Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00282/20.1BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:09/13/2024
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:MARIA FERNANDA ANTUNES APARÍCIO DUARTE BRANDÃO
Descritores:AMNISTIA;
APLICAÇÃO DA LEI 38.°-A/2023, DE 2 DE AGOSTO;
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
«AA», «BB», «CC», «DD» e «EE» instauraram ação administrativa contra a Ordem dos Enfermeiros, todos melhor identificados nos autos, peticionando:
“A ver dos Autores, e com todo o respeito, a presente acção administrativa comum merece ser julgada procedente, por provada, e consequentemente:
i) Ser anulada a deliberação, de 10/julho/2020, do Conselho Jurisdicional Plenário, da Ordem dos Enfermeiros, que lhes aplicou a sanção disciplinar de censura escrita;
ii) Ser a Ordem dos Enfermeiros condenada a expurgar do registo respectivo dos Autores a sanção disciplinar.”
Por decisão proferida pelo TAF de Viseu foi julgada extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide:
Desta vem interposto recurso pela Ré.
Alegando, formulou as seguintes conclusões:
A. A presente ação tem por objeto a impugnação da decisão administrativa que condena os Recorridos em sanção disciplinar de censura escrita, aplicada por violação dos deveres previstos nas alíneas g) e j), do n.º 1, do artigo 97.º e nas alíneas d) e e), do artigo 104.º, todas do EOE.
B. Apresentados os articulados, o Tribunal a quo notificou as partes para se pronunciarem quanto à aplicação da Lei da Amnistia ao caso concreto.
C. Embora os Autores nada tenham apresentado, a Recorrente pronunciou-se no sentido da não aplicação da referida Lei. Ainda assim, a Sentença recorrida decidiu pela extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide com fundamento na aplicação da Lei da Amnistia ao caso concreto.
D. O Tribunal a quo, decidiu, assim, pela aplicação da Lei da Amnistia ao caso concreto declarando amnistiadas as infrações disciplinares sancionadas pelo ato impugnado nos presentes autos, atento o facto de (a) se tratarem de infrações disciplinares assentes em factos praticados e/ou omitidos em 25.08.2016 (ou seja, até às 00:00 horas de 19/06/2023), (b) que não constituem simultaneamente um ilícito penal e (c) cuja sanção aplicável não é superior a suspensão (uma vez que foram aplicadas sanções de censura escrita).
E. Ora, com o devido respeito, andou mal a Tribunal a quo, não só porque ao aplicar a Lei da Amnistia aos presentes autos, a Sentença recorrida afronta diretamente o princípio constitucional da separação de poderes, na concretização que lhe é conferida pelo n.º 1, do artigo 3.º, do CPTA, e, por outro lado, faz uma incorreta interpretação e aplicação de Direito, ao aplicar aos presentes autos a Lei da Amnistia.
F. Mas mais, a Sentença recorrida incorreu, também, em erro de julgamento sobre a matéria de facto, designadamente na fixação da matéria de facto, na medida em que considerou provados por acordo factos que foram impugnados pela Recorrente em sede de Contestação e que não encontram suporte documental para que se tenham por provados.
Do Recurso sobre a matéria de facto
Considerações preliminares
G. No dia 14 de novembro de 2023, o Tribunal a quo proferiu sentença, na qual começou por fixar os factos provados, com base nas posições alegadamente expostas nos articulados, na prova junta aos autos e no princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artigo 94.º, n.º 4, do CPTA e do artigo 607.º, n.os 3 a 5, do CPC, aplicável ex vi artigos 1.º e 35.º, n.º 1, do CPTA.
H. De entre os factos apurados, o Tribunal a quo deu por provados por acordo das partes os factos que constam dos n.os 4 a 11 da Sentença recorrida, contudo, não pode a Recorrente concordar com a factualidade, dado que não só não aceitou como impugnou os referidos factos em sede de Contestação.
I. Assim, a Sentença recorrida incorreu em erro de fixação da matéria de facto, limitando-se admitir, nos seus exatos termos, os artigos 6.º a 13.1.º da Petição Inicial, ignorando a impugnação dos mesmos que consta dos artigos 33.º a 39.º da Contestação e a falta de prova que os corroborasse.
J. Acresce que, após enumerar os factos provados, a Sentença recorrida termina referindo que “[n]os presentes autos, a decisão da matéria de facto efetuou-se mediante o recorte dos factos pertinentes, em função da sua relevância jurídica e atentas as soluções plausíveis de direito (cf. artigo 949, n9s 3 e 4, do CPTA e artigo 6079, n9s 3 a 5, do CPC), com base na posição das partes, no exame da prova documental oferecida pelas partes e do processo administrativo junto aos autos - não impugnada (cf. artigos 3749 e 3769 do CC) e cuja veracidade não foi colocada em crise (cf. artigos 3709 a 3729 do CC) -, e ainda por consulta à plataforma SITAF, tal como se encontra especificado, individualmente, nos itens da matéria de facto provada”.
K. Ora, não pode a Recorrente concordar com tal afirmação dado que, ao fixar os factos provados com fundamento no acordo das partes - o que não se verifica, dada a impugnação dos mesmos na Contestação -, a Sentença recorrida não decidiu em consonância com o disposto no “artigo 949, n9s 3 e 4, do CPTA e artigo 6079, n9s 3 a 5, do CPC” nem “com base na posição das partes”.
L. Acresce que também não foram juntos aos autos documentos que comprovem os factos n.º 4 a 11 dados por provados na Sentença Recorrida, pelo que o Tribunal a quo não cumpriu o disposto no artigo 94.º, n.ºs 3 e 4, do CPTA e no artigo 607.º, n.ºs 3 a 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º e 35.º, n.º 1, do CPTA.
M. Nos termos do artigo 640.º, do CPTA, aplicável ex vi artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre analisar, individualmente, cada um dos factos dados por provados que, por falta de acordo e de prova, devem ser julgados como não provados.
Do erro na fixação da matéria de facto
N. Compulsada a motivação da matéria de facto constante da Sentença recorrida, resulta que o facto provado n.º 4 - “O Centro Hospitalar ..., E.P.E. recebeu o aviso prévio de greve e nada contrapôs perante o SEP - Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, nem suscitou a intervenção do serviço competente do ministério responsável pela área laboral (artigo 5389, n9 2, do Código do Trabalho), não tendo havido, por isso, intervenção do Tribunal Arbitral (que funciona junto do Conselho Económico e Social) [admitido por acordo]” - foi dado como provado por ter sido “admitido por acordo”.
O. Ora, o referido facto corresponde, nos seus exatos termos, ao artigo 6.º da Petição Inicial que não foi aceite nos termos do artigo 33.º da Contestação e que foi expressamente impugnado no artigo 36.º da Contestação.
P. Assim, a ora Recorrente alegou que não são do seu conhecimento os procedimentos levados a cabo pelo CHTV e pelos Autores, no seguimento da greve declarada pelo SEP, não tendo sido aos autos prova documental que corroborasse os factos alegados.
Q. Em face do exposto, incorreu a Sentença recorrida em erro de julgamento de facto, designadamente, de fixação da matéria factual provada, dado que não foram invocados pelo Tribunal a quo outros fundamentos para a fixação do facto provado n.º 4 (além, diga-se, do (alegado, mas inexistente) acordo das partes, que, como já referido, não se verificou).
R. Assim, deve considerar-se procedente o alegado erro de fixação da matéria de facto, sendo o facto provado n.º 4 da Sentença recorrida dado como não provado, por falta de acordo das partes e de prova que o suporte.
S. O facto provado n.º 5 da Sentença recorrida - “Nas proximidades de instalação da greve o Centro Hospitalar ..., E.P.E., fixou, unilateral e autoritariamente, os meios humanos necessários para assegurar os serviços mínimos [admitido por acordo]” - reproduz, nos seus exatos termos, o artigo 7.º da Petição Inicial.
T. Ora, tendo em conta que a Recorrente não tem conhecimento dos procedimentos que foram levados a cabo pelo CHTV e pelos Autores, no seguimento da greve declarada pelo SEP, a mesma não poderá estar de acordo com o facto alegado pelos Autores.
U. Contudo, a Sentença recorrida fundamentou a fixação deste facto como provado no acordo das partes, o que não se verifica dada a impugnação feita pela Recorrente em sede de Contestação (cfr. artigo 36.º).
V. Assim, com a fixação do facto provado n.º 5, a Sentença recorrida incorre em erro de julgamento de facto, designadamente, de fixação da matéria factual provada, dado que não foi provada a veracidade do mesmo e que não foram invocados pelo Tribunal a quo outros fundamentos para a sua fixação (além, diga-se, do (alegado, mas inexistente) acordo das partes, que, como já referido, não se verificou).
W. Assim, deve julgar-se a Sentença recorrida ferida de erro de julgamento de facto, devendo o facto provado n.º 5 da Sentença recorrida ser dado como não provado, por falta de acordo das partes e de prova que o sustente.
X. O facto provado n.º 6 da Sentença recorrida - “Os Autores aderiram à greve e na presença do não questionado, no tempo e na forma devida, aviso prévio seguiram o que nele figurava quanto à dotação e face ao que nele também foi proposto (“os grevistas acordarão entre si quem permanecerá no serviço para ocorrer a situações impreteríveis”), porquanto havia enfermeiros não aderentes detentores de formação profissional adequada para a prestação de cuidados de enfermagem [admitido por acordo]” - reproduz, nos seus exatos termos, o artigo 8.º da Petição Inicial, tendo tal facto sido, também, dado como provado com fundamento no acordo das partes.
Y. Contudo, e estando em causa, uma vez mais, procedimentos levados a cabo pelo CHTV e pelos Autores, no seguimento da greve declarada pelo SEP, as partes não se encontram de acordo, até porque tal facto foi impugnado pela Recorrente em sede de Contestação (cfr. artigos 33.º, 34.º e 36.º, da Contestação).
Z. Ora, tendo em conta que a Recorrente não tem conhecimento dos procedimentos que foram levados a cabo pelo CHTV e pelos Autores, no seguimento da greve declarada pelo SEP, a mesma não poderá estar de acordo com o facto alegado pelos Autores.
AA. Assim, a Sentença recorrida padece de erro de fundamento de facto, por ter dado como aprovado por acordo o facto n.º 6, visto que não foi provada a veracidade do mesmo e que não foram invocados pelo Tribunal a quo outros fundamentos para a sua fixação como matéria de facto (além, diga-se, do (alegado, mas inexistente) acordo das partes, que, como já referido, não se verificou).
BB. Assim, deve julgar-se a Sentença recorrida ferida de erro de julgamento de facto, devendo o facto provado n.º 6 da Sentença recorrida ser dado como não provado, por falta de acordo das partes e de prova que o sustente.
CC. O facto provado n.º 7 da Sentença recorrida - “Os Autores foram disciplinarmente perseguidos pelo Centro Hospitalar ..., E.P.E. [admitido por acordo]” - foi também dado como provado por acordo das partes, contudo, uma vez mais, inexiste qualquer acordo.
DD. Analisada a Contestação, verifica-se que o mesmo não foi aceite no artigo 33.º da Contestação e que foi ainda impugnado nos artigos 37.º a 39.º do mesmo articulado, dado que a Recorrente não é conhecedora da tramitação interna dos processos encetados pelo CHTV e que não foi junta prova documental aos autos que suportasse o alegado.
EE. Dado o desconhecimento da sua veracidade e a falta de prova que o corrobore, nunca poderia a Recorrente concordar com o disposto no artigo 9.º da Petição Inicial.
FF. Assim, a Sentença recorrida padece de erro de julgamento de facto, por ter dado como aprovado por acordo o facto n.º 7, uma vez que o mesmo não foi documentalmente provado, não foi junta aos autos qualquer prova e não foram invocados pelo Tribunal a quo outros fundamentos para a sua fixação como matéria de facto (além, diga-se, do (alegado, mas inexistente) acordo das partes, que, como já referido, não se verificou).
GG. Em face do exposto, deve o facto provado n.º 7 da Sentença recorrida ser dado como não provado.
HH. Também o facto provado n.º 8 - “No procedimento disciplinar movido ficou apurado que “da actuação dos Arguidos não resultou qualquer prejuízo para os utentes do Centro Hospitalar ..., E.P.E. (especificamente da UCIM/UAVC), não estando em causa a adequação do seu comportamento para o exercício das suas funções” [admitido por acordo]” -, que reproduz, nos seus exatos termos, o artigo 10.º da Petição Inicial, foi dado como provado por acordo das partes.
II. Contudo, e nos termos já expostos, a Recorrente impugnou a matéria referente à tramitação dos processos internos encetados pelo CHTV, nos artigos 37.º a 39.º da Contestação.
JJ. Assim, também os factos alegados pelos Recorridos no artigo 10.º da Petição Inicial não são do conhecimento da Recorrente, pelo que não poderão ser tidos como matéria de facto fixada por acordo das partes. Mais se refira que sobre os mesmos não foi junta qualquer prova aos presentes autos.
KK. Em face do exposto, ao fixar como provado por acordo o artigo 10.º da Petição Inicial, que corresponde ao facto provado n.º 8 da Sentença recorrida, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de facto, uma vez para além de tal facto não se encontrar documentalmente provado, não foram invocados outros fundamentos para a sua fixação como matéria de facto (além, diga-se, do (alegado, mas inexistente) acordo das partes, que, como já referido, não se verificou).
LL. Assim, o facto provado n.º 8 da Sentença recorrida deve ser dado como não provado.
MM. O facto provado n.º 9 da Sentença recorrida - “No entanto o referido Centro Hospitalar puniu-os disciplinarmente, tendo os Autores impugnado judicialmente [admitido por acordo]” - constitui a transcrição do artigo 11.º da Petição Inicial e versa sobre uma alegada impugnação judicial da decisão proveniente do processo interno do CHTV.
NN. Ora, conforme já exposto e o disposto nos artigos 33.º e 37.º a 39.º da Contestação, a Recorrente não aceitou o artigo 11.º da Petição Inicial e impugnou o mesmo com fundamento na falta de conhecimento do alegado facto e de prova que sustente o mesmo.
