Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
«AA», com domicílio na Rua ..., ..., ...., ..., instaurou acção administrativa contra o Ministério da Justiça, com sede na Praça ..., ..., impugnando o despacho proferido a 27/07/2020, que lhe indeferiu a qualificação como Grande Deficiente das Forças Armadas.
Por sentença proferida pelo TAF do Porto foi julgada procedente a acção e condenado o Réu a reconhecer ao Autor o estatuto de Grande Deficiente das Forças Armadas, com as legais consequências.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, o Réu formulou as seguintes conclusões:
A. Na sentença em recurso entendeu-se que o Recorrido preenche todos os pressupostos exigidos pelo Decreto-Lei n.° 314/90, de 13 de outubro, o qual lhe é aplicável por força dos artigos 62.° e 76.° do revogado Decreto-Lei n.° 275-A/2000, de 9 de novembro, e dos artigos 17.°, 97.° e 105.° do Decreto-Lei n.° 138/2019, de 13 de setembro, sendo-lhe, por isso, reconhecido o estatuto de GDFA;
B. Entende o Recorrente que a sentença em recurso fez uma errada interpretação da lei ao concluir pela aplicação ao Recorrido do regime dos GDFA, previsto no Decreto-Lei n.° 314/90, de 13 de outubro, por inexistência de base legal para o efeito;
C. Isto porque, nem do artigo 17.° do Decreto-Lei n.° 138/2019, de 13 de setembro, nem dos normativos dos anteriores diplomas orgânicos da PJ já revogados (artigo 105.° do DL n.° 295-A/90, de 21 de setembro, e artigo 89.° do DL n.° 275-A/2000, de 9 de novembro), consta nem nunca constou qualquer equiparação dos trabalhadores da PJ ao regime dos GDFA, mas apenas e tão só a equiparação ao estatuto de DFA;
D. Sendo que, a equiparação ao estatuto de DFA, pelo membro do Governo da área da justiça, é sempre precedido de parecer obrigatório do Conselho Consultivo da PGR, nomeadamente quanto à qualificação e caraterização dos casos e das circunstâncias que causaram a deficiência, ou seja, cabe-lhe verificar se os motivos que levaram à lesão permanente devem ser considerados de risco agravado equiparável ao serviço de campanha ou a circunstâncias diretamente relacionadas com o serviço de campanha;
E. Nesta matéria temos dois diplomas legais com regimes distintos, sendo que um estabelece o estatuto dos DFA - Decreto-Lei n.° 43/76, de 20 de janeiro - e o outro estabelece o estatuto dos GDFA - Decreto Lei n.° 314/90, de 13 de outubro;
F. Sendo indiscutível que, quer o atual estatuto quer os anteriores estatutos do pessoal da PJ, previam apenas e tão só a equiparação daquele pessoal ao regime dos DFA e não ao regime dos GDFA;
G. Como se referiu no parecer do Conselho Consultivo da PGR, de 9 de julho de 2020, emitido no âmbito do presente caso, “A aplicação do Decreto-Lei n.° 314/90, de 13 de outubro, envolvendo a equiparação aos «Grandes Deficientes das Forças Armadas» (...) exorbitaria largamente a equiparação prevista, primeiro no artigo 105.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 295-A/90, de 21 de setembro, depois no artigo 89.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 275-A/90, de 9 de novembro, e, por fim, em termos mais estritos, no artigo 17.°, n.° 1, do Estatuto Profissional do Pessoal da Polícia Judiciária, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 138/2019, de 13 de setembro”;
H. Em todo o caso, o regime dos GDFA não é nem nunca foi aplicável aos trabalhadores da Polícia Judiciária, por direito próprio ou por equiparação;
I. O bloco integral do regime especialíssimo e excecional dos GDFA aplica-se estritamente aos militares das Forças Armadas e esse regime não prevê a sua extensão ou equiparação a quaisquer outros trabalhadores, nem existe diploma legal que determine a extensão ou preveja a equiparação de determinados trabalhadores/cidadãos, neste caso, dos trabalhadores da PJ, ao estatuto de GDFA;
