Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00794/10.5BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/03/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Tiago Miranda
Descritores:IVA, EXCESSO DE PRONÚNCIA NÃO ARGUIDO,
ERRO SOBRE A FUNDAMENTAÇÃO DO ACTO IMPUGNANDO,
INSPECÇÃO INTERNA VERSUS EXTERNA.
Sumário:I – Não tendo sido arguida a nulidade da sentença recorrida, por excesso de pronúncia, não pode o tribunal de apelação declarar a nulidade, mesmo que ocorra esse excesso, antes, se impugnada, tem de conhecer de meritis dessa pronúncia.
II – O Tribunal recorrido errou, porém, no julgamento de direito, quando apreciou a legalidade do acto impugnando em função de uma fundamentação que de todo não foi invocada para este, pela AT.
II - Num mundo cada vez mais telemático não se pode interpretar literalmente o artigo 13º do RCPIT, no sentido de a prática de ao menos um acto de inspecção nas instalações do contribuinte inspeccionado ou terceiro ser critério absoluto e formal para a qualificação, como interno ou externo, de um procedimento inspectivo. O critério a colher naquela norma haverá de ser material, no sentido de o procedimento se qualificar como externo sempre que o seu objecto for investigar factos e realidades não detectáveis pela consulta das declarações e registos contabilísticos à partida na posse da AT, como consequência ordinária do cumprimento das obrigações acessórias e ordinárias dos contribuintes, mas outrossim factos e dados apenas conhecidos em virtude de inspecção externa a um terceiro sujeito passivo e ou cognoscíveis mediante o acesso, por qualquer meio, seja o acesso informático, seja a remessa física para os serviços da inspecção, ao conteúdo de documentos e a outras meios de prova a que AT não teria acesso de outro modo, a não ser que se deslocasse à sede da Impugnante ou do terceiro para, in loco, procurar e observar esses documentos ou produzir esses outros meios de prova.
III – São anuláveis as liquidações adicionais de IVA emitidas com fundamento no relatório de uma Inspecção realmente externa, mas dita interna, na qual, de harmonia com aquela errada qualificação, não foram cumpridas as formalidades a que se referem, do RCPIT na redacção resultante da Lei nº 50/2005 de 30 de Agosto, os artigos 49º nº 1 (notificação prévia para procedimento de inspecção), 51º (entrega e assinatura da Ordem de Serviço) e 61ª (notificação da conclusão dos actos de inspecção).
Recorrente:X..., Lda
Recorrido 1:Autoridade Tributária
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Impugnação Judicial - Liquidação de tributos - 1ª espécie - Recursos jurisdicionais [Del. 2186/2015]
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:"X..., Lda". NIPC 5...919, com sede na ..., interpôs o presente recurso de apelação relativamente à sentença proferida em 14 de Dezembro de 2016, no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou improcedente a impugnação que interpusera relativamente às liquidações oficiosas adicionais de IVA do período 0512T, do ano de 2005 e dos respectivos juros compensatórios, no valor total de 4 939 €, procedendo correcções aritméticas à matéria colectável, efectuadas no seguimento de uma Inspecção dita Interna.

