Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:685/15.3BELRS-S1
Secção:CT
Data do Acordão:09/26/2024
Relator:MARIA DA LUZ CARDOSO
Sumário:I - A não abertura de um período de instrução, designadamente para inquirição de testemunhas, não é o mesmo que a rejeição de um meio de prova.
II - Não estando em causa a rejeição de um meio de prova, o recurso do despacho que decide não realizar a inquirição de testemunhas, por entender ser a mesma desnecessária em função da causa de pedir ou a matéria controvertida apenas ser provada por documentos, apenas pode ser interposto a final, nos termos do n.º 3 do artigo 644º do CPC.
III - Assim, não cabe apelação autónoma, ao abrigo da alínea d) do n.º 2 do artigo 644º do CPC (por aplicação subsidiária, do disposto no artigo 281.º do CPPT), do despacho que dispensa a produção de prova testemunhal, por tal não corresponder à rejeição de um meio de prova.
IV - Caso essa apelação autónoma tenha sido admitida pela 1.ª instância, compete ao tribunal central administrativo, rejeitá-la, por inadmissibilidade da mesma, nesta fase processual.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tibutária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. Relatório

Banco S..........., S.A. (atualmente S........... Sucursal, S.A., Sucursal em Portugal), doravante Impugnante ou Recorrente, interpôs recurso jurisdicional de apelação, a subir de imediato nos próprios autos e com efeito devolutivo do despacho interlocutório proferido pelo Tribunal Tributário de Lisboa, em 6 de julho de 2023, que indeferiu a produção da prova testemunhal requerida no âmbito do processo principal de impugnação judicial n.º685/15.3BELRS.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:

CONCLUSÕES
A.O despacho do qual se recorre, no que ao presente caso importa, diz o seguinte: “Neste conspecto, não está em causa a prova de factos, que de resto surgem consensuais, mais sim

uma questão de direito sobre tais factos. Donde que a prova documental ofereça a matéria de facto suficiente e relevante para o julgamento de facto, nos termos que estruturam a petição. O mais necessário à decisão são questões de direito. Assim, não tem objeto a produção de prova por meio de pessoas a que se refere o rol apresentado, a qual indeferimos ao abrigo do disposto nos arts.113º nº1 e 114º, a contrário, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, encerrando-se a instrução”.
B. Na situação vertente, considerando que o Tribunal a quo utilizou o termo “indeferimento” da produção de prova, por entender (erradamente como explicaremos) que os factos serão consensuais e não tem objecto a produção de prova por meio de pessoas, existindo dúvidas se, à luz do direito processual aplicável, a Recorrente tem o ónus de recorrer desse despacho autonomamente, na medida em que, como se explanará, a produção de prova testemunhal se revela fundamental para a procedência da impugnação judicia.

C. O Tribunal a quo, ao ter indeferido a produção de prova testemunhal, prejudicou a possibilidade de a Recorrente, à luz da supra citada jurisprudência do STA (eg., acórdão de 03/04/2020 proferido no proc. 07/19.4BALSB), realizar a prova de que a dedução do IVA referente aos custos comuns não traduzirá qualquer distorção significativa na tributação mediante a inquirição das testemunhas arroladas na petição inicial.

D. A inquirição das testemunhas revela-se absolutamente essencial e da mesma resultará a comprovação de que os custos gerais mistos da Recorrente são determinados sobretudo pela disponibilização das viaturas aos seus clientes e não pelo financiamento, o que apenas se afigura possível provar através da prova testemunhal.

E. Do processo resulta um conjunto de factos demonstrativos dessa realidade, ie., a de que a aquisição e disponibilização da viatura é uma prestação distinta do financiamento e implica a afetação de bens e serviços de utilização mista determinados sobretudo pela atividade de disponibilização da viatura (artigos 27.º, 33.º, 34.º, 35.º, 39.º, 42.º, 47.º da p.i.).

F. Os depoimentos das testemunhas devem incidir sobre os factos mencionados no ponto anterior, detalhando os procedimentos implementados pela Recorrente para efeitos de disponibilização de viaturas aos clientes em cada momento do contrato (ie., detalhando i. os atos necessários e consequente consumo de recursos mistos desde a aquisição da viatura, ii. os que se mostram necessários praticar durante o contrato em cada cenário possível – eg., sinistros, perda total do bem –, iii. e no fim do contrato consoante haja ou não entrega do bem ao cliente), fazendo a prova necessária para aplicação do direito mobilizável de acordo com o que o tem sido entendido pelo STA.

