Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00094/22.8BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/05/2024
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:ROGÉRIO PAULO DA COSTA MARTINS
Descritores:LEI DA AMNISTIA; APLICAÇÃO AO PROCESSO JUDICIAL; SANÇÃO DE SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES;
APRECIAÇÃO DO PEDIDO DE RESTITUIÇÃO DE SALÁRIOS; RECONSTITUIÇÃO DA SITUAÇÃO QUE EXISTIRA SE NÃO FOSSE A PRÁTICA DO ACTO PUNITIVO;
CONTAGEM DO TEMPO DE SERVIÇO INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE;
ARTIGOS 6º E 14.º DA LEI DA AMNISTIA (LEI N.º 38-A/2023, DE 02.08).
Sumário:
1. A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais.

2. Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08): “Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.”

3. A ideia subjacente a este preceito é a seguinte: competente para aplicar as medidas previstas na Lei da Amnistia é quem aplicou a sanção criminal ou disciplinar.

4. Os juízes, em qualquer instância judicial, não são os juízes do “julgamento” da infracção nem da condenação. E apenas podem aplicar a Amnistia a sanções aplicadas nos processos judiciais, como decorre, a contrario, do citado preceito. Não podem aplicar a Lei da Amnistia, directamente, nos processos administrativos, disciplinares. Fazendo-o, violam o referido artigo 14.º da Lei da Amnistia e, com ele, o princípio constitucional da separação de poderes.

5. Não importa aqui saber se a Lei da Amnistia tem eficácia ex tunc ou ex nunc. Importa extrair da Lei da Amnistia a única solução compatível com a letra da lei: o tribunal não pode aplicar a Lei da Amnistia ao caso concreto em processo administrativo. E sendo certo que retirar efeitos jurídicos para o processo judicial da Lei da Amnistia aplicável ao processo disciplinar é aplicar a Lei da Amnistia no processo administrativo.

6. Os artigos 6º e 14º da Lei da Amnistia de 2023, na interpretação contrária a esta, são inconstitucionais, por violação do princípio constitucional, da separação de poderes.

7. Em todo o caso, o princípio da tutela jurisdicional efectiva impunha no caso concreto o prosseguimento dos autos da acção de impugnação com vista a assegurar o respectivo efeito útil.

8. No caso concreto o Autor, vendo o acto anulado por decisão judicial no termo do processo, pedido deduzido no articulado inicial, tem a possibilidade de, em execução de julgado, ver reconstituída a situação que existiria não tivesse sido a prática do acto anulado.

9. Como seja, receber a remuneração relativa aos 150 dias em que esteve suspenso, ver esse período contar para efeitos de antiguidade e para o gozo de férias. E receber, ainda, eventual indemnização pelos prejuízos causados com a suspensão, por si mesma.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

«AA» veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, de 10.11.2023, pela qual foi extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, face à Lei de Amnistia de 2023 (a Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto), na acção administrativa que moveu contra o Ministério da Administração Interna para a impugnação do despacho do Director Nacional Adjunto para a Unidade Orgânica de Operações e Segurança da Polícia de Segurança Pública, de 08.04.2020, que aplicou a pena de suspensão por 150 dias e do despacho do Ministro da Administração Interna de 12.10.2021, que negou provimento ao recurso hierárquico necessário interposto contra a decisão que aplicara a referida sanção.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.

*
I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1° O presente recurso jurisdicional foi interposto contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu em 10 de Novembro p.p. que extinguiu a instância por inutilidade superveniente da lide por entender que, operando a amnistia prevista na Lei n.° 38-A/2023, de 2 de Agosto ex vi legis e sendo de considerar amnistiada a infracção disciplinar que originou o acto punitivo impugnado, não pode o processo prosseguir para conhecimento dos vícios assacados ao mesmo.

2° Entendeu o Tribunal a quo que a recusa pelo Recorrente da aplicação da amnistia era conditio sine qua non para prosseguimento dos autos com vista ao conhecimento dos vícios imputados ao acto punitivo e consequente eliminação dos efeitos já produzidos pela sanção de 150 dias de suspensão aplicada e integralmente cumprida pelo Recorrente sem que, porém, lhe assista razão.