Convidado a sintetizar as oitenta e duas inicialmente apresentadas, a Recorrente acabou por rematar as suas alegações com as seguintes cinquenta conclusões:
«CONCLUSÕES
I) Quanto ao "A) DO OBTECTO DO RECURSO", este versa não só quanto à matéria de Direito, como também à matéria de Facto, tendo como fundamentos: - A nulidade decorrente de o Tribunal a quo ter deixado de se pronunciar sobre os indícios sérios de que as operações constantes das facturas não correspondem à realidade, questão que deveria apreciar - art 668.°, n.° 1, alínea d), do CPC; - A nulidade decorrente de o Tribunal a quo ter deixado de se pronunciar sobre a matéria de facto alegada na Impugnação quanto à materialidade das operações e ampla prova testemunhal sobre a mesma produzida, questão que deveria apreciar - art. 668.°, n.° 1, alínea d), do CPC; - A errada apreciação que foi feita da prova produzida; - A incorrecta interpretação e aplicação da Lei aos factos concretos.
II) Ocorre "C) DA NULIDADE DECORRENTE DE O TRIBUNAL A QUO TER DEIXADO DE SE PRONUNCIAR SOBRE OS INDÍCIOS SÉRIOS DE QUE AS OPERAÇÕES CONSTANTES DA FACTURAS NÃO CORRESPONDEM À REALIDADE", questão que deveria ter apreciado - art. 668.°, n.° 1, alínea d), do CPC.
III) Atendendo à fundamentação apresentada pela A.T., só pode concluir-se que os factos que sustentam a liquidação aqui impugnada, não são claros nem suficientes para legitimar as conclusões extraídas pela A.T., na medida em que as afirmações da A.T. não deixam perceber com suficiente clareza e certeza as razões porque se decidiu por uma liquidação adicional, pois, de todo o relatório de fundamentação não se extrai um único facto susceptível de demonstrar a efectiva inexistência das relações jurídicas de prestação de serviços entre a aqui impugnante e a "Y.....", como lhe era imposto à luz do art. 74° da LGT
IV) PELO QUE, em face dos argumentos esgrimidos, pugnamos estar perante um vício da fundamentação, susceptível de, à luz da al. c) do art. 99° do CPPT, afectar a validade intrínseca do acto tributário stricto sensu, em que se traduz a liquidação adicional, que em última análise, conduzirá anulação do acto por vício de forma.
V) Acresce que a Sentença a quo (SIC) padece de Nulidade decorrente de o Tribunal a quo ter deixado de se pronunciar sobre os indícios sérios de que as operações constantes das facturas não correspondem à realidade, questão que deveria ter apreciado (art. 668.°, n.° 1, alínea d), do CPC), o que deverá ser declarado por Vªs Exªs.
VI) Passando à "D) DA NULIDADE DECORRENTE DE O TRIBUNAL A QUO TER DEIXADO DE SE PRONUNCIAR SOBRE A MATÉRIA DE FACTO ALEGADA NA IMPUGNAÇÃO", foi propositada opção do julgador não julgar a Impugnação quanto à materialidade das operações e ampla prova testemunhal sobre a mesma produzida, questão que deveria ter apreciado - art. 668.°, n.° 1, alínea d), do CPC.
VII) Assim, a Sentença não cumpriu o dever de se pronunciar sobre os factos alegados pela parte que interessam para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito que deva considerar-se controvertida - artigos 508.°-A, n.° 1, alínea e 511°.° e 659.° do CPC, pelo que padece de Nulidade decorrente de o Tribunal a quo ter deixado de se pronunciar sobre a matéria de facto alegada na Impugnação quanto à materialidade das operações e ampla prova testemunhal sobre a mesma produzida, questão que deveria ter apreciado (art. 668.°, n.° 1, alínea d), do CPC), o que deverão Vªs Exas. declarar.
VIII) Passando à "E) DA ILEGALIDADE DO PROCEDIMENTO INSPECTIVO POR ULTRAPASSAGEM DO PRAZO", o Tribunal a quo apreciou a questão por nós alegada da ultrapassagem do prazo do procedimento inspectivo, por violação do disposto no artigo 36° do RCPIT", na redacção anterior à Lei 50/2005 de 30 de Agosto, todavia julgando-a improcedente.
IX) Assertivamente a Sentença reconhece que não ocorreu prorrogação do procedimento inspectivo, pelo que importa apenas apurar se o prazo de seis meses foi ultrapassado, todavia, entende que se trata de procedimento interno de inspecção, pelo que não se impunha o cumprimento dos actos procedimentais.
X) Mais se aduz que o denominado "procedimento interno" de inspecção à Impugnante começou com um procedimento externo à sociedade "Y....., LDA", sendo o segundo uma consequência do primeiro e a ele estando intrinsecamente ligado, não podendo ser autonomizados pois, inclusivamente, para as conclusões a que chegou a AT no relatório inspectivo à aqui Impugnante, foram altamente ponderados e sopesados elementos probatórios (documentos, depoimentos, etc.) que foram conhecidos e coligidos pela AT através da acção inspectiva externa à sociedade "Y....., LDA", procedimento do qual, portanto, a inspecção ("interna") à aqui Impugnante não pode dissociar-se, sendo um prolongar do primeiro e não dois procedimento autónomos, já que as deslocações físicas dos srs. Inspectores efectuadas no primeiro serviram para o segundo.
XI) Afigura-se-nos que, assim procedendo, nenhuma diferença existe entre tal "procedimento interno" e o "procedimento externo", pois o sujeito passivo inspeccionado não controla, em nenhum deles, o fluxo informacional que é recolhido pela AT; a única diferença é mesmo a deslocação física dos srs. Inspectores das instalações da AT às instalações da aqui Impugnante, a que se pouparam unicamente pelos frutos que a deslocação física à "Y....., LDA" produziu, pela circunstância de os notificados lhes remeterem a demais informação de que necessitavam e de serem os notificados a deslocar-se, facto que nos parece não assumir relevo, pois a tónica será o grau da ingerência da AT na esfera dos contribuintes através da busca externa de elementos e não propriamente as deslocações físicas dos srs. Inspectores.
XII) A dita inspecção «interna» não resultou de uma mera inspecção de análise sobre a correcção formal dos documentos de que a AT dispunha, designadamente pelo cumprimento das obrigações declarativas do contribuinte, e sua coerência com as declarações apresentadas, decorrendo do conteúdo do relatório e dos fundamentos que serviram de base às correcções efectuadas que o procedimento não visou apenas a recolha de informação, antes se podendo afirmar que foi muito mais do que isso, pois foi nessa informação que se fundamentou toda a acção inspectiva, estamos perante uma inspecção materialmente externa. Ou seja, o que releva é a materialidade da inspecção, conforme o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 09-12-2008 (Processo 02504/08), transcrito na Alegação 108° que se dá por reproduzida:
"(...) estamos perante uma inspecção materialmente externa. A dita inspecção «interna» não resultou de uma mera inspecção de análise sobre a correcção formal dos documentos entregues e sua coerência com as declarações apresentadas.
III) - É que, havendo uma sequência de inspecção iniciada com o procedimento de 18/8/2005, que se orientou para a identificação de eventuais infracções e análise de contabilidade da impugnante de modo a que pudessem resultar correcções à matéria tributável, impõe-se concluir que o procedimento de 18 de Agosto de 2005 não foi apenas de recolha de informação, antes tendo dado início à inspecção realizada ao sujeito passivo, a qual revestiu carácter externo.
XIII) Por isso, a conclusão só poderá ser a mesma que a do aresto supra, mutatis mutandis, i.e., que, havendo uma sequência de inspecção iniciada com o procedimento que teve início com a intimação administrativa através do Ofício da AT que originou o envio, pela Impugnante, de todos os elementos e documentos que a AT utilizou e necessitou para a sua acção inspectiva e respectivo Relatório final, intimação já orientada para a identificação de eventuais infracções e análise de contabilidade da impugnante de modo a que pudessem resultar correcções à matéria tributável, impõe-se concluir que o procedimento materialmente despoletado através do Ofício da AT não foi apenas de recolha de informação, antes tendo dado início à inspecção realizada ao sujeito passivo.
XIV) Assim, tratando-se de procedimento materialmente externo, ao mesmo dever-se-ão aplicar as obrigações (e não apenas os direitos) que o RCPIT prescreve, sendo que no Artigo 49.° RCPIT estatui a obrigatoriedade de uma "Notificação prévia para procedimento de inspecção", conforme o evidencia a sua epígrafe, mas a Impugnante, não obstante ter sido objecto de acção inspectiva, jamais recebeu a dita "carta-aviso" que marca o início da acção inspectiva e define a sua extensão.
XV) Não é verdade que a acção inspectiva decorreu no período de "16/05/2007" a "25/10/2009", conforme consta do ponto "A" de fls. 2 de Doc. n.° 3 da P.I. porquanto não pode decorrer um procedimento que nunca tenha começado, sendo certo que não houve qualquer carta-aviso e, concretamente quanto à Impugnante (já se aceitando que o mesmo não se diga a propósito da "Y....., LDA"), não se verifica qualquer das situações de dispensa!
XVI) Sem Embargo, a Impugnante nunca foi notificada da Ordem de Serviço Interno n.° OI...2235 de 16/05/2007, alegada no ponto "A" de fls. 6 de Doc. n.° 3 da P.I., quando impõe o Artigo 51.° RCPIT que "2 - Da ordem de serviço ou do despacho que determinou o procedimento de inspecção será, no início deste, entregue uma cópia ao sujeito passivo ou obrigado tributário, excepto nas situações previstas no n.° 6 do artigo 46.°.", o que não é o caso.
XVII) Pelo que, houve dupla preterição de formalidades essenciais, porquanto não cumprida a "Notificação prévia para procedimento de inspecção" prevista no art. 49° RCPIT, ou, ainda que se entendesse pela sua não obrigatoriedade, por não cumprimento do dever de notificação das Ordens de Serviço da AF, previsto no art. 51° RCPIT, o que inquina a eficácia da decisão de instauração do procedimento inspectivo, por força dos artigos 77° n.° 6 da LGT e 36.° n.° 1 do CPPT e o inerente vício de violação de lei daí derivado.
XVIII) Sem prescindir, o Relatório da AT baliza temporalmente a acção inspectiva no período de "16/05/2007" a "25/10/2009", o que não se pode aceitar, porquanto prevê o Artigo 51.° RCPIT o critério de fixação da Data do início do procedimento de inspecção, impondo que "2 - Da ordem de serviço ou do despacho que determinou o procedimento de inspecção será, no início deste, entregue uma cópia ao sujeito passivo ou obrigado tributário, excepto nas situações previstas no n.° 6 do artigo 46.°.", o que não é o caso, acrescentando o n.° 2 que "O sujeito passivo ou obrigado tributário ou o seu representante deve assinar a ordem de serviço indicando a data da notificação, a qual para todos os efeitos, determina o início do procedimento externo de inspecção." (sublinhados nossos).
XIX) Já se viu sustentou que não existiu tal notificação a fixar o início da acção inspectiva, todavia, por hipótese teórica, admitamos que a inspecção da AT teve início em "16/05/2007"- vide fls. 2 de Doc. n.° 3 da P.I. -, e, por outro lado, dispõe o Artigo 61.° RCPIT que "2 - Os actos de inspecção consideram-se concluídos na data de notificação da nota de diligência emitida pelo funcionário incumbido do procedimento. 2 - Nos casos referidos nas alíneas a) e c) do n.° 4 do artigo 46°, a nota de diligência indicará obrigatoriamente as tarefas realizadas.".
XX) A Impugnante não recepcionou qualquer notificação da nota de diligência de conclusão do procedimento inspectivo, pelo que, a ter tido início a acção inspectiva (o que somente por hipótese de patrocínio se concebe), a mesma nunca teria terminado antes da notificação ao contribuinte do projecto do relatório inspectivo (Art. 62° RCPIT), já que nenhuma outra notificação a Impugnante recepcionou da AT, sendo que a notificação do projecto ocorreu posteriormente a 30/10/2009 (cf. Doc. n.º 4 da P.I.), motivo pelo qual a conclusão da acção inspectiva nunca poderá ser fixada em "25/10/2009", conforme alega a AT - cfr. fls. 2 de Doc. n.° 3 da P.I..
XXI) Consequentemente, caso se considere que a acção inspectiva efectivamente começou, teria tido início em "16/05/2007" (Doc. n.º 3 da P.I.) e fim após 30/10/2009 (Doc. n.º 4 da P.I.), e sendo que o procedimento de inspecção é contínuo e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar do seu início (art.º 36.° n.º 2 do RCPIT), o que não sucedeu, pelo que todo o procedimento inspectivo deve ser anulado e declarados nulos os actos de liquidação ora impugnados, nos termos da al. i) do n.º 2 do art. 133°, al. 1) do Código de Procedimento Administrativo (CPA).
XXII) Tendo caducado o prazo para a conclusão da inspecção, todos os actos resultantes da referida acção inspectiva são ilegais, por vício de viciação de lei, motivo pelo qual, estando a actuação daquela sujeita ao princípio da legalidade estrita, não podem prevalecer as liquidações adicionais de IVA e de juros em crise nesta impugnação, isto porque o procedimento inspectivo funciona como acto instrumental/preparatório dos actos de liquidação.
XXIII) Estatui o art. 66° LGT a propósito dos actos interlocutórios que, no âmbito do procedimento, "(...) os interessados podem recorrer ou impugnar a decisão final com fundamento em qualquer ilegalidade.", prevendo o art. 54° CPPT a sua impugnabilidade com a decisão final, pelo que, consubstanciando o procedimento inspectivo um acto instrumental/preparatório dos actos de liquidação ora impugnados, falecendo o primeiro, falecerão necessariamente os actos subsequentes, na senda da teoria do "fruto da árvore envenenada".
XXIV) Ainda que assim não se entenda, sendo ilegal o procedimento inspectivo, as liquidações de IVA e de juros em crise nesta impugnação inexoravelmente padecem de falta de fundamentação, porquanto, no que concerne à fundamentação de tais liquidações adicionais, as mesmas remetem tout court para o relatório inspectivo, o qual é ilegal uma vez que é o culminar de uma inspecção ilegalmente efectuada.
XXV) Termos em que, se verifica um vício na fundamentação dos actos tributários em crise que, igualmente, os afecta negativa e irremediavelmente, conduzindo também à sua anulação nos termos da alínea c) do artigo 99° CPPT, aplicável também por remissão do número 1 do artigo 70° do mesmo Código; veja-se o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 07.12.2011 (processo 419/11), citado na Alegação 106° que se dá por reproduzida.
XXVI) A consequência de o prazo de inspecção ter sido ultrapassado é a pugnada pelo supracitado Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 09-12-2008 (Processo 02504/08): a existência de um vício gerador de anulabilidade das liquidações baseadas em tal procedimento inspectivo (Art° 135 do CP A), o que deverá ser declarado.
XXVII) Ainda que assim não se entenda, sendo ilegal o procedimento inspectivo, as liquidações de IVA e de juros em crise nesta impugnação inexoravelmente padecem de falta de fundamentação, porquanto, no que concerne à fundamentação de tais liquidações adicionais, as mesmas remetem tout court para o relatório inspectivo, o qual é ilegal uma vez que é o culminar de uma inspecção ilegalmente efectuada.
XXVIII) Termos em que, se verifica um vício na fundamentação dos actos tributários em crise que, igualmente, os afecta negativa e irremediavelmente, conduzindo também à sua anulação nos termos da alínea c) do artigo 99° CPPT, aplicável também por remissão do número 1 do artigo 70° do mesmo Código.