G. Este Tribunal já concluiu pela necessidade absoluta de produção de prova testemunhal quando, a propósito do processo de impugnação judicial movido pela aqui Recorrente quanto ao IVA do primeiro trimestre de 2014 (ou seja, ao mesmo ano aqui em causa), ordenou a anulação da sentença que havia dispensado a produção da prova testemunhal requerida com o mesmo fim. Referimo-nos, pois, ao Acórdão do TCA Sul, de 24.06.2021, proferido no proc. n.º 1272/14.9BELRS.

H. Por fim, não existem dúvidas de que a prova daqueles factos é susceptível de ser provada


por testemunhas.

I.A prova que se propôs realizar – de que os custos comuns são sobretudo determinados pela actividade de disponibilização de viaturas – é, na verdade, insusceptível de ser provada por prova documental.

J. Em resumo, o STA ditou uma jurisprudência segundo a qual a Recorrente tem de demonstrar que os custos comuns são determinados sobretudo pela disponibilização de viaturas e não pelo financiamento, e ditou que o ónus da prova é do contribuinte. Não permitir a prova testemunhal e entender-se que só a prova documental é apta a demonstrar tal facto significa consumar uma prova diabólica ou impossível (se fosse possível, repise-se, não era necessário litigar pois o contribuinte deduziria o IVA segundo o método de afectação real do IVA) violadora dos princípios constitucionais da proporcionalidade da proibição de indefesa (emanados dos artigos 13.º e 20.º da Constituição).

TERMOS EM QUE DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DEVENDO SER ANULADO O DESPACHO RECORRIDO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE ADMITA A REALIZAÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.”


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Não foram apresentadas contra-alegações.


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O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.
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Delimitação do objeto do recurso.

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sendo que importa analisar se a decisão recorrida errou ao dispensar a abertura de um período de produção de prova, designadamente, de prova testemunhal.


Porém, previamente, haverá que ponderar a admissibilidade, nesta fase processual, desta apelação autónoma interposta, que subiu em separado.
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II. Fundamentação de facto e de direito

No decurso da tramitação processual do processo de impugnação judicial nº 685/15.3BELRS, foi proferido despacho com o seguinte teor:

Decorre da petição inicial que a pretensão impugnatória das autoliquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado assenta na demonstração da bondade do entendimento da Impugnante, divergente das orientações genéricas da Administração Tributária que ali seguiu e que portanto, considera erradas e ilegais, acerca de como certas parcelas devem integrar a determinação da taxa de pro rata de dedução de imposto, relativamente a sujeitos passivos mistos como ela.

Neste conspecto, não está em causa a prova de factos, que de resto surgem consensuais, mais sim uma questão de direito sobre tais factos. Donde que a prova documental ofereça a matéria de facto suficiente e relevante para o julgamento de facto, nos termos que estruturam a petição. O mais necessário à decisão são questões de direito.

Assim, não tem objeto a produção de prova por meio de pessoas a que se refere o rol apresentado, a qual indeferimos ao abrigo do disposto nos arts.113ºnº1 e 114º, a contrário, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, encerrando-se a instrução.

Notifique-se.
::
Lisboa, 6 de julho de 2023.”

Discordando do decidido, a Impugnante apresenta recurso jurisdicional para este Tribunal (cfr. doc. nº 005061758 - numeração SITAF).
Salienta-se que o despacho recorrido consiste num despacho interlocutório, inserido na tramitação da causa, pelo que, antes do mais, coloca-se a questão prévia da admissibilidade do presente recurso.

Pelo Tribunal Tributário de Lisboa foi proferido despacho que admitiu o recurso, com subida imediata, em separado, e com efeito devolutivo, tendo para tanto mencionado os “arts 644º nº2 corpo e alínea d), 645º nº2, aplicáveis aqui ex vi do disposto no art.281º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, mas tem efeito devolutivo, conforme o estatuído no seu art.286 ºnº2.”

Diga, desde já, que o Tribunal ad quem não está vinculado ao teor do despacho de admissão do recurso, como resulta do disposto no artigo 652º do Código de Processo Civil

(CPC).

Vejamos então.

