Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:Administrativo
Peça Processual:CONTRA-ALEGAÇÃO
Data:12/20/2024
Processo:160/11.5BELSB
Nº Processo/TAF:160/11.5BELSB
Magistrado:Nuno Costa Maia
Disponível na JTCA:NÃO
Texto Integral:Exmos. Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo do Sul

Vem o Réu Estado Português responder à ampliação do objeto do recurso constante da contra-alegação de recurso subscrita pela Autora AA Lda. em resposta ao recurso interposto pela Ré BB, na qual pede que o aqui Réu Estado seja condenado em alternativa ou subsidiariamente à dentificada 1.ª Ré.
Vejamos.

Da nulidade da sentença
Compulsados os autos, verifica-se que, efetivamente, a intervenção principal do Estado Português, como Réu, foi deferida por despacho de 30-01-2018.
Nesta sequência, foi apresentada contestação a 01-06-2018.
Todavia, a sentença recorrida refere a fls. 5 que a citação oficiosa do Estado "fica prejudicada", não se pronunciando, a final, sobre o mérito da ação (absolvição ou condenação) relativamente ao Réu Estado, incorrendo, pois, num equívoco.
Assim, ainda que se afigure que, na medida em que foi condenada, apenas e só, a 1- Ré BB, a decisão final só poderá ser de absolvição do Estado do pedido - o que, sem margem para dúvidas, resulta implícito no espírito e economia da decisão -, a decisão encontra-se fulminada pelo vício de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 615.°, n.° 1, alínea d), do CPC, aplicável ex vi artigo 1.° do CPTA.


Ainda assim, atentos os poderes de cognição que decorrem do preceituado no artigo 149.°, n.° 1 e 2, do CPTA, entende o Ministério Público que pode e deve o Tribunal Superior conhecer do mérito da ação, nesta parte, suprindo a nulidade da sentença de primeira instância, atentos os fundamentos quanto ao mérito da causa que se passa a enunciar infra.