XXIX) Chegados à questão central "F) DO VÍCIO DA SENTENÇA PELO NÃO RECONHECIMENTO DO ELEMENTOS ESSENCIAIS DAS FACTURAS CONSTANTES NO N.° 5 DO ARTIGO 35.° DO CIVA", o Mmº Juiz que prolatou a Sentença, para além de não ter presidido a audiência de julgamento/inquirição de testemunhas, considerou que a matéria fáctica alegada na Impugnação e ampla prova testemunhal produzida nem de apreciar seriam, porquanto as facturas desconsideradas pela Administração Fiscal não confeririam o direito à dedução do respectivo IVA liquidado de harmonia com o artigo 19°, n° 2, do CIVA porquanto não obedeceriam nem à letra nem ao espírito do artigo 35° do CIVA.
XXX) À luz do Direito da União Europeia, e conforme se sabe, o IVA é um imposto de matriz comunitária, o sistema comum do IVA garante, por conseguinte, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as actividade económicas, quaisquer que sejam os fins ou resultados dessas actividades, na condição de as referidas actividades estarem, elas próprias, sujeitas ao IVA, conforme se referiu no Acórdão de 14 de Fevereiro de 1985, Rompleman, 268/83, Recueil, p. 655. n.º 19. No mesmo sentido, Acórdão de 15 de Janeiro de 1998, Ghent Coai Terminal, C - 37/95, Colect., p. 1-1, n.º 15, e Gabalfrisa.
XXXI) As condições para o exercício do direito à dedução estão referidas no art. 18.° n.º 1 a) da Directiva, referindo que, para a dedução ocorrer, o sujeito passivo deve possuir uma factura emitida nos termos do disposto no n.° 3 do art. 22.°, sendo que o art. 18.° n.º 1 d), refere que o sujeito passivo deverá cumprir as formalidades estabelecidas por cada Estado-Membro, porém, conforme assertivamente referiu o Tribunal de Justiça das Comunidades, em 1 de Abril de 2004, no Acórdão Bockemiihl, no Processo C-90/02 (melhor citado nas Alegações 140° a 142°, que se dão por reproduzidas), em que o Tribunal refere expressamente, que, no que concerne, portanto, ao art. 18.° n.º 1, alínea d), da Sexta directiva, a imposição e o alcance das formalidades a cumprir a fim de poder exercer o direito à dedução não devem ultrapassar o estritamente necessário para controlar a aplicação correcta do procedimento de autoliquidação em causa. Uma vez que a administração fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo é, enquanto destinatário da prestação em causa, devedor do IVA, não pode impor, no que se refere ao direito do referido sujeito passivo à dedução do IVA, condições adicionais que podem ter como efeito a impossibilidade absoluta do exercício desse direito.
XXXII) Esta é, portanto, uma temática em constante evolução, à qual a jurisprudência nacional não pode ficar alheia da (recente mas já impressionante) jurisprudência do TJUE e continuar a fundamentar-se em si própria, designadamente num acórdão com mais de 13 anos como o Ac. TCA Sul de 19/05/05, que vai fundamentando os seguintes.
XXXIII) Na matéria de facto provada resulta claro que as facturas emitidas pelas "Y....., LDA", que são apenas duas aqui em causa, sempre descriminaram os serviços prestados de "trolha", donde resulta que as facturas eram susceptíveis do exercício pela Impugnante do direito à dedução do IVA porquanto contêm todos os elementos expostos no art. 36.° n.° 5 do CIVA, nomeadamente os nomes, as firmas (alínea a)), os serviços prestados (alínea b)), o preço líquido de imposto (alínea c)) e o montante de imposto devido (d)).
XXXIV) Veja-se o referido por F. PINTO FERNANDES e J. CARDOSO DOS SANTOS (da AT) quanto às exigências formais, salientando que somente deverá existir uma "Discriminação dos bens transmitidos ou serviços prestados, indicando-se os elementos necessários para a determinação da taxa ou taxa aplicáveis" (sic); foi este o espírito do legislador português, ao transpor a Directiva comunitária do IVA, sendo que as interpretações que ulteriormente são feitas afastam-se do espírito do código em prol dos interesses da Administração Fiscal e para sacrifício dos contribuintes.
XXXV) A utilização do termo trabalhos de trolha está conforme o preceituado no art. 4.° do CIVA: "Quanto à definição de prestação de serviços, trata-se de um conceito residual e bastante amplo, pois são consideradas como tal, todas as operações que não constituam nem transmissões de bens nem aquisições intracomunitárias" .
XXXVI) F. RNTO FERNANDES e J. CARDOSO DOS SANTOS dizem-nos que, em certas circunstâncias, como a do caso sub iudice, os prestadores de serviços poderão emitir facturas onde se indique "apenas o preço com a inclusão do imposto”, (idem). “A expressão «denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável» constante da alínea b) do n.° 5 do art. 35.° do Código do IVA tem em vista a possibilidade do cliente e da Administração controlarem se a taxa incidente s/o valor tributável é a correcta" - (Despacho de 29-05-1985, Proc. 30, E. N. 1137/85, citado em ibidem).
XXXVII) Quanto aos requisitos das facturas, entendeu o Tribunal a quo que as facturas não cumpriam os requisitos pelo que se encontra plasmado no 1º parágrafo da pág. 17 da Sentença, mas neste quid, das duas, uma: ou o intérprete da lei é moralista, ou é justo e equitativo. S.m.o., ser-se-á moralista - como o foi o Tribunal a quo - se interpretarmos a letra da lei no sentido de a exigência nas facturas ser a mesma para a venda de bens e para a prestação de serviços.
XXXVIII) Aliás, se o Estado quer ser moralista, analisemos um recibo verde (i.e., documento equivalente à factura e que, portanto, tem que ter os mesmos requisitos) emitido a favor do Estado - INSTITUTO DE GESTÃO FINANCEIRA E DE INFRA-ESTRUTURAS DA JUSTIÇA, I.P. - Doc. n.º 1 -, do qual, constando do descritivo apenas "Advocacia" quanto à natureza dos serviços prestados, querer-se-á dizer que, à luz da lei fiscal, este documento não cumpre as exigências, e que o INSTITUTO DE GESTÃO FINANCEIRA E DE INFRA- ESTRUTURAS DA JUSTIÇA, I.P. não poderá deduzir o IVA aí contido? É evidente que sim, porquanto, embora do recibo não conste, o mesmo está suportado numa nota de processamento do IGFIJ, mas a verdade é que o recibo não indica quantidades, local/processo em que o serviço foi prestado, n.° de horas, ponto da tabela legal em que se apoia, etc.
XXXIX) A interpretação da letra da lei no que se refere aos requisitos das facturas que a Sentença pretende exigir incidirá essencialmente sobre a venda de bens, pois as contabilidades das empresas/comerciantes demandam que o descritivo e as quantidades sejam discriminadas nas facturas porquanto serão estes os documentos a utilizar para dar baixa no stock da empresa vendedora e entrada no stock da empresa compradora dos bens transaccionados; já exigência da mesma natureza não deverá ser feita com a mesma acuidade quanto aos serviços transaccionados, per se imateriais.
XL) A Sentença decidiu todo o processo de Impugnação com esse argumento que, s.m.o., trata-se de um argumento falacioso, uma vez que a ampla prova testemunhal produzida corroborou a nossa Impugnação no sentido de explicar que a prestação de serviços pela "Y....., LDA" era justamente a mencionada nas Facturas, ou seja, de construção civil geral, vulgarmente designada de "trabalhos de trolha", e não de serviços de Especialidades, estes, sim, que somente incidiriam sobre uma parte concreta da obra.
XLI) Os serviços prestados pela "Y....., LDA" eram, portanto, de mero reforço da (reduzida) equipa da Impugnante (sendo um deles o sócio-gerente), consoante os "picos de trabalho", e estavam todos sob a direcção do legal representante da Impugnante, Eng. AA, e tal reforço pela "Y....., LDA" não era uniforme, nem quanto ao número de homens presentes em cada dia, nem quanto às horas que cada homem trabalhava em cada dia - por isso se elaboraram Mapas de Pessoal da "Y....., LDA" em obra (juntos aos autos), esses sim, contendo o n.° de horas e de pessoas em cada obra.
XLII) Seria impossível fazer constar das Facturas todos os elementos constantes desses Mapas de Pessoal, pois tal significaria mais do que uma factura diária, todos os dias de meses e meses de obras, e exigir-se que as facturas assim o tivessem sido emitidas - e lembre-se que decorria o ano de 2005, em que não se falava como hoje das exigências formais fiscais - , por parte de pequenas empresas de construção civil, será coarctar o direito à dedução que o supracitado acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias expressamente censura, quando refere que no que concerne, portanto, ao art. 18.° n.° 1, alínea d), da Sexta directiva, a imposição e o alcance das formalidades a cumprir a fim de poder exercer o direito à dedução não devem ultrapassar o estritamente necessário para controlar a aplicação conecta do procedimento de autoliquidação em causa.
XLIII) Assim, a censura do TJUE é a mesma que sobre a Sentença a quo fazemos recair, ou seja, Uma vez que a administração fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo é, enquanto destinatário da prestação em causa, devedor do IVA, não pode impor, no que se refere ao direito do referido sujeito passivo à dedução do IVA, condições adicionais que podem ter como efeito a impossibilidade absoluta do exercício desse direito.
XLIV) O ROC contratado pela Impugnante para auditar esta questão concluiu pela conformidade legal da Descrição das facturas emitidas pela empresa "Y....., LDA" - ponto 5. do Relatório ROC (Doc. n.° 6 da P.I.).
XLV) Após análise de auditoria à Impugnante, conclui o ROC contratado pela Impugnante para auditar que "Em relação à empresa Tato Teixeira & Santos, Lda é de destacar a existência de um "dossier" extra-contabilístico por obra que contém vários elementos como sejam: orçamentos, autos de medição, folhas de obra e mapas de controlo da presença dos diversos trabalhadores das empresas subcontratadas afectos às obras desta empresa." "Estes mapas expressam o número de pessoas ao serviço, o número de horas trabalhadas por dia e a duração dos trabalhos, permitem também o controlo das facturas emitidas pelos fornecedores bem como os valores a imputar aos clientes desta empresa."
XLVI) "Estes elementos constituem um mecanismo de controlo interno e permitem confirmar a necessidade de recorrer a terceiros e demonstrar que o serviço foi efectivamente prestado.", tendo verificado in loco o ROC que "No caso das obras em que houve intervenção da empresa "Y....., LDA", todo este "dossier" se encontra completo, sendo constituído por Orçamentos (Anexo 4) para a obra do quartel da GNR de ... e mapas de controlo de presença (Anexo 5) para a moradia na ....." - Doc. n.° 6 da P.I..
XL VII) Cumpre dizer que é a própria AT que cai numa contraditio in terminis pois se, por um lado, concluiu, nas acções inspectivas instauradas aos clientes da "Y....., LDA", que tal empresa não existe e que não praticou as operações que titularam as facturas que tais clientes dispõem, por outro lado, valida tais facturas por ela emitidas, concluindo que "a empresa deveria ter procedido ao pagamento do imposto mencionado naquelas facturas, em cumprimento do disposto no art° 26° do mesmo diploma legal.", o CIVA - cfr. fls. 12 do Relatório da "Y....., LDA".
XLVIII) Ou seja, com o ímpeto de arrecadar receita fiscal à viva força, seja de quem for, a AT começou por tentar cobrar o IVA respeitante a tais facturas - designadamente as emitidas à Impugnante e por ela pagas - à "Y....., LDA"; pese embora a AT não tenha remetido aos autos as liquidações propriamente ditas, remeteu duas notificações enviadas para tal empresa, respectivamente, nas pessoas de BB e CC, ambas em 2007/05/15, comunicando que "A breve prazo, os serviços da DGCI procederão à notificação da liquidação respectiva".
XLIX) Ora, como tais notificações e as respectivas liquidações não obtiveram o resultado pecuniário pretendido pela AT eis que tentar cobrar esse IVA também dos clientes da "Y....., LDA", correndo o risco, nomeadamente, de a AT receber duas vezes o mesmo imposto!
L) Finalmente, a Recorrente requer, nesta fase, INCIDENTE DE REEENVIO, A TÍTULO PRETUDICIAL, PARA O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA, sendo a Questão a Reenviar a de se saber se, à luz da Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977 e do Acórdão Bockemuhl do Tribunal de Justiça das Comunidades de 1 de Abril de 2004 (Processo C-90/02) , se se tratam de facturas emitidas nos termos do disposto no n.º 3 do art. 22.° da Sexta Directiva as facturas emitidas por uma empresa de construção civil, nas quais consta a firma/designação mercantil como dedicada à actividade de construção civil, a titular serviços gerais de construção civil (e não serviços de Especialidades), vulgarmente designados de "trolha", nas quais surge descriminada a natureza dos serviços prestados e o local da obra do beneficiário das facturas, designadamente "trabalhos de trolha executados em moradia na Rua ..., na ...." e "execução de trabalhos de trolha na vossa obra do quartel da GNR de ...", ou seja, contendo tais facturas os seguintes elementos, nomeadamente os nomes, as firmas, os serviços prestados, o preço líquido de imposto e o montante de imposto devido, somente não contendo o tempo da sua realização e o número de pessoas necessárias para o realizar (cf. fls. 13 da Sentença), e, consequentemente, se tais facturas são susceptíveis do exercício do direito à dedução do IVA respeitante à prestação de serviços nelas tituladas, na certeza de que a definição de prestação de serviços se trata de um conceito residual e bastante amplo, pois são consideradas como tal todas as operações que não constituam nem transmissões de bens nem aquisições intracomunitárias , direito à dedução que é conforme o Direito Europeu atendendo ao nível de organização das microempresas, que frequentemente revelam carências na área administrativa, desde que exista um "dossier" extra-contabilístico por obra que contenha os elementos necessários à Administração Fiscal para aferir da materialidade das operações, como sejam orçamentos, autos de medição, folhas de obra e mapas de controlo da presença dos diversos trabalhadores da empresa emitente das facturas afectos às obras da empresa beneficiária (que expressam o número de pessoas ao serviço, o número de horas trabalhadas por dia e a duração dos trabalhos), conjugados com prova testemunhal, inclusivamente em sede judicial.
Nestes termos e nos mais de Direito, cujo douto suprimento se requer:
I) Deve ser ordenado o reenvio, a título prejudicial, para o Tribunal de Justiça da União Europeia, que deverá responder à questão enunciada supra referente aos requisitos das facturas para exercer o direito à dedução do IVA
II) Deve a Sentença a quo ser revogada e, consequentemente, ser substituída por outra que julgue a Impugnação provada e procedente e, consequentemente:
1 - considere que as facturas desconsideradas cumprem os requisitos previstos no art. 35° do CIVA para exercício do direito à dedução do IVA sub judice;
2 - aprecie a matéria de facto alegada na Impugnação quanto à materialidade das operações vertidas nessas facturas e a julgue provada;
3 - anule os actos de liquidação adicional de IVA e de juros compensatórios em apreço; fazendo-se, assim, a acostumada
JUSTIÇA»