J. Além do mais, considerar-se o Recorrido abrangido pelo regime dos GDFA, como o fez a sentença recorrida, correríamos o risco de ter de vir a considerar, de futuro, que um trabalhador da PJ vítima de um regular e normal acidente em serviço, como ocorreu no presente caso, lhe fosse aplicado o regime especial dos GDFA, por mera decorrência do artigo 17.° do Decreto-Lei n.° 138/2019, de 13 de setembro, o que, não tendo apoio legal, não se mostra aceitável;
K. Tendo presente o princípio da legalidade, com assento no n.° 2 do artigo 266.° da CRP e no artigo 3.° do CPA, do qual decorre deverem os órgãos da Administração Pública “atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins” (cf. n.º 1 do artigo 3.° do CPA), outra não poderia ter sido a decisão do ora Recorrente que não a do indeferimento do pedido do aqui Recorrido por inexistência de base legal para o efeito;
L. Acompanhando o parecer do Conselho Consultivo da PGR a que nos temos vindo a referir, diremos que a equiparação reconhecida a trabalhadores da PJ ao estatuto próprio dos DFA não permite reconhecer, sem mais, que possam ser equiparados a GDFA, beneficiando do regime próprio do Decreto-Lei n.° 314/90, de 13 de outubro, como erradamente foi decidido na sentença em recurso;
M. E ainda que se considerasse (o que não se aceita e só por mera hipótese se refere) que o atual estatuto do pessoal da PJ, bem como os anteriores diplomas orgânicos, permitem a equiparação a GDFA, sempre se diria que, encontrando-se o Recorrido aposentado desde o dia 6 de novembro de 2012, à data da apresentação do pedido, que ocorreu em 12 de março de 2020, já não se encontrava submetido ao regime dos diplomas orgânicos da PJ, não lhe podendo, por isso, ser concedido o estatuto de equiparado aos GDFA com base nesses diplomas;
N. Pelo que, entende o Recorrente que a sentença em recurso ao decidir pelo reconhecimento ao Recorrido do estatuto de GDFA não fez uma correta interpretação da lei, merecendo, por isso, ser revogada.
Termos em que deve o presente recurso proceder e revogar-se a sentença recorrida, com as devidas consequências legais.Não foram juntas contra-alegações.
O Senhor Procurador Geral Adjunto notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO
Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
A) O Autor foi funcionário da Polícia Judiciária, com a categoria de especialista auxiliar da carreira do grupo de pessoal de apoio à investigação criminal (cf. acordo das partes);
B) A 22/10/2003, o Autor sofreu de um acidente em serviço, na Rua ..., ..., no ... (cf. acordo das partes);
C) Nesta data, o Autor encontrava-se em missão de prevenção no Tribunal de Instrução Criminal do Porto e, ao caminhar na via pública, escorregou, caindo desamparado e embatendo o joelho direito contra o lancil do passeio (cf. documento junto com a petição inicial sob o n° 1 e acordo das partes);
D) A 03/11/2003, o Director Nacional Adjunto da Polícia Judiciária proferiu despacho a classificar o acidente descrito no ponto anterior como sendo acidente em serviço, nos termos e para os efeitos previstos no Decreto-Lei n° 503/99, de 20 de Novembro (cf. idem);
E) A 10/09/2019, e no âmbito de Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações a que foi sujeito, o Autor viu-lhe ser fixada uma desvalorização de 67,2% (cf. idem);
F) O Autor já se encontrava aposentado desde 06/11/2012, tendo-lhe sido fixada uma pensão de € 1.137,82, a qual foi revista, a 05/06/2013, para € 1.246,61 (cf. idem);
