Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1452/12.1BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:01/23/2025
Relator:CRISTINA COELHO DA SILVA
Descritores:IRS
LIQUIDAÇÕES OFICIOSAS
CORREÇÕES ÀS LIQUIDAÇÕES
Sumário:I- A revisão dos actos tributários por iniciativa da administração tributária, prevista no artigo 78º da LGT, pode ter lugar também a pedido dos contribuintes, devendo entender-se que neste preceito se encontra previsto num meio de defesa adicional.
II- Aliás, desde logo por força do Princípio da Legalidade a que está sujeita toda a atividade da Administração Tributária (arts. 266º, nº 2, da CRP e 55º da LGT), sobre esta impende o dever de rever oficiosamente qualquer liquidação, seja a pedido dos contribuintes ou por sua iniciativa, da qual resulte um pagamento de imposto superior ao efetivamente devido.

III- Em face duma falta de cumprimento da obrigação declarativa por parte do contribuinte, a AT tem o poder de proceder à liquidação oficiosa de imposto tendo por base os elementos que constam da declaração apresentada mais próxima, por força do disposto no artigo 76º do CIRS.

IV- No entanto, em face dessa liquidação, pode o contribuinte, não apenas apresentar a declaração em falta, mas também ou em alternativa apresentar um pedido de revisão oficiosa dessa liquidação, dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação.

V- O artigo 76º, nº 4 do CIRS, preceito onde se prevê que a liquidação pode ser corrigida dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária, obriga a que a AT tenha em consideração essa nova declaração entregue pelos sujeitos passivos do imposto.

VI- Estando a Autoridade Tributária sujeita ao Princípio da Legalidade (vide arts. 266º, nº 2 da CRP e 55º da LGT), ainda que tenha ocorrido um comportamento negligente dos sujeitos passivos, esta deve proceder às correções que se mostrem adequadas às liquidações por forma a que se mostre respeitado o mencionado Princípio.

Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul





I – RELATÓRIO


H......, com demais sinais nos autos, deduziu impugnação judicial contra a decisão de indeferimento do pedido de revisão do ato tributário que apresentou contra a liquidação oficiosa de IRS do ano de 2008 com o n.º ……, que inclui os respetivos juros compensatórios, e, de forma mediata, contra a aludida liquidação, no valor global de € 81.611,59.


*


O Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, por decisão de 09 de Novembro de 2022, julgou procedente a impugnação judicial tendo anulado a liquidação.


***


Inconformada com a decisão, a Recorrente, Fazenda Pública, interpôs recurso da mesma tendo formulado as seguintes conclusões:


“CONCLUSÕES:


A. A presente contenda versa sobre a decisão em 1.ª instância que julgou procedente a presente impugnação judicial e, em consequência, condenou a Fazenda Pública no pedido de anulação da liquidação oficiosa de IRS do ano de 2008 com o n.º …….., e respetiva liquidação de juros compensatórios com o n.º 2011 ……….


B. Concluiu o douto tribunal pela ilegalidade da liquidação impugnada, considerando que os elementos constantes da declaração apresentada pelo impugnante, não podiam, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 76.º do CIRS, ser totalmente ignorados pela administração tributária, já que a norma em referência permite a correção da liquidação dentro do prazo de caducidade, tanto pela administração tributária, como pelo contribuinte.


C. Não podemos deixar de dissentir da decisão proferida, pelas razões que sustentam o presente recurso, sob o prisma do que julgamos terem sido erros de julgamento;


D. O impugnante, para promover a correção da liquidação oficiosa, lançou mão do pedido de revisão oficiosa do ato tributário, nos termos do nº 1 do artigo 78º da LGT, no prazo de que a AT dispõe para o efeito, ou seja, no prazo de 4 anos.