Notificada, a Fazenda Pública não respondeu à alegação.

Acerca das nulidades invocadas, a Mª Juiz a qua proferiu, para cumprir com o artigo 617º nº 1 do CPC, o seguinte despacho:
«Proferida sentença nos autos em 14.12.2016 foi a Impugnação julgada improcedente, mantendo-se as liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado e de juros compensatórios, nos precisos termos em que foram emitidas pelo Serviço de Finanças – cf. sentença de fls. 307 e seguintes dos autos, para a qua se remete e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
Vem a Impugnante, "X..., Lda"., recorrer da mesma alegando nulidade:
 Decorrente do Tribunal a quo ter deixado de se pronunciar sobre os indícios sérios de que as operações constantes das facturas não correspondem à realidade – questão que entende devia ter sido objecto de apreciação pela sentença agora recorrida;
 Decorrente de o tribunal a quo ter deixado de se pronunciar sobre a matéria de facto alegada na impugnação – entende que o Tribunal não cumpriu o dever de se pronunciar sobre os factos por si alegados que interessam para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito que deva considerar-se controvertida.
Suscita ainda a questão do aproveitamento de prova, referindo que a Juiz que proferiu a sentença não foi a mesma que presidiu à produção de prova.
Uma vez que nas conclusões das alegações vem arguida a nulidade da sentença recorrida, decorrente da violação dos princípios constitucionais ali mencionados, bem como a omissão de pronúncia sobre a alegada prescrição do tributo, cumpre-nos, nos termos do disposto no art. 617º n.º 1 do Código de Processo Civil, lavrar despacho de sustentação ou, suprindo a nulidade reformar a sentença.
Antes de mais, analisemos a questão do aproveitamento de prova, ao qual está subjacente o facto de a sentença ter sido proferida por outra Juiz, que não aquela que presidiu à produção de prova.
Num primeiro momento, diga-se que, o aproveitamento de prova, determinado no âmbito da possibilidade conferida pelo art. 421º do Código de Processo Civil, ocorreu com base no requerimento do próprio Impugnante – veja-se fls. 272 dos autos, numeração referente ao processo físico.
Para além disto, apreciemos a eventual nulidade decorrente do conhecimento da causa ser da autoria de outro Juiz que não quem presidiu à inquirição das testemunhas
Sobre esta questão já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, em Acórdão de 12.12.2012, processo 01152/11, do qual foi relator Ascensão Lopes, disponível em www.dgsi.pt, para cujo sumário se remete e com o seguinte teor:
I – O princípio da plenitude da assistência dos juízes, estabelecido no artº 654.º do Código de Processo Civil, só tem aplicabilidade para a decisão sobre a matéria de facto.
II – Em sede de contencioso tributário/processo de impugnação, o julgamento da matéria de facto e o julgamento de direito estão cometidos ao juiz que profere a sentença, não existindo a dicotomia que se verifica em processo civil, entre a fase de audiência de julgamento, onde são produzidas as provas para a determinação dos factos e a da prolação da decisão, onde é feito o enquadramento jurídico dos factos determinados ao caso e afirmada a consequente decisão.
III – Embora o princípio da plenitude da assistência dos juízes seja um corolário dos princípios da oralidade e da imediação, na apreciação da prova, sendo preferível que ocorra contacto directo, imediato, entre o juiz e a testemunha, tal princípio não é absoluto.
IV – Ainda assim, o princípio da imediação sofria limitações, pois em tempos não muito distantes, mas em que não existia a nova tecnologia da videoconferência, sempre se utilizou a inquirição por carta precatória concretizada em meios escritos ou áudio que não proporcionavam a imediação na sua plenitude do juiz julgador com a testemunha mas valorizados e aproveitados na busca da verdade material influenciando a fixação do probatório e a realização da justiça.
V – Tais limitações continuam a justificar-se sobretudo quando se tem de ponderar, também, os inconvenientes de um “desaforamento” generalizado de processos ou a sua remessa para prolação de sentença a Magistrados entretanto destacados para equipas extraordinárias de recuperação de processos como as criadas pela Lei n.º 59/2011 de 28 de Novembro.
VI – Sopesando as vantagens e inconvenientes, sempre por atenção ao quadro legal supra exposto, o qual, reitera-se, não encerra norma própria que imponha a aplicação do dito princípio na pureza enunciada e, atendendo também à especialidade do processado da impugnação judicial que não tem uma fase autónoma de fixação dos factos provados e não provados somos levados a considerar, numa interpretação sistemática, também pautada por critérios de justiça e equidade, que se justificam as referidas limitações consubstanciadas na prática em dever ser o juiz a quem o processo está distribuído a elaborar a sentença no momento em que a mesma tem de ser proferida.
Assim, considerando a posição assumida pelo Pleno da Secção do Contencioso Tributário, do Supremo Tribunal Administrativo, entendemos não se verificar a arguida nulidade.

Da nulidade decorrente da falta de pronuncia pelo Tribunal sobre indícios sérios da verificação das operações tituladas pelas facturas em causa e por não se ter pronunciado sobre matéria de facto alegada na Petição Inicial
Ora, bem analisada a decisão recorrida, considerando que ali é dito:
Com relevância para a boa decisão da causa, não se deram quaisquer outros factos como não provados.”
Quanto à desconsideração das facturas em causa, a decisão também explica, de forma concreta e objectiva a razão pela qual assumiu tal posição, aí dizer, além do mais que:
“(…) não é indicada concretamente a parte das obras em que os serviços foram prestados – não se diz de forma concreta que trabalhos de trolha, em que fase de execução da obra ou em parte da mesma foram executados. Também não é especificada a natureza concreta dos serviços prestados, limitando-se a referir “trabalhos de trolha executados” e “execução de trabalhos de trolha” sempre sem indicar o tipo ou a extensão do serviço de modo a poder apurar-se do eventual tempo da sua realização (duração da obra), do número de pessoas/operários necessários para o realizar… também não é indicado o tempo de duração, não só da obra como dos serviços.
O facto tributário é a prestação de serviços, pelo que os documentos relevantes para efeito da liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado são as facturas. Todavia, tratando-se de facturas que não respeitam integralmente o art. 35º n.º 5 do CIVA, as mesmas não foram emitidas na forma legal e, consequentemente, não conferem o direito à dedução do respectivo Imposto sobre o Valor Acrescentado liquidado, isto nos termos do disposto no art. 19º n.º 2 do CIVA e, logo, não obstam à liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado – cf. art. 6º n.º 4 do CIVA.”
Por todo o exposto, nos termos do disposto no art. 617º n.º 1 do Código de Processo Civil, por considerar que a decisão proferida não enferma de qualquer das nulidades que lhe são assacadas pelo Impugnante, mantenho na íntegra a posição então assumida.
Notifique.
Após, subam os autos ao Tribunal Central Administrativo Norte»