G) A 06/03/2020, o Autor requereu a Sua Excelência a Ministra da Justiça que lhe fosse reconhecido o estatuto de “Grande Deficiente das Forças Armadas”, nos termos do previsto no Decreto-Lei n° 314/90, de 13 de Outubro, em conjugação com o regime orgânico da Polícia Judiciária (cf. idem);
H) A 09/07/2020, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República emitiu parecer, a pedido do Réu, o qual considerou que o regime dos Grandes Deficientes das Forças Armadas não é aplicável aos trabalhadores da Polícia Judiciária, por direito próprio ou por equiparação (cf. documento junto com a petição inicial sob o n° 1, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido);
I) A 22/07/2020, Sua Excelência a Ministra da Justiça proferiu despacho a homologar o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, e indeferindo o pedido formulado pelo Autor de concessão do estatuto de Grande Deficiente das Forças Armadas (cf. idem);
J) A 31/10/2017, o Secretário de Estado da Defesa Nacional proferiu despacho a conceder o estatuto de Grande Deficiente das Forças Armadas ao Subcomissário da Polícia de Segurança Pública «BB» (cf. documento junto com a petição inicial sob o n° 2);
K) A 05/07/2018, o Director-Geral da Defesa Nacional proferiu despacho a conceder o estatuto de Grande Deficiente das Forças Armadas ao Agente Principal da Polícia de Segurança Pública «CC» (cf. documento junto com a petição inicial sob o n° 3);
L) A petição inicial foi apresentada neste Tribunal a 24/08/2020 (cf. fls. 1 e seguintes dos presentes autos).
DE DIREITO
É objecto de recurso a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do ... que julgou procedente a acção.
Na presente ação discute-se a aplicação ao Recorrido, ex-especialista auxiliar da carreira do grupo de pessoal de apoio à investigação criminal da Polícia Judiciária (PJ), do regime legal previsto no DL 314/90, de 13 de outubro, relativo ao estatuto de Grande Deficiente das Forças Armadas (GDFA).
Vejamos, em primeiro lugar, o enquadramento da situação do Recorrido.
Encontra-se aposentado desde 6 de novembro de 2012, detendo, à data, a categoria de especialista auxiliar da carreira do grupo de pessoal de apoio à investigação criminal da PJ.
Em 22 de outubro de 2003 sofreu um acidente que veio a ser caracterizado como acidente em serviço, por despacho do Diretor Nacional Adjunto da PJ, de 3 de novembro de 2003.
As circunstâncias em que ocorreu tal acidente constam da respetiva participação, ali descritas da seguinte forma: “O funcionário, que na altura se encontrava em serviço de prevenção no TIC do ..., sito à Rua ..., ..., ..., ao caminhar na via pública escorregou e caiu desamparado, batendo com o joelho no lancil do passeio. Ficou impedido de andar e acabou por ser transportado ao Hospital ... no ..., de ambulância, local onde foi assistido medicamente”.
Do referido acidente resultaram lesões que lhe conferiram um grau de incapacidade que foi sendo revisto e agravado pela junta médica da Caixa Geral de Aposentações - 17,5% em 15/12/2005, 42,4% em 20/04/2010, 59,7% em 23/10/2018 e 67,2% em 10/09/2019.
Em 12 de março de 2020 o Recorrido apresentou requerimento na PJ, endereçado à Senhora Ministra da Justiça, requerendo que lhe fosse concedido o estatuto de GDFA, ao abrigo do disposto no citado DL 314/90, de 13/10, em conjugação com o regime orgânico da PJ.
Pelo ofício n.° ...0, de 27/04/2020, a PJ remeteu o requerimento do Recorrido ao Gabinete da Senhora Ministra da Justiça, para efeitos do disposto no n.° 2 do artigo 17.° do DL 138/2019, de 13/09, tendo o referido Gabinete providenciado, junto da Procuradoria-Geral da República (PGR), pela emissão do parecer a que se refere o n.° 2 do artigo 17.° do apontado DL 138/2018, parecer que veio a ser emitido pelo Conselho Consultivo da PGR em 9 de julho de 2020 e que se encontra junto ao PA, a fls. 28 a 44.
