Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
| Processo: | 02460/17.1BEPRT |
| Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
| Data do Acordão: | 05/23/2025 |
| Tribunal: | TAF do Porto |
| Relator: | RICARDO DE OLIVEIRA E SOUSA |
| Descritores: | NULIDADE PROCESSUAL; PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO; RENÚNCIA AO RECURSO; ACEITAÇÃO EXPRESSA DA DECISÃO; PODERES DO MANDATÁRIO; |
| Sumário: | I - As nulidades de acórdão de Tribunal Central Administrativo devem ser arguidas diretamente no tribunal que o proferiu, e não em sede de recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, considerando a natureza excecional e a admissibilidade restrita deste recurso [cf. artigo 150.º do CPTA]. II- O princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, admite exceção em casos de manifesta desnecessidade, nomeadamente quando a questão a decidir resulta de facto processual simples, objetivo e irrefutável produzido pela própria parte. III - A renúncia ao direito de recurso, quando manifestada expressamente pela parte processual através de declaração inequívoca de não interposição de recurso, constitui ato unilateral que produz efeitos imediatos, independentemente de pronúncia do tribunal, conduzindo à preclusão do direito de recorrer. IV- A declaração expressa de não interposição de recurso mantém plena eficácia mesmo quando inserida em requerimento que visa também a dispensa do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, sendo irrelevante a inexistência de despacho sobre tal requerimento. V- A declaração de não recorrer ou a renúncia ao direito de recurso integra-se nos poderes gerais de representação do mandatário judicial, não exigindo poderes especiais, contrariamente ao que sucede com a desistência do pedido, a confissão do pedido ou a transação. VI- A interposição de recurso após a expressa renúncia ao direito de recorrer não tem o condão de revogar tal renúncia, antes constitui ato processualmente inadmissível em face da prévia preclusão do direito de recorrer.* * Sumário elaborado pelo relator (art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil) |
| Votação: | Unanimidade |
| Meio Processual: | Acção Administrativa Comum |
| Decisão: | Indeferir a arguição de nulidade do Acórdão. |
| Aditamento: |
| Parecer Ministério Publico: |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte - Secção de Contencioso Administrativo, subsecção de Contratos Públicos: * * I – RELATÓRIO 1. Sob a peça processual que faz fls. 1133 e seguintes dos autos [suporte digital], vem o MUNICÍPIO ... suscitar a nulidade processual do Acórdão proferido em 04.04.2025 por este Tribunal Central Administrativo Norte, o qual decidiu pela inadmissibilidade do recurso jurisdicional por si interposto da sentença prolatada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datada de 16.12.2024. 2. Fundamenta o requerimento, brevitatis causae, na invocação da violação do princípio do contraditório, ao abrigo do artigo 195.º do CPC, alegando que a questão da inadmissibilidade foi suscitada pela recorrida nas contra-alegações, às quais não podia responder, não tendo sido cumprido o disposto no artigo 655.º, n.º 1, do CPC. 3. Quanto ao mérito, sustenta que, apesar de ter declarado não recorrer no âmbito de um pedido de dispensa da taxa de justiça, interpôs recurso dentro do prazo legal, argumentando que não houve despacho sobre o requerimento onde declarou não recorrer e que o Mandatário não dispunha de poderes especiais para a renúncia. 4. Notificada que foi para se pronunciar, a recorrida [SCom01...], S.A. apresentou resposta, pugnando pela improcedência da arguição de nulidade e manutenção do decidido, argumentando que tais nulidades deveriam ser arguidas em sede de recurso e não autonomamente, que o Município foi notificado das contra-alegações e nada disse, e que a renúncia ao recurso é unilateral e operante por mera manifestação de vontade, estando contida nos poderes gerais do mandatário. * * II – PRESSUPOSTOS ADJETIVOS DA ARGUIÇÃO DE NULIDADE 5. No domínio contencioso administrativo, o meio próprio para reagir contra uma decisão de Tribunal Central Administrativo é, em regra, o recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, o qual tem caráter excecional nos termos do artigo 150.º do CPTA. 6. Considerando a natureza extraordinária e a admissibilidade restrita do recurso de revista, seria manifestamente desajustado considerar esse o único meio adequado para a arguição de vícios formais da decisão, como é o caso das nulidades processuais. 7. Sendo assim, forçoso é concluir que não se antolham obstáculos de natureza processual impeditivos da admissão, nesta sede, da arguida nulidade processual, pelo que se prosseguirá com a apreciação do seu mérito. * * III – DA NULIDADE PROCESSUAL 8. O Requerente invoca a nulidade do Acórdão proferido por este Tribunal Superior em 04.04.2025, com fundamento na violação do princípio do contraditório, porquanto não lhe teria sido concedida a oportunidade de se pronunciar sobre a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, suscitada pela Recorrida nas suas contra-alegações. 