OO. Assim, entende a Recorrente que, não havendo acordo quanto ao referido facto por seu desconhecimento e não tendo sido junta qualquer prova documental aos autos que o corroborasse, incorreu o Tribunal a quo num erro de julgamento de facto na fixação do mesmo como provado.
PP. Pelo que, deve o facto apurado n.º 9 da Sentença recorrida ser julgado não provado.
QQ. Também no âmbito dos processos judiciais encetados no decurso do processo interno do CHTV, foi dado por provado o facto n.º 10 da Sentença recorrida - “As punições dos Autores «AA» e «BB», na pendência dos autos, foram anuladas na sequência de impugnação administrativa necessária, com a qual o Centro Hospitalar ..., E.P.E., se conformou - o que determinou a inutilidade superveniente das lides [admitido por acordo]” - que corresponde, nos seus exatos termos, ao artigo 13.º da Petição Inicial.
RR. Dado o desconhecimento da Recorrente alegado nos artigos 37.º a 39.º da Contestação quanto a esta matéria, nos quais impugnou o facto em apreço, e a ausência de prova documental que o suporte, não pode o Tribunal a quo considerar o facto n.º 10 da Sentença recorrida por provado, incorrendo num erro na matéria de facto dada com assente.
SS. Assim, atenta a falta de acordo das partes e qualquer outro fundamento que o sustente, deve o facto n.º 10 da Sentença recorrida ser julgado como não provado.
TT. Por fim, a Sentença recorrida dá por provado por acordo das partes o facto n.º 11 - “No caso das Autoras «EE», «DD» e «CC», em transação judicialmente homologada, o Réu, Centro Hospitalar ..., E.P.E., “comprometeu-se a expurgar dos respectivos registos disciplinares as sanções que aplicara” [admitido por acordo]” -, que corresponde, nos seus exatos termos, artigo 13.1.º da Petição Inicial.
UU. Em consonância com o que tem vido a ser arguido, a Recorrente não tinha conhecimento da matéria alegada no referido artigo da Petição Inicial, motivo pelo qual o impugnou nos artigos 37.º a 39.º da Contestação.
VV. Assim, não tendo conhecimento da matéria e impugnando a mesma, a Recorrente não acordou com a veracidade da mesma.
WW. Acresce que, não foi junta prova documental aos autos que fundamentasse o alegado pelos Recorridos pelo que não havia motivação para a fixação do facto n.º 11 da Sentença recorrida como não provado.
XX. Em face do exposto, o Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento de facto, designadamente, na fixação da matéria de facto, devendo o facto provado n.º 11 da Sentença recorrida ser julgado como não provado, dada a falta de acordo das partes e de prova que o suporte.
YY. Em face de todo o exposto, deve ser declarado o erro de julgamento de facto na fixação dos factos provados n.ºs 4 a 11 da Sentença recorrida, quer por falta de acordo das partes, quer por falta de prova documental que os suporte e, em consequência, devem os factos provados n.º 4 a 11 da Sentença recorrida ser julgados como não provados.
Do erro de julgamento de direito
Considerações preliminares
ZZ. No que ao erro de julgamento diz respeito, a Sentença recorrida afronta diretamente o princípio constitucional da separação de poderes, na concretização que lhe é conferida pelo n.º 1, do artigo 3.º, do CPTA, na medida em que o Tribunal a quo profere uma decisão sobre um ato que manifestamente não é sindicável uma vez que o respetivo âmbito de aplicação se restringe às margens da discricionariedade administrativa.
Da violação da separação de poderes
AAA. De facto - e conforme ensinam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha (cfr. Almeida, Mário Aroso de; Cadilha, Carlos Alberto Fernandes - Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos. 5.ª edição, Coimbra: Almedina, 2021, pág. 52 e 53) -, por força do n.º 1, do artigo 3.º, do CPTA, aos Tribunais Administrativos cabe a sindicância judicial do cumprimento, pela Administração, das normas e princípios jurídicos que a vinculam, ainda que se encontra fora da jurisdição judicial a formulação de valorações que implicam juízos de conveniência ou oportunidade da atuação da Administração.
BBB. Acresce que, como explica Diogo Freitas do Amaral, a atividade administrativa está sujeita a diversos tipos de controlo, entre os quais se destacam o controlo administrativo e o controlo jurisdicional, sendo que “o controlo de legalidade, em princípio, tanto pode ser feito pelos tribunais como pela própria Administração, mas em última análise compete aos tribunais; o controlo de mérito só pode ser feito, no nosso país, pela Administração(sublinhado nosso) - cfr. Amaral, Diogo Freitas do - Curso de Direito Administrativo, Volume II. 4@ edição. Coimbra: Almedina, 2020, pág. 87.
CCC. O autor refere ainda que “[o] mérito de um ato administrativo - ou seja, a conformidade dos aspetos discricionários do ato com a conveniência do interesse público - só pode ser controlado pela Administração (sublinhado nosso) - cfr. Amaral, Diogo Freitas do - Curso de Direito Administrativo, Volume II. 4@ edição. Coimbra: Almedina, 2020, pág. 90.
DDD. Também a jurisprudência entendeu que “[o]s poderes dos tribunais administrativos abarcam apenas as vinculações da Administração por normas e princípios jurídicos, ficando de fora da sua esfera de sindicabilidade o ajuizar sobre a conveniência e oportunidade da actuação da Administração, mormente o controlo actuação ao abrigo de regras técnicas ou as escolhas/opções feitas pela mesma na e para a prossecução do interesse público, salvo ofensa dos princípios jurídicos enunciados no art. 266.º, n.º 2 da CRP” (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 01/10/2010, proferido no âmbito do processo n.º 00514/08.4BEPNF).
EEE. Assim, existindo um ato administrativo, como é o caso, caberá em primeira linha à Administração, neste caso à Ordem dos Enfermeiros, a decisão quanto à aplicação da Lei da Amnistia ao ato administrativo, até porque a mesma não se aplica sem mais, carecendo de uma análise factual e tendo em conta cada caso em concreto.
FFF. Isto porque, os Tribunais Administrativos não são segunda instância administrativa e, nos termos do artigo 3.º, n.º 2, do EOE, a Recorrente tem como atribuições regular o exercício da profissão e o exercício profissional (alíneas d) e e), do n.º 3, do artigo 3.º, do EOE) e ainda exercer a jurisdição disciplinar sobre os Enfermeiros (alínea l), do n.º 3, do artigo 3.º, do EOE).
GGG. Ora, a Recorrente tramitou o processo disciplinar dos aqui Recorridos que culminou com a decisão disciplinar de sanção escrita, pelo que, cabe-lhe uma reserva de matérias, por se encontrar mais apta - e legalmente habilitada - a regulá-las, sendo que se encontra mais legitimada para as executar, cumprindo, assim, o seu desígnio - a função administrativa.
HHH. Trata-se de uma “margem de livre decisão administrativa” ou “discricionariedade técnica”, cujo exercício os Tribunais podem controlar, mas apenas na medida em que esteja envolvida uma violação de um parâmetro de conformidade jurídica, conforme disposto no artigo 203.º, da CRP, consagrando e respeitando, assim, a independência recíproca da administração e justiça.
III. Assim, e ainda que incumba aos Tribunais o cumprimento das funções que constam do artigo 202.º, n.º 2, da CRP, a fiscalização e julgamento do mérito da atuação pública (no caso, o mérito de considerar que determinada atuação consubstancia uma boa prática do exercício de enfermagem) não entram no âmbito das competências dos Tribunais, na administração da justiça. Isto porque, caso os Tribunais controlassem o exercício da margem de livre decisão administrativa estariam a exercer a função administrativa e aí teríamos uma dupla administração, daí a importância da separação entre as esferas de legalidade e do mérito.
JJJ. Na situação em apreço, a reserva de administração é assegurada pelo princípio da legalidade, que neste âmbito surge como princípio da separação de poderes, que visa separar a Administração e a Justiça, tal como os respetivos órgãos, concretizando e otimizando a distribuição orgânica das funções.
KKK. Em face de todo o exposto, entende-se que os Tribunais podem condenar a Administração, mas deixam os juízos de mérito (oportunidade e conveniência) a cargo da própria, pelo que, no caso vertente, não pode o Tribunal substituir-se à Administração e ofender a sua autonomia administrativa, cabendo-lhe sindicar tão só os atos pelos mesmos proferidos.
LLL. Assim, a decisão sobre se certo facto ocorreu ou não pode ser avaliada pelo Tribunal, já a qualificação desse facto como infração disciplinar e a aplicação da Lei da Amnistia a uma infração, integram a margem de livre decisão administrativa que, no caso, é conferida à Recorrente pela alínea h), do n.º 1, do artigo 5.º, e pelo artigo 18.º, ambos da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro e pelo EOE.
MMM. Ao pretender aplicar aos autos disciplinares a Lei da Amnistia, considerando que a infração se encontra amnistiada, a Sentença recorrida viola os artigos 111.º e 268.º, n.º 4, da CRP e o artigo 3.º, n.os 1 e 2 , do CPTA. Ao entender desta forma, a Sentença recorrida interpretou e aplicou incorretamente os referidos preceitos, devendo os mesmos ser interpretados no sentido de que a determinação da Lei da Amnistia a uma infração disciplinar insere-se no âmbito da reserva da administração consubstanciada numa margem de livre decisão administrativa.
Caso assim se não entenda, o que se admite, sem conceder, por mera cautela de patrocínio, certo é que a Sentença recorrida faz uma incorreta interpretação e aplicação da Lei da Amnistia aos autos disciplinares. Vejamos:
Do erro de interpretação e aplicação do direito na aplicação da Lei da Amnistia
NNN. Das diligências realizadas em sede de processo disciplinar, foi possível apurar que os Recorridos não diligenciaram no sentido de assegurar os serviços mínimos na UCIM/UAVC, durante a greve decretada para os dias 24/08/2016 e 25/08/2016, colocando assim em perigo os utentes da unidade e violando o dever de vigilância a que estão adstritos.
OOO. Perante os factos provados, foi aplicada a sanção disciplinar de censura escrita, que não foi objeto de amnistia, entendendo a Recorrente que a Lei da Amnistia nenhum efeito tem sobre o processo disciplinar em análise.
PPP. O mesmo raciocínio tem forçosamente de ser realizado no que aos autos judiciais diz respeito: a Lei da Amnistia não é de aplicar, pois o que está em causa nos presentes autos é a legalidade da deliberação impugnada e não as infrações disciplinares praticadas pelos Recorridos, pelo que a Deliberação impugnada deve manter-se.
QQQ. A Lei da Amnistia estabelece o perdão de penas e a amnistia de infrações e, uma vez que não estipula limites sobre quem é abrangido pela amnistia, entende-se serem elegíveis todas as categorias profissionais, cabendo no âmbito da sua aplicação todas as infrações disciplinares.
RRR. O ponto de partida para a análise da extensão da amnistia nos processos disciplinares é o artigo 6.º, da Lei da Amnistia, que estabelece a regra de amnistiar todos os factos suscetíveis de enquadrar um ilícito disciplinar, com dois limites: por um lado, ela não é aplicável se estiverem em causa “ilícitos penais não amnistiados pela presente lei” e, por outro lado, que “a sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”.
SSS. Ainda que a Sentença recorrida faça referência ao artigo 6.º, da Lei da Amnistia, a Recorrente não pode acompanhar a posição da Sentença recorrida, uma vez que da interpretação das normas dos artigos 2.º, n.º 1, 4.º e 6.º, da Lei da Amnistia resulta conclusão contrária. Vejamos:
TTT. De acordo com o seu artigo 2.º, n.º 1, a mesma só se aplica a pessoas que “tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”, o que significa que a amnistia não é aplicável às infrações disciplinares por factos que consubstanciem um crime (seja ele qual for) que tenha sido praticado por maior de 30 anos.
UUU. Já de acordo com o artigo 4.º, da Lei da Amnistia, se a infração for praticada por alguém com idade inferior a 30 anos, só são amnistiados os crimes cuja moldura penal “não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa”.
VVV. Em suma, contrariamente ao que defende a Sentença recorrida, o legislador pretendeu fazer uma aplicação da Lei da Amnistia com uma incidência distinta em razão da idade, pelo que: a amnistia não abrange as infrações disciplinares por factos que consubstanciem um crime que tenha sido praticado por um agente com idade superior a 30 anos, nem por menor de 30 anos em caso de crime cuja moldura penal do crime seja superior a 1 ano.
WWW. Assim, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1 e 4.º, da Lei da Amnistia, as infrações aqui em causa apenas poderiam ser amnistiadas se, à data dos factos, os Autores, ora Recorridos, tivessem uma idade inferior a 30 anos, o que a Sentença recorrida não logrou provar e se a conduta praticada não consubstanciasse um ilícito penal punível com pena de prisão superior a 1 ano.
XXX. Concluindo-se que a amnistia não abrange as infrações disciplinares por factos que consubstanciem um crime que tenha sido praticado por maior de 30 anos, nem por menor de 30 anos em caso de crime cuja moldura penal do crime seja superior a 1 ano ou em caso de crime que se inclua no âmbito do artigo 7.º, da Lei da Amnistia, importa perceber como essa conclusão se articula com a natureza e o conteúdo do processo disciplinar.
YYY. Ora, os mesmos factos podem desencadear cumulativamente, sem violação do princípio da presunção da inocência, responsabilidade disciplinar e responsabilidade penal (cfr. artigo 68.º, n.º 1, do EOE e artigo 2.º, n.º 2, do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Enfermeiros) e cabe à Recorrente exercer a jurisdição disciplinar sobre os Enfermeiros (artigo 3.º, n.º 3, alínea l), dos EOE), sendo-lhe vedada a condenação penal da conduta.