Por despacho da Senhora Ministra da Justiça, de 22 de julho de 2020, foi o citado parecer do Conselho Consultivo da PGR homologado e indeferido o pedido de concessão do estatuto de GDFA ao ora Recorrido (fls. 44 e 45 do PA).
Na sentença em recurso entendeu-se que o Recorrido preenche todos os pressupostos exigidos pelo DL 314/90, o qual lhe é aplicável por força dos artigos 62.° e 76.° do revogado DL 275-A/2000, de 9 de novembro, e dos artigos 17.°, 97.° e 105.° do também citado DL 138/2019, sendo-lhe, por isso, reconhecido o estatuto de GDFA.
A sentença sustentou a sua análise, essencialmente, no seguinte:
“...O reconhecimento do estatuto de Grande Deficiente das Forças Armadas (GDFA) depende da verificação de uma diminuição permanente na capacidade geral de ganho, em virtude do cumprimento do dever militar, e não abrangido pelo Decreto-Lei n° 43/76, da qual resulte passagem à situação de reforma extraordinária ou atribuição de pensão de invalidez, e cuja desvalorização seja igual ou superior a 60% (na redação aprovada pelo Decreto-Lei n° 248/98, de 11 de agosto, sendo que começou por ser de 80%).
Não obstante não exigir este regime que a desvalorização tenha advindo de atuação em serviço de campanha, ou cenário de guerra, exige já um alto grau de incapacidade permanente para o trabalho, tendo começado por ser de 80% e tendo passado a ser de 60%, a partir de 1998.
Do que vem de se expor desde logo se retira que a única diferença entre o estatuto de DFA e de GDFA é uma mera questão de majoração, de adjetivação, atento o grau de desvalorização mínima exigido. Chama-se “grande deficiente das forças armadas”, que não apenas “deficiente das forças armadas”, pelo singelo facto de se estar perante deficiências graves e de alto relevo. Não obstante, não deixa de integrar tal estatuto o regime legal de proteção aos deficientes armadas, no sentido de consagração de uma série de direitos e benefícios de proteção dos cidadãos lesionados ao serviço da pátria e dos interesses da nação.
Aliás, tal entendimento tem sido propugnado pelo Ministério da Defesa Nacional, no que concerne aos profissionais da Polícia de Segurança Pública e da Guarda Nacional Republicana, cujos estatutos também determinam a aplicabilidade do «regime legal em vigor para os deficientes das Forças Armadas» (vide, a título meramente exemplificativo, o artigo 28° do Decreto-Lei n° 243/2015, de 19 de Outubro, que aprovou o Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais da Polícia da Segurança Pública). Efetivamente, procedeu o Autor à junção aos autos de decisões prévias de reconhecimento do estatuto de GDFA a agentes da PSP, tendo por base as referidas normas, reconhecimento esse expressamente previsto na lei.
Consequentemente, mal andou o Réu ao indeferir o reconhecimento de tal estatuto ao Autor, tendo por base a inaplicabilidade do DL 314/90 à sua situação”.
E continuou: “...prescreve o novo estatuto profissional uma salvaguarda de direitos para tais carreiras, designadamente aquela ocupada pelo Autor e prevista expressamente na alínea d) no n° 5 do artigo 62° do Decreto-Lei nº 275-A/2000, determinando a aplicação a tais profissionais, designadamente, do regime previsto no artigo 17º, ou seja, a aplicabilidade do regime legal em vigor para os deficientes das Forças Armadas.
Soçobra também, atento o que vem de se expender, tal argumento do Réu para negar a pretensão formulada pelo Autor”.
Na óptica do Recorrente a sentença fez uma errada interpretação da lei ao concluir pela aplicação ao Recorrido do regime previsto para os GDFA, estabelecido no DL 314/90, de 13 de outubro, por inexistência de base legal para o efeito.
Cremos que lhe assiste razão.
