não se deteta esta nulidade.
De facto, quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziram ao resultado expresso na decisão, inexistindo uma real contradição entre os fundamentos e a decisão pois que a fundamentação aponta num determinado sentido e a decisão segue esse caminho não se verifica a nulidade p. na al. c) do nº 1 do artº 615º do CPC.
Desatende-se esta argumentação.
Do erro de julgamento -
Neste domínio assiste razão ao Apelante.
A avaliação liminar do requerimento inicial configura um momento inicial da instância, que tem o objetivo de escrutinar a presença de todas as condições processuais de que depende o prosseguimento da tramitação da providência, por forma a ser prolatada a decisão de mérito.
No caso, o Tribunal recorrido incorreu em erro no enquadramento jurídico da situação sub judice e fez uma incorrecta interpretação do disposto no artigo 109º do CPTA, conjugadamente com o direito previsto no artigo 63º, nºs 1, 3 e 4 da Constituição da República Portuguesa.
Uma correcta apreciação e ponderação dos factos alegados pelo Recorrente no requerimento inicial, não permite concluir pela inadequação ou inidoneidade do meio processual.
O direito de acesso à Pensão de Velhice Antecipada alegado pelo Recorrente é um direito fundamental, com consagração expressa na Constituição da República Portuguesa, concretamente, no artigo 63º, nºs 1, 3 e 4.
Todos têm direito à segurança social - ex vi n.º 1 do artigo 63º da CRP.
Assim, não poderia o Tribunal concluir que “os direitos fundamentais invocados não são direitos, liberdades e garantias, nem direitos de natureza análoga”.
Com efeito, para defesa de direitos fundamentais de natureza análoga pode ser utilizado o meio processual do artigo 109º do CPTA.
A contagem do tempo de trabalho para o cálculo das pensões é um direito fundamental de natureza análoga.
Ora, o que está em causa no processo não é a atribuição da pensão em si (não é o direito social em si), mas a obtenção de um meio essencial para a conseguir aceder à mesma.
Os direitos fundamentais de natureza análoga são posições jurídicas ativas, em regra dispersas na Constituição que, atenta a sua natureza defensiva e conexão com o valor da liberdade, contenham atributos idênticos aos dos direitos, liberdades e garantias de modo a poderem beneficiar, no todo ou maioritariamente, do regime constitucional previsto para estes últimos. O artigo 17.º da Constituição da República (CRP) clarifica que “O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no Título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga”. O regime aplicável envolve, nomeadamente, na CRP: a reserva de lei parlamentar (alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º); a submissão ao disposto no artigo 18.º relativamente à restrição de direitos e ao artigo 19.º no que tange à sua suspensão; as garantias de acesso ao direito, previstas no n.º 5 do artigo 20.º; a responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas enunciada no artigo 22.º; e a cláusula de limites materiais de revisão constitucional declarada pela alínea d) do artigo 288.º. Têm sido identificados pela jurisprudência e pela doutrina como direitos fundamentais de natureza análoga, entre outros, os direitos de propriedade e iniciativa económica privada (artigos 62.º e 61.º da CRP); o direito à retribuição do trabalho, ao limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal, férias e subsídio de desemprego (artigo 59.º); a contagem do tempo de trabalho para o cálculo das pensões (n.º 4 do artigo 63.º); e os direitos dos administrados (artigo 268.º da CRP). A par destes direitos análogos constitucionalizados, a Constituição admite a existência de direitos fundamentais “extravagantes”, revelados fora do catálogo constitucional e constantes de lei ou tratado (n.º 1 do artigo 16.º) sendo duvidoso que, contudo, assumam natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, dado que, em sede de revisão constitucional, caiu a expressão “natureza análoga” que figurava no texto originário da Constituição.
Ao omitir a prática do acto devido - correcção dos registos da Segurança Social que deram origem ao Indeferimento (vide notificação do CNP de 29.05.2023) - o CDSS de ... impede, ao Recorrente, o exercício do direito à Segurança Social previsto no artigo 63º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Contrariamente ao que se alude no despacho recorrido, não está em causa a atribuição ou recebimento de uma prestação pecuniária, mas a remoção de um obstáculo, junto do Requerido, que impede o acesso do Recorrente ao direito de Pensão de Velhice Antecipada, pelos motivos expostos pelo CNP - “uma vez que o Centro Distrital ... manteve todos os registos da Segurança Social que deram origem ao Indeferimento.”
No caso dos autos, não se trata de um pagamento de uma prestação.
Por tal motivo, o Tribunal recorrido incorreu em erro de aplicação de direito ao negar a aplicação do disposto no artigo 109º do CPTA.
Acresce que uma correcta apreciação dos factos invocados pelo Recorrente e dos fundamentos de direito e doutrinais enunciados na decisão recorrida impunha uma decisão de deferimento liminar do requerimento inicial de intimação.
Reitera-se, no caso dos autos, importa decidir se o Recorrente tem direito ao regime de Pensão de Velhice Antecipada, previsto no artigo 1º, n.º 1, da Portaria 804/77, de 31 de dezembro e, por conseguinte, a exigir do CDSS de ... a correcção dos “registos da Segurança Social que deram origem ao Indeferimento”.
Os direitos à segurança social, à Pensão de Velhice, à consideração de todos os períodos contributivos e ao regime especial de Pensão de Velhice Antecipada são direitos de natureza análoga aos direitos de liberdades e garantias constitucionalmente previstos. Quanto à subsidiariedade do recurso a este meio processual, também se discorda dos argumentos expendidos pelo Tribunal a quo.