ZZZ. Contudo, a Recorrente pode (tratando-se de um verdadeiro poder-dever), na prossecução normal dos seus poderes deveres - no caso, no exercício da jurisdição disciplinar que lhe está acometido - pronunciar-se sobre a relevância criminal dos factos integradores de faltas disciplinares, para os estritos efeitos de aplicação ou desaplicação da amnistia (cfr. Santos, José Beleza dos - Ensaio sobre a introdução ao direito criminal. Porto: Arquivo de Atlântida Editora, S.A.R.L., 1968, pp. 113 e 116). Ou seja, a Ordem dos Enfermeiros pode e deve analisar se a infração disciplinar cometida é subsumível à prática de um crime previsto no Código Penal ou em legislação avulsa, estando essa faculdade dentro do âmbito da jurisdição disciplinar que lhe compete exercer, sendo tal suficiente para efeitos de desaplicação da amnistia à infração disciplinar em causa.
AAAA. E note-se, uma vez mais contrariamente ao que foi entendido na sentença recorrida, que esta ponderação não é exigível aquando da redação da decisão final, nem tão pouco o seria na Contestação deduzida, mas apenas aquando da análise da aplicação, aos autos disciplinares em concreto, da Lei da Amnistia. E mais, o facto de não ter sido apresentada qualquer queixa-crime contra os ora Recorridos, não pode, igualmente, ser considerado para efeitos da aplicação da Lei da Amnistia, atendendo a que a inexistência de processo criminal e de condenação criminal não obstam à integração dos factos objeto do processo disciplinar na exclusão do âmbito da amnistia (nos termos fixados pelos artigos 2.º, 4.º, 6.º e 7.º, n.º 1, alínea g), da Lei da Amnistia).
BBBB. Aqui chegados e analisado o caso concreto, conclui-se que a Lei da Amnistia não é aqui aplicável, incorrendo a Sentença recorrida num erro de interpretação e aplicação de direito, designadamente, do artigo 2.º, do artigo 4.º, do artigo 6.º e da alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º, todos da Lei da Amnistia.
CCCC. Isto porque para determinar a aplicação da Lei da Amnistia, revela-se importante analisar se o comportamento dos Recorridos, que foi disciplinarmente sancionado, é suscetível de se subsumir à prática de um crime, no caso em apreço do crime de exposição ou abandono, previsto e punido pelo artigo 138.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, ao qual é aplicável uma pena de prisão de 1 a 5 anos.
DDDD. De facto, encontravam-se os Recorridos adstritos ao dever de vigilância e assistência dos Utentes internados na UCIM/UAVC, por diagnósticos de AVC, encontrando-se submetidos a terapêutica Fibrinolítica, cujas características e grau de dependência configuravam situações de grande instabilidade hemodinâmica, pelo que os mesmos deveriam beneficiar de um dever especial de cuidado e vigilância a que os Recorridos foram completamente alheios.
EEEE. Ao não assegurarem os serviços mínimos nos dias 24/08/2016 e 25/08/2016, os Recorridos criaram um especial estado de perigo aos Utentes, designadamente, criaram a falsa expectativa de que estariam a ser prestados cuidados devidos - quando, na verdade, os Enfermeiros estavam ausentes da Unidade - e colocaram seriamente em causa a segurança e a saúde dos utentes internados, na medida em que ficou apenas um Enfermeiro a assegurar os serviços, não estando reunidas as condições para o seu normal funcionamento.
FFFF. Assim, encontravam-se reunidos os factos suscetíveis de integrarem os elementos objetivo (os Recorridos colocaram em perigo a vida dos utentes internados na UCIM/UAVC através do abandono, no referido serviço, de utentes que deviam vigiar e assistir, criando ou potenciando um perigo para s suas vidas) e subjetivo (os Recorridos agiram com dolo, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua atuação colocaria em perigo ou potenciava um perigo para os utentes internados naquelas unidades) do crime de exposição ou abandono, previsto e punido pelo artigo 138.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
GGGG. E note-se que não sendo o crime ao abandono um crime de resultado, o facto de do processo disciplinar que correu termos no Centro Hospitalar ..., E.P.E. contra os também Autores, ora Recorridos - processo este ao qual a Recorrente é totalmente alheia -, constar que “da actuação dos Arguidos não resultou qualquer prejuízo para os utentes do Centro Hospitalar ..., E.P.E. (especificamente da UCIM/UAVC), (...)”, em nada impede a subsunção do comportamento dos Arguidos ao referido ilícito, na medida em que, com tais atuações, a vida e a segurança dos Utentes internados na UCIM/UAVC foi colocada em perigo por falta de vigilância e assistência dos ora Recorridos.
HHHH. Nestes termos, e ainda que tenha sido aplicada aos Recorridos uma sanção disciplinar inferior à expulsão (artigo 6.º, da Lei da Amnistia), certo é que estamos perante uma infração disciplinar por factos que se podem subsumir à prática de um crime sancionado por uma pena superior a 1 ano de prisão, pelo que não é de aplicar a Lei de Amnistia aos presentes autos.
IIII. Assim, a Sentença recorrida, ao decidir pela aplicação da Lei da Amnistia ao caso concreto, extinguindo a instância por inutilidade superveniente da lide e pretendendo condenar a Recorrente à aplicação da referida lei em sede de processo disciplinar, incorre num erro de interpretação e aplicação da Lei da Amnistia, designadamente do artigo 2.º, do artigo 4.º, do artigo 6.º, todos da Lei da Amnistia. As normas referidas devem ser interpretadas no sentido de não ser de aplicar aos autos disciplinares em apreciação nos presentes autos a Lei da Amnistia.
JJJJ. Ainda que se admitisse que a Lei da Amnistia não se aplica nos termos ora expostos - o que apenas se aceita, sem conceder, por mera cautela de patrocínio -, certo é que nos termos da alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º, da Lei da Amnistia, os crimes praticados contra “vítima especialmente vulnerável” (nos termos e para os efeitos do artigo 67.º-A, do Código de Processo Penal), não beneficiam da amnistia, pelo que, verificando-se esta condição dos utentes, não seria de aplicar a amnistia aos autos disciplinares.
KKKK. Ora, nos termos e para os efeitos do artigo 67.º-A, do Código de Processo Penal, “vítima especialmente vulnerável” é aquela cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, pelo que, considera-se que atentas as características e a vulnerabilidade dos utentes contra os quais foram levadas a cabo as atuações dos Recorridos, os mesmos enquadram-se no conceito de “vítima especialmente vulnerável”.
LLLL. Do referido, dúvidas não restam de que os Autores, aqui Recorridos, violaram um dever a que se encontravam obrigados, designadamente o dever de vigiar, cuidar e proteger os Utentes, sendo as suas atuações subsumíveis à prática do crime de exposição ou abandono para com pessoas especialmente vulneráveis, previsto e punido pelo artigo 138.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
MMMM. Ora, verificando-se o preenchimento do tipo de ilícito previsto e punido pelo artigo 138.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, praticado contra vítimas especialmente vulneráveis nos termos já aqui devidamente desenvolvidos, a atuação dos Recorridos enquadra-se numa das exceções à aplicação da Lei da Amnistia, designadamente a prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º, da Lei da Amnistia, pelo que a mesma nunca seria de aplicar aos autos disciplinares.
NNNN. Por todo o exposto, e atendendo a que a inexistência de processo criminal e de condenação criminal não obstam à integração dos factos objeto do processo disciplinar na exclusão do âmbito da amnistia (nos termos fixados pelos artigos 2.º, 4.º, 6.º e 7.º, da Lei da Amnistia), não sendo necessário correr termos um processo-crime e ser proferida uma decisão judicial condenatória para definir se a conduta se trata de um crime não amnistiado, é forçoso concluir não ser de aplicar a Lei da Amnistia ao processo disciplinar.
OOOO. Assim, a Sentença recorrida, ao decidir pela aplicação da Lei da Amnistia ao caso concreto, extinguindo a instância por inutilidade superveniente da lide e pretendendo condenar a Recorrente à aplicação da referida lei em sede de processo disciplinar, incorre num erro de interpretação e aplicação da Lei da Amnistia, designadamente do artigo 2.º, do artigo 4.º, do artigo 6.º e da alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º, todos da Lei da Amnistia. As normas referidas devem ser interpretadas no sentido de não ser de aplicar aos autos disciplinares em apreciação nos presentes autos a Lei da Amnistia.
Do erro de interpretação e aplicação do artigo 11.º, da Lei da Amnistia
PPPP. A Sentença recorrida erra, ainda, ao decidir pela impossibilidade de recusa da amnistia, incorre num erro de interpretação e aplicação do artigo 11.º, da Lei da Amnistia.
QQQQ. De facto, analisada a Lei da Amnistia no seu conjunto, facilmente se conclui que a recusa na aplicação da Lei da Amnistia tem, no que respeita a infrações disciplinares, âmbito de aplicação, não fazendo qualquer sentido ser de outra forma.
RRRR. A Ordem dos Enfermeiros, enquanto ordem profissional, tem como desígnio fundamental a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços de enfermagem e a representação e defesa dos interesses da profissão (artigo 3.º, n.º 1, dos EOE), exercendo a jurisdição disciplinar sobre os Enfermeiros (artigo 3.º, n.º 3, alínea l), dos EOE). de todo o modo, condenar criminalmente a conduta de um Enfermeiro encontra-se vedado à Ordem dos Enfermeiros, pois extrapola a sua jurisdição.
SSSS. De qualquer forma, para aplicação do referido normativo não é exigido que se esteja perante uma infração penal - como parece resultar da Sentença recorrida -, mas que a atuação em análise seja suscetível de ser subsumível à prática de um ilícito penal, o que, conforme já devidamente escalpelizado, ocorre.
TTTT. Assim, a Sentença recorrida, ao decidir pela impossibilidade de recusa da amnistia, incorre num erro de interpretação e aplicação do artigo 11.º, da Lei da Amnistia. A referida norma deve ser interpretada no sentido de ser aplicada a quaisquer infrações que se subsumam à prática de um ilícito penal.
Do erro quanto aos efeitos da amnistia
UUUU. Por fim, a Sentença recorrida faz uma interpretação incorreta dos efeitos da Lei da Amnistia ao caso concreto.
VVVV. Ora, a amnistia pode aplicar-se antes da condenação propriamente dita ou já após a condenação. Assim:
a. A amnistia em sentido próprio, é aquela que ocorre antes da condenação; é aquela que se refere ao próprio crime, extinguindo-o, e fazendo extinguir o procedimento criminal, o que equivale à absolvição do Arguido;
b. A amnistia em sentido impróprio, é aquela que ocorre depois da condenação, impede ou limita o cumprimento da pena aplicada, fazendo cessar ou restringir a execução da pena principal, bem como das penas acessórias, o que significa que a condenação propriamente dita não se apaga.
WWWW. No caso que se analisa, a aplicar-se a Lei da Amnistia - o que não se concebe e apenas por mera cautela se equaciona -, sempre estaríamos perante uma amnistia em sentido impróprio, uma vez que a mesma ocorreria já após a aplicação de sanção disciplinar.
XXXX. Ora, tal apenas impediria ou limitaria o cumprimento da sanção disciplinar aplicada, fazendo cessar ou restringir a execução dessa sanção, bem como das sanções acessórias, pelo que a infração propriamente dita não cairia em “esquecimento”, não sendo o seu registo eliminado do registo disciplinar do membro. Assim, a aplicação da Lei da Amnistia após a condenação não destruiria os efeitos já produzidos pela aplicação da sanção disciplinar, efeitos esses que permanecerão, devendo apenas a amnistia ficar averbada no processo individual do membro.
YYYY. Em face de todo o exposto, conclui-se que caso a Lei da Amnistia fosse de aplicar aos presentes autos - o que não se concebe e apenas por mera cautela se equaciona -, a mesma sempre configuraria uma “amnistia em sentido impróprio”, o que não determinaria a extração da sanção do registo disciplinar, mas apenas o seu averbamento no processo individual dos Recorridos.
ZZZZ. Ao entender de forma distinta a Sentença recorrida faz uma incorreta interpretação e aplicação do artigo 128.º, n.º 2, do Código Penal e do artigo 6.º, da Lei da Amnistia. As referidas normas devem ser interpretadas no sentido de que ocorrendo a amnistia já após a sanção disciplinar ter sido aplicada, os seus efeitos apenas fazem cessar ou restringir a execução dessa sanção, bem como das sanções acessórias, não caindo a infração em “esquecimento”, nem sendo o seu registo eliminado do registo disciplinar do membro, apenas se procedendo ao averbamento da aplicação da Lei da Amnistia em tal registo disciplinar.
AAAAA. Atento todo o exposto, razões não existem para que a instância seja declarada extinta, por impossibilidade superveniente da lide, uma vez que o objeto dos presentes autos se mantém, não tendo sido (nem podendo ser) amnistiado pela Entidade Demanda, ora Recorrente. Ao julgar a instância extinta por impossibilidade superveniente da lide, a sentença recorrida faz uma incorreta interpretação e aplicação da Lei da Amnistia ao caso concreto, incorrendo em erro de direito. A Lei da Amnistia, designadamente as normas dos artigos 2.º, 4,.º, 6.º e alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º, devem ser aplicadas e interpretadas no sentido de não serem amnistiadas as infrações disciplinares aplicadas aos ora Recorridos e aqui em apreciação, atento o não preenchimento dos pressupostos para tal aplicação, com consequente manutenção das infrações disciplinares.
NESTES TERMOS,
requer-se a Vs. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal Central
Administrativo Norte, que admitam o presente recurso e se dignem revogar a Sentença
recorrida, substituindo-a por outra que (A) julgue não provados os factos n.º 4 a 11 da
Sentença recorrida; bem como (B) determine a não aplicação da Lei da Amnistia e,
consequentemente (i) a remessa dos autos ao Tribunal a quo para prosseguimento dos
autos; ou (ii) decida sobre o mérito da ação e determine a sua total improcedência, assim se
fazendo a costumada
JUSTIÇA!
Os Autores juntaram contra-alegações, concluindo:
1 - A Recorrente Jurisdicional propugna pela alteração da matéria de facto mas o certo é que dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto não resulta claramente uma decisão diversa sobre a aplicabilidade da “lei da amnistia”.