E. Tendo entendido o Tribunal “a quo”, a este respeito, na douta sentença recorrida que, “À luz do disposto no n.º 4 do artigo 76.º do CIRS, os elementos constantes da declaração apresentada não podiam ser totalmente ignorados pela administração tributária, já que a norma em referência permite a correção da liquidação dentro do prazo de caducidade, tanto pela administração tributária, como pelo contribuinte” (ou seja, dentro do prazo de caducidade de 4 anos), o que foi feito visto que o pedido de revisão foi apresentado em 29 de junho de 2011 (Ponto 11) dos factos assentes).”


F. A Fazenda Pública não pode concordar com este entendimento, porquanto no caso de a liquidação oficiosa ser promovida pela AT nos termos previstos na alínea b) do nº 1 e nº 2 do artigo 76º do CIRS, na sequência da omissão da entrega da declaração de rendimentos de IRS a que os contribuintes se encontram obrigados, como é o caso, a correção do ato tributário de liquidação oficiosa, no prazo estabelecido no nº 4 do artigo 76º do CIRS é, no entender desta Fazenda Pública, uma prerrogativa da AT, e não, do contribuinte.


G. No entender da Fazenda Pública, aceitar que o contribuinte que omite o dever de entrega da declaração de rendimentos de IRS, pudesse, nesta circunstância, dentro do prazo estabelecido no nº 4 do artigo 76º do CIRS, promover a correção da liquidação oficiosa elaborada nos termos legalmente impostos, em obediência ao regime de liquidação estabelecido na lei para os casosde omissão declarativa, era desvirtuar/inviabilizar, de todo, a aplicação de tal regime legal, que visa desincentivar a omissão declarativa.


H. Com efeito, o entendimento contrário promoveria, no entender da Fazenda Pública, o incumprimento declarativo generalizado, e seria incompreensivelmente benéfico para os contribuintes incumpridores do seu dever de apresentar a declaração de rendimentos, poderem no prazo do nº 4 do artigo 76º do CIRS, promover a correção da liquidação oficiosa efetuada nos termos legalmente impostos para a situação de incumprimento declarativo, como se não tivessem incumprido esse dever a que se encontram obrigados, dilatando, desta forma, vários anos o pagamento do imposto devido.


I. Assim, no entender da Fazenda Pública, face ao supra exposto, contrariamente ao entendimento vertido na douta sentença recorrida, a revisão oficiosa por iniciativa do contribuinte do ato de liquidação oficiosa promovido nos termos da alínea b) do nº 1 e nº 2 do artigo 76º do CIRS, no prazo estabelecido no nº 4 do artigo 76º do CIRS, não se mostra admissível, por desvirtuar por completo o regime de liquidação estabelecido na lei para os casos de omissão declarativa, que visa desincentivar a falta de entrega da declaração de rendimentos.


J. A Fazenda Pública não pode, igualmente, concordar com a invocada existência de erro imputável aos serviços, como fundamento do pedido de revisão oficiosa do ato tributário, a que a recorrida lançou mão, nos termos do nº 1 do artigo 78º da LGT, para efeito de promover a correção da liquidação oficiosa em causa nos autos, não se verificando, consequentemente, no entender da Fazenda Pública, as condições/pressupostos de procedência do pedido de revisão oficiosa do ato tributário em causa.


K. Conforme fundamentou a Autoridade Tributária o indeferimento da pretensão do Sujeito Passivo, a revisão não podia ser efetuada pois o erro seria imputável a comportamento negligente do Impugnante, traduzido na falta de entrega da declaração, e não aos serviços.


L. Ou seja, a liquidação oficiosa em causa nos autos, tem na sua génese o comportamento omissivo por parte do contribuinte de entrega da declaração de rendimentos modelo 3 de IRS referente ao ano de 2008, a que o ora recorrido se encontrava obrigado, tendo sido emitida de acordo com o regime legalmente previsto para os casos de omissão declarativa previsto na alínea b) do nº 1 e, nº 2, do artigo 76º, conjugado com o nº 2 artigo 31º ambos do CIRS, pelo que, a liquidação oficiosa obedece a regras especiais, quer quanto à forma de determinação dos rendimentos quer quanto aos procedimentos a seguir, assumindo-se como um procedimento vinculado, não permitindo à AT proceder de outro modo que não o estipulado nos referidos preceitos legais.