Na verdade, “o recurso a processos/meios contenciosos não urgentes (ações administrativas - art. 37.º, n.º 1, alíneas b), f), g), j) do CPTA), ainda que devidamente complementados pelo sistema de tutela cautelar”, não assegura a defesa efectiva do direito do Requerente.
Por um lado, a instauração de uma acção administrativa contra o Recorrido não se afigura viável, na medida em que a mera correcção que se pretende não assegura o exercício do direito à Pensão de Velhice Antecipada, que terá que ser reconhecido e atribuído pelo Centro Nacional de Pensões. Por outro lado, uma acção administrativa contra quem deverá atribuir a Pensão de Velhice Antecipada, ou seja, o Centro Nacional de Pensões, sempre estaria votada à improcedência.
Na realidade, não pode deixar de se concordar com o Recorrente que na actual situação em que se encontram os registos das contribuições, não se
verificam os pressupostos para que esta entidade (CNP) possa reconhecer o direito e atribuir a pretendida Pensão de Velhice Antecipada.
Assim, também não se afigura adequada a instauração de uma qualquer providência cautelar (dependente uma acção principal), na medida em que a conduta que, de imediato e com urgência, se pretende deve ser realizada por uma entidade administrativa contra a qual, após eventual decretamento da providência, não haveria qualquer acção principal a intentar para efectivo exercício do direito violado.
E, não se diga que não há urgência em razão dos “efeitos de uma hipotética procedência [fará] retroagir os seus efeitos à data em que aquele reclama que lhe é devida a pensão antecipada de velhice”. Para além de não se vislumbrar qual a acção adequada a instaurar contra o Requerido, capaz de assegurar o efectivo exercício dos direitos violados e fazer retroagir os seus efeitos à data em que lhe é devida a Pensão de Velhice Antecipada; não se acautela os meios de sobrevivência até à decisão de mérito final nem se desobriga o Recorrente da necessidade de, até lá, continuar a trabalhar.
Para efeito da ponderação da urgência da medida, convém não esquecer que a prestação de trabalho durante o tempo que o Recorrente estivesse à espera de uma acção administrativa não é reparável, ou seja não é possível a reconstituição da situação inicial no caso do CDSS ter praticado o acto devido.
Como alegado, o despacho em apreço viola o disposto no artigo 109º do CPTA. Tal equivale a dizer que não se verifica a “exceção dilatória inominada de inadequação do meio processual”.
Em suma,
O n° 1 do artigo 109° do CPTA faz depender a concessão da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias do preenchimento de certos requisitos: em primeiro lugar é necessário que esteja em causa o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia e que a adopção da conduta pretendida seja apta a assegurar esse exercício; depois também se exige que a célere emissão da intimação seja indispensável por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131°do CPTA;
Este diploma, assume que, ao contrário do que, à partida, se poderia pensar, o processo de intimação para protecção de D,L,G não é a via normal de reacção a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias;
A via normal de reacção é a da propositura de uma acção não urgente associada à dedução de um pedido de decretamento de providências cautelares, destinadas a assegurar a utilidade da sentença que, a seu tempo, vier a ser proferida no âmbito dessa acção;
Este processo de intimação para a protecção de D,L,G é, pois, um meio de tutela subsidiária, o qual só deve ser utilizado quando outros meios de tutela não sejam capazes de assegurar a protecção dos direitos invocados;
Através deste meio processual podem ser obtidas decisões que imponham à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa que se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia - desde que para o efeito não se revele possível ou adequado o recurso à tutela cautelar;
São pressupostos do pedido de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias os seguintes: i) a necessidade de emissão em tempo útil e, por isso, com caráter de urgência de uma decisão de fundo que seja indispensável para proteção de um direito, liberdade ou garantia; ii) o pedido se refira à imposição de uma conduta positiva ou negativa à Administração ou a particulares que se mostre apta a assegurar esse direito; e iii) que não seja possível ou suficiente acautelar o direito por outro meio processual, mormente através do decretamento provisório de uma providência cautelar dependente de uma ação administrativa ou de uma qualquer outra forma de processo urgente principal;
A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias constitui um meio contencioso subsidiário de tutela destinado a ser utilizado apenas nas situações em que as outras formas de processo não se mostrem, ou não se apresentem, como meios adequados ou aptos à realização e efetiva proteção dos direitos, liberdades e garantias, assegurando uma efetiva e plena tutela jurisdicional, funcionando, assim, como uma válvula de segurança do nosso sistema de garantias contenciosas;
A mesma constitui um meio contencioso idóneo e adequado às necessidades e exigências reclamadas para e na defesa in casu da pretensão do Apelante, dado tais necessidades e exigências não se mostrarem minimamente ajustadas e compatíveis com aquilo que é o tempo de tramitação e de obtenção de uma decisão final numa ação administrativa ainda que conjugada com a obtenção do decretamento da tutela cautelar;
A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é uma válvula de segurança do sistema de garantias contenciosas, utilizada quando outras formas de processo não são adequadas para assegurar a protecção efectiva desses direitos, o que ora se verifica;
Pese embora o que vem dito, in casu, impõe-se a baixa dos autos à 1ª instância para aí prosseguirem os termos estabelecidos no capítulo III do título II - n.º 2 do artigo 110º do CPTA-, designadamente para realização da audiência prévia;
É que, apesar de ter sido apresentada contestação não foi exercido o contraditório relativamente ao mérito do pedido e a complexidade da questão não permite uma decisão de mérito logo após os articulados.
Procedem as Conclusões das alegações.
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a remessa dos autos ao TAF a quo para os fins atrás enunciados.
Sem custas.
Notifique e DN.
Porto, 06/6/2024
Fernanda Brandão
Isabel Jovita
Rogério Martins |