2 - O acto do Pleno do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros é impugnável: a natureza necessária da impugnação administrativa da deliberação punitiva da 1ª Secção do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros para o Pleno do mesmo Conselho Jurisdicional foi afirmada no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 16/Junho/2023, Proc° n° 1043/20.313EPRT (e que os Recorridos Jurisdicionais, com todo o respeito, aqui convocam na sua leitura da norma do n° 3 do art° 8° do Código Civil).

3 - As normas do art° 2°, n° 2, b) e 6° da Lei n° 38-A, de 2 de Agosto, enquanto amnistiam as infracções disciplinares praticadas até às 00:00 horas do dia 19 de Junho de 2023 cuja sanção não seja superior a suspensão são aplicáveis no direito disciplinar das associações públicas profissionais e, portanto, aos Recorridos Jurisdicionais [cfr. o que extrai do discurso jurídico fundamentador do acórdão n° 153/93 do Tribunal Constitucional – in “Diário da República”, II Série, n° 69, de 23/Março/1993, págs. 3077/3078].

4 - A qualificação de um ilícito como ilícito penal é da área da acção penal: o exercício da acção penal é função própria do Ministério Público e só aos tribunais compete apreciar, qualificar e valorar as condutas sob prisma jurídico-penal, dentro do âmbito da respectiva competência funcional.