3° Salvo o devido respeito, o aresto em recurso incorreu em manifesto erro por duas ordens de razões.

4° Em primeiro lugar, o Tribunal a quo incorre em manifesto erro por considerar que estava na disposição do Recorrente recusar a aplicação da amnistia, nos termos do art.° 11.° da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de Agosto, quando, na verdade, tal recusa está reservada aos arguidos por infrações previstas no art.° 4.° do mesmo diploma, tendo fundamentado a sua decisão em jurisprudência do Tribunal Constitucional proferida ao abrigo de uma Lei de Amnistia anterior (v. Lei n.° 29/99, de 12 de Maio) em que o legislador não pretendeu distinguir o regime aplicável aos arguidos por infrações penais dos arguidos perseguidos disciplinarmente, como claramente distinguiu através da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de Agosto.

5º Por outro lado, o Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de julgamento por considerar a extinção da instância por inutilidade da lide como uma espécie de efeito automático da amnistia, quando, na verdade, continuam por acautelar os efeitos já produzidos pela aplicação da sanção disciplinar, isto porque, no momento em que o diploma da amnistia entrou em vigor a pena se encontrava integramente cumprida pelo Recorrente, o que significa que a amnistia não invalida que o acto impugnado tenha produzido efeitos lesivos para o Recorrente (tendo o mesmo ficado impedido, pelo período de 150 dias, de exercer as suas funções, sendo que em tal período se viu privado da sua remuneração, não relevando os dias em que esteve suspenso quer para efeitos de antiguidade, quer para o gozo de férias e tendo a infracção em causa ficado averbada no seu registo disciplinar).

6° Consequentemente, o aresto em recurso violou o direito à tutela jurisdicional efectiva do Recorrente, uma vez que este requereu expressamente o prosseguimento dos autos quanto aos efeitos já produzidos e, atendendo a que a amnistia não tem efeitos retroactivos - isto é, não elimina os efeitos já produzidos e consumados pela integral execução e cumprimento da sanção de suspensão - esta é uma situação suscetível de integrar a previsão do n.° 2 do art.° 65.° do CPTA que determina a continuação do processo justamente porque o Recorrente mantem interesse em obter a anulação jurisdicional dos efeitos anteriormente produzidos pelo acto impugnado, na medida em que ainda lhe é possível obter a reintegração da sua esfera jurídica quanto ao passado (v., neste sentido, AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 5 Ed., 2022, p. 476).

Nestes termos,

Deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional e revogada a sentença recorrida, com as legais consequências.

Assim será cumprido o Direito

e feita JUSTIÇA

*

II – A decisão recorrida:

Este é o teor da decisão recorrida, na parte relevante.

“(…)
*
Por despacho promanado em 29.09.2023, foi considerada amnistiada a infracção disciplinar imputada ao A. no acto administrativo ora sub specie, determinando-se a notificação das partes dessa decisão e para se pronunciarem sobre a eventual inutilidade superveniente da lide e consequente extinção da presente instância.
*
Por requerimento apresentado em 09.10.2023, veio o A. declarar que concorda com a amnistia da infracção que lhe vem imputada no acto impugnado, mas considerando que, por aquela não destruir os efeitos já produzidos pela aplicação da pena, “deve a presente acção prosseguir os seus legais termos para destruição da totalidade dos efeitos lesivos produzidos pelo acto impugnado.

*
Por requerimento apresentado em 17.10.2023, veio o R. somente informar que a sanção disciplinar aplicada ao A. foi integralmente cumprida por este.
*

Cumpre, portanto, decidir sobre a inutilidade superveniente da presente lide.

A inutilidade superveniente da lide resulta da ocorrência de um facto, ou de uma situação, na pendência da acção, que torna desnecessária a emissão de qualquer pronúncia judicial.

Nos termos do disposto alínea e) do art.º 277º do CPC, aplicável ex vi art.º 1º do CPTA, constitui, portanto, uma das causas de extinção da instância.

Segundo jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, “a lide torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito” (cf. Acórdão de 15.03.2012, proc. n.º 501/10.2TVLSB.S1).