Na verdade, o bloco integral do regime especialíssimo e excecional dos GDFA aplica-se estritamente aos militares das Forças Armadas e esse regime não prevê a sua extensão ou equiparação a quaisquer outros trabalhadores, nem existe diploma legal que determine a extensão ou preveja a equiparação de determinados trabalhadores/cidadãos ao estatuto de GDFA.
Conforme decorre do preâmbulo do citado DL 314/90, de 13 de outubro, “...existem militares que adquiriram deficiência em circunstâncias que, embora não enquadráveis no regime jurídico definido por aquele diploma (DL 43/76, de 20 de janeiro), foram expressamente reconhecidas como resultado do serviço militar. De entre estes, importa salientar os portadores de grande deficiência, originadora de incapacidade quase total e da qual advêm graves repercussões, designadamente em encargos adicionais relacionados com a própria deficiência. Por isso, devido ao elevado grau de dificuldades com que estes militares se defrontam, e tendo ainda em atenção que a prestação de serviço militar, mesmo em tempo de paz, implica um risco constante pela sua especificidade, afigura-se de toda a justiça que o Estado adote medidas de maior proteção a tais casos”.
Neste pressuposto, estabelece o artigo 1.° do citado diploma legal, na sua versão atualizada, que:
“1 - É considerado grande deficiente das Forças Armadas (GDFAS) o cidadão que, no cumprimento do dever militar e não abrangido pelo Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de janeiro, adquiriu uma diminuição permanente na sua capacidade geral de ganho, da qual resulte passagem à situação de reforma extraordinária ou atribuição de pensão de invalidez nos termos do n.º 2 do artigo 118.º e dos artigos 127.º e seguintes do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, e cuja desvalorização seja igual ou superior a 60%.
2 - Para efeitos do número anterior são automaticamente considerados GDFA os militares cuja desvalorização, já atribuída ou a atribuir pela junta médica competente, seja igual ou superior a 60%”.
Assim, e de acordo com o citado normativo, é considerado GDFA o cidadão em relação ao qual se verifiquem os seguintes requisitos:
a) Diminuição permanente da sua capacidade geral de ganho igual ou superior a 60%;
b) Contraída no cumprimento de dever militar;
c) E da qual resulte passagem à situação de reforma extraordinária ou atribuição de pensão de invalidez;
d) Não abrangido pelo regime do Decreto-Lei n.° 43/76, de 20 de janeiro.
Ou seja, os cidadãos considerados GDFA, porque portadores de grandes deficiências que originaram incapacidade quase total ou total, em cumprimento do dever militar, e da qual lhes advêm graves repercussões, designadamente com encargos adicionais relacionados com tal deficiência, gozam de uma proteção jurídica condicente com a sua situação.
É o caso, por exemplo, do direito a um abono suplementar de invalidez (artigo 2.° do DL 314/90), podendo ainda beneficiar de uma prestação suplementar de invalidez, nos termos previstos no artigo 3.° do citado Decreto-Lei n.° 314/90.
Ainda assim, e com a finalidade de melhor suportarem as suas deficientes condições familiares e sociais, é-lhes concedido, ao abrigo do disposto no artigo 4.° do DL 314/90, o gozo dos direitos e regalias constantes do artigo 13.°, dos n.°s 3 a 9 do artigo 14.° e do artigo 16.° do DL 43/76, de 20 de janeiro, diploma que estabelece o regime aplicável aos deficientes das Forças Armadas (DFA).
Por outro lado, o DL 138/2019, de 13 de setembro, que aprova o Estatuto Profissional do Pessoal da PJ, depois de garantir aos trabalhadores abrangidos o direito a seguro de acidentes em serviço, e à semelhança dos já revogados DL 295-A/90, de 21 de setembro, e DL 275-A/2000, de 9 de novembro, permite aos trabalhadores inseridos nas carreiras especiais que, em certos casos de incapacidade física, sejam equiparados, com as devidas adaptações, aos DFA, beneficiando dos direitos e regalias previstos no DL 43/76, de 20 de janeiro.