5 - Assim, a Recorrente Jurisdicional, que integra a estrutura da Administração Pública, é absolutamente incompetente para apreciar, qualificar e valorar condutas sob prisma jurídico-penal: os factos imputados aos arguidos em processo disciplinar só podem ser qualificados como infracção desta mesma natureza [o afirmado a itálico é extraído do acórdão do STA de 28/Junho/1979, sumariado em http://www.dgsi.pt e texto publicado no Apêndice ao “Diário da República” de 21/Janeiro/1984, págs. 1567 e segs.].

6 - Deste modo, e com todo o respeito, improcede a censura que a Recorrente Jurisdicional dirige à douta sentença recorrida.

7 - A amnistia em “sentido impróprio” é a que ocorre após a condenação e o acto punitivo disciplinar não é condenação em sentido próprio, porquanto é passível de submissão a juízo de censura contenciosa e a sua anulação jurisdicional tem eficácia ex. tunc.

8 - Sendo que como se vê em acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (identificado e convocado pela douta sentença recorrida) no art° 6° da Lei n° 38-A/2023, de 2 de Agosto (“lei da amnistia”) não se distingue entre amnistia própria e amnistia imprópria e, por isso, pode dizer-se que a amnistia ali prevista tem efeitos retroactivos, afectando não só a sanção aplicada, mas o próprio acto passado, que é esquecido, considerando-se como não praticado (abolição retroactiva da infracção).

9 - Deste modo, e com todo o respeito, também por este lado improcede o recurso jurisdicional.

Nestes termos, e nos mais e melhores de direito doutamente supridos,

Requerem sejam admitidas as presentes contra-alegações e, conhecendo-se delas, seja o recurso jurisdicional julgado improcedente, com todas as suas legais consequências.


O Senhor Procurador Geral Adjunto notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO
Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
1. Os Autores são enfermeiros, titulados pela Ordem dos Enfermeiros, e exercem a sua atividade profissional ao serviço do Centro Hospitalar ..., E.P.E. [admitido por acordo].
2. O SEP – Sindicato dos Enfermeiros Portugueses declarou greve de enfermagem no Centro Hospitalar ..., E.P.E. para os dias 22, 23, 24, 25 e 26 de agosto de 2016 (em todos os dias das 9H00 às 12H00) [cf. documento nº 1 junto com a petição inicial].
3. O aviso prévio de greve continha, como é legalmente imposto, uma proposta de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis e dos meios humanos necessários para os assegurar: “número de enfermeiros igual ao que figurar para o turno da noite, no horário aprovado à data do início da greve” [admitido por acordo].
4. O Centro Hospitalar ..., E.P.E. recebeu o aviso prévio de greve e nada contrapôs perante o SEP – Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, nem suscitou a intervenção do serviço competente do ministério responsável pela área laboral (artigo 538º, nº 2, do Código do Trabalho), não tendo havido, por isso, intervenção do Tribunal Arbitral (que funciona junto do Conselho Económico e Social) [admitido por acordo].
5. Nas proximidades de instalação da greve o Centro Hospitalar ..., E.P.E., fixou, unilateral e autoritariamente, os meios humanos necessários para assegurar os serviços mínimos [admitido por acordo].
6. Os Autores aderiram à greve e na presença do não questionado, no tempo e na forma devida, aviso prévio seguiram o que nele figurava quanto à dotação e face ao que nele também foi proposto (“os grevistas acordarão entre si quem permanecerá no serviço para ocorrer a situações impreteríveis”), porquanto havia enfermeiros não aderentes detentores de formação profissional adequada para a prestação de cuidados de enfermagem [admitido por acordo].
7. Os Autores foram disciplinarmente perseguidos pelo Centro Hospitalar ..., E.P.E. [admitido por acordo].
8. No procedimento disciplinar movido ficou apurado que “da actuação dos Arguidos não resultou qualquer prejuízo para os utentes do Centro Hospitalar ..., E.P.E. (especificamente da UCIM/UAVC), não estando em causa a adequação do seu comportamento para o exercício das suas funções” [admitido por acordo].
9. No entanto o referido Centro Hospitalar puniu-os disciplinarmente, tendo os Autores impugnado judicialmente [admitido por acordo].
10. As punições dos Autores «AA» e «BB», na pendência dos autos, foram anuladas na sequência de impugnação administrativa necessária, com a qual o Centro Hospitalar ..., E.P.E., se conformou – o que determinou a inutilidade superveniente das lides [admitido por acordo].
11. No caso das Autoras «EE», «DD» e «CC», em transação judicialmente homologada, o Réu, Centro Hospitalar ..., E.P.E., “comprometeu-se a expurgar dos respectivos registos disciplinares as sanções que aplicara” [admitido por acordo].
12. Em 06.02.2019 foi emitido “Relatório final com proposta de acusação – Processo Disciplinar nº ...17...”, com o seguinte teor [cf. documento nº 2 junto com a petição inicial]:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