Considera o Tribunal Central Administrativo Norte que “a utilidade da lide está, pois, correlacionada com a possibilidade de obtenção de efeitos úteis, pelo que a sua extinção, com base em inutilidade superveniente, só deverá ser declarada quando se possa concluir que o prosseguimento da acção não trará quaisquer consequências benéficas para o autor” (cf. Acórdão de 11.01.2013, proc. n.º 01844/07.8BEPRT).

Acrescenta o Tribunal Centra Administrativo Sul que a “inutilidade superveniente da lide verifica-se quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque essa pretensão encontra-se salvaguardada por via extraprocessual” (cf. Acórdão de 25.11.2010, proc. n.º 06843/10).

No presente caso, estava em dissídio a pretensão impugnatória do A. de ver anulado o acto praticado pelo R. em 12.10.2021, que, negando provimento ao recurso hierárquico interposto pelo A. do despacho do Director Nacional Adjunto para a Unidade Orgânica de Operações e Segurança da Polícia de Segurança Pública de 08.04.2020, aplicou ao A. uma sanção disciplinar de suspensão por um período de 150 dias, nos termos dos art.os 25º, n.º 1, alínea e) e 46º do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública (RDPSP), aprovado pela Lei n.º 7/90, de 20 de Fevereiro, por violação do princípio consagrado no art.º 6º daquele Estatuto, bem como dos deveres de zelo [previsto no art.º 9º, n.º 2, alínea e) do RDPSP], de obediência [previsto no art.º 10º, n.os 1 e 2, alínea b) do RDPSP], de lealdade [previsto no art.º 11º, n.º 1 do RDPSP] e do dever de aprumo [previsto no art.º 16º, n.os 1 e 2, alínea f) do RDPSP].

Como referido no despacho de 29.09.2023, a Lei n.º 38-A/2023, de 2 Agosto, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. E, por força do disposto nos art.os 2º, n.º 2, alínea b) e 6º do referido diploma, foi amnistiada a infracção imputada ao A. e pela qual lhe fora aplicada, através do acto administrativo impugnado, a sanção disciplinar de suspensão por 150 dias.

Com efeito, o legislador amnistiou todas as infracções disciplinares praticadas até às 00:00 horas de 19.06.2023 que não constituíssem ilícito penal não amnistiado pela referida Lei e que não fossem puníveis com sanção superior à da suspensão.

In casu, a infracção que vem imputada ao A. terá sido praticada em 02.08.2017 e a sanção disciplinar que lhe foi aplicada foi de suspensão, não havendo sinais nos autos de que a infracção em causa seja passível, em simultâneo, de constituir ilícito penal não amnistiado. Tampouco se configura a infracção imputada ao A. na hipótese prevista na alínea k) do n.º 1 do art.º 7º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, porquanto dos autos nada resulta no sentido de que a infracção disciplinarem causa tenha sido praticada com violação de direitos, liberdades e garantias pessoais de cidadãos.

Ora, tendo já sido por este Tribunal considerada amnistiada a infracção disciplinar imputada ao A. - decisão com a qual o A. expressamente concordou, tendo inclusivamente requerido a sua declaração nestes autos -, inexiste qualquer interesse no prosseguimento da acção.

Sobre a questão suscitada pelo A. no seu requerimento de 09.10.2023, onde requer o prosseguimento da acção para “destruição da totalidade dos efeitos lesivos produzidos pelo acto impugnado” mas onde também requer que “deve ser considerada amnistiada a infracção disciplinar aplicada ao ora A.”, importa recordar as palavras do Tribunal Constitucional sobre a matéria [cf. Acórdãos n.os 116/01 e 460/02]:

Ora, nenhum princípio ou norma constitucional impede que uma amnistia tenha efeitos restritos ou determinadas repercussões processuais. Com efeito, a Constituição não veda a possibilidade de uma amnistia ter certas consequências ao nível processual, tendo então o particular de optar entre beneficiar da amnistia com certas limitações ou prosseguir com o processo contencioso, recusando a aplicação da amnistia. Não decorre da Constituição um "direito" à amnistia em determinadas condições e com certos efeitos.

O direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo, assim como o princípio da tutela jurisdicional efectiva, encontram-se suficientemente assegurados in casu, uma vez que a lei confere expressamente a possibilidade de recusa da amnistia, subsistindo então a possibilidade de discutir a questão controvertida nos tribunais, com todas as garantias inerentes. Caso se aceite, porém, a aplicação da amnistia (como acontece no presente processo), então tal aceitação estender-se-á também às condições específicas em que a amnistia é concedida, não sendo, nessa medida, procedente afirmar que a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide afecta qualquer dimensão do direito de acesso aos tribunais, constitucionalmente consagrado.

Assim, podendo ter recusado a aplicação da amnistia, certo é que o A. não o fez. Ao invés, requereu expressamente a sua aplicação e concordou com a decisão do Tribunal de considerar amnistiada a infracção que lhe vinha imputada no acto administrativo impugnado.

Termos em que se conclui pela inutilidade superveniente da lide, com a consequente extinção da presente instância, nos termos do art.º 277º, alínea e) do CPC, aplicável ex vi do art.º 1º do CPTA - neste sentido cf., entre outras, as decisões do Supremo Tribunal Administrativo de 29.09.2023 (proc. n.º 81/23.9BALSB e proc. n.º 450/17.3BALSB), de 30.09.2023 (proc. n.º 41/19.4BALSB), de 03.10.2023 (proc. n.º 63/19.5BALSB) e de 16.10.2023 (proc. n.º 35/18.7BALSB), todas consultadas no SITAF, não se encontrando ainda publicadas.

*
(…)
*

II. DECISÃO

Em face de tudo quanto antecede, julgo verificada a inutilidade superveniente da presente lide, com a consequente extinção da presente instância.

(…)”

Discordamos deste entendimento.

Não importa saber se a Lei da Amnistia tem eficácia ex tunc ou ex nunc.

Importa determinar se o Tribunal podia ou não aplicar a Lei da amnistia ao caso concreto, encontrando-se verificados todos os seus pressupostos, e se podia, com esse fundamento, não conhecer, no todo ou em parte, do objecto da acção, com fez.

Entendemos que não.

Os tribunais não são segunda instância administrativa sob pena de violação do princípio da separação de poderes consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

O objecto da decisão do Tribunal de Primeira Instância não é processo disciplinar em si – a que possa pôr termo por aplicação da Lei da Amnistia ou outra razão qualquer -, mas a decisão punitiva que pode, por exemplo, ter recusado a aplicação da Lei da Amnistia.

A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais.

Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08):

“Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.”

A ideia subjacente a este preceito é a seguinte: competente para aplicar as medidas previstas na Lei da Amnistia é quem aplicou a sanção criminal ou disciplinar.

Os juízes, em qualquer instância judicial, não são os juízes do “julgamento” da infracção nem da condenação. E apenas podem aplicar a amnistia a sanções aplicadas nos processos judiciais, como decorre, a contrario, do citado preceito. Não podem aplicar a Lei da Amnistia, directamente, nos processos administrativos, disciplinares. Fazendo-o, violam o referido artigo 14.º da Lei da Amnistia e, com ele, o princípio constitucional da separação de poderes.

Sendo neste aspecto irrelevante a concordância das partes na aplicação, por não terem reagido contra ou por se declararem favoráveis, quanto à aplicação da Lei da Amnistia à infração disciplinar, directamente, pelo Tribunal “a quo”, por a lei ser imperativa e, por isso, não estar na disponibilidade das partes.

E sendo certo que retirar efeitos jurídicos para o processo judicial da Lei da Amnistia aplicável ao processo disciplinar mais não é do que aplicar a Lei da Amnistia no processo judicial.

Os artigos 6º e 14º da Lei da Amnistia de 2023, na interpretação feita na decisão recorrida, são inconstitucionais, por violação deste princípio constitucional, da separação de poderes.

Pelo que não cabia ao Tribunal recorrido aplicar à acção judicial a Lei da Amnistia, antes se impunha conhecer de mérito, logo por aqui.

Em todo o caso, o princípio da tutela jurisdicional efectiva impõe no caso que os autos da acção de impugnação prossigam os seus termos com vista a assegurar o respectivo efeito útil.