Do mérito dos recursos e da ação
A decisão recorrida condenou a 1- Ré BB a pagar à Autora a quantia de 37.863,62€, acrescida de 12.086,12€, a título de juros de mora civis vincendos desde a citação da ação até integral e efetivo pagamento, por serviços de vigilância prestados entre 07-06-2007 e 31-12-2007, nas instalações da extinta CC (CC...).
Insurge-se contra esta decisão a Ré BB, invocando, em síntese, que não pode ser responsabilizada face ao teor do artigo 8.° da Portaria n.° 311/2008, o qual determina que "transmitem-se para o BB todas as obrigações contratuais da CC..., que se tenham vencido ou constituído entre 1 de Janeiro de 2008 e a data da produção de efeitos do presente diploma" - i. é., a 24-04-2008.
Aduz que as obrigações constituídas pela CC... e vencidas antes de 31-12-2007 não se transmitiram à recorrente, pelo que esta não é responsável pelo seu pagamento, por ter sido de tal isentada pelo legislador.
Por seu lado, contrapõe a Autora que a responsável pelo pagamento é a 1- Ré e recorrente. No entanto, apenas para a hipótese de vir a ser entendido que esta Ré não pode assumir o pagamento da dívida em causa, conclui que então o responsável será o Estado Português, aqui também Réu.
Vejamos.
Não se colocando em causa a existência da dívida, a única questão que se põe nos presentes autos é a de saber qual a entidade púbica responsável pelo seu pagamento à Autora.
A nosso ver, a chave da questão a resolver encontra-se na conjugação dos artigos 21.°, n.° 2, alínea g), e 22.° do Decreto-Lei n.° 209/2006, de 27-10, com a Portaria n.° 311/2008, de 23-04, mais concretamente pela leitura do preâmbulo desta.
O artigo 21.°, n.° 2, alínea g), do Decreto-Lei n.° 209/2006, de 27-10, dispõe que "[s]ão extintos, sendo objecto de fusão, os seguintes serviços e organismos: [...] A Escola de Pesca e da Marinha do Comércio, sendo as suas atribuições no domínio da certificação profissional integradas na Direcção-Geral das Pescas e Aquicultura e as suas atribuições no domínio da coordenação, execução da formação profissional a nível nacional dos profissionais e candidatos às profissões nos sectores das pescas e aquicultura, indústria transformadora de pescas, actividades marítimas em geral e outras actividades conexas externalizadas em entidade a definir em diploma próprio, em articulação com o Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social" (sublinhado nosso).
Neste seguimento, o artigo 22.° do Decreto-Lei n.° 209/2006, de 27-10, estabelece que "[a]s referências legais feitas aos serviços e organismos objecto de extinção, fusão e reestruturação referidos no artigo anterior, consideram-se feitas aos serviços ou organismos que passam a integrar as respectivas atribuições".
Na decorrência do que antecede, a Portaria n.° 311/2008, de 23-04, procede à extinção do DD e homologa o protocolo que cria o (BB).
Ora, não há dúvida de que a nova entidade a que se refere o artigo 21.°, n.° 2, alínea g), do Decreto-Lei n.° 209/2006, de 27-10, é a BB.
No preâmbulo da Portaria n.° 311/2008 lê-se, além do mais, o seguinte:
"Por seu turno, nos termos da alínea g) do n.° 2 do artigo 21.° do Decreto-Lei n.° 209/2006, de 27 de Outubro, é extinta a CC..., segundo outorgante do DD, sendo as suas atribuições no domínio da certificação profissional integradas na Direcção-Geral das Pescas e Aquicultura (DGPA) e as suas atribuições no domínio da coordenação, execução da formação profissional a nível nacional dos profissionais e candidatos às profissões nos sectores das pescas e aquicultura, indústria transformadora de pescas, actividades marítimas em geral e outras actividades conexas, externalizadas em entidade a definir em diploma próprio, em articulação com o Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, extinção aquela que, por força do presente diploma, se torna efectiva.
Tendo o DD deixado de prosseguir os fins para que foi criado, justifica-se, também, a sua extinção formal, de acordo com a legislação aplicável.
Por outro lado, entre o IEFP e a DGPA foi celebrado um protocolo tendo em vista promover actividades de formação profissional para a valorização dos recursos humanos dos sectores das pescas, actividades marítimas e portuárias, através da criação de um centro de formação profissional.
Por força das disposições legais em vigor, torna-se necessário dotar aquele centro de personalidade jurídica de direito público mediante a homologação do respectivo protocolo institutivo.
Ainda, instituindo-se este novo centro de formação profissional, há que dispor sobre a sua sucessão nas posições jurídicas e património antes detidas e tituladas, quer pelo DD, quer pela CC..., bem como sobre a matéria relativa ao destino e regime jurídico aplicável ao pessoal destas últimas entidades" (sublinhado nosso).
Assim, quanto à sucessão das atribuições da Escola de Pesca e Marinha do Comércio (EPCM) temos o seguinte enquadramento que decorre de tal Portaria:
- por um lado, a Direção-Geral das Pescas e Aquicultura (DGPA) constitui-se sucessora nas atribuições no domínio da certificação profissional;e
- por outro lado, a BB constitui-se sucessora nas atribuições nos domínios da coordenação, execução da formação profissional a nível nacional dos profissionais e candidatos às profissões nos sectores das pescas e aquicultura, indústria transformadora de pescas, atividades marítimas em geral e outras atividades conexas.