13. Em 22.02.2019 foi emitida deliberação pela 1ª Secção do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, com o seguinte teor [cf. documento nº 2 junto com a petição inicial]:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
14. Em 12.12.2019 foi emitido “Relatório final – Processo Disciplinar nº ...17..., com o seguinte teor [cf. documento nº 4 junto com a petição inicial]:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
15. Em 21.02.2020 foi emitida deliberação pela 1ª Secção do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, com o seguinte teor [cf. documento nº 4 junto com a petição inicial]:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
16. Em 18.06.2020 foi emitido “Relatório – Recurso n.º 02/2020”, com o seguinte teor [cf. documento nº 6 junto com a petição inicial]:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
17. Em 10.07.2020 reuniu o Plenário do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, de onde resultou o “Excerto da Acta Número Cinco”, com o seguinte teor [cf. documento nº 6 junto com a petição inicial]:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
18. Em 07.08.2020 reuniu o Plenário do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, de onde resultou o “Excerto da Acta Número Seis”, com o seguinte teor
[cf. documento nº 8 junto com a petição inicial]:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
19. Em 21.09.2020 foi apresentada petição inicial que deu origem ao presente processo [cf. registo constante da plataforma SITAF].
DE DIREITO
É objecto de recurso a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que que julgou a infração disciplinar que vinha imputada aos Autores pelo ato impugnado amnistiada ope legis, determinando a inutilidade superveniente da lide por não sobrar qualquer outro interesse processual em obter a anulação jurisdicional do ato impugnado.
Como se refere na sentença recorrida, o ato impugnado (deliberação, de 10/julho/2020, do Conselho Jurisdicional Plenário, da Ordem dos Enfermeiros) aplicou aos Autores a sanção disciplinar de repreensão escrita na sequência de ilícito disciplinar assente em factos praticados e/ou omitidos em 25.08.2016.
Por se tratar de uma infração disciplinar (i) praticada antes de 19/06/2023 (artigo 2º, nº 2, alínea b) da Lei nº 38-A/2023), (ii) que não é passível de constituir ilícito criminal (artigo 6º), que não é punível com pena superior à de suspensão (artigo 6º) e que (iv) não foi praticada por um “funcionário”, nem com violação de direitos, liberdades e garantias pessoais de outrem (artigo 7º, nº 1, alínea k).
Em face deste quadro processual o Tribunal a quo entendeu que a questão a decidir se consubstanciava em saber se se encontravam reunidos os pressupostos normativos consagrados na Lei nº 38-A/2023, de 2/8, e, em consequência, se se verificava a inutilidade superveniente da lide.
Considerando que as infrações disciplinares, objeto do ato punitivo impugnado, se integravam no âmbito material e temporal da Lei nº 38- A/2023, de 02/08, «trata-se de infrações disciplinares assentes em factos praticados e/ou omitidos em 25.08.2016, ou seja, até às 00:00 horas de 19.06.2023, que não constituem simultaneamente um ilícito penal e cuja sanção aplicável não é superior a suspensão, uma vez que os comportamentos infratores dos arguidos foram enquadrados nos artigos 18º, nº 2, alínea b), e 19º, nº 2 do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Enfermeiros, tendo-lhes sido aplicadas sanções de censura escrita, tais infrações disciplinares encontram-se amnistiadas por força do disposto no citado artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, de 02.08 (não se aplicando nenhuma das situações excecionais de exclusão da amnistia previstas no artigo 7º do mesmo diploma legal» o Tribunal a quo determinou, e bem, a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA.
Discorda a Recorrente Ordem dos Enfermeiros, propugnando o entendimento de que não se encontram preenchidos os pressupostos necessários para que a sanção disciplinar aplicada aos AA. e aqui recorridos seja amnistiada nos termos da Lei n.º 38­A/2023, de 2 de agosto.
Para assim concluir, alega, no essencial, que:
-a decisão sobre se certo facto ocorreu ou não pode ser avaliada pelo Tribunal, já a qualificação desse facto como infração disciplinar e a aplicação da Lei da Amnistia a uma infração, integram a margem de livre decisão administrativa que, no caso, é conferida à Recorrente pela alínea h), do n.º 1, do artigo 5.º, e pelo artigo 18.º, ambos da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro e pelo EOE.- ao pretender aplicar aos autos disciplinares a Lei da Amnistia, considerando que a infração se encontra amnistiada, a sentença recorrida viola os artigos 111.º e 268.º, n.º 4, da CRP e o artigo 3.º, nºs 1 e 2 , do CPTA;
ao entender desta forma, a sentença recorrida interpretou e aplicou incorretamente os referidos preceitos;
-das diligências realizadas em sede de processo disciplinar, foi possível apurar que os Recorridos não diligenciaram no sentido de assegurar os serviços mínimos na UCIM/UAVC, durante a greve decretada para os dias 24/08/2016 e 25/08/2016, colocando assim em perigo os utentes da unidade e violando o dever de vigilância a que estão adstritos;
-perante os factos provados, foi aplicada a sanção disciplinar de censura escrita, que não foi objeto de amnistia, entendendo a Recorrente que a Lei da Amnistia nenhum efeito tem sobre o processo disciplinar em análise;
-contrariamente ao que defende a sentença recorrida, o legislador pretendeu fazer uma aplicação da Lei da Amnistia com uma incidência distinta em razão da idade, pelo que: a amnistia não abrange as infrações disciplinares por factos que consubstanciem um crime que tenha sido praticado por um agente com idade superior a 30 anos, nem por menor de 30 anos em caso de crime cuja moldura penal do crime seja superior a 1 ano;
-o facto de não ter sido apresentada qualquer queixa-crime contra os ora Recorridos, não pode, igualmente, ser considerado para efeitos da aplicação da Lei da Amnistia, atendendo a que a inexistência de processo criminal e de condenação criminal não obstam à integração dos factos objeto do processo disciplinar na exclusão do âmbito da amnistia (nos termos fixados pelos artigos 2.º, 4.º, 6.º e 7.º, n.º 1, alínea g), da Lei da Amnistia);
-ao não assegurarem os serviços mínimos nos dias 24/08/2016 e 25/08/2016, os Recorridos criaram um especial estado de perigo aos Utentes, designadamente, criaram a falsa expectativa de que estariam a ser prestados cuidados devidos - quando, na verdade, os Enfermeiros estavam ausentes da Unidade - e colocaram seriamente em causa a segurança e a saúde dos utentes internados, na medida em que ficou apenas um Enfermeiro a assegurar os serviços, não estando reunidas as condições para o seu normal funcionamento;
-assim, encontravam-se reunidos os factos suscetíveis de integrarem os elementos objetivo (os Recorridos colocaram em perigo a vida dos utentes internados na UCIM/UAVC através do abandono, no referido serviço, de utentes que deviam vigiar e assistir, criando ou potenciando um perigo para as suas vidas) e subjetivo (os Recorridos agiram com dolo, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua atuação colocaria em perigo ou potenciava um perigo para os utentes internados naquelas unidades) do crime de exposição ou abandono, previsto e punido pelo artigo 138.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal;
-nos termos e para os efeitos do artigo 67.º-A, do Código de Processo Penal, “vítima especialmente vulnerável” é aquela cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, pelo que, considera-se que atentas as características e a vulnerabilidade dos utentes contra os quais foram levadas a cabo as atuações dos Recorridos, os mesmos enquadram-se no conceito de “vítima especialmente vulnerável”;
-do referido, dúvidas não restam de que os Autores, aqui Recorridos, violaram um dever a que se encontravam obrigados, designadamente o dever de vigiar, cuidar e proteger os Utentes, sendo as suas atuações subsumíveis à prática do crime de exposição ou abandono para com pessoas especialmente vulneráveis, previsto e punido pelo artigo 138.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal;
-verificando-se o preenchimento do tipo de ilícito previsto e punido pelo artigo 138.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, praticado contra vítimas especialmente vulneráveis nos termos já aqui devidamente desenvolvidos, a atuação dos Recorridos enquadra-se numa das exceções à aplicação da Lei da Amnistia, designadamente a prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º, da Lei da Amnistia, pelo que a mesma nunca seria de aplicar aos autos disciplinares em presença;
-atento todo o exposto, razões não existem para que a instância seja declarada extinta, por impossibilidade superveniente da lide, uma vez que o objeto dos presentes autos se mantém, não tendo sido (nem podendo ser) amnistiado pela Entidade Demanda, ora Recorrente;
-ao julgar a instância extinta por impossibilidade superveniente da lide, a sentença recorrida fez uma incorreta interpretação e aplicação da Lei da Amnistia ao caso concreto, incorrendo em erro de direito;

Antes, porém, a Recorrente apelou ao erro de julgamento de facto.
Cremos que a Apelante carece de razão.
A questão que no fundo aqui se suscita é a de saber se é legalmente admissível nesta sede conhecer e decidir da aplicação da lei da amnistia e, na afirmativa, se estão verificados no caso os respetivos pressupostos.
Fazendo um breve enquadramento, é de referir que a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude - cfr. art. 1º.
Abrangendo nessa amnistia de infrações, além do mais, determinados ilícitos penais e algumas infrações disciplinares.
Na verdade, estabelece no artº 2º, que:
1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º
2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5º;
b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º
Estatuindo, por sua vez, este artº 6º, no tocante às infrações disciplinares, que: São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.
Estabelecendo ainda no artº 4º quais as infrações penais amnistiadas (cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa).
E estatuindo no artº 7º, sob a epígrafe de exceções, os crimes que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos nessa lei, designadamente, que:
1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
a) No âmbito dos crimes contra as pessoas, os condenados por:
i) Crimes de homicídio e infanticídio, previstos nos artigos 131.º a 133.º e 136.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro;
ii) Crimes de violência doméstica e de maus-tratos, previstos nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal;
iii) Crimes de ofensa à integridade física grave, de mutilação genital feminina, de tráfico de órgãos humanos e de ofensa à integridade física qualificada, previstos nos artigos 144.º, 144.º-A, 144.º-B e na alínea c) do n.º 1 do artigo 145.º do Código Penal;
iv) Crimes de coação, perseguição, casamento forçado, sequestro, escravidão, tráfico de pessoas, rapto e tomada de reféns, previstos nos artigos 154.º a 154.º-B e 158.º a 162.º do Código Penal;
v) Crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal; (...).