M. Nestes termos, não se poderá entender que existe erro imputável aos serviços, designadamente, para efeitos de fundamentar a revisão oficiosa da liquidação nos termos do nº1 do artigo 78º da LGT, porquanto a liquidação oficiosa foi promovida em conformidade com a lei.


N. Face ao supra exposto, é forçoso concluir que inexiste o invocado erro imputável aos serviços como condição/pressuposto de procedência do pedido de revisão oficiosa da liquidação dos autos a que a recorrida lançou mão, nos termos do nº 1 do artigo 78º da LGT, pelo que, consequentemente, não está a AT sujeita ao dever de correção da liquidação oficiosa em crise nos autos através da revisão oficiosa do ato tributário.


O. Deve, assim, no entender da Fazenda Pública, a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a impugnação judicial interposta pelo impugnante, ora recorrido.


P. Ao não decidir assim, a douta sentença recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do Direito, nomeadamente, da alínea b), do nº 1, nº 2 e nº 4, do artigo 76º do CIRS e, nº 1 do artigo 78º da LGT, devendo ser substituída por douto acórdão que considere improcedente a impugnação judicial interposta pelo impugnante, ora recorrido, mantendo-se, consequentemente, na ordem jurídica a liquidação impugnada.

Nestes termos e nos restantes de Direito que o distinto Tribunal entender por bem suprir, advoga a Representação da Fazenda Pública a procedência do presente recurso jurisdicional, determinando-se a revogação da sentença do Tribunal a quo e, desse modo, julgar improcedente a impugnação judicial interposta pela Recorrida, com o que V. Exas. farão a almejada Justiça!”

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O Impugnante, devidamente notificado, não apresentou contra-alegações.


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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo, devidamente notificado para o efeito, ofereceu aos autos o seu parecer no sentido da improcedência do recurso da Fazenda Pública.


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Colheram-se os vistos dos Juízes Desembargadores adjuntos.


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DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO


Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, em consonância com o disposto no art. 635º do CPC e art. 282º do CPPT, são as conclusões apresentadas pelo recorrente nas suas alegações de recurso, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer, ficando, deste modo, delimitado o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem.


No caso que aqui nos ocupa, as questões a decidir consistem em saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de Direito ao ter considerado ilegal a liquidação impugnada.


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II – FUNDAMENTAÇÃO


- De facto


A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:


Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, para além dos já elencados no ponto II desta sentença, resultam ainda provados os seguintes factos:


1) O Impugnante declarou o início de atividade de “Comércio de veículos automóveis”, CAE …….., em 1/01/1999, estando enquadrado no regime normal de IVA de periodicidade trimestral, e enquadrado em sede de IRS no regime de tributação com contabilidade organizada – (facto que se extrai do teor do print de fls. 10 do Processo de Revisão Oficiosa (PRO) que integra o Processo Administrativo (PA) apenso aos autos).


2) A partir de junho de 2006, o Impugnante desenvolveu um quadro de perturbação ansiosa/depressiva – (facto que se extrai do teor do documento de fls. 77 do PRO que integra o PA apenso aos autos, e das declarações de parte e depoimento testemunhal),


3) como consequência de rotura conjugal e divórcio de sua mulher - (facto que se extrai das declarações de parte e depoimento testemunhal).


4) No ano de 2006, o Impugnante declarou um volume total de proveitos no montante de € 348.211,48 – (facto que se extrai do print de fls. 10 do PRO que integra o PA apenso aos autos).


5) No ano de 2007, o Impugnante declarou um volume total de proveitos no montante de € 290.245,26 – (facto que se extrai do print de fls. 10 do PRO que integra o PA apenso aos autos).