Note-se que é de particular relevância que no preâmbulo do diploma regulamentar conste que o novo centro de formação profissional sucede "nas posições jurídicas e património antes detidas e tituladas, quer pelo DD, quer pela CC..., bem como sobre a matéria relativa ao destino e regime jurídico aplicável ao pessoal destas últimas entidades", ainda que, no artigo 8.°, apenas tenha previsto as obrigações contratuais da CC... que se tenham vencido ou constituído entre 01-01-2008 e a data da produção de efeitos do diploma.
E para determinar a intenção legislativa também é relevante atentar que a Direção-Geral das Pescas e Aquicultura, integrada no Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, constitui-se sucessora, apenas e restritivamente, nas atribuições no domínio da certificação profissional.Unicamente.
Por conseguinte, todos os demais domínios em que se coloque a questão de sucessão nas posições jurídicas da CC... competem à BB.
Não obstante, o teor literal do artigo 8.° da Portaria apenas contempla as obrigações contraídas pela CC... após 01-01-2008.
O que vale por dizer que se verifica uma verdadeira lacuna de regulamentação quanto às obrigações contratuais anterioresa 01-01-2008, numa hipótese que carece de ser juridicamente regulada1.
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1De notar que não se trata de uma lacuna de competência, mas sim de regulamentação, que respeita ao agir da Administração. Não olvidando que em Direito Público só é permitido às entidades administrativas o que a lei prevê, estando estas sujeitas ao princípio da legalidade, veja-se, a respeito da admissibilidade de integração de lacunas em Direito Administrativo, Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, Vol. I, 2- Reimpressão, Almedina, Coimbra, 1984, pág. 165 e seguintes; e Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Tomo I, 10- edição, 3- reimpressão, Almedina, Coimbra, 1984, págs. 134 e seguintes.

Não se mostra possível, pela letra da norma, realizar interpretação extensiva, nem se deteta, no imediato, caso análogo.
Assim, face ao quadro legal, aos princípios gerais de Direito, com evidência para o princípio da boa fé do exercício da atividade administrativa, e ao espírito do sistema, entende-se que, chegados a este ponto, deve ser criada norma permissiva de assunção de responsabilidade por dívidas anteriores a 01-01-2008 pela Ré BB, procedendo-se, assim, à integração da lacuna gerada pelo teor literal do artigo 8.° da Portaria quanto à responsabilidade por obrigações da CC..., nos termos do disposto no artigo 10.°, n.° 3, do Código Civil.
Da interpretação integrada e conjugada dos preceitos legais e regulamentares aplicáveis não se vislumbra qualquer lacuna com motivação político-legislativa ou regulamentar, apenas suscetível de ser superada por via de intervenção do legislador regulamentar, traduzida numa especial intenção de não ser autorizado o pagamento a prestadores de serviços de uma entidade pública extinta.
Daí que, principalmente atento o preâmbulo da Portaria, bem como o disposto nos artigos 21.°, n.° 2, alínea g), e 22.° do Decreto-Lei n.° 209/2006, de 27-10, não seja de aceitar a alegação da Ré recorrente no sentido de que existiu específica intenção do legislador de isentá-la de dívidas da CC... anteriores a 01-01-2008.
Caso assim não venha a ser entendido, e considerando principalmente o princípio da boa- fé2 3, sempre seria de aplicar o regime previsto no Código Civil quanto à sub-rogação pelo devedor, previsto no artigo 590.°, conjugado com o regime da mora e do incumprimento da obrigação - cf. artigos 762.° e 804.° e seguintes também do Código Civil.
Por conseguinte, sendo a BB um organismo dotado de "personalidade jurídica de direito público, sem fins lucrativos, com autonomia administrativa e financeira e património próprio''3, tem ao seu dispor os meios necessários para cumprir as suas obrigações4 - incluindo as determinadas por decisões judiciais.
_________________________
2Cf. artigo 10.° do Código do Procedimento Administrativo.
3Cf. Capítulo II, n.° 1, do Protocolo de Criação do Centro de Formação Profissional das Pescas e do Mar, FOR-MAR, Anexo à Portaria n.° 311/2008.
4No sentido de que deveria ser a FOR-MAR a assumir tal pagamento já se tinha pronunciado o Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, subscrevendo parecer jurídico da Direção Geral do Orçamento, tendo sido dado conhecimento à FOR-MAR de tal posição para regularização da dívida em causa (cf. ponto R dos factos provados da sentença) - pelo que, ressalvado o devido respeito, mal se compreende a delonga na resolução do presente litígio (desde 2009) por parte da ora recorrente, o que, pelo extenso decurso do tempo, implica um avolumar da dívida na parte aos juros, prejudicial ao interesse e erário públicos.