Dispõe, assim, o artigo 17.° do citado DL 138/2019, que:
“1 - O regime legal em vigor para os deficientes das Forças Armadas e das forças de segurança é aplicável, com as devidas adaptações, aos trabalhadores das carreiras especiais da PJ.
2 - O estatuto de equiparado a deficiente das Forças Armadas (DFA) é reconhecido pelo membro do Governo responsável pela área da justiça, precedendo parecer obrigatório do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República quanto à qualificação e caracterização dos casos e das circunstâncias que causaram a deficiência.
3 - (...)”.
Nem do citado artigo 17.° do DL 138/2019, de 13 de setembro, nem dos normativos dos anteriores diplomas orgânicos da PJ já revogados (artigo 105.° do DL 295-A/90, de 21 de setembro, e artigo 89.° do DL 275-A/2000, de 9 de novembro), consta nem nunca constou qualquer equiparação dos trabalhadores da PJ ao regime dos GDFA, mas apenas e tão só a equiparação ao estatuto de DFA, sendo que, a equiparação ao estatuto de DFA, pelo membro do Governo da área da justiça, é sempre precedido de parecer obrigatório do Conselho Consultivo da PGR, nomeadamente quanto à qualificação e caraterização dos casos e das circunstâncias que causaram a deficiência, isto é, cabe-lhe verificar se os motivos que levaram à lesão permanente devem ser considerados de risco agravado equiparável ao serviço de campanha ou a circunstâncias diretamente relacionadas com o serviço de campanha (n.° 2 do artigo 17.° do DL 138/2019, de 13 de setembro, e n.° 2 do artigo 1.° do DL 43/76, de 20 de janeiro).
Realçando-se, ainda, a intervenção da PGR na qualificação e caraterização das funções militares de que resulte risco agravado para efeitos de reconhecimento de DFA, nos termos previstos no n.° 4 do artigo 2.° do citado DL 43/76, do qual decorre que “A qualificação destes casos compete ao Ministro da Defesa Nacional, após parecer da Procuradoria-Geral da República”.
Verifica-se, assim, que nesta matéria há dois diplomas legais com regimes distintos, sendo que um estabelece o estatuto dos DFA - DL 43/76, de 20 de janeiro - e o outro estabelece o estatuto dos GDFA - DL 314/90, de 13 de outubro.
É indiscutível que, quer o atual estatuto quer os anteriores estatutos do pessoal da PJ, previam apenas e tão só a equiparação daquele pessoal ao regime dos DFA e não ao regime dos GDFA.
Ora, como se referiu, no parecer do Conselho Consultivo da PGR, de 9 de julho de 2020, emitido no âmbito do presente caso, “A aplicação do Decreto-Lei n.° 314/90, de 13 de outubro, envolvendo a equiparação aos «Grandes Deficientes das Forças Armadas», e cuja aplicação tem justamente como pressuposto não se encontrar o requerente em condições de ser qualificado Deficiente das Forças Armadas, segundo o Decreto-Lei n.° 43/76, de 20 de janeiro, exorbitaria largamente a equiparação prevista, primeiro no artigo 105.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 295-A/90, de 21 de setembro, depois no artigo 89.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 275-A/90, de 9 de novembro, e, por fim, em termos mais estritos, no artigo 17.°, n.° 1, do Estatuto Profissional do Pessoal da Polícia Judiciária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de setembro”.
Referindo, ainda, que, “Em todo o caso, o regime dos Grandes Deficientes das Forças Armadas não é nem nunca foi aplicável aos trabalhadores da Polícia Judiciária, por direito próprio ou por equiparação”.
O bloco integral do regime especialíssimo e excecional dos GDFA aplica-se estritamente aos militares das Forças Armadas e esse regime não prevê a sua extensão ou equiparação a quaisquer outros trabalhadores, nem existe diploma legal que determine a extensão ou preveja a equiparação de determinados trabalhadores/cidadãos, neste caso, dos trabalhadores da PJ, ao estatuto de GDFA.