6) O Impugnante não entregou a declaração de IRS do ano de 2008 dentro do prazo previsto no artigo 60.º do CIRS – (facto não controvertido; cfr. fls. 14 do PRO que integra o PA apenso aos autos).


7) Em 14/07/2010, a Direção de Finanças de Santarém remeteu ofício ao Impugnante, para proceder à entrega da declaração Modelo 3 de IRS do ano de 2008, nos termos do artigo 76.º do CIRS – (facto não controvertido; cfr. informação de fls. 8 e print de fls. 15, ambos do PRO que integra o PA).


8) No prazo de 30 dias concedidos para o efeito, o Impugnante não procedeu à entrega da declaração a que se alude no ponto anterior – (facto não controvertido; cfr. informação de fls. 8 do PRO que integra o PA).


9) Em 15/10/2010, pela Direção de Finanças de Santarém foi elaborado o Documento de Correção” (DC) tipo 7, tendo por base na fixação do rendimento, o disposto no artigo 76.º, n.º 1, al. c) e n.º 2, ambos do CIRS, por se tratarem de rendimentos da categoria B de IRS, considerando o valor total das vendas (€ 281.082,80) e prestações de serviços (€ 9.162,46) do ano mais próximo que se encontrava declarado (€ 290.245,26) - 62007, que multiplicado pelo coeficiente de 70% previsto no n.º 2 do artigo 31.º do CIRS, apurou um rendimento global de € 203.171,69 – (facto que se extrai do teor dos documentos de fls. 7, 8, 12 e 16 a 21 do PRO que integra o PA).


10) Em 10/01/2011, no seguimento da elaboração do DC a que se alude no ponto anterior, foi emitida em nome do Impugnante, a liquidação oficiosa de IRS n.º ……, respeitante ao ano de 2008 e no montante a pagar de € 81.611,59, que engloba os respetivos juros compensatórios no montante de € 4.159,09, com data limite de pagamento voluntário até 23/02/2011 – (cfr. documento 2 junto com a petição inicial e documento de fls. 21 do PRO que integra o PA).


11) Em 29/06/2011, o Impugnante submeteu a declaração de IRS do ano de 2008, apurando um resultado líquido do exercício de € 8.528,71, e um lucro tributável de € 11.433,83 – (facto que se extrai do teor do documento de fls. 23 a 28 do PRO que integra o PA).


12) Na mesma data, submeteu as declarações periódicas de IVA dos períodos de 2008-03T, 2008-06T, 2008-09T e 2008-12T - (facto que se extrai do teor dos documentos de fls. 29 a 33 do PRO que integra o PA).


13) Sobre a declaração a que se alude no ponto 11 do probatório, o Chefe do Serviço de Finanças de Santarém proferiu despacho a 30/06/2011, sancionando a informação de que a declaração foi entregue fora do prazo de reclamação graciosa ou impugnação judicial, mantendo-se na situação de “Decl. Fora de prazo” – (cfr. documento de fls. 34 a 35 verso do PRO que integra o PA apenso aos autos).


14) Em 5/08/2011, o Impugnante apresentou, nos termos do disposto no artigo 78.º da LGT, pedido de revisão da liquidação a que se alude no ponto 10 do probatório, invocando a injustiça grave e notória da tributação constante da liquidação, por comparação com a situação fiscal real e efetiva expressa na declaração de IRS apresentada em 29/06/2011, indicando testemunhas a inquirir – (cfr. fls. 1 a 5 do PRO que integra o PA).


15) Em 4/06/2012, com base na informação n.º 2479/12 da Direção de Serviços do IRS, foi proferido projeto de despacho de indeferimento do pedido a que se alude no ponto anterior, e notificado o Impugnante para, querendo, exercer o direito de audição a que se refere o artigo 60.º da LGT – (cfr. fls. 78 a 88 do PRO que integra o PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).