O Digno Magistrado do Ministério Público neste Tribunal apresentou douto parecer no sentido da improcedência do recurso, de que se transcreve o essencial:
«Alega "X..., Lda". que a sentença é nula por omissão de pronúncia decorrente do Tribunal a quo ter deixado de se pronunciar sobre os indícios sérios de que as operações constantes das facturas não correspondem à realidade e igualmente por ter não se ter pronunciado sobre a matéria de facto alegada na impugnação.
Mais suscita ainda a questão do aproveitamento de prova, referindo que a Juiz que proferiu a sentença não foi a mesma que presidiu à produção de prova.
Mais invoca, em resumo, o erro de julgamento por ter julgado improcedente a ilegalidade do procedimento inspectivo por ultrapassagem do prazo e pelo não reconhecimento dos elementos essenciais das facturas constantes do n°5 do artigo 35° do CIVA.
A Mmª Juiz sustentou a fls. 664 e segs, que não se verificam as mencionadas nulidades, em termos que não merece censura.
No demais não assiste razão à recorrente.
Relativamente à referida ilegalidade do procedimento inspectivo por ultrapassagem do prazo tal não constitui novidade dado que o Tribunal já dela conheceu e fundamentou o decidido, em termos que não merecem reparo.
O mesmo se diga relativamente às duas facturas sindicadas a fls. 187 e segs.
A questão a dirimir é saber se as mesmas preenchem os requisitos do artigo 35° n°5 do CIVA (actual n° 36°) para conferirem direito à dedução do IVA.
Citando o Ac. do TCAS de 10/7/2014, no processo 07282/14, in www.dgsi.pt:
i) Em sede de IVA, para efeitos de dedução, apenas se admite que seja deduzido o imposto mencionado em facturas ou documentos equivalentes que respeitem os requisitos formais do art. 35.°, n.º 5, do CIVA (cf. art. 19.°, n.º 2, do CIVA).
ii) O carácter formalista do IVA tem vista, nomeadamente, evitar a evasão fiscal, assumindo as formalidades respeitantes às facturas uma natureza ad substanciam e não meramente ad probationem.
iii) Não cumprem o requisito previsto no art. 35. °, n.º 5, alªs b) e c) do CIVA (actual art. 36.°, n.º 5), as facturas que não discriminam nem os serviços que em concreto foram prestados e a que as mesmas se referem, nem as quantidades unitárias ou totais dos mesmos e respectivo preço unitário, bem como a(s) data(s) em que este foi(foram) prestado(s).
A factura ou documento equivalente que não respeite integralmente o art. 35.° n.° 5, do IVA não está passada "em forma legal" e, consequentemente, não permite deduzir o respectivo imposto.»
Conforme bem se explana na decisão, as facturas não estão passadas "em forma legal" e, consequentemente, não permitem deduzir o respectivo imposto.
Face ao exposto, o recurso não merece provimento.»

Em 10/10/22 a Recorrente veio requerer a junção de certidões de dois acórdãos deste TAF, alegando ter-se decidido, nesses processos, em conformidade com a posição por si sustentada no recurso quanto à suficiente forma das facturas.
Notificada, a Recorrida não se opôs à junção das certidões.

Dispensados os vistos, nos termos do artigo 657º nº 4 do CPC, cumpre apreciar e decidir.
II – Apreciação do Recurso
Enunciação das questões a decidir
Conforme jurisprudência pacífica, o âmbito do recurso é delimitado pelo objecto das conclusões das alegações, interpretadas, como é lógico, em função daquilo que se pretende sintetizar, isto é, o corpo das alegações.
Se não resultarem prejudicadas, as questões colocadas pelo Recorrente a este tribunal de recurso são, portanto, as seguintes:

1ª questão:
A sentença recorrida é nula, por força da conjugação dos artigos 125º nº 1 do CPC e 660º nº 2 do (antigo) CPC, uma vez que não se pronunciou sobre a questão da realidade versus irrealidade das prestações de serviços objecto das duas facturas em causa, apesar de essa questão ser discutida nos articulados?

2ª Questão
A sentença recorrida é nula, por força da conjugação dos artigos 125º nº 1 do CPPT e 668ª nº 1 alª d) do (antigo) CPC, por não se ter pronunciado sobre a matéria de facto alegada pela Impugnante no sentido da materialidade dos serviços facturados?

3ª Questão
Errou, também, a sentença recorrida, em matéria de direito, na medida em que fundamentou a sua decisão de improcedência da impugnação no julgamento de que as facturas em causa não cumpriam os requisitos legais constantes do artigo 35º nº 5 do CIVA, na redacção em vigor à data das mesmas (actual 36º nº 5)?

4ª Questão
Errou, a sentença recorrida, no julgamento de direito, quando julgou improcedente a impugnação das liquidações adicionais com base na violação, no procedimento inspectivo, dos artigos 36º nº 2, 49º, 51º nºs 1 e 2 e 61º do RCPIT, na redacção dada pela Lei nº 50/2005 de 30 de Agosto, atenta a natureza materialmente externa – apesar de designada interna pela AT – do procedimento de Inspecção a que a Impugnante foi sujeita – a qual obrigava ao cumprimento das formalidades e prazo ali previstos?

Da sentença recorrida:
Em ordem a tomar a decisão agora sob sindicância, a Mmº Juiz a qua deu por provados e não provados os seguintes factos, com os seguintes fundamentos:
«Dos factos
Factos provados:
1. Com data de 15.01.2005, a sociedade "Y....., LDA" emitiu a factura n.º 098, em nome da Impugnante "X..., Lda"., com a descrição “trabalhos de trolha executados em moradia na Rua ..., na ....”, num total de €6 307, incluindo Imposto sobre o Valor Acrescentado à taxa de 19% no montante de €1 007 – cf. factura constante de fls. 187 dos autos, numeração referente ao processo físico, para a qual se remete e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
2. Com data de 12.12.2005, a sociedade "Y....., LDA" emitiu a factura n.º 116, em nome da Impugnante "X..., Lda"., com a descrição “execução de trabalhos de trolha na vossa obra do quartel da GNR de ...”, num total de €18 936. 50, incluindo Imposto sobre o Valor Acrescentado à taxa de 21% no
montante de €3 286. 50 – cf. factura constante de fls. 189 dos autos, numeração referente ao processo físico, para a qual se remete e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
3. Em 25.11.2009 foi elaborado Relatório de Inspecção Tributária, referente à sociedade Impugnante, e elaborado no termo de acção de inspecção determinada pela Ordem de Serviço OI...2235 de 16.05.2007 – cf. relatório de acção inspectiva de fls. 49 e seguintes do Processo Administrativo apenso aos autos;
4. Esta inspecção teve como motivo, âmbito e incidência temporal:
a presente acção inspectiva efectuou-se no âmbito da verificação das obrigações fiscais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas e de Imposto sobre o Valor Acrescentado ao exercício de 2005, pelo facto de se terem verificado irregularidades no fornecedor "Y....., LDA"” – cf. relatório de inspecção tributária de fls. 49 e seguintes do Processo Administrativo apenso aos autos;
5. Aquele Relatório continua com a Descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas à matéria colectável, nos seguintes termos:
“O Sujeito Passivo enviou em 2 de Outubro de 2006 o extracto de conta corrente de 2005 do fornecedor "Y....., LDA" Analisado esse extracto constatamos que o fornecimento dos serviços ascendeu nesse ano ao montante de €25 243. 50.
Foi solicitado à empresa (…) entre outros elementos, fotocópias das facturas n.º 98 e 116, emitidas pelo fornecedor "Y....., LDA", que constavam do extracto de 2005 e meios de pagamento. Apesar do Sujeito Passivo ter assinado o aviso de recepção em 6 de Agosto de 2009, não enviou quaisquer elementos (…). Por este facto verificou-se que o Sujeito Passivo relevou na contabilidade referente ao exercício de 2005, facturas emitidas pelo Sujeito Passivo "Y....., LDA"” n.º 98 e 116, de 31.01.2005 e de 31.12.2005, com os valores totais de €6 307 e €18 936. 50, incluindo €1 007. 00 e €3 286. 50 referentes a Imposto sobre o Valor Acrescentado às taxas legais de 19% e de 21%, respectivamente”.
Diz-se ainda neste Relatório:
Todavia, e no decurso da inspecção efectuada ao Sujeito Passivo "Y....., LDA", Ordem de Serviço OI...239, verificou-se que este não possuía capacidade técnica para realizar várias obras em diversos pontos do país à empresa em análise, nomeadamente nos seguintes locais, ..., ... (..)”
6. O Relatório que vimos seguindo refere de seguida os elementos de que dispõe relativamente à sociedade emitente de facturas, nos seguintes termos:
 Informação recolhida no sistema informático da Administração Tributária:
Os elementos disponíveis no sistema informático da Administração Tributária relativos à empresa "Y....., LDA", à data da acção inspectiva, permitiram verificar o seguinte:
 Inexistente no cadastro;
 Falta de entrega das declarações periódicas de rendimentos, modelo 22 de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas e das declarações de informação contabilística e fiscal, relativas ao exercício de 2002, 2003 e 2004, tendo sido efectuadas as devidas correcções no âmbito do cumprimento das Ordens de Serviço n.º OI...3373 e OI2...3375;
 Falta de entrega da declaração periódica de rendimentos, modelo 22 de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, e da declaração de informação contabilística e
fiscal, relativa ao exercício de 2005;
 Falta de entrega das declarações periódicas de Imposto sobre o Valor Acrescentado;
 Notificações efectuadas – recusa de exibição da escrita (…)
 Informação recolhida na empresa responsável pela inscrição provisória da empresa no Registo Nacional de Pessoas Colectivas (…)
 Informação recolhida no Instituto da Segurança Social da Segurança Social do Porto – (…) o Sujeito Passivo não se encontra inscrito nos Serviços de Segurança Social;
 Conservatória do Registo Predial e Comercial da ... e Registo Nacional de Pessoas Colectivas – (…) a empresa "Y....., LDA", foi requerida por CC (…);
 Elementos recolhidos juntos das tipografias – (…) verificou-se a existência de quatro tipografias utilizadas para impressão de documentos (facturas e recibos) em seu nome:
 DD, 50 facturas, n.º 001 a 050;
 C..., M.., SA., 100 facturas, n.º 051 a 150;
 Tipografia do LL..., 100 facturas, n.º 051 a 150;
 Gráfica MM..., 100 facturas, n.º 151 a 200.
(…)
 Capacidade produtiva – (…) concluiu-se que a empresa "Y....., LDA"
Azevedo, Lda. emitiu no exercício de 2005, facturas com indicação de prestações de serviços de valores bastante elevados e com a indicação de locais de obra muito dispersos, o que por si só justificaria a existência de uma estrutura empresarial de grande dimensão quer de ordem material – bens de equipamento – quer de ordem humana – operários de construção, mas que de todo desconhece”;
7. Acompanhando ainda o Relatório de Inspecção Tributária, ali é dito:
“4 – Dos factos expostos resulta que, relativamente às facturas referidas, não está subjacente qualquer prestação de serviço real. A empresa “"X..., Lda".” destinatária das facturas, obteve vantagens patrimoniais indevidas no exercício de 2005 pela diminuição da matéria colectável de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas no montante de €20 950 e do Imposto sobre o Valor Acrescentado pela via da dedução nos termos do n.º 3 do art. 19º do CIVA no valor global de €4 293.50, discriminado por período de imposto nos termos do quadro abaixo:
Período
Imposto sobre o Valor Acrescentado Liq.
0512T
€4 293. 50
Total 2005
€4 293. 50