9. Importa, desde logo, fazer referência ao quadro normativo aplicável à matéria em apreço. 10. Nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), "o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem". 11. Este princípio estruturante do processo civil, de matriz constitucional e com assento no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, impõe que seja dada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre todas as questões que possam influir na decisão. 12. No que concerne especificamente aos recursos, prescreve o artigo 655.º, n.º 1, do CPC que "(…) se entender que não pode conhecer-se do objeto do recurso, o relator, antes de proferir decisão, ouvirá cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias (…)". 13. Já o n.º 2 do mesmo preceito estabelece que "(…) sendo a questão suscitada pelo apelado, na sua alegação, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo anterior (…)". 14. Daqui resulta que, tendo sido a questão da inadmissibilidade do recurso suscitada pela recorrida nas suas contra-alegações, o Tribunal deveria, em princípio, antes de decidir, ouvir a parte contrária [o Recorrente], por não ter tido oportunidade processual de responder a essa questão. 15. Sucede, porém, que a situação sub judice reveste contornos particulares que carecem de adequada ponderação. 16. Com efeito, a questão da inadmissibilidade do recurso não decorreu de qualquer complexidade jurídica ou matéria controvertida que exigisse um debate contraditório aprofundado. 17. Antes pelo contrário, resultou de um facto processual simples, objetivo e irrefutável: a expressa renúncia ao direito de recorrer, manifestada pelo próprio recorrente, em documento junto aos autos e por si subscrito. 18. Conforme se extrai inequivocamente dos autos, o MUNICÍPIO ..., através de requerimento datado de 28.01.2025, declarou expressamente que "(…) não irá interpor recurso da douta sentença (…)", o que configura uma inequívoca manifestação de vontade no sentido de aceitar a decisão judicial e renunciar ao direito de recorrer. 19. Ora, a renúncia ao direito de recurso, quando manifestada de forma expressa pela parte processual, constitui um ato de disposição unilateral que produz efeitos imediatos, independentemente da pronúncia do tribunal ou da contraparte, conduzindo à preclusão do direito de recorrer. 20. Não estamos, pois, perante uma questão jurídica nova ou controvertida, mas sim perante a mera constatação de um facto processual objetivo - a renúncia expressa ao direito de recorrer - que, por força da lei, determina a inadmissibilidade do recurso. 21. Neste contexto, a audição prévia do Recorrente sobre a questão da inadmissibilidade do recurso resultante da sua própria declaração expressa de não recorrer configura uma diligência manifestamente inútil e desprovida de eficácia processual, subsumível, portanto, na exceção de "(…) manifesta desnecessidade (…)" prevista no artigo 3.º, n.º 3, do CPC. 22. Na verdade, não se vislumbra de que forma poderia o Recorrente, em sede de contraditório, contraditar ou infirmar um facto processual por si mesmo produzido, consubstanciado na expressa renúncia ao direito de recorrer. 23. Acresce que, conforme bem observa a recorrida, o Município foi notificado das contra-alegações nas quais foi suscitada a questão da inadmissibilidade do recurso e, tendo pleno conhecimento de que o Tribunal Superior não está vinculado ao despacho de admissão proferido pelo Tribunal a quo [cfr. n.º 5 do artigo 641.º do CPC], manteve-se em silêncio. 24. Não obstante, ainda que se entendesse que o Tribunal deveria ter ouvido previamente o Recorrente antes de decidir pela inadmissibilidade do recurso, cumpre salientar que, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, "(…) fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (…)". 25. Ora, o Requerente teve já oportunidade de se pronunciar sobre a questão da inadmissibilidade do recurso no próprio requerimento em que argui a nulidade processual, expondo exaustivamente os argumentos que entende militarem a favor da admissibilidade do recurso. 26. Assim, mesmo que se considerasse verificada uma irregularidade processual por omissão da audição prévia do Recorrente, tal vício encontrar-se-ia sanado pela subsequente possibilidade de pronúncia que lhe foi concedida através do presente incidente. 27. Neste sentido, considerando que o Requerente teve já oportunidade de expor os seus argumentos relativamente à questão da inadmissibilidade do recurso, e atendendo a que tais argumentos não são suscetíveis de infirmar a conclusão de que o recurso é inadmissível por força da prévia renúncia expressa, não se verifica qualquer nulidade processual que possa influir na decisão da causa, improcedendo, consequentemente, a arguição deduzida. 