16) O Impugnante exerceu o direito de audição por requerimento de 10/07/2012, juntando um “atestado médico” onde é confirmado que o Impugnante “se encontrou doente com quadro de perturbação ansiosa/depressiva com início em junho de 2006” - (cfr. fls. 55 a 52 do PRO que integra o PA e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).


17) Por despacho de 2/08/2012, com base na informação n.º 3232/12, o pedido de revisão a que se alude no ponto 9 do probatório foi indeferido - (cfr. fls. 90 a 93 do PRO que integra o PA e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).”


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A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:


Não se provou que:


A não apresentação da declaração de IRS dentro do prazo deveu-se a depressão contínua do Impugnante, que o incapacitou para cumprir diligentemente as suas obrigações, entre estas as fiscais.”


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Sustentou a matéria de facto fixada do seguinte modo:


Motivação da decisão de facto


A decisão da matéria de facto dada como provada, resultou da análise dos documentos constantes dos autos e do Processo Administrativo, que integra o Processo de Revisão Oficiosa, que não foram impugnados, assim como, na parte dos factos alegados pelas partes que, não tendo sido impugnados, também são corroborados pelos documentos juntos (cfr. artigo 76.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária e artigo 362.º e seguintes do Código Civil), conforme discriminado nos vários pontos do probatório.


Relativamente aos factos elencados nos pontos 2 e 3 dos factos provados, o Tribunal formou a sua convicção positiva quanto ao alegado com base na conjugação do teor do atestado médico junto com o direito de audição exercido no procedimento de revisão do ato tributário, com as declarações de parte do Impugnante e o depoimento da testemunha I......, declarações e depoimento que pela sua espontaneidade e sinceridade lograram convencer o Tribunal.


No que concerne ao facto dado como não provado, as declarações de parte e os depoimentos das testemunhas, não obstante se afigurarem sérios e credíveis, não foram suficientes para convencer o Tribunal de que foi o estado ansioso e depressivo do Impugnante que motivou a não apresentação da declaração de IRS dentro do prazo. Na verdade, após a rutura conjugal e consequente estado depressivo, o Impugnante continuou a exercer atividade, vendendo automóveis e fazendo reparações (prova disso, embora com um pequeno decréscimo, são os valores faturados nos anos de 2007 e 2008), daqui se depreendendo que também estava na posse de suficientes capacidades para cumprir com as suas obrigações fiscais, daí o Tribunal dar tal facto como não provado.


As restantes alegações constantes da petição inicial não foram consideradas na factualidade provada ou não provada, ou por não serem relevantes para a decisão das questões controvertidas, ou por se tratarem de alegações de direito ou meras asserções conclusivas.


Não resultam provados ou não provados quaisquer outros factos com interesse para a decisão.”


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III . Do Direito


No presente recurso vem a Recorrente Fazenda Pública insurgir-se contra a decisão por entender que esta enferma de erro de julgamento ao sustentar que o disposto no nº 4 do artigo 76.º do CIRS e artigo 78º da LGT são passíveis de ser aplicados mesmo em situações onde tenha ocorrido negligência do sujeito passivo no cumprimento das suas obrigações fiscais.


Argui que o prazo de quatro anos mencionada no nº 1 do artigo 78º da LGT apenas pode ser aplicado pela própria AT e nunca a pedido do contribuinte. Mais alega que no caso de a liquidação oficiosa ser promovida pela AT, nos termos previstos na alínea b) do nº 1 e nº 2 do artigo 76º do CIRS, na sequência da omissão da entrega da declaração de rendimentos de IRS a que os contribuintes se encontram obrigados, como é o caso, a correção do ato tributário de liquidação oficiosa, no prazo estabelecido no nº 4 do artigo 76º do CIRS é uma prerrogativa da AT, e não, do contribuinte.


Apreciando.


Em causa nos autos está uma liquidação oficiosa de IRS referente ao exercício de 2008, resultante da falta de entrega da competente declaração Modelo 3 de IRS por parte do Recorrido. Em face dessa omissão a AT procede à liquidação oficiosa de IRS e, mais tarde, o Recorrido procede à entrega da sua declaração modelo 3 para o aludido exercício. A AT desconsidera a declaração, bem como o pedido de revisão oficiosa.