– Tudo nos termos do Relatório de Inspecção Tributária de fls. 46 e seguintes do Processo Administrativo apenso aos autos, para cujo teor se remete e o qual se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
8. Em 26.11.2009, sobre o Relatório de Inspecção Tributária recaiu “Parecer”:
Confirmo as conclusões expressas no mapa respectivo, designadamente, as correcções de natureza meramente aritmética efectuadas à matéria tributável para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas e de iva, relativamente ao exercício de 2005” – cf. parecer constante de fls. 46 do Processo Administrativo apenso aos autos;
9. Sobre este Relatório e Parecer, em 27.11.2009, recaiu despacho com o teor:
“Concordo.
Notifique-se nos termos do art. 77º da Lei Geral Tributária e do art. 62º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária” – cf. despacho constante de fls. 46 do Processo Administrativo apenso aos autos;
10. Pelo ofício 75...510 de 03.11.2009 os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças do Porto notificaram o Impugnante do Projecto de Correcções o Relatório de Inspecção, nos termos do art. 60º da Lei Geral Tributária e 60º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária – cf. notificação de fls. 42 do Processo Administrativo apenso aos autos;
11. Pelo ofício n.º 82...510 de 27.11.2009 os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças do Porto, notificaram o Impugnante das correcções resultantes da análise interna, nos termos do art. 70º da Lei Geral Tributária e 62º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária – cf. notificação de fls. 44 do Processo Administrativo apenso aos autos;
12. Em 15.12.2009, pelo Serviço de Finanças de ..., foi emitida a liquidação adicional n.º 09...755, referente a Imposto sobre o Valor Acrescentado, do período 0512T, determinando o montante de imposto a pagar de €4 293. 50, com data limite de pagamento voluntário em 28.02.2010 – cf. liquidação adicional constante de fls. 123 dos autos, numeração referente ao processo físico;
13. Na mesma data, ainda pelo Serviço de Finanças de ... foi emitida a liquidação n.º 09225756, referente ao período 0512T, relativa a juros no montante de €645.55, com data limite de pagamento voluntário em 28.02.2010 – cf. liquidação constante de fls. 124 dos autos, numeração referente ao processo físico;
14. Em 17.03.2010 foi remetida, via e-mail, a este Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, a Petição Inicial que deu origem à instauração da presente Impugnação – cf. print de email, com relatório de envio a fls. 2 dos autos, numeração referente ao processo físico.
Factos não provados
1. Que à Sociedade Impugnante tenha sido entregue cópia da Ordem de Serviço OI...2235 de 16.05.2007;
2. Que a sociedade Impugnante tenha recebido qualquer notificação da nota de diligência de conclusão do procedimento inspectivo.
Com relevância para a boa decisão da causa, não se deram quaisquer outros factos como não provados.
***
Motivação
Ao declarar quais os factos que considera provados, o juiz deve proceder a uma análise crítica das provas, especificar os fundamentos que foram decisivos para radicar a sua convicção e indicar as ilações inferidas dos factos instrumentais.
A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto provada baseou-se na prova documental oferecida pelas partes.
A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto provada, resulta da análise do teor dos documentos juntos aos autos e constantes do processo administrativo apenso também aos autos, designadamente aqueles que foram sendo indicados nos respectivos pontos do probatório, considerando, desde logo, a clareza com que os mesmos resultam de uma análise directa de tal documentação, bem como ainda pelo facto dos mesmos não terem sido postos em causa pelas Partes.
Os factos considerados não provados, resultam da alegação do Impugnante e ainda, destes factos terem sido admitidos pela Fazenda Pública sem sede de contestação, veja-se artigos 22 e seguintes de tal peça processual.»

Em face desta decisão em matéria de facto, vejamos, antes de mais, as alegações de nulidade:

1ª questão:
A sentença recorrida é nula, por força da conjugação dos artigos 125º nº 1 do CPC e 660º nº 2 do (antigo) CPC, uma vez que não se pronunciou sobre a questão da realidade versus irrealidade das prestações de serviços objecto das duas facturas em causa, apesar de essa questão ser discutida nos articulados?
Não está em causa que a omissão de pronúncia sobre uma questão suscitada pelas partes e relevante para a discussão e ou a decisão da causa, produz a nulidade da sentença.
A Juiz a qua julgou improcedente a impugnação com fundamento em as facturas não revestirem a forma legal, em face do disposto no artigo 35º nº 4 do CIVA, o que – disse – prejudicava a questão da “materialidade” do objecto mesmas.
Assim sendo, embora não tenha apreciado a questão em termos de mérito, pronunciou-se fundamentadamente sobre ela no sentido de que ficava prejudicada.
Portanto, improcede esta alegação de nulidade da sentença.

2ª Questão
A sentença recorrida é nula, por força da conjugação dos artigos 125º nº 1 do CPPT e 668ª nº 1 alª d) do (antigo) CPC, por não se ter pronunciado sobre a matéria de facto alegada pela Impugnante no sentido da “materialidade” dos serviços facturados?

Importa começar por notar que é anacrónica a invocação do artigo 668º nº 1 alª d) do CPS antigo. Com efeito, atentos a data da sentença e o disposto no artigo 5º da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho, que aprovou o novo Código de Processo Civil, este aplicava-se já à fase da elaboração da sentença (naquilo que o CPPT não previsse).
Fácil é, no entanto, deduzir que a Recorrente quereria invocar o correspondente artigo no novo diploma, a saber, o artigo 615º nº 1 alª d).
Contudo não acompanhamos a recorrente na sua qualificação jurídica da alegação de omissão de pronúncia sobre factos por si alegados.
A falta de discriminação, como provados ou não provados, de factos relevantes para a decisão da causa integra outrossim uma violação do artigo 123º nº 2 do CPPT, em conjugação com o artigo 5º nºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 2º do CPPT, sancionada com nulidade da sentença – total se a omissão for total, parcial se a omissão for parcial – pelo artigo 125º nº 1 do CPPT, enquanto falta parcial de especificação dos fundamentos de facto da sentença.
Na verdade, a omissão de qualquer referência, como provados ou não provados, a factos sobre a prova dos quais o Juiz se deva pronunciar não pode deixar de ser uma falta de especificação dos fundamentos de facto da sentença.
Uma vez que o novo CPC não tem uma norma correspondente ao artigo 511º nº 1 do antigo, que mandava que o juiz seleccionasse, para a base instrutória, a matéria de facto relevante para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, pode perguntar-se, afinal, sobre que factos tem o juiz de julgar, na sentença, se estão provados ou não provados. A resposta encontra-se agora no artigo 5º nº 1 e 2: os factos sobre que deve pronunciar-se o juiz são os alegados pelas partes, essencialmente constitutivas da causa de pedir, bem como aqueles em que se baseiem as excepções invocadas e, ainda, os instrumentais e ou complementares daqueles, nas condições referidas nas alíneas a) e b) do nº 2.
Não se diga que o juiz pode limitar-se a pronunciar-se sobre os que interessam à sua visão do que será a solução do litígio. Na verdade, as partes têm direito a uma decisão sobre a prova dos factos que alegaram e que sejam fundamento da solução que preconizam para o litígio, só assim se lhes garantindo verdadeiramente o direito ao contraditório sobre o objecto da causa: afinal o direito fundamental de acesso à justiça (artigo 20º da CRP).
Ora, feito o confronto da Petição com a enunciação dos factos dados como provados e não provados na sentença recorrida, logo verificamos que a Mª Juiz a qua se limitou a seleccionar os factos provados e não provados que relevavam para a solução de direito que preconizou – a improcedência da impugnação por as facturas não respeitarem a forma legal por não terem ocorrido as alegadas ilegalidades no procedimento de inspecção.
Sucede que a impugnante sustentou, na Petição, a correspondência das facturas com a realidade, bem como factos concretos integrantes dessa realidade, designadamente nos artigos 143º, 145º, 152º, 155º, 156º e 161º a 179º, sendo esse um dos fundamentos de facto e direito do pedido. Tais factos, porém, não vêm discriminados, seja como provados, seja como não provados, na sentença recorrida.
Sendo assim, e de acordo com o que em tese geral acima enunciámos, a sentença recorrida enferma de nulidade parcial por falta de discriminação, como provados ou não provados, de factos alegados pela Impugnante e essencialmente relevantes para a decisão, do ponto de vista, plausível, daquela.
Conforme dispõe o artigo 665º nº 1 do (actual) CPC, nem por isso deixaremos de conhecer do restante objecto da apelação, na parte que não resulte prejudicada.
Abaixo veremos se desta nulidade resulta a procedência do recurso.

3ª Questão
Errou, também, a sentença recorrida, em matéria de direito, na medida em que fundamentou a sua decisão de improcedência da impugnação no julgamento de que as facturas em causa não cumpriam os requisitos legais constantes do artigo 35º nº 5 do CIVA, na redacção em vigor à data das mesmas (actual 36º nº 5)?