28. Sem embargo de tudo o quanto se vem de expor, e para que não subsistam quaisquer dúvidas, cumpre apreciar as alegações em torno da questão de fundo, relativa à inadmissibilidade do recurso por força da prévia renúncia expressa. 29. Assim, e entrando em tal tarefa, dir-se-á que, como é consabido, e nos termos do artigo 632.º, n.º 2, do CPC, "(…) não pode recorrer quem tiver aceitado a decisão depois de proferida (…)". 30. O n.º 3 do mesmo preceito acrescenta que "(…) a aceitação da decisão pode ser expressa ou tácita (…)”, sendo esta última [aceitação tácita] a “(…) que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer (…)". 31. No caso em apreço, conforme já exposto, o MUNICÍPIO ... declarou expressamente, em requerimento datado de 28.01.2025, que "(…) não irá interpor recurso da douta sentença (…)", o que configura uma inequívoca manifestação de aceitação expressa da decisão judicial. 32. Sustenta, porém, o requerente que tal declaração foi prestada no âmbito de um pedido de dispensa do remanescente da taxa de justiça, sobre o qual não foi proferido qualquer despacho, pelo que a renúncia não produziria efeitos. 33. Tal entendimento, todavia, não colhe. 34. De facto, a aceitação expressa da decisão judicial, manifestada por declaração inequívoca de não interposição de recurso, é um ato unilateral que produz efeitos imediatos, independentemente da pronúncia do tribunal sobre qualquer pretensão conexa. 35. A circunstância de a declaração de não recorrer ter sido inserida num requerimento que visava também a dispensa do remanescente da taxa de justiça em nada afeta a eficácia imediata da renúncia ao direito de recorrer, sendo irrelevante, para este efeito, a inexistência de despacho sobre tal requerimento. 36. Aliás, constitui expediente processual a apresentação, pela parte vencida, de declaração de não recorrer como fundamento para o pedido de dispensa do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, porquanto tal dispensa visa, precisamente, premiar a aceitação da decisão e a consequente não utilização de recursos processuais adicionais. 37. Por outro lado, alega ainda o requerente que o Mandatário não dispunha de poderes especiais para desistir do recurso da decisão final, razão pela qual teria sido necessária a notificação da parte para ratificar o ato do Mandatário, o que não aconteceu. 38. Também este argumento não procede. 39. Na verdade, importa distinguir entre a desistência do pedido, a confissão do pedido ou a transação, que exigem poderes especiais [cfr. artigo 45.º, n.º 1, do CPC], e a mera aceitação da decisão judicial ou renúncia ao direito de recorrer, que se inserem nos poderes gerais de representação do mandatário judicial. 40. Se o mandatário judicial, no exercício dos seus poderes gerais de representação, pode decidir não recorrer de uma decisão desfavorável ao seu constituinte, ou pode até mesmo desistir de um recurso já interposto [cfr. artigo 632.º, n.º 5, do CPC], por maioria de razão, poderá também declarar expressamente a intenção de não recorrer, sem necessidade de poderes especiais para o efeito. 41. Acresce que, contrariamente ao alegado pelo requerente, não se verificou qualquer revogação posterior da declaração de não recorrer, porquanto a interposição de recurso após a expressa renúncia ao direito de recorrer não tem o condão de revogar tal renúncia, antes constitui um ato processual inadmissível por força da prévia preclusão do direito de recorrer. 42. Em face do exposto, e não obstante a apreciação adicional ora efetuada, mantém-se inabalada a conclusão de que o recurso jurisdicional interposto pelo MUNICÍPIO ... é inadmissível, por força da prévia aceitação expressa da decisão judicial, manifestada através da inequívoca declaração de não recorrer. 43. Mercê de tudo o quanto ficou exposto, deverá ser indeferida a arguição da nulidade processual em análise e mantida a decisão constante do Acórdão proferido em 04.04.2025, que não tomou conhecimento do recurso jurisdicional interposto pelo MUNICÍPIO ..., com fundamento na sua inadmissibilidade por força da prévia aceitação expressa da decisão judicial. 44. Ao que se proverá no dispositivo. * * III – DISPOSITIVO Nestes termos, acordam em conferência os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da CRP, em INDEFERIR A ARGUIÇÃO DE NULIDADE PROCESSUAL e confirmar a decisão constante do Acórdão proferido em 04.04.2025, que não tomou conhecimento do recurso jurisdicional interposto pelo MUNICÍPIO ..., com fundamento na sua inadmissibilidade por força da prévia aceitação expressa da decisão judicial. Custas pelo Recorrente. Registe e Notifique-se. * * Porto, 23 de maio de 2025, Ricardo de Oliveira e Sousa
Tiago Afonso Lopes de Miranda |