Que dizer?


À luz do disposto no artigo 57º do CIRS, é sobre os contribuintes que impende o ónus de apresentar, nos prazos estabelecidos, as suas declarações de rendimentos, as quais serão objeto de liquidação por parte da AT, por força do disposto no nº 1 do artigo 76º do CIRS.


Ainda nos termos deste artigo 76º do CIRS, sempre que os sujeitos passivos do imposto não apresentem atempadamente as suas declarações de rendimentos, competirá à AT efetuar uma liquidação oficiosa de imposto, a qual terá por base os elementos que esta disponha, ou, quando seja superior, (…) considera-se a totalidade do rendimento líquido da categoria B obtido pelo titular do rendimento no ano mais próximo que se encontre determinado, quando não tenha sido declarada a respectiva cessação de actividade” (alínea c) do nº 1 do aludido preceito), resultando ainda do seu nº 2 que o rendimento líquido será determinado de acordo com as regras do regime simplificado de tributação, com aplicação do coeficiente mais elevado previsto no nº 2 do artigo 31º do mesmo compêndio legal.


Para que a AT possa lançar mão deste regime deverá, antes de mais, notificar o contribuinte para este apresentar a declaração em falta no prazo de trinta dias, como estabelece o nº 3 do aludido art. 76º.


A questão que se encontra aqui em dissidio é a interpretação que deve ser conferida ao nº 4 deste mesmo artigo, onde se preceitua o seguinte:


4 - Em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária.”


A Recorrente defende que a correção da liquidação apenas pode ocorrer por iniciativa da AT, não podendo o contribuinte suscitar a sua correção, fora dos prazos previstos para a reclamação graciosa ou impugnação judicial, não sendo também possível recorrer ao disposto no artigo 78º da LGT, porque o prazo de quatro anos mencionado no nº 1 deste último preceito, também apenas pode ter aplicação quando a correção seja da iniciativa da AT ou quando exista um erro imputável aos serviços o que, na sua opinião não sustenta o pedido formulado pelo Recorrido.


Prossegue arguindo que havendo um comportamento omissivo e negligente por parte do sujeito passivo, nunca poderia este vir, nos quatro anos, pedir a revisão da liquidação.


Mas sem qualquer razão.


É certo que em face duma falta de cumprimento da obrigação declarativa por parte do contribuinte, a AT tem o poder de proceder à liquidação oficiosa de imposto tendo por base os elementos que constam da declaração apresentada mais próxima.


No entanto, em face dessa liquidação, pode o contribuinte, não apenas apresentar a declaração em falta, com os elementos que considera relevantes, mas também ou em alternativa apresentar um pedido de revisão oficiosa dessa liquidação, dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação.


Aliás, refira-se que nada da letra do artigo 76º, nº 4 do CIRS indica que a liquidação apenas possa ser corrigida pela AT, por sua iniciativa. Ora, de acordo com o disposto no artigo 9º do Código Civil Português, o interprete tem de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento de forma adequada, não podendo o interprete atribuir-lhe um sentido que não tenha na letra da lei o mínimo de correspondência verbal. Significa isto que, não constando do preceito nenhuma indicação, ainda que ténue, de que a possibilidade de correção apenas pode ocorrer por iniciativa da Autoridade Tributária, não se pode tal extrair do preceito aludido.


Esta matéria não é nova e tem vindo a ser sistemática e uniformemente objeto de decisões, quer por este Tribunal Central Administrativo Sul, quer pelo Supremo Tribunal Administrativo, que vão no sentido de que o disposto nestes preceitos pode ser utilizado por iniciativa dos contribuintes por forma a corrigir liquidações que considerem incorretas levadas a efeito pela AT.