Nesta medida, pelas dívidas em questão não é responsável o Ministério da Agricultura e Pescas e, por essa via, o Estado Português.
Ao invés, é responsável a BB.
Em face do exposto, entende-se que deve o recurso da 1- Ré BB ser julgado integralmente improcedente e deve o Réu Estado Português ser expressa e integralmente absolvido do pedido.

* * *
Conclusões
1) Sendo o Estado Português também demandado na presente ação e não tendo a sentença recorrida decidido expressamente, a final, sobre o mérito da ação (absolvição ou condenação) relativamente ao Réu, a decisão recorrida padece do vício de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 615.°, n.° 1, alínea d), do CPC, ex vi artigo 1.° do CPTA.

2) Ainda assim, atentos os poderes de cognição que decorrem do preceituado no artigo 149.°, n.° 1 e 2, do CPTA, entende o Ministério Público que pode e deve o Tribunal Superior conhecer do mérito da ação, nesta parte.

3) Quanto ao mérito dos recursos e da ação, pelos fundamentos melhor desenvolvidos na motivação, a conjugação do disposto nos artigos 21.°, n.° 2, alínea g), 22.° do Decreto-Lei n.° 209/2006, de 27-10, com a Portaria n.° 311/2008, de 23-04, mais concretamente do preâmbulo desta, determina que a Ré BB sucedeu em todas as posições jurídicas anteriormente tituladas pela CC..., exceto as relacionadas com o domínio da certificação profissional, que passaram a estar adstritas à Direção-Geral das Pescas e Aquicultura, integrada no Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas.

4) O artigo 8.° da Portaria 311/2008 apenas contempla as obrigações contraídas pela CC... após 01-01-2008, verificando-se, por conseguinte, uma lacuna de regulamentação quanto às obrigações contratuais anteriores a 01-01-2008, não se afigurando ser uma lacuna com motivação político-legislativa ou regulamentar, apenas suscetível de superação por via de intervenção do legislador regulamentar.

5) Atenta a intenção legislativa e o espírito do sistema, para integração de tal lacuna, entende-se ser de proceder à criação de norma permissiva de assunção de responsabilidades por dívidas da CC... anteriores a 01-01-2008 à Ré BB, assim se procedendo à integração da lacuna gerada pelo teor literal do referido artigo 8.° da Portaria, ao abrigo do disposto no artigo 10.°, n.° 3, do Código Civil.

6) Da interpretação integrada e conjugada dos preceitos legais e regulamentares aplicáveis, com evidência para o preâmbulo da Portaria, não se vislumbra qualquer intenção de isentar o recorrente de dívidas da CC..., anteriores a 01-01-2018, ao invés do preconizado pela Ré Recorrente.

7) Caso assim não venha a ser entendido, e atento principalmente o princípio da boa-fé que deve presidir a toda e qualquer atividade administrativa, sempre seria de aplicar o regime previsto no Código Civil quanto à sub-rogação pelo devedor, previsto no artigo 590.°, conjugado com o regime da mora e do incumprimento da obrigação - cf. artigos 762.° e 804.° e seguintes do Código Civil.

8) Nesta medida, atendendo a que a BB é um organismo dotado de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira e património próprio, pelas dívidas em questão não é responsável o Ministério da Agricultura e Pescas e, por essa via, a pessoa coletiva Estado Português, sendo, ao invés, a BB responsável pelo cumprimento de tal obrigação contratual.

Termos em que deve o recurso interposto pela Ré BB ser julgado integralmente improcedente e, além disso, proferida decisão expressa de absolvição do Réu Estado Português do pedido, assim se fazendo J U S T I Ç A.
O Magistrado do Ministério Público,
Nuno Costa Maia