Sucede que sobre esta mesma questão já se pronunciou este Tribunal Central Administrativo Sul, ao apreciar uma situação em tudo similar à que aqui nos ocupa, no Acórdão proferido em 2021-03-25, no processo n.º2365/19.1BEBJA-S1, jurisprudência na qual nos revemos inteiramente e considerando o comando constante do nº 3 do artigo 8º do Código Civil (CC) – que impõe ao julgador o dever de considerar todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito - acolhemos o decidido naquele Acórdão, aderindo integralmente ao seu discurso fundamentador, aqui aplicável, com as devidas adaptações, passando a transcrever-se os fundamentos da decisão ali proferida sobre esta matéria:

De acordo com o disposto no art. 281º do CPPT “Os recursos das decisões proferidas pelos tribunais tributários, ainda que interlocutórias, regem-se pelo disposto no Código de Processo Civil, salvo o disposto no presente título”.

E o n.º 2 do artigo 644.º do CPC enuncia, de forma taxativa, as decisões interlocutórias que admitem recurso imediato.

Dispõe o artigo 644.º do CPC, na parte que aqui interessa, o seguinte:

1 – Cabe recurso de apelação:
a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;
b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.
2 – Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1ª instância:

(…)

d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;

(…).

No caso em apreço, a decisão recorrida não procedeu a um verdadeiro indeferimento dos meios de prova requeridos pela impugnante, ora Recorrente. Na verdade, o Tribunal a quo não rejeitou qualquer meio de prova, limitou-se a analisar os factos em relação aos quais a impugnante pretendia a produção de prova testemunhal e concluiu face à prova documental existente nos autos, ser desnecessária a produção de prova testemunhal.

Em suma, o despacho em causa não rejeitou qualquer meio de prova, mas apenas considerou ser desnecessária a produção de prova requerida, o que constitui realidade distinta.

Destarte resulta que o despacho proferido de dispensa de produção de prova testemunhal não configura um “despacho de rejeição de meios de prova”, pelo que só pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da decisão final, nos termos do nº 3 do artigo 644º do Código de Processo Civil.

A jurisprudência tem entendido, em casos similares aos dos presentes autos, que o despacho que dispensa a realização de determinado meio de prova não configura uma rejeição de meios de prova, e como tal esse despacho só pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da decisão final. Veja-se nesse sentido o Ac. do TCA Sul de 19/12/2017 – proc. 236/14.7BELSB-A ao afirmar que “I. O despacho, proferido na fase de saneamento da causa, que considerou não haver necessidade em determinar a abertura de um período de produção de prova, que entende que a prova documental patente nos presentes autos e no processo administrativo é suficiente para a decisão da ação, configura um despacho que não procede a uma verdadeira rejeição dos meios de prova requeridos pelas partes, nos termos previstos no artigo 644.º do CPC.
II. Não podendo o despacho recorrido ser qualificado como despacho de rejeição de meios de prova, o mesmo só pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da decisão final, nos termos do n.º 5 do artigo 142.º do CPTA.”. No mesmo sentido o Acórdão do TCA Norte de 07/04/2017 – proc. 2587/15.4BEBRG-A, e ainda o Ac. da Relação do Porto de 04/11/2019 – proc. 701/17.4T8MAI.PI, que a propósito do indeferimento de realização de 2ª perícia afirmou “I– O indeferimento da realização de uma 2.ª perícia não constitui a rejeição de um meio de prova, no sentido em que o artigo 644, n.º 2, alínea d) do CPC admite apelação.
II – Assim, o despacho que não admite a 2.ª perícia não é passível de recurso autónomo”

Na verdade, não estando em causa a rejeição de um meio de prova, o recurso do despacho que decide não realizar a inquirição de testemunhas, por entender ser a mesma desnecessária em função dos fundamentos que sustentam a causa de pedir, considerando que os factos são de conhecimento geral ou não revestem controvérsia, ou porque traduzem juízos, opiniões, conclusões ou valorações, ou porque dizem respeito a matéria de direito, ou porque são demonstráveis através de prova documental; apenas pode ser interposto a final, nos termos do n.º 3 do artigo 644º do CPC.

Face ao exposto, não deverá ser admitido, por irrecorribilidade autónoma da decisão recorrida, o requerimento de interposição de recurso jurisdicional, não se conhecendo do objeto do presente recurso - cfr. artigo 655º do CPC ex vi artigo 281º do CPPT.

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III. Decisão

Face ao exposto, acordam em conferência os juízes da Subsecção Tributária Comum deste Tribunal Central Administrativo Sul, em rejeitar o recurso.

Sem custas.

Registe e notifique.


Lisboa, 26 de setembro de 2024.


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[Maria da Luz Cardoso]

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[Isabel Silva]

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[Margarida Reis]