Recentemente, no seu Aresto de 21/04/2022, tirado no processo nº 792/17.8BEBRG, o Supremo Tribunal Administrativo, num caso em tudo idêntico ao dos presentes autos, sumariou do seguinte modo:


I - Por referência ao exercício de 2011 e perante a omissão declarativa do contribuinte, em sede de IRS, era lícito à AT proceder à declaração oficiosa.


II – Mas, se após a declaração oficiosa o(a) contribuinte fez uso atempado da possibilidade que lhe conferia o artº 76º nº 4 do CIRS e apresentou a declaração modelo 3 de IRS, esta declaração, ainda que não gozasse da presunção de veracidade, não podia ser totalmente ignorada na sua substância.


III - A correcção de um acto tributário pode ser obtida, nos termos do art.º 79, n.º 1, da L.G.T., através de revogação, ratificação, reforma, conversão ou rectificação. Igualmente se deve levar em consideração o prazo e condições de revisão do acto tributário previstos no art.º 78.º da L.G.T, pelo que, a norma constante do art.º 76, n.º 4, do C.I.R.S., deve ser interpretada no sentido de a liquidação poder ser corrigida, por iniciativa do contribuinte, antes de completado o prazo de caducidade, nos termos dos ditos artºs 78º e 79º da LGT.


IV - O artº. 78° da LGT prevê a revisão do ato tributário «por iniciativa do sujeito passivo» ou «da administração tributária», aquela «no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade», e esta «no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços».


V - Tendo a administração tributária o dever geral de actuar com observância do princípio da legalidade (artºs 266 nº 2 da CRP e 55º da LGT) não se pode considerar admissível que pratique actos em dissonância com a realidade (ilegais por enfermarem de erro sobre os pressupostos de facto mesmo que a declaração tenha sido apresentada intempestivamente).


VI- In casu o art. 76.º, n.º 3, do CIRS, não permite que a omissão de entrega da declaração tenha como consequência a não aplicação do coeficiente conjugal, previsto no artigo 69.º do CIRS, uma vez que não há qualquer referência naquela norma à não aplicação desta disposição, apenas se referindo que não se atenderá ao disposto no artigo 70.º e só serão efectuadas as deduções previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 79.º e no n.º 3 do artigo 97.º. É manifesto, no entanto, que o coeficiente conjugal (splitting) não corresponde a uma dedução, mas antes à consideração da unidade familiar para efeitos fiscais, pelo que terá que ser aplicado.


VII - O princípio da tributação do rendimento real impunha que a AT procedesse à apreciação dos documentos que foram apresentados, determinando a eventual reforma/ correcção da liquidação oficiosa. Não o tendo feito, resultou a ocorrência de evidente excesso de quantificação de rendimentos que influenciou a liquidação oficiosa agora questionada.


Exposto assim o Direito, cumpre baixar ao caso dos autos por forma a aferir se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao ter anulado a liquidação oficiosa, como pretende a Recorrente.


In casu, o Recorrido não apresentou a sua declaração de IRS referente ao exercício de 2008, nem no prazo estabelecido para o efeito pelo artigo 57º do CIRS, nem quando para tal foi notificado, nos termos do nº 3 do artigo 76º do mesmo compêndio legal.


No entanto, após a receção da liquidação, mas já fora do prazo para reclamar graciosamente ou impugnar o ato, apresentou uma declaração para o mesmo período. Essa declaração não foi objeto de liquidação, nem de qualquer apreciação por parte da AT, como se lhe impunha, nos termos acima referidos.


Mais, quando o Recorrido apresenta um pedido de revisão oficiosa da liquidação, a AT considera que o pedido de revisão não podia ser considerado porque o erro era imputável a comportamento negligente do Impugnante, traduzido na falta de entrega da declaração, bem como que o pedido era intempestivo por ter sido apresentado fora do prazo da reclamação graciosa.


Todos estes factos ocorrem dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação.