Admitindo que a amnistia tem por efeito fazer desaparecer da ordem jurídica o acto impugnado, perdendo a acção o seu objecto principal, no caso concreto é evidente, quanto a nós, que a lide não perde a sua utilidade, ipso facto.

Como se sustenta no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20.10.2011, no processo nº 0941/10 (com sublinhados nossos):

«A jurisprudência deste STA entende que só se verifica a inutilidade superveniente da lide quando essa inutilidade for uma inutilidade jurídica e que, por ser assim, não se pode considerar actividade inútil o prosseguimento do processo quando ele se destine a expurgar da ordem jurídica um acto ilegal e a proporcionar a tutela efectiva dos direitos daqueles a quem o mesmo atinge. A utilidade da lide correlaciona-se, assim, com a possibilidade da obtenção de efeitos úteis pelo que a sua extinção só deve ser declarada quando se conclua, ‘com a necessária segurança, que o provimento do recurso em nada pode beneficiar o Recorrente, não o colocando, de todo o modo, numa situação vantajosa, e que, sendo a anulação de um acto um imperativo do princípio da legalidade, continua; sempre a haver utilidade no prosseguimento da lide que visa anular acto ferido de ilegalidade, ainda que esteja em causa acto de adjudicação de obra que se diz já estar concluída.’ - Acórdão de 18/1/01, (rec. n.º 46.727)». Cfr. neste sentido, entre outros, os Acórdãos de 30/9/97 (rec. 38.858), de 23/9/99 (rec. 42.048), de 19/12/00 (rec. 46.306) e de 9/1/02 (rec. 46.557).)

Deste modo, e porque o recurso contencioso era o meio processualmente adequado para assegurar a tutela judicial efectiva dos direitos e interesses legítimos dos interessados a extinção da instância por inutilidade da lide só podia declarada quando fosse certo que o seu provimento não traria quaisquer consequências para o Recorrente, designadamente não o colocando numa situação vantajosa. Sendo que esta tanto se podia traduzir na possibilidade da reconstituição natural da situação hipotética como na atribuição de uma indemnização pelos danos decorrentes da prática do acto ilegal como ainda, conjuntamente, pelas duas quando a referida reconstituição fosse insuficiente para a reparação integral dos prejuízos».

No caso concreto o Autor, vendo o acto anulado por decisão judicial no termo do processo, pedido deduzido no articulado inicial, tem a possibilidade de, em execução de julgado, ver reconstituída a situação que existiria não tivesse sido a prática do acto anulado.

Como seja, receber a remuneração relativa aos 150 dias em que esteve suspenso, ver esse período contar para efeitos de antiguidade e para o gozo de férias. E receber, ainda, eventual indemnização pelos prejuízos causados com a suspensão, por si mesma.

O que determina a procedência do recurso, por erro da decisão recorrida, de determinar a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, face à Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08).

Termos em que, na revogação da decisão recorrida, seja imperioso que os autos prossigam os seus normais termos na Primeira Instância para conhecimento de mérito, se nada mais a tal obstar.

Como se decidiu no acórdão de 17.05.2024 deste Tribunal Central Administrativo Norte, no processo 95/22.6 AVR, com o mesmo relator (com duas declarações de voto).

*

III - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO pelo que:

1. Revogam a decisão recorrida.

2. Determinam a baixa dos autos para que prossigam os seus normais termos para conhecimento de mérito se nada mais a tal obstar.

Não é devida tributação em qualquer das instâncias.

*

Porto 05.07.2024


Rogério Martins
Paulo Ferreira de Magalhães, com a declaração de voto que se segue;
Declaração de voto:

Voto a decisão, mas não acompanho parte da fundamentação de direito vertido no Acórdão, por considerar que a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, em face do disposto nos seus artigos 11.º - parte inicial – e 14.º, é imediatamente aplicável pelo Tribunal a quo, enquanto instância de julgamento, o qual deve efectuar julgamento tendente a verificar da ocorrência de todos os pressupostos de que dependem a sua aplicação ao caso concreto.

Isabel Costa, com a declaração de voto que se segue;
Declaração de voto:

Voto a decisão, e os fundamentos apenas quanto à segunda parte.