A questão de saber se as duas facturas em discussão cumpriam ou não minimamente com os requisitos formais da factura, para efeito de dedução do IVA suportado pelo sujeito passivo “tomador” das mesmas e bem assim a de saber se uma resposta negativa, no caso concreto, viola o direito à dedução e, portanto, seria insofrível pelo Direito Comunitário Europeu, mostra-se-nos prejudicada por outra violação de Lei, assaz surpreendente, em que a sentença recorrida incorre ao considerar as facturas sub judices insusceptíveis de titularem a dedução do IVA nelas liquidado.
Trata-se do seguinte:
Percorridos o RIT, bem como as decisões que, em sede dos meios graciosos de impugnação, confirmaram as suas conclusões, verificamos que o fundamento das liquidações impugnadas jamais foi, sequer concomitantemente com outro, a falta de requisitos formais das facturas, se não e apenas o facto, considerado provado pela AT, de as facturas não corresponderem a reais contratos – e respectiva execução – de prestações de serviços entre a Impugnante e a sociedade supostamente emissora.
Consequente e obviamente, tão pouco a Impugnante se imiscuiu em tal assunto, que, aliás, de todo não era do seu interesse suscitar.
A sentença recorrida, contudo, enuncia essa questão, dizendo que a AT defende que as facturas não preenchem os requisitos do artigo 35º nº 5 do CIVA, o que de todo não acontece, como dissemos.
A ter sido invocada, tal seria mais uma causa de nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 125º nº 1 do CPPT, desta feita nulidade total, dado que este excesso de pronúncia se mostrou determinante do julgamento da improcedência da impugnação e de ter ficado prejudicada a questão, essa sim, fundamentante dos actos impugnados, da realidade ou irrealidade do objecto das facturas sub judices.
Como esta causa de nulidade da sentença não é de conhecimento oficioso (cf. Artigos 196º e 615º do CPC) e a Recorrente não a alegou, há que apreciar a legalidade substantiva deste fundamento da sentença recorrida.
Vejamos:
A sentença, na parte em apreciação, confirma os actos impugnados, na ordem jurídica, com uma fundamentação diversa daquela que a AT invocou para a emissão dos actos impugnados.
Deste modo, por um lado, subtrai à Administração uma atribuição que é exclusiva desta, enquanto manifestação do poder executivo, incorrendo, portanto, em usurpação de poder, por outro convoca, para as liquidações impugnadas, um fundamento a posteriori, isto é, que foi de todo inconsiderado na génese e na fundamentação daquelas, pelo que não pode valer-lhes a permanência na ordem jurídica se, atenta a fundamentação coetânea da emissão, forem anuláveis.
Tanto basta para a sentença recorrida ter de ser revogada, por erro no julgamento de direito.
Porém, não fica prejudicada a discussão da quarta questão suscitada pelo recurso:

4ª Questão
Errou, a sentença recorrida, no julgamento de direito, quando julgou improcedente a impugnação das liquidações adicionais com base na violação, no procedimento inspectivo, dos artigos 36º nº 2, 49º, 51º nºs 1 e 2 e 61º do RCPIT, na redacção dada pela Lei nº 50/2005 de 30 de Agosto, atenta a natureza materialmente externa – apesar de designada interna pela AT – do procedimento de Inspecção a que a Impugnante foi sujeita – a qual obrigava ao cumprimento das formalidades e prazo ali previstos?

Vejamos, antes de mais, o teor das normas procedimentais alegadamente violadas, nas versões em vigor no período que mediou entre a ordem de serviço nº OI...2235 e a emissão do relatório final de inspecção, em 25 de Novembro de 2009, ou seja, na redacção introduzida pela Lei nº 50/2005 de 30 de Agosto e anterior à Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro:
Artigo 36º - Início e prazo do procedimento de inspecção
1 - O procedimento de inspecção tributária pode iniciar-se até ao termo do prazo de caducidade do direito de liquidação dos tributos ou do procedimento sancionatório, sem prejuízo do direito de exame de documentos relativos a situações tributárias já abrangidos por aquele prazo, que os sujeitos passivos e demais obrigados tributários tenham a obrigação de conservar.
2 - O procedimento de inspecção é contínuo e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da notificação do seu início.
3 - O prazo referido no número anterior poderá ser ampliado por mais dois períodos de três meses, nas seguintes circunstâncias:
a) Situações tributárias de especial complexidade resultante, nomeadamente, do volume de operações, da dispersão geográfica ou da integração em grupos económicos nacionais ou internacionais das entidades inspeccionadas;
b) Quando, na acção de inspecção, se apure ocultação dolosa de factos ou rendimentos;
c) Nos casos em que a administração tributária tenha necessidade de recorrer aos instrumentos de assistência mútua e cooperação administrativa internacional;
d) Outros motivos de natureza excepcional, mediante autorização fundamentada do director-geral dos Impostos.
4 - A prorrogação da acção de inspecção é notificada à entidade inspeccionada com a indicação da data previsível do termo do procedimento.
5 - Independentemente do disposto nos números anteriores, o prazo para conclusão do procedimento de inspecção suspende-se quando, em processo especial de derrogação do segredo bancário, o contribuinte interponha recurso com efeito suspensivo da decisão da administração tributária que determine o acesso à informação bancária ou a administração tributária solicite judicialmente acesso a essa informação, mantendo-se a suspensão até ao trânsito em julgado da decisão em tribunal. (Aditado pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro - OE)
Artigo 49º - Notificação Prévia do Procedimento de inspecção
O procedimento externo de inspecção deve ser notificado ao sujeito passivo ou obrigado tributário com uma antecedência mínima de cinco dias relativamente ao seu início.
2 - A notificação prevista no número anterior efectua-se por carta-aviso elaborada de acordo com o modelo aprovado pelo director-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, contendo os seguintes elementos:
a) Identificação do sujeito passivo ou obrigado tributário objecto da inspecção;
b) Âmbito e extensão da inspecção a realizar.
3 - A carta-aviso conterá um anexo contendo os direitos, deveres e garantias dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários no procedimento de inspecção.

Artigo 51º - Data do Início e do termo da inspecção
1 - Da ordem de serviço ou do despacho que determinou o procedimento de inspecção será, no início deste, entregue uma cópia ao sujeito passivo ou obrigado tributário, excepto nas situações previstas no n.º 6 do artigo 46.º (Redacção dada pela Lei n.º 50/2005, de 30 de Agosto)
2 - O sujeito passivo ou obrigado tributário ou o seu representante deve assinar a ordem de serviço indicando a data da notificação, a qual, para todos os efeitos, determina o início do procedimento externo de inspecção. (Redacção dada pela Lei n.º 50/2005, de 30 de Agosto)
3 - A ordem de serviço deve ser assinada pelo técnico oficial de contas ou qualquer empregado ou colaborador presente caso o sujeito passivo ou obrigado tributário ou o seu representante não se encontrem no local.
4 - A recusa da assinatura da ordem de serviço não obsta ao início do procedimento de inspecção.
5 - Se ocorrer recusa de assinatura da ordem de serviço ou despacho, será a mesma assinada por duas testemunhas, entregando-se cópia ao sujeito passivo ou obrigado tributário. (Aditado pela Lei n.º 50/2005, de 30 de Agosto)
6 - Na impossibilidade de se colherem assinaturas das testemunhas, o facto constará na ordem de serviço ou despacho, sendo entregue cópia ao sujeito passivo ou obrigado tributário. (Aditado pela Lei n.º 50/2005, de 30 de Agosto)

Artigo 61.º - Conclusão dos actos
1 - Os actos de inspecção consideram-se concluídos na data de notificação da nota de diligência emitida pelo funcionário incumbido do procedimento.
2 - Nos casos referidos nas alíneas a) e c) do n.º 4 do artigo 46.º, a nota de diligência indicará obrigatoriamente as tarefas realizadas.