Além do mais, considerar-se o Recorrido abrangido pelo regime dos GDFA, como o fez a sentença recorrida, correríamos o risco de ter de vir a considerar, de futuro, que um trabalhador da PJ vítima de um regular e normal acidente em serviço, como ocorreu no presente caso, lhe fosse aplicado o regime especial dos GDFA, por mera decorrência do artigo 17.° do DL 138/2019, de 13 de setembro, o que, não tendo apoio legal, não se mostra defensável.
Pelo que, tendo presente o princípio da legalidade, com assento no n.° 2 do artigo 266.° da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no artigo 3.° do Código do Procedimento administrativo (CPA), do qual decorre deverem os órgãos da Administração Pública “atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins” (cf. n.° 1 do artigo 3.° do CPA), outra não poderia ter sido a decisão do Recorrente que não a do indeferimento do pedido do aqui Recorrido por inexistência de base legal para o efeito.
A este propósito, refere Diogo Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2016, 3.ª edição, Almedina, págs. 39 e 40, que: “os órgãos e agentes da Administração Pública só podem agir com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos. (...) A regra geral - em matéria de atividade administrativa - não é o princípio da liberdade, é o princípio da competência. Seguindo o princípio da liberdade, que constitui a regra no direito privado, pode fazer-se tudo aquilo que a lei não proíbe; segundo o princípio da competência, pode fazer-se apenas aquilo que a lei permite”.
No mesmo sentido, refere Mário Aroso de Almeida, in Teoria Geral do Direito Administrativo, 2017, 4.ª edição, Almedina, pág. 43, o seguinte: “O princípio da legalidade administrativa é associado a uma exigência de precedência de lei, de acordo com a qual o exercício de poderes por parte dos órgãos da Administração Pública - e entidades equiparadas para o efeito - pressupõe a existência de uma base normativa, isto é, de uma fonte de direito, na qual, em última análise, radicarão os efeitos jurídicos a introduzir”.
Acompanhando o parecer do Conselho Consultivo da PGR atrás citado, dir-se-á que a equiparação reconhecida a trabalhadores da PJ ao estatuto próprio dos DFA não permite reconhecer, sem mais, que possam ser equiparados a GDFA, beneficiando do regime próprio do DL 314/90, de 13 de outubro, como foi decidido na sentença recorrida.
E ainda que se considerasse que o atual estatuto do pessoal da PJ, bem como os anteriores diplomas orgânicos, permitem a equiparação a GDFA, sempre se diria que, encontrando-se o Recorrido aposentado desde o dia 6 de novembro de 2012, à data da apresentação do pedido, que ocorreu em 12 de março de 2020, já não se encontrava submetido ao regime dos diplomas orgânicos da PJ, não lhe podendo, assim, ser concedido o estatuto de equiparado aos GDFA com base nesses diplomas.
Com efeito, encontrando-se o Recorrido, à data da aposentação, integrado na carreira de especialista auxiliar, prevista na alínea d) do n.° 5 do artigo 62.° do DL 275-A/2000, de 9 de novembro, os direitos e regalias que mantém na situação de aposentado são, nos termos do disposto no n.° 3 do artigo 149.° do citado DL 275-A/2000, os previstos na alínea b) do n.° 1 e no n.° 2 do citado artigo 149.°. Situação que foi mantida no n.° 2 do artigo 97.° do atual estatuto do Pessoal da PJ.
Assiste, pois, razão ao Recorrente ao concluir que a sentença em recurso ao decidir pelo reconhecimento ao Recorrido do estatuto de GDFA, não fez uma correta interpretação da lei.
Procedem as Conclusões das alegações.
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, revoga-se a sentença e julga-se improcedente a acção.
Custas pelo Autor, sem prejuízo de eventual benefício de apoio judiciário, e, nesta sede, sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.
Notifique e DN.
Porto, 15/3/2024
Fernanda Brandão
Rogério Martins
Isabel Jovita |