Estabelecendo ainda o legislador, apenas quanto às infrações penais previstas no artº. 4º, a possibilidade de o arguido recusar a aplicação da amnistia, dispondo, efetivamente, no artº. 11º, que:
1 - Independentemente da aplicação imediata da presente lei, os arguidos por infrações previstas no artigo 4.º podem requerer, no prazo de 10 dias a contar da sua entrada em vigor, que a amnistia não lhes seja aplicada, ficando sem efeito o despacho que a tenha decretado.
2 - A declaração do arguido prevista no número anterior é irretratável.
Quanto à aplicação dessas medidas (perdão de penas e amnistia de infrações), estatui o art. 14º, que:
Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.
Por sua vez, decorre dos artºs 127º, nº 1, e 128º, nº 2, do Código Penal (aplicáveis também, subsidiariamente, com as devidas adaptações, às infrações disciplinares), e do Título e Capítulo em que se encontram inseridos, que a amnistia constitui uma causa de extinção da responsabilidade criminal, extinguindo o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução da pena e os seus efeitos.
No caso concreto, estamos perante uma ação administrativa para impugnação do ato administrativo, praticado pelo Plenário do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, que indeferiu o recurso hierárquico interposto pelos Autores da deliberação do Conselho Jurisdicional, que, na sequência de processo disciplinar, lhes havia aplicado uma sanção disciplinar de advertência escrita, pela prática da infração disciplinar (leve), praticada nos dias 24 e 25 de agosto de 2016 consubstanciada no ato omissivo de não terem atuado de forma diligente, nem em concordância com os deveres prescritos nas alíneas g) e j), do n.º 1, do artigo 97.º e nas alíneas d) e e), do artigo 104.º, todas do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros.
Assim, atentos os aludidos efeitos da amnistia, impunha-se, nesta sede, conhecer e decidir sobre se a infração disciplinar por que os Autores foram sancionados no âmbito do processo disciplinar em que foi proferido o ato administrativo impugnado se encontra, ou não, abrangida pela amnistia concedida pela indicada Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto. Pois que, na afirmativa, tal amnistia extingue a respetiva responsabilidade disciplinar, tendo como efeito a extinção do procedimento disciplinar e, como tal o ato sancionatório impugnado (cujos efeitos condenatórios não se encontram, por isso, consolidados na ordem jurídica) perde o seu objeto. O que, por consequência, determina que a lide impugnatória fique despojada do seu próprio objeto, tornando absolutamente inútil o seu prosseguimento, sufragando-se o entendimento do Acórdão do STA de 16/11/2023, no processo nº 0262/12.0BELSB - que se pronunciou sobre a «questão» no âmbito da aplicação da mesma lei de amnistia - Lei nº38-A/2023, de 02/08 - e segundo o qual, «... sem prejuízo dos efeitos de facto que, entretanto, se tenham consumado, nomeadamente os relativos ao cumprimento da pena, é entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina que a amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, determina o esquecimento da infracção, extinguindo os respectivos efeitos com eficácia ex-tunc. Daqui decorre, necessariamente, que a amnistia faz desaparecer também - retroactivamente - o objecto da acção que visa a anulação ou declaração de nulidade do acto que aplicou a correspondente pena disciplinar.
Ora, se cessou a responsabilidade disciplinar do arguido, extinguindo-se os efeitos do acto que a efectivou,,,, não existem outros efeitos jurídicos a extinguir para além daqueles que são extintos pela própria amnistia [...]..
Refira-se que é para nós claro que a Entidade Administrativa Demandada nesta matéria não detém o exclusivo da aplicação da lei da amnistia.
Na verdade, e como decorre do próprio artº 14º, da Lei nº 38-A/2023, de 02/08, a aplicação da lei da amnistia pode/deve (também) ser efetuada nos processos judiciais, competindo, designadamente, ao juiz da instância do julgamento. Como, de resto, tem vindo a ser entendido pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito dos processos nºs 171/22.5BCLSB; 02460/19.7BELSB e 01618/19.3BELSB.
Acolhendo-se este entendimento, importa apreciar se estão verificados, no caso, os pressupostos para a aplicação da amnistia, nos termos do disposto nos artigos 2º, nº 2, alínea b), e 6º, da Lei nº 38-A/2023, de 02/08.
E, para nós, estão pois que, como decorre do acima referido, os factos que consubstanciam a infração disciplinar por que os arguidos foram sancionados foram praticados em datas anteriores a 19 de junho de 2023, tal como previsto no artº 2º, nº 2, alínea b), da Lei da Amnistia, sendo certo que, quanto a estas infrações disciplinares, e ao contrário do que sucede com os ilícitos penais abrangidos na previsão no nº 1 desse artº 2º, o legislador não estabeleceu, para a sua aplicação, no artº 2º, nº 2, alínea b), qualquer limite de idade do infrator.
Por sua vez, a sanção aplicável (e aplicada) a essa infração - leve - é apenas a de repreensão escrita (e, portanto, não superior que suspensão disciplinar, tal como estipula o artº 6º, da mesma Lei) - v.g. arts. 55º, 60º e 62º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros.
Ademais considera-se que não se poderá, fundadamente, considerar que a infração disciplinar por que os arguidos foram sancionados constituísse simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei - v. art. 6º da Lei nº 38-A/2023, de 02/08.
Desde logo, afigura-se-nos completamente destituída de fundamento a mera alegação (oito anos depois dos respetivos factos, ocorridos em 25/10/2013) da pretensa existência de crime(s) não amnistiado(s), sem que, simultaneamente, se alegue e demonstre (pois que tal não resulta minimamente dos factos provados, nem sequer do respetivo PA) que foi oportunamente promovida a respetiva ação penal pelo Ministério Público junto do Tribunal materialmente competente para deles conhecer (v.g. arts. 8º, 48º e 40º, do C.P.Penal) e, nesse caso, o seu eventual desfecho.
Como bem observa o Senhor Procurador Geral Adjunto, não se pode atender nesta sede a pretensos crimes cujo procedimento penal não tenha sido oportunamente desencadeado e cuja existência não foi assim - nem aparentemente o poderá vir a ser - pelo Tribunal que detém competência material para o efeito.
Note-se que não emerge do respetivo PA que a Entidade Demandada tivesse oportunamente efetuado qualquer comunicação ao Ministério Público para efeitos de promoção da ação penal, o que, obrigatoriamente, se lhe imporia ter feito fazer, caso considerasse que os factos objeto do processo disciplinar eram passíveis de ser considerados como infração penal, quer nos termos do disposto no art. 8º, da Lei nº 58/2008, de 09/09, quer nos termos do art. 179º, nº 4, da posterior Lei nº 35/2014, de 20/06, aplicável ex vi do art. 100º, do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, na redação então vigente, que lhe foi dada pela Lei nº 111/2009, de 16/09 (com correspondência no atual art. 75º).
Não decorrendo do PA, nem tendo a Entidade Demandada alegado e muito menos demonstrado que a existência desses crimes foi reconhecida pelo Tribunal materialmente competente para o efeito ou, pelo menos, que ainda poderá vir a sê-lo, por ter sido desencadeado em tempo oportuno o respetivo procedimento criminal, não se poder aqui atender à sua pretensa existência para efeitos de excluir a aplicação da Lei da Amnistia.
De todo o modo, dir-se-á que essa pretensa existência de crimes não amnistiados não resulta minimamente evidenciada - mas antes infirmada - dos factos provados (e do respetivo PA).
O que os autos evidenciam e foi dado como provado foi que os Autores aderiram à greve e na presença do não questionado, no tempo e na forma devida, aviso prévio seguiram o que nele figurava quanto à dotação e face ao que nele também foi proposto (“os grevistas acordarão entre si quem permanecerá no serviço para ocorrer a situações impreteríveis”), porquanto havia enfermeiros não aderentes detentores de formação profissional adequada para a prestação de cuidados de enfermagem e que o Centro Hospitalar ..., E.P.E., fixou, unilateral e autoritariamente, os meios humanos necessários para assegurar os serviços mínimos. Mais se evidencia da prova documental constante do PA que os Autores foram disciplinarmente perseguidos pelo Centro Hospitalar ..., E.P.E. e que no procedimento disciplinar movido ficou apurado que “da actuação dos Arguidos não resultou qualquer prejuízo para os utentes do Centro Hospitalar ..., E.P.E. (especificamente da UCIM/UAVC), não estando em causa a adequação do seu comportamento para o exercício das suas funções”.