Segundo a Recorrente, o artigo 36º teria sido violado por a inspecção ter decorrido em bem mais do que seis meses, pois a ordem de serviço é de 2007 e o relatório final de 2009; o artigo 49º, porque o início não foi notificado, com ou sem a antecedência prevista no nº 1 (cf. artigo 50º); o artigo 51º, porque não foi entregue cópia da ordem de serviço à inspeccionada, nos termos ali previstos; e o artigo 61º porque a Inspeccionada jamais foi notificada do fim das diligências de inspecção, com ou sem as menções do nº 2.
Nem todas estas normas referem – ou de todas delas resulta em si mesmas consideradas – que se aplicam apenas à inspecção dita externa, segundo a distinção feita no artigo 13º do mesmo diploma, que reza assim.
Artigo 13.º - Lugar do procedimento de inspecção
Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em:
a) Interno, quando os actos de inspecção se efectuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos;
b) Externo, quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.
Quanto ao artigo 36º, isso resulta, embora não tão explicitamente quanto seria boa prática legislativa, do elemento sistemático da interpretação. Efectivamente, encontra-se integrado num capítulo do título IV – actos de inspecção – e num “Capítulo II – Local, horário dos actos de inspecção e prazo de procedimento” todo ele gizado no pressuposto de se tratar da inspecção externa, e, aliás, iniciado por um artigo 34º que tem por objecto expresso a materialidade de uma inspecção externa:
Artigo 34º - Local dos actos de inspecção”
1- Quando o procedimento de inspecção envolver a verificação da contabilidade, livros de escrituração ou outros documentos relacionados com a actividade da entidade a inspeccionar, os actos de inspecção realizam-se nas instalações ou dependências onde estejam ou devam legalmente estar localizados os elementos.
2 - A solicitação dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários e em caso de motivo justificado que não prejudique o procedimento de inspecção, podem os actos de inspecção previstos no número anterior realizar-se noutro local.
3 - Os actos de inspecção podem também realizar-se em locais do exercício da actividade da entidade inspeccionada que contenham elementos complementares ou adicionais dos previstos no n.º 1.
4 - Caso a entidade inspeccionada não disponha de instalações ou dependências para o exercício da actividade, os actos de inspecção podem realizar-se no serviço da administração tributária da área do seu domicílio ou sede, sem prejuízo do caso previsto no n.º 2.
Também o artigo que imediatamente o antecede se refere, tacitamente, ao procedimento externo, pois tem por objecto o horário em que os actos de inspecção podem ser praticados, dispondo que devem ser praticados durante o horário normal da actividade do inspeccionado.
Deste contexto depreende-se que o artigo 36º também se refere ao procedimento de inspecção externa, embora não o diga expressamente.
Por sua vez, o artigo 49º nº 1 apenas dispõe sobre a notificação do início do procedimento externo, não havendo norma que a imponha quanto ao interno, de onde se conclui que o 36º nº 2, ao dispor o prazo de seis meses contado desde a notificação do seu início, apenas se refere ao procedimento externo.
São análogos os motivos por que se pode concluir que também o artigo 51º e o 61º têm como objecto apenas o procedimento externo. Com efeito, qualquer destes artigos labora no pressuposto tácito de se tratar de um procedimento com um determinado prazo para ser terminado, portanto, externo, face ao que já dissemos a propósito do artigo 36º nº2.
A sentença recorrida também labora neste entendimento das normas invocadas.
De harmonia com esse entendimento, segundo a sentença recorrida, embora resulte da matéria de facto assente que o relatório apenas mencionou a data do termo do procedimento inspectivo, que o início da inspecção não foi notificado, que o termo das diligências tão pouco o foi, tal como o início do procedimento e a ordem de serviço, nada disso bole com a Legalidade, pois não havia qualquer prazo para terminar o procedimento nem alguma das formalidades previstas por aquelas normas era legalmente devida, uma vez que o procedimento foi meramente interno, conforme a ordem de serviço e a realidade das operações, que jamais exigiram a deslocação da AT às instalações.
Percorridos os factos julgados provados e não provados, conclui-se que nem aquele prazo foi respeitado, por isso que não se lhe pode encontrar um dies a quo para efeitos do artigo 36º nº 2 nem muito menos um dies ad quod, para efeitos do artigo 61º.
A recorrente sustenta que na realidade, atentos o seu objecto e os meios de que a AT lançou mão, não se tratou de um procedimento interno, mas, materialmente, de um procedimento externo, pelo que eram devidos, sob pena de anulabilidade das liquidações, aqueles prazo e formalidades.
Vejamos.
Resultou provado que as liquidações impugnadas foram efectuadas mediante a desconsideração das duas facturas acima identificadas integrantes da documentação de suporte aos custos registados na contabilidade da Impugnante relativa ao ano de 2005, por, segundo a Inspecção e a AT, não terem ocorrido os contratos e as prestações de serviços delas objecto.
Fundamento desta convicção da AT foram, essencialmente, factos apurados e conclusões obtidas num procedimento de inspecção externa à empresa que figurava como emissora daquelas duas facturas, a “Construções Ramalho & Azevedo”: desde a inexistência do registo da emissora como pessoa colectiva até à impossibilidade concreta, atentos os meios humanos, de prestar a quantidade e pluralidade de locais dos serviços constantes da sua facturação, aliados aos factos de, do extracto de conta corrente da emissora, na Impugnante, enviado à inspecção procedendo notificação para o efeito, constarem as duas facturas acima identificadas; e de a impugnante, notificada para enviar à Inspecção cópias das facturas e dos respectivos meios de pagamento, não o ter feito.
Assim sendo, qualquer que seja o mérito, quanto à “falsidade” das duas facturas aqui em causa, da conclusão a que chegou a AT em ordem às liquidações impugnadas, é evidente que não se tratou, na inspecção da Impugnante, apenas de confirmar a correição técnica dos valores declarados e ou autoliquidados pela Impugnante, mediante os dados à partida disponíveis nos serviços da AT, se não de pôr em causa a veracidade da contabilidade do contribuinte mediante uma investigação tendo por objecto, no fim de contas, proveitos alegadamente ocultados pela contabilidade mediante a obtenção e o registo de facturas com objecto irreal, enfim, uma fraude fiscal. E para aí chegar, a AT não compulsou apenas declarações e registos da contabilidade da Impugnante e de outros contribuintes, entregues ordinariamente no cumprimento de deveres acessórios dos contribuintes, à partida disponíveis na e ou acessíveis à AT, cruzados entre si, em ordem a uma verificação da conformidade, com a aritmética e com a Lei, dos valores declarados e ou autoliquidados, mas também obteve e compulsou – ou concluiu pela sua inexistência de – documentos na posse de duas empresas: a suposta emissora das duas facturas e a Impugnante. Designadamente, na primeira acedeu ao teor das facturas; e na segunda obteve, procedendo a sua notificação para que lho remetesse, e compulsou o extracto da conta corrente com a primeira (emissora das facturas). Além disso – e decisivamente – quanto aos meios de pagamento, concluiu, da conduta da empresa Impugnante, a qual, notificada, não lhe remeteu tais elementos, não existir suporte documental, por, alegadamente, não ter ocorrido qualquer pagamento, dada a natureza fictícia das facturas.
Em face desta materialidade, isto é, do objecto da inspecção e da natureza das sobreditas diligências que a integraram, temos de concluir que não se tratou de uma inspecção meramente interna, apesar de qualificada como tal pela AT e de, no que imediatamente lhe concernia, não ter sido realizado qualquer acto de inspecção nas instalações da impugnante ou de outro contribuinte.
É que, num mundo cada vez mais informatizado e telemático, em que a deslocação das pessoas físicas é cada vez menos necessária para se aceder a documentos e dados, não se pode, do ponto de vista da metodologia do Direito, continuar a interpretar literalmente o artigo 13º do RCPIT, no sentido de a prática de ao menos um acto de inspecção nas instalações do contribuinte inspeccionado ou terceiro ser critério absoluto e formal para a qualificação, como interno ou externo, de um procedimento inspectivo.
O critério a colher hodiernamente naquela norma haverá de ser material, no sentido de o procedimento se qualificar como externo sempre que o seu objecto for investigar factos e realidades não detectáveis pela consulta das declarações e registos contabilísticos à partida na posse da AT, como consequência ordinária do cumprimento das obrigações acessórias e ordinárias dos contribuintes, inclusivamente cruzando dados e declarações, mas outrossim factos e dados apenas conhecidos em virtude de inspecção externa a um terceiro sujeito passivo e ou cognoscíveis mediante o acesso, por qualquer meio, seja informático, seja por remessa física, para os serviços da inspecção, ao conteúdo de documentos e a outras meios de prova a que AT não teria acesso de outro modo, a não ser que se deslocasse às instalações da Impugnante ou do terceiro contribuinte (ou respectivo técnico oficial de contas) para in loco procurar e observar esses documentos ou produzir esses outros meios de prova.
Neste sentido, ocorre citar Freitas da Rocha e João Damião Caldeira, em anotação ao artigo 13º, no RCPIT [1] anotado e comentado, obra publicada na web e acessível em:
http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/57722/1/RCPIT%20ANOTADO%20E%20COMENTADO.pdf.
“Na questão da classificação do procedimento de inspecção como interno ou externo importa sublinhar o que denominamos de “aparência de procedimentos”. Esta “aparência de procedimentos” traduz-se nas situações em que embora os procedimentos sejam formalmente classificados pela Administração tributária de determinada forma, na realidade e materialmente, em função dos actos praticados, os mesmos não correspondem à classificação que lhes foi atribuída. Esta desconformidade pode e deve ter efeitos quanto ao resultado final do procedimento, devendo os efeitos ser valorados contra a própria Administração, uma vez que esta se encontra vinculada ao princípio da legalidade.
Em concreto, significa isto que embora um procedimento seja classificado pela Administração como interno, na prática o mesmo pode vir a demonstrar-se, em função dos actos praticados, como externo, da mesma forma que um procedimento classificado como externo, por força dos actos praticados pode traduzir-se num procedimento interno, embora a primeira hipótese tenha menos probabilidades de vir a suceder.
A qualificação dada pela Administração a um procedimento não tem carácter vinculativo, se vier a revelar-se que o conteúdo dos actos praticados for contrário à qualificação dada, isto é, a classificação formal do procedimento será, posteriormente, validada, ou não, pelos actos que a Administração tributária praticar.
Numa situação em que os actos materialmente praticados revelam a existência de um procedimento distinto daquele que foi formalmente indicado pela Administração, ou seja, um procedimento externo “de facto” embora formalmente qualificado como interno, os vícios referentes à falta de notificação prévia ao sujeito passivo exigida pelo artigo 49.º n.º 1 do RCPIT, bem como a ausência de ordem de serviço exigida pelo artigo 46.º n.º 2 do RCPIT devem ter como consequência a invalidade de uma eventual liquidação, nomeadamente devem levar à sua anulação.”
A esta respeitável doutrina acresce jurisprudência dos tribunais centrais Norte e Sul, como sejam os acórdãos do TCA Sul de 9/12/08 no recurso 02504/08, de 10/7/2012 no recurso nº 05289/12, de 1/10/2014 no recurso 4817/11, e do TCA Norte, de 13/11/2014 no processo 01854/10.8BECBR, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Como já vimos, in casu foram utilizados documentos que não estavam, ab initio, disponíveis na AT, antes tiveram de ser obtidos numa inspecção à emissora das facturas alegadamente fictícias e solicitados pela Inspecção à Contribuinte inspeccionada, e o objectivo foi investigar factos que a contabilidade da Impugnante, alegadamente, em lugar de revelar, ocultava. Inclusivamente valorou-se como meio de prova uma conduta da Inspeccionada, a saber, o não envio à AT, procedendo notificação, das facturas de cópias das facturas em causa e dos respectivos meios de pagamento.
Logo, tratou-se materialmente de uma inspecção externa, pelo que:
Desde logo, não foi respeitado o prazo a que alude o artigo 36º nº 2, simplesmente porque não foram praticadas as formalidades que permitiriam, em face das normas acima transcritas, fixar o dies a quo e o dies ad quod para o mesmo. Mas daí não advém a anulabilidade das liquidações. Com efeito tem sido pacífico, ultimamente, na doutrina e na jurisprudência que a ultrapassagem do prazo apenas anula a suspensão do prazo de caducidade do direito a liquidar os impostos, conforme artigos 45º e 46º da LGT, ou seja, não inquina de anulabilidade as liquidações que sobrevierem.
Depois e sobretudo, eram devidas a notificação do início da inspecção conforme artigo 49º do RCPIT, com as formalidades aí prescritas, bem como a notificação da ordem de serviço, conforma artigo 51º, com as formalidades aí previstas, e ainda a notificação do fim das diligências de inspecção, conforme artigo 61º, todos daquele diploma e acima transcritos.
A sanção destas violações de Lei é a anulabilidade das liquidações impugnadas, cf. artigo 135º do CPA em vigor ao tempo (DL nº 442/91 de 15/11).

Conclusão
Como assim, procede o recurso e a impugnação há-de ser julgada procedente, ficando prejudicada a necessidade de apreciação, nesta instância (cf. artigo 662º do CPC), da questão de facto da materialidade dos serviços facturados (ignorada pela sentença recorrida).

Decisão
Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal em conceder provimento ao recurso e em julgar procedente a impugnação.
Custas pela Recorrida, na acção e no recurso: artigo 527º do CPC.

Porto, 3 de Novembro de 2022
Tiago Afonso Lopes de Miranda
Cristina Santos da Nova
Cristina Travassos Bento
_________________________________
[1] O primeiro dispensa referências, por académico e autor consagrada que é. O segundo: Mestre em Direito Tributário e Fiscal e Inspector Tributário, conforme a dita publicação.