Ora, facilmente decorre do exposto que a AT errou ao não considerar a declaração apresentada, que embora não beneficie da presunção de veracidade que resulta do disposto no artigo 75º da LGT, impunha que aquela entidade apreciasse os elementos dela constantes por forma a confirmar ou infirmar os elementos da mesma constantes, tanto mais que sobre si impede o cumprimento do Princípio da Legalidade, constante da Constituição da República Portuguesa, mais concretamente do seu artigo 266º, nº 2.


Como é afirmado no Aresto cujo sumário transcrevemos ao contribuinte deve ser dada a possibilidade de fazer valer a sua concreta situação real, desde logo por obediência ao Princípio da Tributação pelo Lucro Real e do Princípio da Legalidade. Sustenta ainda aquele Aresto que:


Por outro lado, e a nosso ver, do disposto no n.º 4 do artigo 76.º do CIRS, decorre que, em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da LGT, isto é, dentro do prazo de caducidade de 4 anos.


Louvando-nos aqui na jurisprudência (Acórdão do STA de 12.05.2018, Proc. nº 0220/11.BEVIS), indicada na douta Sentença recorrida diremos que «A correcção de um acto tributário pode ser obtida, nos termos do art.º 79.º, n.º 1, da L.G.T., através de revogação, ratificação, reforma, conversão ou rectificação. Igualmente se deve levar em consideração o prazo e condições de revisão do acto tributário previstos no art.º 78.º da L.G.T, pelo que, a norma constante do art.º 76.º, n.º 4, do C.I.R.S., deve ser interpretada no sentido de a liquidação poder ser corrigida, por iniciativa do contribuinte, antes de completado o prazo de caducidade, nos termos dos ditos artºs. 78.º e 79.º, da L.G.T. (Assim decidiram já, os acs do T.C.A. Sul – 2.ª Secção, de 3/12/2015, proc. 7421/14 e de 10/11/2016 no recurso n.º 06790/13, entre outros do mesmo Tribunal (…)”


Em nosso entender, o sentido desta liquidação provisória (oficiosa) mais não é do que prevenir uma eventual caducidade do direito à liquidação.


Na realidade, afigura-se-nos não poder ter-se a liquidação oficiosa como um substituto da declaração omissa do contribuinte.


A entender-se assim, estar-se-ia a vedar a fixação da liquidação com base no efetivo lucro real ou situação particular do sujeito passivo.


Nos casos de iniciativa oficiosa de revisão previstos na lei, podem os contribuintes provocar a revisão a levar a efeito pela AT, posto dever entender-se a revisão como um poder-dever face aos princípios da justiça, da igualdade e da legalidade que a Fazenda Pública tem de observar na sua atividade.


A observância de tais princípios impõe que sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao que seria devido face à lei.


No que concerne à alegação reativa ao erro dos serviços, somos a dizer que a impugnante não foi omissa, nas declarações de IVA sendo que, quer quanto ao agregado familiar quer quanto ao próprio rendimento tributável, a AT possuía elementos para proceder à liquidação.


A nosso ver e salvo melhor, a não consideração dos elementos, aduzidos pelo contribuinte, violou o princípio da tributação do rendimento real.


Pelo contrário, em nosso entender, o conhecimento dos referidos elementos, aduzidos pelo contribuinte, imporia que a AT procedesse à sua apreciação determinando a eventual reforma ou correção da liquidação oficiosa.”


Ao ter assim decidido, a decisão do Tribunal a quo não padece do erro de julgamento que lhe vem imputado, pelo que improcedente deverá ter de ser julgado o presente recurso.


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CUSTAS


No que diz respeito à responsabilidade pelas custas do presente Recurso, atendendo ao seu total decaimento da Recorrente, as custas são da sua responsabilidade. [cfr. art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT].


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III- Decisão


Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Contencioso Tributário Comum deste Tribunal Central Administrativo Sul negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.


Lisboa, 23 de Janeiro de 2025


Cristina Coelho da Silva (Relatora)


Isabel Silva


Margarida Reis