É por isso infundado afirmar que os ora recorridos não diligenciaram no sentido de assegurar os serviços mínimos na Unidade de Cuidados Intermédios de Medicina e na Unidade de AVC do Centro Hospitalar ..., E.P.E. no âmbito da greve decretada para os dias 24/08/2016 e 25/08/2016, colocando assim em perigo os Utentes da Unidade e violando o dever de vigilância a que estão adstritos. Sendo certo que a Entidade Administrativa sancionou disciplinarmente os Recorridos por considerar, em suma, que os mesmos violaram, por mera negligência, deveres deontológicos inerentes à sua profissão de enfermeiro, concluindo no Relatório final com proposta de acusação - Processo Disciplinar nº ...17... que «Feita a demonstração dos factos apurados, resulta cabalmente a conduta negligente demonstrada pelos Enfermeiros ora Arguidos».
Temos assim que no processo disciplinar foi considerado que os arguidos atuaram a título de mera negligência (nos termos sobreditos), e sabido que os ilícitos penais só são puníveis quando os respetivos factos sejam praticados a título de dolo ou, nos casos especialmente previstos, com negligência (cfr. art. 13º, do Código Penal), ficaria, desde logo, afastada a verificação de qualquer crime doloso, designadamente, o referenciado crime de exposição ou abandono previsto e punível nos termos do disposto no artº 138º, do Cód. Penal, na medida em que, nesse tipo de ilícito não se encontra especialmente prevista a sua punibilidade a título de negligência.
Acresce que também não se corrobora o entendimento da Entidade Demandada quando vem agora defender que os Recorridos violaram um dever a que se encontravam obrigados, designadamente o dever de vigiar, cuidar e proteger os Utentes especialmente vulneráveis, sendo as suas atuações subsumíveis à prática do crime de exposição ou abandono para com pessoas especialmente vulneráveis, previsto e punido pelo artigo 138.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Com efeito, não tendo sido sequer alegado pela Entidade Demandada, nem resultando do PA, que tais factos tivessem sido oportunamente denunciados para averiguação de qualquer facto típico criminalmente punível, mostra-se destituído de fundamento vir agora invocar, sem nada de relevante que o sustente (e, de resto, em divergência, com a apreciação que fora feita no âmbito do próprio processo disciplinar, nos termos acima referenciados), que a conduta dos arguidos constituiria simultaneamente um crime não amnistiado de exposição ou abandono de doentes especialmente vulneráveis.
Afastado que está que a infração disciplinar em causa constituísse simultaneamente um qualquer ilícito penal não amnistiado, é óbvio que bem andou o Tribunal a quo ao considerar reunidos os pressupostos para que se pudesse declarar amnistiada a infração disciplinar pela qual os arguidos/Autores foram sancionados com a sanção disciplinar de advertência escrita no âmbito do processo disciplinar em que foi prolatado o ato impugnado, ao abrigo do disposto nos artigos 2º, nº 2, alínea b), 6º e 14º, da Lei da Amnistia.
E, face à amnistia da infração disciplinar, quer a deliberação que aplicou a respetiva sanção disciplinar, quer o ato impugnado (que, indeferindo o recurso hierárquico necessário, a manteve), perdem o seu objeto, determinando a impossibilidade superveniente da lide, com a consequente extinção da instância, nos termos do disposto no art. 277º, alínea e), do C.P.Civil,
Em suma:
Entende a doutrina e a jurisprudência, no que respeita à modificação da matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, que o Tribunal de recurso só deve intervir quando a convicção desse julgador não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se, assim, a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova, bem como à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto - cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19/10/2005 proferido no âmbito do proc. 0394/05.
Aí se refere, no que aqui releva, que “o art. 690º-A do CPC impõe ao recorrente o ónus de concretizar quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida.
Este artigo deve ser conjugado com o 655° do CPCivil que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Daí que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deva resultar claramente uma decisão diversa. É por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”. Esta exigência decorre da circunstância de o tribunal de recurso não ter acesso a todos os elementos que influenciaram a convicção do julgador, só captáveis através da oralidade e imediação e, muitas vezes, decisivos para a credibilidade dos testemunhos.
É pacífico o entendimento dos Tribunais da Relação, neste ponto. Só deve ser alterada a matéria de facto nos casos de manifesta e clamorosa desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando assim prevalência ao princípio da oralidade, da prova livre e da imediação - cfr. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II volume, 4ª edição, 2004, págs. 266 e 267, o Acórdão da Relação do Porto de 2003/01/09 e o Acórdão da Relação de Lisboa de 2001/03/27, em Coletânea de Jurisprudência, Ano XXVI-2001, Tomo II, págs. 86 a 88).
A este propósito e tal como sustentado pelo Professor Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha “(…) é entendimento pacífico que o tribunal de apelação, conhecendo de facto, pode extrair dos factos materiais provados as ilações que deles sejam decorrência lógica (…). Por analogia de situação, o tribunal de recurso pode igualmente sindicar as presunções judiciais tiradas pela primeira instância pelo que respeita a saber se tais ilações alteram ou não os factos provados e se são ou não consequência lógica dos factos apurados. (…) ” (In Comentário do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, 4.ª ed.).” (…) “Retomando o que supra fomos referindo sobre a amplitude dos poderes de cognição do tribunal de recurso sobre a matéria de facto temos que os mesmos não implicam um novo julgamento de facto, porquanto, por um lado, tal possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorretamente julgados e desde que cumpra os pressupostos fixados no artº 690º-A n.ºs 1 e 2 do CPC, e, por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.”
No mesmo sentido, os Acórdãos deste TCAN de 06/05/2010, proc. 00205/07.3BEPNF e de 22/05/2015, proc. 1625/07BEBRG: “Os poderes de modificabilidade da decisão de facto que o artigo 712º do CPC atribui ao tribunal superior envolvem apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e excecionais erros de julgamento e não uma reapreciação sistemática e global de toda a matéria de facto. Para que seja alterada a matéria de facto dada como assente é necessário que, de acordo com critérios de razoabilidade, apreciando a prova produzida, “salte à vista” do Tribunal de recurso um erro grosseiro da decisão recorrida, aparecendo a convicção formada em 1ª instância como manifestamente infundada”.
In casu, não se bulirá no probatório não só porque dos meios de prova indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto não resulta claramente uma decisão diversa, como e principalmente quanto à matéria de facto convocada pela Recorrente não resulta, clara e necessariamente, que se impunha julgamento diverso sobre a aplicação da lei da amnistia.
As normas do art.° 2°, n° 2, b) e do art.° 6° da Lei n° 38-A/2023, de 2 de agosto, amnistiam as infracções disciplinares praticadas até às 00:00 horas do dia 19 de junho de 2023 cuja sanção não seja superior a suspensão.
A amnistia incide tradicionalmente sobre condutas punidas pelo direito criminal e aí tem efeitos retroactivos, afectando não só a pena aplicada, mas o próprio acto passado, que é “esquecido”, considerando-se como não praticado (abolição retroactiva do crime), como se retira do Acórdão do Tribunal Constitucional, Pleno, n° 153/93 (in “Diário da República”, II Série, n° 69, de 23/Março/1993, a págs. 3077).
E como também se vê no mesmo Acórdão do Tribunal Constitucional, as amnistias têm-se estendido a outras condutas sancionadas por normas de direito público, entre as quais as previstas em normas de direito disciplinar das associações públicas (loc. cit., a págs. 3078).
A amnistia estatuída nas normas do art.° 2°, n° 2, b), e do art.° 6°, da Lei n° 38-A/2023, de 2 de agosto, estende-se a condutas sancionadas pelas normas disciplinares do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros: esta é uma associação pública profissional que faz parte da Estrutura da Administração Pública (art.° 267°, n° 1, da Constituição da Republica Portuguesa) sendo certo que o polimorfismo das estruturas organizatórias e a pluralidade das pessoas colectivas públicas são um instrumento para prosseguir as tarefas da administração pública em sentido objectivo, como função ou actividade administrativa.
Assim, no direito disciplinar das associações públicas também a amnistia tem efeitos retroactivos, afectando não só a sanção aplicada, mas o próprio acto passado, que é esquecido, considerando-se como não praticado (abolição retroactiva da infracção).
A qualificação de um ilícito como ilícito penal é da área da acção penal e no nosso ordenamento jurídico-constitucional o exercício da acção penal é função própria do Ministério Público: art.° 239°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa , sendo certo que só aos tribunais compete verificar a prática de crimes, exercendo a respectiva censura jurídico-penal, dentro do âmbito da respectiva competência funcional [art°s 110°, 209°, n° 1, 211°, n°s 1 e 2, e 212°, n°s 2 e 3, da CRP].
Por isso a Recorrente é absolutamente incompetente para, em processo disciplinar, qualificar os factos como infracção penal: os factos imputados aos arguidos em processo disciplinar só podem nele ser qualificados como infracção desta mesma natureza.
Assim, o afirmado pela Recorrente de que “(...) a inexistência de processo criminal e de condenação penal não obstam à integração dos factos objecto do processo disciplinar na exclusão do âmbito da amnistia ... não sendo necessário correr termos um processo-crime e ser proferida uma decisão judicial condenatória para definir se a conduta se trata de um crime não amnistiado” não tem consistência jurídica e, portanto, não tem a virtualidade de pôr em crise a sentença recorrida.
A amnistia “em sentido impróprio” é a que ocorre após a condenação.
Ora, a sanção disciplinar aplicada por associação pública profissional (no caso a Ordem dos Enfermeiros) não é a última palavra: é passível de submissão a juízo de censura contenciosa e a sua anulação jurisdicional tem eficácia ex tunc: tudo se passa como se o acto punitivo não tivesse sido praticado, o que determina a reconstituição da situação actual hipotética.
E, repete-se, no direito disciplinar das associações públicas profissionais a amnistia tem efeitos retroactivos, afectando não só a sanção aplicada, mas o próprio acto passado, que é esquecido, considerando-se como não praticado (abolição retroactiva da infracção), sendo certo que como o artigo 6° da Lei n° 38 - A/2023, de 2/8, não distingue entre amnistia própria e amnistia imprópria, o efeito útil da norma é que a amnistia aí prevista constitui uma providência que “apaga” a infracção disciplinar, sendo por isso apropriado falar-se aqui numa abolição retroactiva da infracção disciplinar, porquanto esta (a amnistia), opera ex tunc, incidindo não apenas sobre a própria sanção aplicada, como também sobre o facto típico disciplinar passado, que caí em “esquecimento”, tudo se passando como se não tivesse sido praticado e, consequentemente, eliminada do registo disciplinar do trabalhador.
Improcedem as Conclusões das alegações.
DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
Notifique e DN.
Porto, 13/9/2024
Fernanda Brandão
Paulo Ferreira de Magalhães
Rogério Martins que junta:
Voto de vencido.


Voto vencido o acórdão que fez vencimento, em síntese, pelas razões seguintes:

A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais. Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08).

Como sustentado no acórdão por mim relatado no dia de hoje, 13.09.2024, no processo 27/21.9 MDL.

Acresce que, com sustentado neste mesmo acórdão, o requisito da idade é um pressuposto essencial para a aplicação desta Lei da Amnistia de 2023, ao contrário do decidido na Primeira Instância.

Esta lei estabelece uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – artigo 1º da Lei 38-A/2023, de 02.08.

Neste contexto é que se compreende o requisito da idade, para as pessoas imputáveis em razão da idade, a partir dos 16 anos, mas com idade inferior a 30 anos à data da prática do facto.

Por isso carece de fundamento a distinção entre infracções disciplinares e infracções penais para afastar das primeiras o requisito da idade.

No caso de infracção disciplinar que constitui, em simultâneo, ilícitos criminais estão excluídos do seu âmbito, expressamente, ilícitos disciplinares que sejam também ilícitos criminais não amnistiados – artigo 6º. Ora os crimes praticados por pessoas com mais de 30 anos à data da prática dos factos não estão amnistiados.

Em concreto não ficou apurada a idade dos Autores.

Pelo que, logo por aqui, ainda que o Tribunal pudesse aplicar directamente a amnistia em abstracto não a poderia ter aplicado em concreto, por falta de demonstração de um requisito essencial.

Em todo o caso, também como defendido nos acórdãos hoje relatados, com o mesmo Colectivo, nos processos 468/20.9 BRG e 13/21.9 PNF:

“A amnistia não torna inexistente a decisão punitiva, isto é, o ato administrativo sancionatório, o mesmo valendo para a decisão condenatória transitada em julgado, bem como não tem efeitos anulatórios; a declaração de amnistia não é sinónimo de anulação do ato administrativo punitivo”.

No caso o acto sancionatório foi executado, mas não é indeferente que seja anulado ou não.

Sendo anulado, abre-se a porta para a reconstituição da situação que existira se o acto não tivesse sido praticado e, não sendo possível a reconstituição natural, terá lugar a inmnização em dinheiro.

Caso os Autores não pretendam a indemnização, a instância extingui-se-á não por força da Lei da Aministia, mas por falta de interesse em agir dos Autores.

Por outro lado, sendo anulado o acto impugnado, será eliminado o acto punitivo do registo disciplinar dos Autores; caso contrário, a aplicação da Lei da Aminista apenas terá por efeito o averbamento dessa aplicação. O que são realidades jurídicas – e práticas – distintas.

Concederia, portanto, provimento ao recurso e ordenaria a baixa dos autos ao Tribunal recorrido para conhecimento de mérito , se nada nada mais a tal obstar.

Rogério Martins